Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
61/20.6PAVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CRIME DE INFRAÇÃO DE REGRAS DE CONSTRUÇÕES
RESPONSABILIDADE DE PESSOA COLECTIVA
CRIME DE PERIGO CONCRETO
TEORIA DA IMPUTAÇÃO OBJETIVA DO RESULTADO À AÇÃO
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO ATIVO
Nº do Documento: RP2023030861/20.6PAVNG.P1
Data do Acordão: 03/08/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AOS RECURSOS INTERPOSTOS POR ALGUNS DOS ARGUIDOS E NEGADO PROVIMENTO AOS RECUROS INTERPOSTOS POR OUTROS ARUIDOS
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - No caso vertente, escapou ao domínio de imputação aos sócios gerentes o acompanhamento, fiscalização e decisão sobre o modo de execução da obra em questão, pelo que não podiam antecipar, criar, aumentar ou evitar o perigo concreto.
II - Não deixa, porém, de verificar-se, por outros motivos, a responsabilidade penal da pessoa coletiva
III - O crime de infração das regras de construção configura um crime de perigo concreto e de resultado e tal não significa que não se possa fixar responsabilidade civil pela prática do mesmo
IV – Carece de legitimidade, desacompanhada dos demais herdeiros, uma herdeira da vítima a que é relativo o pedido de indemnização civil formulado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 61/20.6PAVNG.P1
Relator: Paulo Emanuel Teixeira Abreu Costa
Adjunto: Nuno Pires Salpico
Adjunta: Paula Natércia Rocha



Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular, a correr termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia-J4 foi proferida sentença decidindo:

A - Nestes termos, julgo a acusação pública totalmente procedente, por provada, e, em consequência, decido:
a) Condenar cada um dos arguidos AA, BB e CC, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de infração de regras de construção, previsto e punido pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada a cada um dos arguidos AA, BB e CC pelo período de dois anos;
c) Condenar cada um dos arguidos DD e EE pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de infração de regras de construção, previsto e punido pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 01 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;
d) Suspender a execução da pena de prisão aplicada a cada um dos arguidos DD e EE pelo período de um ano e dez meses;
e) Condenar a sociedade arguida “A..., LDA” pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de infração de regras de construção previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 11º e 277º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, na pena de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de 100,00€ (cem euros), assim perfazendo o montante total de 30.000,00€ (trinta mil euros);
f) Condenar os arguidos AA, BB, CC, DD e EE e a sociedade arguida “A..., LDA” no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal em relação a cada um dos arguidos, nos termos do disposto no artigo 513º do Código de Processo Penal, e no artigo 8º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais.
*
B - Julgo ainda parcialmente procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente/demandante FF, em consequência do que decido:
a) Condenar solidariamente os arguidos AA, BB, CC, DD e EE e a sociedade arguida “A..., LDA” no pagamento da quantia de 1.000,00€ (mil euros), a título de danos patrimoniais sofridos pela demandante, acrescido de juros desde a citação do pedido de indemnização até integral e efetivo pagamento; da quantia de 8.000,00€ (oito mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG, e da quantia de 2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela demandante, acrescidas dos respetivos juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente sentença, até efetivo e integral pagamento;
b) Custas, na parte cível, na proporção do decaimento.”

Inconformados, os arguidos A... Ldª, AA, BB e CC interpuseram recurso, invocando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
“A - DA RESPONSABILIDADE PENAL DA PESSOA COLECTIVA E DO PEDIDO DE
ABSOLVIÇÃO DA MESMA
1- A responsabilidade das pessoas colectiva depende do pressuposto fundamental, de que a infração tenha sido cometida pelos seus órgãos ou seus representantes, em seu nome, e no seu interesse.
2- Ora na situação em concreto, apenas os dois sócios, tinham o poder de representar a sociedade e mais ninguém, incluindo o outro réu, o chefe da obra o Sr. CC e, muito menos, os outros dois co-réus os trolhas DD e EE.
3- Apenas os réus, AA e BB, tem poderes diretivos e são os únicos sócios, e únicos gerentes.
4- Estes dois réus, não intervieram diretamente nas obras.
5- Só o reu CC, é que determinava as tarefas do dia e foi ultimamente ele, que decidiu sozinho, que os trolhas deviam limpar o entulho em detrimento de meter o corrimão.
6- O Sr. CC é um mero funcionário da empresa, não é um diretor, não é um supervisor, ou sócio, ou representante legal, e não obriga empresa nem por procuração nem por delegação de poderes da sociedade aqui Ré.
7- Apenas os sócios preenchem esse requisito, visto não existir um único funcionário com categoria superior na empresa, o mais alto é um mestre/chefe de obras e o resto são trolhas e serventes.
8- Mas mais, não se pode dizer que a ré, sociedade comercial, tenha sido no seu interesse que foram praticados os factos que substanciaram o crime, quando ela própria ou seus sócios, não sabiam que tal tinha acontecido.
9- Pelo contrário, quando muito pode ser considerado no interesse pessoal, de proteção do seu emprego, do réu CC, pois era o responsável pelo andamento da obra e teria que explicar eventuais atrasos aos sócios, mas sem qualquer interesse directo da sociedade comercial.
10- Pelo exposto também este requisito, de interesse direto da pessoa colectiva na prática do facto ilícito, não se encontra preenchido.
11- Em conclusão, a culpa da pessoa colectiva, carece dos fundamentos e pressupostos base, para ser concretizada, e, portanto, deve a mesma ser simplesmente absolvida da sentença que a condenou no presente processo.
B - DA CULPA DOS SÓCIOS, OS RÉUS AA E BB E DO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO DOS MESMOS
12- Os sócios são culpabilizados, não por terem dado qualquer ordem expressa, ou sequer por terem visitado a obra e verem as condições, mas, de acordo com a sentença, por um dever que omitiram, o dever de verificar que os seus funcionários cumpriam com as instruções que lhes tinham sido dadas sobre o cumprimento das leis da segurança na construção civil.
13- A obra em questão, como é referido na sentença, não tinha licenciamento, é uma obra de escassa relevância.
14- Ou seja, é o próprio estado português a reconhecer que neste tipo de obras estéticas, não estruturais, o dever de cautela é menor pois o perigo é menor e sendo assim, não é preciso pedir licença à câmara, apenas comunicar que as obras vão começar e em que é que consistem.
15- Este é o ponto fundamental para se determinar se era exigível aos réus perceberem que estavam na presença de uma obra de risco tremendo que implicava grandes cautelas, ou se era uma obra de escassa relevância, igual a centenas que tinham feito nos últimos 30 anos de trabalho.
16- Não era exigível a ninguém da profissão prever um grande risco para uma tão simples que nem precisava de ser licenciada, o que era obrigatório, era colocar o processo na câmara e avisar do começo da obra.
17- Ora, os sócios fizeram isso, que era a única parte que lhes competia, o tratamento administrativo da obra, para alem da angariação dos clientes claro, o resto a execução no dia a dia, eles confiaram nos seus funcionários e tinham razão para isso, pois como é dito na sentença, tinham mais de 30 anos de casa, sem um único processo contraordenacional, ou sequer um acidente na obra, tinham um registo perfeito.
18- E sendo assim, não lhes era exigido, que criassem, por exemplo, a figura do inspetor interno de obras não licenciadas, visto nas licenciadas, eles terem por obrigação que ter um inspetor de segurança, assim como um plano de segurança, como já supra explicado.
19- Pelo exposto, aos dois sócios, apenas se pode imputar, quando muito, de terem confiado nos seus funcionários de 30 anos, que tinham como histórico de erros ZERO, repita-se ZERO.
20- Em conclusão, devem os sócios ser absolvidos na integra da sentença que os condenou.
C- SUBSIDIARIAMENTE SE OS RÉUS AA E BB, FOREM CONSIDERADOS CULPADOS - PEDE-SE A REQUALIFICAÇÃO DA CULPA E A REDUÇÃO DA MEDIDA DE PENA APLICADA
21- Se este douto tribunal a que se recorre, considerar que mesmo apôs o supra alegado, tal não escusa por completo a culpa dos sócios, então a mesma deve ser reequacionada e convertida de culpa dolosa em culpa por negligência.
22- Atua com negligência, quem não tomou todas as cautelas mínimas exigidas por lei e por bons costumes, exigidas a um pai normal de família.
23- O acto concreto que se caracteriza num acto ilícito, ou seja uma conduta ativa e não omissiva, não existiu.
24- Sobra assim, a culpa por omissão de um dever geral de cuidado, ou seja, culpa por terem confiado completamente nos seus funcionários que tinham mais de 30 anos sem erros ou problemas, na execução de uma obra.
25- Dolo no cometimento do crime de falta de cumprimento das regras de construção civil, seria por exemplo, numa obra com licenciamento, não tivessem criado um plano de inspeção e fiscalização de obra ou de incêndios ou de regras de segurança, como obriga a lei nesses casos.
26- Mas como já foi supra alegado a obra não precisava de licenciamento.
27- Em conclusão, e subsidiariamente, a absolvição pedida, deve a culpa dolosa ser convertida em culpa por negligência, no máximo e sendo assim, a pena aplicada deve ser reduzida ao mínimo que este douto tribunal considerar, tendo em conta o alegado.
D – SUBSIDIARIAMENTE AO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO - PEDE-SE A REQUALIFICAÇÃO DO GRAU DE CULPA DA PESSOA COLECTIVA E A REDUÇÃO DA MEDIDA DE PENA PLICADA
28- A culpa da pessoa colectiva é sempre uma culpa abstrata, visto não ser, um ser humano com capacidade fisiológica para praticar atos; fala-se assim uma culpa indireta pela atuação dos agentes que obrigam ou atuam em nome e no interesse da pessoa colectiva.
29- A culpa das pessoas colectiva assenta numa construção jurídica não natural, mas sim, num movimento jurídico/cívico mundial que visa sancionar diretamente as empresas, com vista a demovê-las da pratica de atos futuros, em vez de se fixar apenas em culpabilizar os seus agentes.
30- Por tudo o supra exposto, na determinação da pena a aplicar à pessoa colectiva, deve se ter em conta outros fatores que não apenas as contas do estado.
31- Na determinação do valor da multa a aplicar, o tribunal utiliza duas balizas, uma as situações análogas passadas, a outra, qual o mínimo de multa possível, para demover a pessoa colectiva de práticas futuras.
32- É o próprio Juiz, que na sua valoração deve ter em conta qual o grau de sacrifício financeiro, sim porque pagar 30 mil euros de multa, é um sacrifício financeiro para 99% das empresas portuguesas, que vai impor à empresa condenada, para que esta perceba que não deve fazer outra vez, e apenas o mínimo.
33- Em conclusão e como não se trata de uma empresa reincidente e o próprio grau de culpa que nesta circunstância como supra alegado, é no mínimo duvidoso, visto o réu CC não representar à empresa, pede-se a redução da multa ao mínimo legalmente possível, por ser suficiente para a empresa ser demovida.
F- DA ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
34- Mas mais, quando se determina a multa temos que ter em conta o contexto social, e o próprio equilíbrio económico da empresa, caso contrário pode o tribunal ao tentar reparar uma situação, criar por insensibilidade uma situação pior do que a que pretendia reparar.
35- Ora estamos a sair de um período de pandemia covid, onde as empresas gastaram todas as suas reservas para se manterem solventes.
36- Aplicar a uma empresa que anda não conseguiu sair do buraco provocado pelo covid, uma multa de 30 mil euros, o equivalente a um salário mínimo de dois homens durante quase dois anos, é no mínimo contraproducente, e ultrapassa em tudo, o razoável e o necessário para desincentivar a prática de ilícitos futuros, sendo esse o único motivo da multa.
37- Pelo exposto, somos da opinião que estamos na presença de uma situação que justifica plenamente, no caso de ser considerada culpada, a atenuação especial da pena aplicada a pessoa colectiva.
38- Em conclusão, requerer-se que na análise da situação e na determinação da medida de pena, seja considerada a faculdade de para além de absolver, ou subsidiariamente, fixar a mínima pena prevista pelo artigo violado, a especial atenuação da mesma que aqui expressamente se peticiona.
G - QUANTO À CULPA E A REDUÇÃO DA MEDIDA DE PENA DO RÉU CC.
39- Embora quem de facto teve o controle efetivo da obra, como encarregado dela, foi o Sr. CC, o mesmo não tem qualquer histórico de condenação passada, alias, nem sequer tem no cadastro algo tao simples como uma infração rodoviária, ou uma condução por excesso de álcool.
40- Pelo exposto, trata-se de um cidadão exemplar que pode ter tido um momento menos atento, mas no nosso entendimento, não se justifica a aplicação, de uma pena de prisão, embora suspensa, para lá da mínima prevista na lei.
41- Em conclusão, requerer-se a redução da pena aplicada, embora suspensa, para o mínimo que este douto tribunal considerar como suficiente.
F - PEDIDO EM SIMULTÂNEO DE TODOS OS RÉUS PARA A ABSOLVIÇÃO DA CONDENAÇÃO NO PEDIDO DE INDEMINIZAÇÃO CIVIL
42- Foi considerado como não provado qualquer nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o resultado final da morte da D. GG.
43- Pelo exposto, se não existe nexo de causalidade entre o acidente e a morte, porque motivo é que havia de existir nexo de causalidade entre as eventuais doenças da falecida e o acidente
44- Não faz qualquer sentido, dizer que a queda não provocou a morte, mas a queda provocou todas as outras enfermidades que a falecida já sofria antes do acidente, e com base nessa premissa falaciosa, imputar a culpa do sofrimento da filha e da própria falecida, ao comportamento dos réus.
45- Não tem cabimento a condenação em danos morais, em 2.000€, a serem pagos à assistente, em compensação por lidar com o sofrimento da mãe, que com todo o devido respeito, já sofria infelizmente, de muitas doenças, antes do acidente.
46- Menos sentido ainda tem, a condenação em 8.000 euros, a pagar à própria falecida, que não é parte na ação, e não deduziu qualquer pedido de indeminização cível, nem à sua filha, a aqui assistente, o fez em seu nome.
47- Em conclusão, devem os réus serem absolvidos na integra da condenação do pedido de indemnização cível, quer por falta de nexo de causalidade quer no que concerne aos 8.000 euros por verdadeira falta de legitimidade processual.
G - SUBSIDIARIAMENTE PEDE-SE A REDUÇÃO DOS VALORES SENTENCIADOS NO PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
48- Se o tribunal a que se recorre, entender que existe nexo de causalidade, e/ou legitimidade processual da falecida, então também os danos patrimoniais devem ser reduzidos apenas aos provados por faturas, e tão somente estes, no valor de 234,17€, pedindo-se aqui expressamente a absolvição de todo o remanescente
49- Conclui-se assim quanto a indemnização por danos morais, a considerar-se que existe nexo de causalidade e legitimidade quanto aos 8.000 €, que este tribunal a que se recorre, usando do espirito de equilíbrio e conjugando todos os fatores, nomeadamente o grau de culpa, o histórico dos réus e a situação concreta do caso, reduza os valores condenados, para o mínimo que este tribunal considerar como justo, assim se fazendo justiça.
POR TUDO O EXPOSTO DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA:
A) DEVERÁ SER ABSOLVIDA A PESSOA COLECTIVA
B) DEVERÃO SER ABSOLVIDOS OS RÉUS AA E BB
C) SUBSIDIARIAMENTE, SE OS RÉUS AA E BB, FOREM CONSIDERADOS CULPADOS PEDE-SE A REQUALIFICAÇÃO DA CULPA E A REDUÇÃO DA MEDIDA DE PENA APLICADA
D) SUBSIDIARIAMENTE AO PEDIDO DE ABSOLVIÇÃO, PEDE-SE A REQUALIFICAÇÃO DO GRAU DE CULPA DA PESSOA COLECTIVA E A REDUÇÃO DA MEDIDA DE PENA PLICADA E SE POSSÍVEL A ATENUAÇÃO ESPECIAL DA MESMA.
E) DEVERÁ SER REDUZIDA A MEDIDA DE PENA DO RÉU CC
F) DEVERÃO TODO OS RÉUS SER ABSOLVIDOS DA CONDENAÇÃO NO PEDIDO DE INDEMINIZAÇÃO CIVIL
G) SUBSIDIARIAMENTE, SE NÃO FOREM ABSOLVIDOS, PEDE-SE A REDUÇÃO DOS MONTANTES SENTENCIADOS A TÍTULO DE INDEMINIZAÇÃO CIVIL.”

Recorreram ainda os arguidos demandados DD e EE, limitados à matéria cível, concluindo:

“A)- O presente Recurso vem interposto da Douta Sentença proferida no processo em referência e que condenou, solidariamente, os ora Recorrentes, acusados e condenados pela prática em autoria material e na forma consumada de um crime de infracção de regras de construção, ao pagamento da quantia de 1.000,00€ (mil euros), a título de danos patrimoniais sofridos pela demandante, acrescido de juros desde a citação do pedido de indemnização até integral e efetivo pagamento, da quantia de 8.000,00€ (oito mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG, e da quantia de 2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela demandante, acrescidas dos respectivos juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente sentença, até efectivo e integral pagamento;
B)- Incide o presente recurso sobre o julgamento da matéria de direito, sendo notória, com o devido respeito por opinião contrária, a existência de erros consubstanciados, a saber, na inexistência de danos invocados que tenham sido ocasionados pelo cometimento do crime de infracção de regras de construção, na inexistência de pedido cível relativamente à condenação ao pagamento da quantia de 8.000,00€ (oito mil euros), a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG e na insuficiência de prova relativamente à condenação ao pagamento da quantia de 1.000,00€ (mil euros), a título de danos patrimoniais sofridos pela Demandante;
C)- Dos danos invocados no pedido de indemnização cível, nenhum deles foi ocasionado pelo cometimento do crime de infracção de regras de construção, ocorrendo, notoriamente, violação do disposto no artigo 74º, nº1 do CPP, relativamente à questão do nexo de causalidade, tendo sido interpretado como não sendo necessário que o crime em questão seja susceptível de per si de ocasionar o dano invocado, quando deveria ter sido, precisamente, o contrário a interpretação adequada: a de que para haver nexo de causalidade é necessário que o crime em questão seja susceptível de per si de ocasionar o dano invocado;
D)- Não havendo nexo de causalidade entre o crime em causa e os danos invocados, não existe obrigação de indemnizar, pelo que deve o pedido de indemnização cível ser considerado totalmente improcedente e, em consequência, absolver-se todos os responsáveis civis do pedido indemnizatório apresentado;
E)- À luz do nosso direito, a indemnização por perdas e danos arbitrada em processo penal tem natureza exclusivamente civil, e, como consequência, o artigo 77º do CPP consagra o princípio da necessidade de formulação do pedido de indemnização cível, mas não existe qualquer pedido indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG;
F)- Ocorre, notoriamente, violação do disposto no artigo 77º do CPP, relativamente à necessidade da existência de pedido indemnizatório, tendo, eventualmente, o Tribunal interpretado que o pedido de indemnização cível apresentado pela Demandante continha os elementos suficientes para se poder pronunciar sobre a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG, mãe da Demandante, sem a necessidade de expressa referência a tal dano ou indemnização, quando a interpretação correcta deveria ter sido no sentido da necessidade dessa expressa referência;
G)- Não havendo o respectivo pedido indemnizatório, não pode, sequer, o tribunal pronunciar-se sobre o mesmo (que inexiste), não devendo ter havido pronuncia sobre tal matéria, pelo que esta condenação deve ser dada sem efeito relativamente a todos os responsáveis civis;
H)- O peticionado a título de danos patrimoniais sofridos pela Demandante foi o valor de mil euros, mas como apenas conseguiu fazer prova do gasto de 234,17€, o Tribunal lançou mão da equidade, e do regime previsto no nº3 do artigo 566º do Código Civil (doravante apenas CC), para completar o restante que faltava até ao valor peticionado;
I)- Ocorre, notoriamente, violação do disposto no artigo 566, nº3º do CC, relativamente à determinação do valor do dano segundo juízo de equidade, tendo, eventualmente, o Tribunal interpretado no sentido de que este normativo dispensa o lesado de alegar e provar os factos que revelem a existência dos danos e permitam a sua avaliação segundo um juízo de equidade, ao invés da sua correcta interpretação que deve ser no sentido da indispensabilidade do legado em alegar e provar aqueles factos.;
J)- Apenas foi considerado provado o dano patrimonial avaliado em 234,17€, não tendo sido provado mais algum dano patrimonial, que pudesse ter sido avaliado, mesmo através de juízo de equidade, pelo que nesta parte, o pedido indemnizatório apenas poderia ser considerado parcialmente procedente, devendo os responsáveis civis ser apenas condenados ao pagamento solidário daquela quantia de 234,17€.”

FF, ofendida e Assistente respondeu aos recursos concluindo:
“A prova produzida em audiência de discussão e julgamento é suficientemente elucidativa da prática dos factos pelos quais os arguidos foram acusados e evidenciou o seu cometimento, motivo pelo qual foram correctamente condenados.
II
Com efeito, a prova produzida foi ponderada e valorada pelo tribunal a quo com respeito pelo art.º 127.º do Código de Processo Penal e tal prova permite que fossem dados como assentes os factos descritos na sentença recorrida e confere a todo o processo de formação da convicção do Juiz de Direito do Tribunal a quo uma lógica e racionalidade inatacáveis, pois não existe na opinião da Assistente qualquer erro na apreciação da prova ou na valoração da mesma pelo Tribunal a quo.
III
As penas aplicadas na sentença recorrida, obedeceram à apreciação da culpa de cada agente, à reintegração dos recorrentes, bem como, ponderou as exigências decorrentes das necessidades de prevenção geral e especial, são penas equilibradas e respeitaram os critérios legais impostos para a sua determinação, razões pelas quais deverão as penas manter-se e serem confirmadas.
IV
O Pedido Civil julgado parcialmente procedente, foi determinado com respeito pelas normas que regem o peticionado, apurando de forma adequada o quantum indemnizatório e os fundamentos do mesmo, motivo pelo qual deverá ser confirmado e mantido inalterado.
V
A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não padece de qualquer vício que coloque em causa a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantida nos seus precisos termos, julgando-se assim os recursos dos arguidos improcedentes.
VI
Pelo exposto, não merece qualquer reparo a decisão recorrida.
VII
Não foi violada qualquer norma jurídica.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“Os arguidos, ora recorrentes, AA e BB, agindo por si e em representação da sociedade arguida “A... Lda”, enquanto entidade executante e empreiteira geral da obra, não lograram, por intermédio do arguido CC, encarregado de obras, adotar, aquando da execução da mencionada obra, as regras e procedimentos de segurança necessários a prevenirem e evitarem os riscos associados à execução da obra de demolição de uma parede a que procederam e de definir as medidas de prevenção adequadas a assegurar que a utilização das escadas que ligava o rés do chão ao primeiro andar pudesse ser efetuada em total segurança, designadamente, colocando uma proteção nesse lanço de escadas com uma altura mínima de um metro, e recolocando o corrimão que se encontrava fixado na parede que demoliram, e colocando uma sinalização a alertar para o facto de já não existir a parede.
Da leitura da motivação da sentença recorrida, resulta que a convicção do Tribunal “a quo”, quanto a toda a factualidade provada, bem como à sua integração jurídico-penal, encontra-se devida, clara e exaustivamente fundamentada, permitindo acompanhar todo o processo lógico decisório.
Pelo que, dúvidas não restam que quer a sociedade arguida, quer os arguidos AA e BB agiram com culpa, pelo que se mostra preenchido o elemento subjetivo do crime de infração de regras de construção, p. e p. pelo artigo 277º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, devendo, nesta parte o recurso improceder.
A decisão recorrida decidiu corretamente também quanto à medida da pena, de modo a não merecer absolutamente qualquer censura por parte do M.P., nesta instância, concordando-se na íntegra com a mesma.”
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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exmª. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer o sentido da absolvição dos arguidos AA, BB, DD e EE por a sentença padecer dos vícios da insuficiência da matéria de facto dada como provada, para a decisão de condenação, da contradição insanável entre os factos dados como provados e decisão e erro notório na apreciação da prova.
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É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respetiva motivação constantes da decisão recorrida (transcrição):

« 1º- A sociedade arguida “A..., Lda”, é uma sociedade por quotas, desde 29/09/1987, matriculada na Conservatória do Registo Comercial do Porto, sob o número
..., e que corresponde à anterior matrícula n.º ..., registada na mesma conservatória, tendo como objeto social a elaboração de projetos, fiscalização e execução de obras de construção civil, compra, venda e administração de imóveis e participações financeiras, importação e exportação, comércio de indústria de quaisquer produtos nacionais ou estrangeiros, nomeadamente equipamentos, materiais de construção, mobiliário, artigos alimentares, têxteis, calçado e elétricos.
2º- Os arguidos BB e AA, desde a constituição do ente coletivo até aos dias de hoje, são os únicos sócios e exercem conjuntamente a gerência da sociedade.
3º- Eram estes dois arguidos quem diariamente decidiam o destino desta empresa, designadamente, a sua gestão comercial, financeira e cumprimento de normas legais decorrentes da especificidade da atividade da empresa, em especial, pelo cumprimento das normas legais respeitantes às regras a observar na construção civil.
4º- No exercício da sua atividade profissional, a sociedade arguida “A..., Lda” foi contratada por HH para a realização de uma obra de restauro de uma loja, sita no rés-do-chão do prédio localizado na Rua ..., Vila Nova de Gaia.
5º- Essa obra consistia em colocar um teto falso, colocar pavimento novo e substituir uma parede em tabique, que dividia a entrada da loja e a das residências.
6º- Os arguidos CC, DD e EE trabalhavam, à data da prática dos factos, por conta da sociedade “A..., Lda”.
7º- Os arguidos DD e EE tinham a categoria profissional de pedreiro, sendo responsáveis por executarem materialmente a obra referida em 4º e 5º.
8º- O arguido CC desempenhava o cargo de encarregado de obras, sendo o responsável pela supervisão das mesmas, por destacar os funcionários necessários para cada construção, controlar o tipo de serviço e como é que os trabalhadores deviam realizar as suas tarefas, bem como gerir os materiais necessários à realização das obras.
9º- O arguido CC trabalha há quase 32 anos para a sociedade arguida “A..., Lda”.
10º- O prédio referido em 4º é composto por quatro pisos, sendo o primeiro piso correspondente ao rés-do-chão, tendo como afetação o comércio, com uma área bruta privativa de 122,500 m2.
11º- Os restantes pisos, do imóvel em causa, correspondem ao 1.º, 2.º e 3.º andar, tendo como afetação a habitação.
12º- Em dia não concretamente apurado mas situado antes do dia 09/10/2019, no rés-do-chão do prédio localizado na Rua ..., Vila Nova de Gaia, o arguido CC, no exercício das suas funções de encarregado de obras, dirigiu-se aos arguidos DD e EE e ordenou-lhes que derrubassem determinada parede, que se situava dentro do referido imóvel.
13º- A mencionada parede fazia a divisória entre a entrada da loja e a entrada e escadas de acesso aos diferentes andares das habitações.
14º- Do lado que se encontrava a entrada das residências, a parede estava equipada com um corrimão.
15º- No local, não existia qualquer balizamento ou sinalização da obra.
16º- Durante o dia 09/10/2019, desde as 08h.00m, os arguidos DD e EE, com recurso a objetos não concretamente apurados, executaram os trabalhos de partir e deitar por terra a referida parede.
17º- No mesmo dia e no mesmo sítio, em hora não concretamente apurada, mas pelo início da tarde, o arguido CC, após verificar que, nesse momento, a parede ainda estava parcialmente demolida, disse aos arguidos DD e EE para, quando terminassem de a deitar abaixo, retirarem o entulho e limparem o lanço de escadas que ligava o rés-do-chão ao primeiro andar.
18º- O arguido CC determinou ainda que os arguidos DD e EE não colocassem qualquer proteção na escadaria, devendo apenas fazê-lo na manhã do dia 10/10/2019.
19º- Os arguidos DD e EE retiraram o entulho criado pelo desmantelamento da parede, pegaram no corrimão, que se encontrava no meio do entulho, e colocaram-no no chão, ao lado da escadaria, do lado da loja, e procederam à limpeza do lanço de escadas que ligava o primeiro andar ao rés-do-chão.
20º- Os arguidos DD, EE e CC tinham conhecimento de que o prédio era constituído, nos pisos superiores, por habitações.
21º- Os arguidos DD, EE e CC já tinham visto, em momentos não concretamente apurados, alguns dos moradores a subir e a descer as escadas na zona de acesso às residências.
22º- Os arguidos DD e EE, após derrubarem a parede, não colocaram qualquer proteção no lanço de escada entre o patamar do primeiro andar e o do rés-do-chão.
23º- Os arguidos DD e EE não colocaram qualquer sinalização a alertar para o facto de já não existir a parede que separava a entrada da loja da entrada e escadaria de acesso às habitações.
24º- Os arguidos DD, EE e CC tinham conhecimento de que o rés-do-chão e as escadas do edifício não tinham iluminação.
25º- Os arguidos DD e EE, pelas 18H00, saíram do imóvel em causa e dirigiram-se para a carrinha da sociedade arguida “A..., Lda”, seguindo em direção às suas habitações.
26º- No mesmo dia, neste mesmo prédio, pelas 20H57, a vítima GG, juntamente com a sua filha FF e os dois filhos desta, saíram da sua habitação, sita no 3.º andar, a fim de irem tomar café, encaminhando-se para a rua.
27º- A vítima GG, nascida em .../.../1931, descia a escadaria do prédio, pelo lado direito, apoiando-se com as mãos no corrimão.
28º- Chegada ao lanço de escadas entre o 1.º andar e o rés-do-chão, a vítima GG tentou agarrar novamente o corrimão, curvou o seu corpo completamente para a direita e caiu de uma altura de cerca de 2 metros, embatendo com a parte superior direita da sua cabeça no solo.
29º- O referido embate causou-lhe, como consequência direta e necessária, um traumatismo cranioencefálico e uma ferida extensa craniana ao nível frontal/parietal direita.
30º- A vítima GG deu entrada nas urgências, no dia 09/10/2019, pelas 21H36, no Centro Hospitalar ... e ..., tendo recebido alta no dia 10/10/2019, pelas 15H31.
31º- No dia 10/10/2019, em hora não concretamente apurada, o arguido CC, ordenou aos arguidos DD e EE que colocassem o corrimão e uma proteção de segurança na escadaria entre o 1.º andar e o rés-do-chão, do supra referido prédio.
32º- Não existia licença de construção para a supra referida obra.
33º- Os arguidos AA e BB agiram por si e na qualidade de gerentes da sociedade arguida “A..., Lda”, sendo responsáveis por toda a atividade exercida por esta sociedade e, nomeadamente, pelas regras de construção que necessitavam de ser respeitadas pelos seus trabalhadores, que, sob as suas ordens e orientações, executavam.
34º- Os arguidos AA e BB agindo por si e em representação da arguida A..., Lda, incumpriram voluntária e conscientemente as obrigações legais de construção civil, representando como possível o perigo que causavam para a integridade física de terceiros, e conformando-se com ele.
35º- O arguido CC sabia que lhe competia a si, em especial, tendo em conta as suas funções de encarregado de obras e a sua experiência profissional, prover pela segurança da obra, e que deveria ter ordenado os arguidos DD e EE que colocassem novamente o corrimão ou outra qualquer proteção, no lanço de escada que ficou descoberto com a demolição da parede, de forma a evitar que alguém viesse a cair para o chão da loja.
36º- O arguido CC sabia que estava a desrespeitar as normas de cuidado mais elementares, relativas à direção ou execução de uma obra, normas que podia ter cumprido, pois estavam no seu perfeito alcance intelectual e prático, e, em especial, pelo facto de exercer as funções de encarregado de obras da empresa há 32 anos, representando como possível o perigo que causava para a integridade física de terceiros, e conformando-se com ele.
37º- Todos estes arguidos contribuíram para a violação das regras legais a que estavam obrigados, já que nenhum deles emitiu qualquer ordem para que fossem observadas as regras de construção.
38º- Os arguidos DD e EE sabiam que, ao demolirem a parede e ao não colocarem de novo o corrimão da escadaria, nem qualquer outro dispositivo de segurança ou sinalização de risco de queda, estavam a colocar em perigo a integridade física de terceiros, como efetivamente ocorreu.
39º-Os arguidos DD e EE quiseram não colocar de novo o corrimão na escadaria nem qualquer outro dispositivo de segurança ou sinalização de risco de queda, representando como possível o perigo que causavam para a integridade física de terceiros, e conformando-se com ele.
40º- Ao agir do modo descrito, os arguidos DD e EE tornaram não utilizável o corrimão existente na parede que demoliram e omitiram a conduta necessária para evitar a queda de GG, pois, atendendo ao facto de terem removido uma parede, bem como o local não ter iluminação e não ter qualquer dispositivo de segurança, tal foi apto a causar aquele resultado.
41º- Os arguidos AA e BB tinham uma posição de liderança na sociedade “A..., Lda”, agindo em seu nome e no interesse coletivo, tendo em conta a sua posição de sócios e gerentes.
42º- O arguido CC também tinha uma posição de liderança na referida sociedade, exercendo o seu controlo e beneficiando esta com o facto de não pagar horas extras aos arguidos DD e EE, seus trabalhadores à data da prática dos factos, para colocarem a proteção de segurança na escadaria, nem tendo de destacar outro dos seus trabalhadores para fazer esse serviço.
43º- Todos os arguidos deveriam ter garantido a observância das regras de segurança na execução dos trabalhos, assegurando condições de segurança, higiene e saúde em todos os aspetos relacionados com a execução da obra, procedendo, na conceção dos locais e processos de trabalho, à identificação dos riscos previsíveis, combatendo-os na origem, anulando os seus efeitos, de forma a garantir um nível eficaz de proteção, nomeadamente, contra o risco queda de terceiros.
44º- Todos os arguidos sabiam que violavam as disposições legais aplicáveis e representaram como possível que dessa violação viesse a ocorrer perigo para a integridade física de terceiros, conformaram-se com esse resultado.
45º- Sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e tinham liberdade para se motivar de acordo com esse conhecimento.
Mais se provou que:
Do pedido de indemnização civil
46º- A vítima GG era mãe da assistente FF, com quem residia, e até ao momento da queda mantinha autonomia para o exercício das suas atividades diárias.
47º- Após a queda referida em 28º e 29º, a vítima deixou de ser autónoma para o exercício das suas atividades diárias e passou a ficar acamada e totalmente dependente de terceiros, sobretudo da assistente, até à data do seu falecimento, ocorrido a 09/12/2019.
48º- Em consequência da queda referida em 28º e 29º, a vítima sofreu um traumatismo cranioencefálico parietal direito, uma fratura de crânio aberta e com afundamento, esfacelo fronto parietal direito, dor dorso lombar, craniana, cervical, torácica, abdominal, e ao longo da coluna vertebral cervical, sutura de extenso escalpelo na região fronto parietal direita, dreno micro tubular, fratura de costelas, hematomas subpleurais, nos ápices pulmonares bilaterais, higroma cerebral compatível com sangue intracerecral, fratura fronto esfenoidal direita, sem afundamento, fraturas das paredes do seio maxilar direito com hemissinus associado, e equimose e edema da hemiface direita.
49º- Tais lesões acarretaram para a vítima intensas e enormes dores.
50º- Em consequência da queda referida em 28º e 29º, e das lesões sofridas, nos dois meses que se seguiram, a assistente teve que fazer face a despesas com medicamentos, cremes protetores para impedir escaras, fraldas e alimentação própria para a vítima GG, uma vez que a mesma não conseguia mastigar.
51º- No que despendeu, para além do mais, a quantia de 234,17€.
52º- Para fazer face às despesas referidas em 50º, a assistente recorreu à ajuda financeira de terceiros que lhe emprestaram diversas quantias em dinheiro, que se encontra ainda a reembolsar.
53º- A assistente sofreu angústia e sofrimento por ter presenciado a queda da sua mãe e pelo desespero que sentiu ao vê-la com as lesões cerebrais que sofreu, por ter sido cuidadora diariamente da sua mãe, e por presenciar o seu sofrimento ao longo de dois meses, e pelo sacrifício de ter de fazer face a todas as tarefas para cuidar da mãe acamada.
54º- Tudo isto provocou e provoca à demandante noites de insónia, com profundo nervosismo.
Provou-se ainda que:
55º- O arguido AA é engenheiro civil, aufere um vencimento líquido de 2.100,00€, como gerente da sociedade arguida “A..., Lda”, é casado, a esposa não exerce qualquer atividade profissional, tem quatro filhos, dois dos quais ainda a cargo, reside em habitação própria e tem como habilitações literárias uma licenciatura em Engenharia Civil.
56º- Não tem antecedentes criminais.
57º- O arguido BB é engenheiro civil, aufere um vencimento líquido de 2.100,00€, como gerente da sociedade arguida “A..., Lda”, é casado, a esposa é professora, auferindo um vencimento mensal de cerca de 1.600,00€, reside em habitação própria e tem como habilitações literárias uma licenciatura em Engenharia Civil.
58º- Não tem antecedentes criminais.
59º- O arguido CC aufere um vencimento mensal líquido de 1.200,00€, é casado, a esposa é técnica de geriatria, auferindo um vencimento de 750,00€, tem um filho a cargo com 15 anos de idade, reside em habitação própria e tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade e o Curso Geral de Construção Civil.
60º- Não tem antecedentes criminais.
61º- O arguido DD aufere um vencimento mensal de 720,00€, é casado, a esposa é operária fabril e aufere o salário mínimo nacional, tem um filho a cargo com 21 anos de idade, reside em habitação própria e tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade.
62º- Não tem antecedentes criminais.
63º- O arguido EE não tem antecedentes criminais.
64º- A sociedade arguida não tem antecedentes criminais.
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Factos não provados, com relevo para a decisão a proferir:
a) – Que os factos referidos em 12º tenham ocorrido no dia 09/10/2019, pelas 08h.00m;
b) – Que o arguido CC tenha atuado do modo referido em 18º uma vez que não havia tempo para acabar de demolir a restante parede e ainda para colocar a referida proteção;
c) – Que os trabalhos referidos em 20º tenham sido executados entre as 17h.30m e as 18h.00m;
d) – Que os arguidos DD, EE e CC, em certas ocasiões, não concretamente determinadas e em número não concretamente apurado, se tivessem dirigido, no supra referido prédio, a uma fração do 2º andar, a fim de irem buscar ferramentas, e que tivessem visualizado uma pessoa idosa, de idade não concretamente apurada, mas que subia e descia a escadaria com recurso a muletas;
e) – Que os arguidos tenham atuado com a intenção de colocar em perigo a integridade física de terceiros, e concretamente da vítima GG;
f) – Que a morte de GG tenha ocorrido como consequência tardia e indireta da queda de dia 09/10/2019;
g) – Que, ao não colocar qualquer proteção no lanço de escada entre o patamar do primeiro andar e o do rés-do-chão, e ao não colocar qualquer sinalização a alertar para o facto de já não existir a parede que separava a entrada da loja da entrada e escadaria de acesso às habitações, os arguidos tenham atuado sem a diligência necessária e de que eram capazes, sem sequer representar como possível que tal omissão acarretasse perigo para a integridade física de terceiros.
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Não se provaram quaisquer outros factos, para além dos constantes da factualidade provada e não provada, ou que com os mesmos estejam em contradição, e que assumam relevo para a decisão a proferir.
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III – MOTIVAÇÃO:
A convicção do Tribunal relativamente aos factos considerados provados fundou-se na apreciação crítica da prova produzida em audiência, e na prova documental e pericial, constante dos autos, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do Código de Processo Penal, o qual impõe uma apreciação de acordo com critérios lógicos e objetivos que determinem uma convicção racional, objetivável e motivável.
O tribunal começou por tomar em consideração a prova documental constante dos autos, que apreciou e valorou criticamente.
Deste modo, relativamente à denominação, estrutura, data de constituição e objeto social da sociedade “A..., Lda”, bem como quanto à identificação dos seus legais representantes, tomou em consideração o teor da certidão permanente da sociedade, constante de fls. 122 a 124.
Tais documentos foram conjugados com as declarações dos arguidos prestadas em sede de audiência de julgamento, quer os arguidos AA e BB, que se assumiram expressamente como sócios e gerentes desta sociedade, como pelos arguidos CC e DD, funcionários da sociedade arguida, os quais identificaram unanimemente os arguidos AA e BB como sendo os seus patrões, tendo concretizado ainda as específicas funções de cada um deles, o que fizeram de modo que nos mereceu credibilidade (pontos 1º a 3º da factualidade provada).
Atentou ainda no teor das informações de fls. 127 e 159, remetidas aos autos pela sociedade “A..., Lda”, quanto aos funcionários e arguidos CC, DD e EE, bem como as declarações prestadas por CC, DD relativamente às funções desempenhadas ao serviço da sociedade arguida, e ao período de vigência dos respetivos contratos de trabalho (pontos 6º,7º, 8º e 9º da factualidade provada).
A respeito dos trabalhos contratados por HH, proprietário do imóvel sito na Rua ..., ..., em Vila Nova de Gaia, com a sociedade arguida “A..., Lda” e das concretas características deste imóvel, o tribunal tomou em consideração o teor dos documentos de fls. 62 a 64, bem como da certidão matricial e da certidão predial do mesmo constantes de fls. 148 a 150 (pontos 4º e 5º, e 10º e 11º da factualidade provada).
Decorre ainda das informações da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, de fls. 57 a 59, e de fls. 187, bem como da informação prestada pela própria sociedade “A..., Lda”, que não existia licença de construção para a execução da obra em curso (ponto 32º da factualidade provada).
Quanto ao mais, os arguidos AA e BB admitiram de um modo geral a factualidade objetiva imputada na acusação pública, tendo a este propósito esclarecido que tinha sido contratada com a sociedade “A..., Lda”, da qual são gerentes, a realização de uma obra de restauro de uma loja sita no rés-do-chão de um prédio localizado na Rua ..., em Vila Nova de Gaia, tratando-se de uma obra que, dada a sua dimensão, e a classificação de obra de “escassa relevância” que lhe foi atribuída pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, não exigia a necessidade de uma licença de construção, nem a elaboração de um plano de segurança em obra, e que a execução desses trabalhos compreendia a demolição de uma parede que fazia a divisória entre a loja e as escadas de acesso aos diferentes andares destinados à habitação que se situavam nos andares superiores, parede esta que estava equipada com um corrimão.
De tais factos os arguidos revelaram conhecimento direto, quer porque conheciam os termos do contrato estabelecido com o proprietário, quer porque já se haviam deslocado ao local onde decorriam os trabalhos, neste caso o arguido BB, que acompanhada mais de perto a execução deste contrato.
Mais referiram que os funcionários DD e EE procederam à demolição dessa parede, segundo as instruções do encarregado de obra CC, o que ocorreu num determinado dia do mês de Outubro de 2019, e que, após a demolição da parede, não foi colocada qualquer proteção, assim como não foi reposto o corrimão que se encontrava fixado na mesma, sendo que, nesse mesmo dia, à noite, uma senhora idosa caiu das escadas e precipitou-se para a loja, factos dos quais vieram a tomar conhecimento no dia seguinte à sua ocorrência, através dos seus funcionários, tendo-se deslocado posteriormente ao local.
Esclareceram também que no dia seguinte, logo pela manhã, construíram uma estrutura em madeira e recolocaram o corrimão, o que só não fizeram no dia anterior por falta de tempo, uma vez que já estava a escurecer, o local não tinha luz, e tinham priorizado os trabalhos de remoção do entulho. O arguido BB referiu até que não era possível executar o trabalho de recolocar o corrimão sem previamente remover o entulho.
Declararam ainda que nada fazia prever que pudesse ocorrer uma queda naquele local, como efetivamente ocorreu, apesar de terem demonstrado conhecimento de que as escadas não eram iluminadas, que após a demolição da parede não foi colocada qualquer proteção entre as escadas e a loja, nem o corrimão que antes lá se encontrava, e ainda que não foi colocado qualquer aviso no prédio a informar da inexistência de parede e de corrimão.
Atribuíram esta imprevisibilidade da queda à circunstância de os trabalhos de remodelação da loja durarem já há mais de dois meses, sendo do conhecimento de todos os moradores, e de os trabalhos de demolição da parede terem decorrido pelo menos ao longo de todo aquele dia, pelo que os moradores que faziam uso das escadas tinham necessariamente que se ter apercebido da inexistência da parede, e entre eles os familiares da senhora idosa que lá caiu, que utilizavam aquelas escadas várias vezes ao dia.
Acrescentaram que as escadas eram suficientemente largas para poderem ser percorridas sem necessidade de se encostar ao local onde existia a parece, uma vez que tinham cerca de 1,40 metros de largura, e que os trabalhadores também não equacionaram que uma pessoa idosa fosse sair à noite.
Nesse sentido, negaram que em algum momento os seus trabalhadores tenham agido com a intenção de não repor a parede demolida e desse modo criar perigo para a integridade física de quem quer que fosse, assumindo apenas que estes incorreram num erro de cálculo, na medida em que a tarefa de remoção de entulho demorou mais que o previsto, anoiteceu e já não foi possível colocar uma proteção no local, o que, no entanto, foi efetuado nas primeiras horas do dia seguinte.
No mesmo sentido, a testemunha CC, encarregado de obra, admitiu expressamente a responsabilidade pela coordenação dos trabalhos que decorreram no local em causa nos autos, e concretamente os trabalhos de demolição da parede que separava as escadas da loja que se encontravam a remodelar, e que se desenvolveram no dia 09 de Outubro de 2019, bem como as instruções dadas aos arguidos DD e EE para não colocarem qualquer proteção no lanço de escada entre o patamar do primeiro andar e do rés-do-chão, nem sinalização a alertar que não existia parede nem corrimão.
Justificou esta decisão com o facto de terem acabado já tarde os trabalhos de remoção do entulho e de não ter achado necessária a colocação do corrimão nem do aviso, tendo em conta a largura das escadas e a circunstância de os moradores terem acompanhado os trabalhos e terem ficado cientes do estado da obra no final daquele dia, nomeadamente de que não existia parede nem corrimão, sendo que nunca previu que pudesse ocorrer uma queda naquele local.
Admitiu, no entanto, que era possível ter colocado o corrimão e a proteção de segurança na escadaria antes de ser removido o entulho, e que na construção da estrutura em madeira que colocaram no dia seguinte os trabalhadores não despenderam mais que uma hora e meia.
Foram também no mesmo sentido as declarações do arguido DD, o qual confirmou os trabalhos executados no dia 09 de Outubro de 2019, por si e pelo arguido EE, nos termos determinados pelo arguido CC, seu encarregado, bem como a não colocação de qualquer proteção junto à escadaria, no local onde tinham demolido a parede, nem de qualquer aviso aos moradores a dar conhecimento da inexistência de parede e corrimão.
Explicou que se limitou a cumprir as ordens do arguido CC, e que procedeu à remoção do entulho para o camião, não tendo colocado a proteção nas escadas nem reposto o corrimão por não lhe ter sido ordenado que o fizesse, muito embora fosse possível executar este trabalho sem que o entulho fosse removido.
Todos os arguidos confirmaram ainda o teor do registo fotográfico de fls. 87, esclarecendo que diz respeito à proteção que foi colocada nas escadas no dia 10 de Outubro de 2019.
Também declararam que a sociedade arguida labora há cerca de trinta e dois anos e nunca teve qualquer problema relacionado com incumprimento de regras de segurança, e que sempre pautou a sua conduta pela criação e manutenção de condições adequadas de segurança em obra, quer para os seus trabalhadores, quer para terceiros.
Por sua vez, o arguido EE, presente em audiência de julgamento, não prestou declarações, de resto no exercício do direito ao silêncio que lhe assiste.
Deste modo, e por reporte à confissão dos arguidos, e à valoração positiva das respetivas declarações quanto à concreta atuação do arguido EE, o tribunal deu como provada a factualidade objetiva descrita nos pontos 12º a 25º, e no ponto 31º da factualidade provada, bem como deu como não provada a factualidade descrita nas alíneas a) a d) da factualidade não provada.
No que respeita ao modo como veio a ocorrer a queda de GG no local onde os arguidos DD e EE, sob as ordens de CC, haviam demolido uma parede e retirado o corrimão, sem que tivessem colocado qualquer proteção, ou recolocado o referido corrimão, o tribunal tomou em consideração as declarações da assistente FF, sua filha, que revelou conhecimento direto dos factos, por os ter presenciado, uma vez que se encontrava também ela a descer as escadas ao lado da sua mãe, e que depôs de forma que se nos afigurou inteiramente séria, espontânea, sincera, e impressiva, e deste modo totalmente merecedora de credibilidade.
Os seus relatos foram ainda corroborados pelo depoimento isento e imparcial das testemunhas II e JJ, Bombeiros do INEM, cujo conhecimento dos factos decorre de terem procedido ao socorro da vítima após a queda, e que relataram ao tribunal não só o estado de saúde de GG e as lesões que lhes foi possível observar, como também as concretas características do local onde a mesma se encontrava caída, tendo ainda confirmado o teor dos registos fotográficos de fls. 80 a 85 dos autos.
Foram ainda sustentadas pelo depoimento da testemunha KK, filho da assistente e neto de GG, que apesar de não ter presenciado o momento da queda, se encontrava presente nas imediações e assistiu de imediato a avó, como referiu, bem como explicou as circunstâncias em que foram efetuados os registos fotográficos de fls. 80 a 94 e qual o intuito dos mesmos.
Tal depoimento, porque sério e isento, circunscrito aos factos e que tinha conhecimento direto, foi também valorado positivamente pelo tribunal na formação da sua convicção.
Deste modo, atentando nas declarações da assistente, conjugadas com a aludida prova testemunhal, e bem ainda com o teor do relatório de urgência de fls. 7 a 14, relativo à assistência prestada a GG na sequência do acidente, com o verbete de socorro e transporte de fls. 116 e 116 verso, o tribunal deu como provados os factos descritos nos pontos 26º a 30º da factualidade provada.
Por sua vez, a prova dos factos descritos nos pontos 33º a 45º da factualidade provada adveio da conjugação das declarações dos arguidos, da assistente e da testemunha KK, e da sua análise à luz das regras da experiência e da normalidade do acontecer.
Nas regras da experiência incluem-se, obviamente, as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, as quais se devem basear na correção de raciocínio, bem como se incluem as regras da lógica e os princípios da experiência.
Ora, o que decorre da lógica e da experiência é que numa determinada obra em que é demolida uma parede que delimita umas escadas utilizadas pelos moradores de determinado prédio, de um espaço onde se encontram a decorrer obras de remodelação, e em que é retirado um corrimão, não sendo colocada qualquer proteção, nem sequer um aviso a sinalizar a ausência da parede, e numas escadas que não dispunham de iluminação, o mais provável é que ocorra uma queda, e não o seu contrário.
E se esta previsibilidade de uma queda num local onde existia uma parede e passou a existir um lanço de escadas a descoberto, não sinalizado, é evidente para qualquer cidadão comum, muito mais tem que ser para os arguidos CC, DD e EE, trabalhadores da construção civil com experiência em obras de vários anos, que executam diariamente trabalhos de edificação, demolição e remodelação, e dos arguidos BB e AA, legais representantes da sociedade arguida, que labora na área da construção civil há mais de trinta anos, os quais são necessariamente conhecedores das regras legais e técnicas que deveriam ser observadas na execução destas obras, como também são necessariamente muito mais conscientes dos perigos que podem advir dessa execução.
As regras técnicas são as que os profissionais praticam de acordo com o saber do seu ofício e que concretamente se impõem no planeamento e execução segura de determinada obra e na prevenção de acidentes, e no caso dos autos os arguidos sabiam e não podiam ignorar que após a demolição da parede, tinham que colocar novamente o corrimão ou qualquer proteção no lanço de escada que ficou a descoberto com essa demolição, e, não o tendo feito, sabiam e tinham que prever que queda de GG pudesse acontecer, representando como possível o perigo que causavam para a integridade física de terceiros, e conformando-se com ele.
A alegação dos arguidos de que não acharam necessário colocar qualquer proteção, atendendo à duração dos trabalhos há mais de dois meses, sendo do conhecimento de todos os moradores, do conhecimento da demolição da parede por parte dos moradores que faziam uso das escadas, e entre eles dos familiares da senhora idosa que lá caiu, que as utilizavam várias vezes ao dia, e atendendo ainda à largura das escadas, não exclui nem sequer mitiga a obrigação que sobre os mesmos impendia de remover o perigo por eles criado.
Ainda que os familiares da vítima tivessem conhecimento da demolição da parede, como referiram a assistente e a testemunha KK, não lhes é exigível que, ao descer as escadas juntamente com a vítima, tivessem que prever que os arguidos podiam não ter procedido à colocação de qualquer proteção no lanço de escadas que ficou a descoberto, e desse modo adotar especiais cuidados ao descer as escadas, ou simplesmente abster-se de as descer.
Com efeito, não era à vítima nem aos familiares da mesma que incumbia a remoção do perigo criado pelos arguidos. Só aos arguidos se impunha a adoção das condutas, a prática dos atos e a execução dos trabalhos necessários à remoção do perigo pelos mesmos criado.
Deste modo, e atendendo ao exposto, o tribunal concluiu necessariamente que os arguidos agiram livre, voluntária e conscientemente, cientes de que ao demolirem a parede e ao não colocarem de novo o corrimão da escadaria, nem qualquer outro dispositivo de segurança ou sinalização de risco de queda, estavam a colocar em perigo a integridade física de terceiros, como efetivamente ocorreu, perigo que representaram e com o qual se conformaram, considerando as funções que cada um dos arguidos desenvolvia na sociedade arguida e os conhecimentos técnicos que possuíam, ainda que não tenham atuado com a intenção de colocar em perigo a integridade física de terceiros, e concretamente da vítima GG (pontos 33º a 45º da matéria de facto provada, e alínea e) da factualidade não provada).
Em consequência, o tribunal considerou como não provado que, ao não colocar qualquer proteção no lanço de escada entre o patamar do primeiro andar e o do rés-do-chão, e ao não colocar qualquer sinalização a alertar para o facto de já não existir a parede que separava a entrada da loja da entrada e escadaria de acesso às habitações, os arguidos tenham atuado sem a diligência necessária e de que eram capazes, sem sequer representar como possível que tal omissão acarretasse perigo para a integridade física de terceiros (alínea g) da factualidade não provada).
Para dar como provados os factos alegados no pedido de indemnização civil (pontos 46º a 54º da factualidade provada), o tribunal atendeu às declarações da assistente FF, que nos mereceram credibilidade também a este respeito, conjugadas com os depoimentos da testemunha KK e da testemunha LL, esta última também filha da assistente e neta de GG, que descreveu de modo totalmente convincente as consequências da queda sofrida pela sua avó, quer para a sua integridade física, quer para o comprometimento da sua autonomia na execução das tarefas da sua vida diária, assim como descreveu a alteração das rotinas da assistente para lhe poder prestar cuidados, e o estado anímico da sua mãe e da sua avó.
Atentou ainda no relatório de urgência, no verbete de socorro e transporte, e na avaliação de incapacidade médica de GG, constante de fls. 104, bem como nas faturas juntas em sede de audiência de julgamento, relativas a despesas com medicamentos, cremes, fraldas e alimentação própria, que corroboraram as declarações da assistente e o depoimento das testemunhas, e desta forma reforçaram a sua credibilidade.
Dúvidas não restaram, pois, ao tribunal que as aludidas despesas, bem como as lesões, as dores e o sofrimento de GG, decorreram para a mesma em consequência da queda sofrida a 09 de Outubro de 2019, a qual só aconteceu em consequência da conduta omissiva dos arguidos, que, após derrubarem uma parede e retirarem o corrimão que ligava o rés do chão ao primeiro andar, não colocaram qualquer proteção na escadaria, nem procederam a qualquer tipo de sinalização. O mesmo se diga quanto aos transtornos e incómodos sofridos para a assistente, que também só lhe sobrevieram em consequência da queda da sua mãe, determinada pela aludida conduta omissiva dos arguidos.
Não resultou, no entanto, demonstrado que a morte de GG, que veio a suceder a 09 de Dezembro de 2019, tenha ocorrido em consequência da queda sofrida a 09 de Outubro de 2019, tendo em conta o que resulta da certidão do assento de óbito da mesma, constante de fls. 182 e 183, bem como do depoimento da testemunha MM, médica de família, que o subscreveu, e tendo ainda em conta o depoimento da testemunha NN, médica do INEM, cujo conhecimento dos factos decorre de ter verificado o óbito de GG, e que confirmou integralmente o relatório de fls. 139 (alínea f) da factualidade não provada).
Por sua vez, o tribunal atribuiu credibilidade às declarações dos arguidos relativas às suas condições socioeconómicas, profissionais e familiares (pontos 55º, 57º, 59º e 61º da factualidade provada), e tomou em consideração os certificados de registo criminal dos arguidos e da sociedade arguida para dar como provada a ausência de antecedentes criminais (pontos 56º, 58º, 60º, 62º, 63º e 64º da factualidade provada).
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objeto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Responsabilidade da pessoa coletiva;
- Responsabilidade dos sócios;
- Negligência do seu comportamento;
- Redução da pena;
- Atenuação especial da pena;
- Responsabilidade do arguido CC enquanto encarregado de obras;
- Redução da pena que lhe foi aplicada;
- Indemnização cível com absolvição quanto ao sofrimento da assistente e pagamento de indemnização à vítima por falta de dispositivo;
- Subsidiariamente redução dos seus valores;
- Indemnização a cargo dos arguidos demandados DD e EE.

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Recurso dos recorrentes A... Ldª, AA, BB e CC.

De acordo com os artigos 412º, nº 3 e nº 4, do CPP, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Na motivação do recurso os recorrentes não especificam os pontos de facto que consideram incorretamente julgados, não indicam as provas que, na sua opinião, impõem decisão diversa da recorrida, apresentando antes a sua leitura dos factos dados como provados e não provados e sem qualquer referência aos suportes técnicos, não dando cumprimento ao formalismo dos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP.
A exigência da lei ao estabelecer os requisitos da impugnação da matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido deve-se à circunstância de o recurso sobre a matéria de facto constituir um remédio no qual se corrigem concretos erros de julgamento respeitantes à matéria de facto, e não um novo julgamento.
Como se assinala no Ac. do STJ de 12/06/2008, no proc. nº 07P4375, acessível em www.dgsi.pt) A concreta reapreciação da prova produzida em audiência de julgamento, “sofre, no entanto, quatro tipos de limitações:
- desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições;
- por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- a juzante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão.” (negrito e sublinhado nosso)
Assim, não tendo os recorrentes cumprido o ónus de impugnação especificada a que estava vinculado (na vertente da inobservância do prescrito nas alíneas b) e c), do artigo 412º, nº 3 e 4, e sendo inalterável a motivação, e não podendo as conclusões exceder os limites definidos pela motivação (artigo 417º, nº 4 do artigo do CPP), coartada ficou a possibilidade deste tribunal ad quem sindicar a matéria de facto que havia sido fixada pelo tribunal a quo.
É que, sublinhamos, o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a segunda instância aprecie toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
E, se o recorrente não faz as especificações ordenadas pelos nºs. 3 e 4 do art. 412.º do CPP, não pode o tribunal de recurso alterar a matéria de facto dada por assente e não assente na vertente da impugnação da matéria de facto tem-se esta por definitivamente fixada nos termos que constam da decisão recorrida, salvo ocorrência de alguns dos vícios do art. 410º do C.P.P.
Assim presentes os factos apurados pelo Tribunal a quo, pretendem os recorrentes A..., Ldª e sócios, se afaste a sua responsabilização criminal.
Para tanto alegam que sendo apenas representada por AA e BB, este não intervieram diretamente na obra, sendo que quem a supervisionou foi o chefe de obras, CC, sendo o mesmo quem como encarregado da obra supervisionava a obra e foi ele quem sozinho decidiu que os trolhas deveriam limpar o entulho e detrimento de meter o corrimão. Era o recorrente CC a única pessoa com poder na obra em concreto e que tomou decisões diariamente sobre os trabalhos do dia e a prioridade dos mesmos.
Ocorre que a recorrente A... não impugnou nenhum dos factos dados como provados, nos termos supradescritos, nomeadamente os factos 3º, 4º, 6º, 8º, 12º, 33º, 34º, 37º, 43º, 44º e 45º, entre outros. Não os tendo impugnado, não pode pretender fazer tábua rasa dos mesmos e alegar que os sócios não têm culpa por força das tarefas desempenhadas pelo encarregado de obras e delegadas por aqueles.
Também não pode pretender ser intérprete a matéria fática dada por provada, no sentido de que os atos praticados no dia em questão não tenham sido no interesse da mesma, alegando ignorar a tomada de decisão do encarregado em não se colocar o corrimão nas escadas naquele. Da matéria fática dada como provada resulta que CC era o encarregado de obras daquela obra em concreto indicado pela sociedade através dos seus legais representantes para controlar todo o serviço e como é que os trabalhadores deviam realizar as suas tarefas, pontos 8º e 9 dos factos provados e 12º, 17º, 18º, 36º, 37º, 42º, 43º e 44º e 45º. Não devidamente questionados os pontos em questão não pode a recorrente dizer que CC era um mero funcionário da empresa e que agia no interesse pessoal de proteção do seu emprego. Os factos suprarreferidos indicam precisamente o contrário.
Alegam os recorrentes sócios AA e BB que também não têm culpa, afirmando que eram apenas gerentes de escritório, que a obra não exigia licenciamento e que portanto não lhe era exigível prever um grande risco, competindo-lhe apenas o tratamento administrativo da obra, confiando nos seus funcionários para a execução da obra, não lhes sendo exigível que criassem a figura de um inspetor de segurança ou um plano de segurança, concluindo não haver dolo nem negligência.
Mais uma vez, os recorrentes não questionaram nos termos especificados na lei os factos objetivos e subjetivos que lhes são imputados.
Como todos sabemos qualquer obra de construção civil e esta não fica atrás até pelo tipo de trabalhos que ali foram realizados, ponto 5º, 12º, 13, 14º 15º, 16º, pode ter riscos para a segurança quer dos trabalhadores quer de terceiros. E foi o que aconteceu. O abatimento da parede com retirada do corrimão criou perigo concreto para a segurança de quem utilizava aquelas escadas de acesso ao piso superior. Uma pessoa caiu desamparada das escadas, por ali não estar o corrimão. Ficou igualmente provado que a empresa e respetivos sócios incumpriram voluntária e conscientemente as obrigações legais de construção civil, representando como possível o perigo que causavam para a integridade física de terceiros e conformando-se com ele, ponto 34º, 37º, 43º, 44º e 45º.
Ora, estes factos, mais uma vez não foram devidamente impugnados. Não foi apresentada e indicada prova que impusesse versão contrária e que este tribunal devesse apreciar.
A inexistência de licenciamento não iliba quem constrói ou altera uma edificação de ter especiais cuidados com a segurança. Aliás o tipo legal de crime em causa não exige como requisito de aplicação a existência de prévio licenciamento ou plano de segurança.
Ao construtor impõe-se um especial dever de prever os diversos perigos que uma obra pode ter ou vir a ter em função do seu andamento e de o evitar, cumprindo a legis artis e os diversos regulamentos e leis associados à edificação urbana.
Solicitam ainda os recorrentes subsidiariamente a requalificação da culpa, isto é, pretendem se altere o elemento subjetivo dado como provado, dolo eventual, para a negligência.
Ora, o tribunal a quo considerou que os arguidos agiram todos com dolo eventual e deu como não provado o ponto g), precisamente a descrição de conduta negligente.
Mais uma vez, nada pode ser feito a este respeito, os recorrentes não impugnaram nos termos exigidos pela lei esta matéria. Não indicaram os factos a questionar nem prova que pudesse inverter impondo solução diferente da encontrada pelo Tribunal a quo e não transcreveram qualquer prova. Estando vedado a este tribunal a audição da prova nos pontos que pudessem ser especificados pelos recorrentes, não pode a visão subjetiva dos mesmos pretender a alteração da matéria fáctica.
O ilícito em questão abrange o planeamento da obra e a sua execução. As condutas dos diversos intervenientes podem ser confluentes e convergentes em direção ao perigo concreto. Quem planeia e administra pode ser responsabilizado por não prever o perigo que a obra possa criar para a segurança dos trabalhadores e terceiros, não exigindo o ilícito criminal em questão que todos frequentem ou estejam na obra. O dever de vigilância estende-se a todos, até porque os sócios gerentes por a sua empresa ter sido contratada para a obra sabiam que tipo de intervenção ia ali ser realizada, ver pontos 3º, 4º, 5º.

Posto isto, o recurso nesta parte tem de improceder.

Analisado o recurso, pode desde já dizer-se que os recorrentes a propósito da autoria e do elemento subjetivo, não apontam nem concretizam que elementos da prova possam impor versão distinta da encontrada pelo tribunal a quo.
Os recorrentes pretendem, tão-só ver o seu juízo pessoal prevalecer sobre a livre apreciação que serviu de base ao juízo de condenação formulado pelo Tribunal recorrido, substituindo a convicção formada pelo mesmo pela sua própria interpretação. Por outras palavras, com base nos argumentos que vieram aduzir, pretendem que o tribunal de recurso formule uma nova e diversa convicção e por essa via modifique o âmbito do provado.
Simplesmente, com essa pretensão, o que verdadeiramente questionam é a convicção formada pelo tribunal e não a prova que fundamentou a matéria de facto fixada.
É certo e sabido que um dos poderes nucleares dos Tribunais da Relação concentra-se numa dualidade binária marcadamente holística reconduzida ao conhecimento da matéria de facto e de direito - artigo 428.º do Código de Processo Penal – C.P.P. – e que a caracterização do regime legal que permite a modificabilidade ou alterabilidade da decisão recorrida vem prevista na disciplina normativa contida no artigo 431.º deste diploma legal.
Esta norma dispõe assim:
“Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; – cfr. artigo 431.º do Código de Processo Penal – C.P.P..
Neste derradeiro caso, exige-se o cumprimento de um conjunto de formalidades legais destinadas ao impugnante isto é – id est - que visam diretamente o recorrente. Este encontra-se jusvinculado a observar os requisitos formais e materiais previstos no programa do artigo 412.º n.º 3 do Código de Processo Penal – C.P.P..
Estatui assim este dispositivo:
“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a)- Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c)-(...).
Também de acordo com a disciplina normativa contida no seu n.º 4, firmou-se:
Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
Para além disso, cumulativamente, a dimensão normativa decorrente do artigo 364.º n.º 3 do Código de Processo Penal – C.P.P. impõe e exige que deve ser consignado na ata o início e o termo da gravação de cada declaração, tendo em vista, por certo, facilitar a procura e a deteção da gravação desses no Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição revista, pág. 1097 e 1098.
E, segundo a melhor doutrina, esta especificação deve ser feita tanto na motivação como nas conclusões da motivação exigindo-se assim por parte do recorrente a observância estrita e inarredável do ónus da impugnação especificada, o que não foi feito e observado.
Como refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE em anotação ao artigo 412.º do Código de Processo Penal – C.P.P. (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição atualizada, pág. 1144) a motivação do recurso sobre a matéria de facto deve especificar os concretos pontos de facto que que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida”.
A especificação ou delimitação precisa dos “concretos pontos de facto” só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorretamente julgado, isto é – id est – o frame (da cadeia de factos) especifico controvertido.
A especificação e esmiuçamento das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida, mais exatamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando ou sendo insuficiente, a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento.
Para além da observância destes requisitos de ordem formal, a possibilidade de sindicância e escrutínio de matéria de facto pela Relação, sofre, ainda, outras acentuadas limitações ou restrições:
- O natural distanciamento a nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, a limitação decorrente da falta de oralidade, gestualidade ou comunicação não-verbal e de imediação comunicante com as provas produzidas em audiência, isto é – id est – a não vivência do julgamento, com o teatro da vida em sede do contraditório, circunscrevendo-se o “contacto” de forma muito pobre e com as provas ao que constam das gravações;
- à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não tem competência funcional para efetuar um segundo/novo julgamento integral, de cariz totalitário, aglutinador, totémico e concentracionário mas antes um reexame cirúrgico, de pinças, necessariamente segmentado, parcial, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo; (a este propósito, pronunciou-se o Tribunal Constitucional – T.C. no Acórdão n.º 98/06 dizendo que “…. O verdadeiro julgamento da causa é aquele que é efectuado na 1ª instância, em que imperam os princípios da imediação e da oralidade e são produzidas todas as provas e as testemunhas, o arguido e o ofendido são ouvidos em pessoa. O recurso para a Relação, mesmo da matéria de facto, não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada ... é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido julgamento em 1ª instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim validaria ou não a factualidade anteriormente assente – cfr. Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto, no Código de Processo Penal, com Notas e Comentários, Coimbra Editora, pág. 1038.). Assim o objeto do recurso para a Relação não pode ser a sentença no seu todo, mas apenas algumas partes atomísticas do jurisdicio que a lei previamente seleciona em conceitos abertos12.
- e a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão – cfr. Acórdão do S.T.J. – Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/2010 aqui seguido (Cfr. proc. nº 427/08.0T13ST13.E1.S1, acessível in www.dgsi.pt)1

Os recorrentes ao atribuírem à leitura da prova documental e testemunhal outro significado invocam implícita, mas inequivocamente, a prática por parte do tribunal recorrido de erro de julgamento.
Ora, o erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, às seguintes situações:
a) o Tribunal “a quo” dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
b) ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
c) dar como assente um facto, ou conjunto de factos, com base em depoimento de testemunha ou co-arguido sem razão de ciência da mesma que permita a prova dos mesmos;
d) admissão de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para demonstrar esse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
e) e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora e para além do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.
Num julgamento (vicissitude transversal a qualquer deles) existem quase sempre duas ou mais versões antagónicas acerca do objeto do processo e elementos de prova, que pendem para um e para outro lado.
Porém, cabe ao julgador apreciar os vários elementos de prova e atribuir credibilidade a uns, em detrimento dos outros, e decidir de acordo com a sua livre convicção por uma das versões dos acontecimentos apresentada em juízo, ou por aquela que for mais plausível e razoável aos olhos das regras da experiência comum.
Quando a opção decisória do julgador recair sobre uma das soluções plausíveis e admissíveis pelas regras da experiência comum e da lógica, não pode a parte a quem a prova não aproveitou contrapor ao tribunal a sua convicção de sinal contrário, sob pena de completa subversão e inversão de papéis funcionais legalmente previstos. É bom lembrar de forma a nunca esquecer, que a validade legal das convicções dos diversos sujeitos processuais não se encontram no mesmo nível de paridade. Para além da componente objetiva, que repousa sobre a força, coesão e credibilidade dos diversos elementos probatórios isto é – id est - da prova produzida, também foi introduzida uma componente funcional e orgânica relevantíssima que desempata essa aparente e enganosa igualdade, qual seja, cabe ao tribunal, e só a este a competência para decidir, e este é o portador da última palavra sobre uma dada situação. E não havendo alternativa não pode ser de outro modo, sob pena de subversão de todas as regras e converter o ato de julgar numa tarefa comunitária dos diversos sujeitos processuais e uma atividade coletiva de um órgão colegial composto por atores de diferente natureza, levando a um impasse e empastelamento decisório que põe em causa a própria conceção do que pode e deve ser um Tribunal.
Quer isto significar que: a diferente valoração da prova efetuada pelo tribunal que não coincide com aquela que o recorrente efetuou neste recurso, não se confunde com o erro de julgamento ou com qualquer dos vícios do artigo 410º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Dispõe o artigo 127º do Código de Processo Penal, que “salvo quando a lei dispuser de forma diferente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Encontramo-nos no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, o qual se aplica sem qualquer limitação na apreciação da prova testemunhal, com exceção feita ao testemunho de ouvir dizer – artigo 129º do Código de Processo Penal – podendo mesmo dizer-se ser este o seu campo de eleição, conforme defende o Prof. Figueiredo Dias, na sua obra “ Direito Processual Penal”, a páginas 141 e 142.
Ao entender a Meritíssima Juiz “a quo” que, da prova produzida em audiência de julgamento, sujeita que foi ao cumprimento do princípio do contraditório, que foi recolhida prova da autoria, fê-lo com base e com a aplicação do princípio da livre apreciação da prova.
Por conseguinte, com base na sua convicção pessoal relativamente à verdade dos factos, convicção racional assente em regras de experiência, em critérios objetivos de lógica, razoabilidade e normalidade e não, como pretendem fazer crer os recorrentes, de modo discricionário, teórico e insindicável.
O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24 de Junho de 1998 (proc.545/98) refere claramente que “a convicção do tribunal tem de ser formada na ponderação de toda a prova produzida, não podendo censurar-se aquele que por nesse juízo ter optado por uma versão em detrimento da outra”.
A Meritíssima Juiz não se limitou a ser uma mera recetora passiva de informação, questionou as testemunhas e interpretou os diversos documentos e depoimentos, procurando descobrir a verdade material, articulando os testemunhos de uma forma cuidadosa e coerente, de acordo com as regras de normalidade e razoabilidade, assim procurando criar a sua convicção quanto à forma como ocorreram os factos em julgamento.
A nossa jurisprudência dominante vem entendendo que a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os momentos estritamente vinculados, como é exemplo a prova obtida com recurso a meios proibidos ou ilegais, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova, ou então, quando afronte de forma manifesta, as regras da experiência comum. Também o Acórdão da Relação do Porto de 17 de Setembro de 2003 refere “…o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127º do Código de Processo Penal. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também os elementos racionalmente inexplicáveis (ex. a credibilidade que concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, pág. 204).
A livre apreciação da prova encontra-se intimamente ligada à oralidade e à forma como influencia o decurso do julgamento em primeira instância. Já o Prof. Alberto dos Reis afirmava no Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, págs. 566 e ss, que “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (coisas, pessoas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção pelo juiz, em oposição ao sistema da prova legal.”
Assim, sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, como sucede no caso dos presentes autos, deve acolher-se a opção do julgador, até porque beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.
Como não podia ser de outro modo, num exercício de avaliação probatória global, necessariamente integrada, completa, sistematizada e entrecruzada com as premissas da razão, da inteligência e da cautela, tomando em conta a complexidade global dos acontecimentos, as normas do conhecimento empírico – cientifico, a interpretação do contexto factual segundo a razão da vida corrente, as mais elementares regras da prudência, a lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, do bom senso prático-normativo, da natureza e justa medida das coisas, da criteriosa ponderação das realidades da vida, ao normal acontecer do factos, aos saberes não específicos decorrentes do quotidiano da vida, ao feixe poliédrico das normas gerais da experiencia comum interpretadas pela generalidade das pessoas e comummente aceites, em suma, às normas gerais da experiência comum, bem como, a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, à sensibilidade da evidência táctil e numa apreciação positiva sobre o acontecer naturalístico.
As máximas de experiência dizem respeito a um conjunto de conhecimentos extrajurídicos adquiridos ao longo dos tempos pelos operadores jurídicos e que constituem elementos decisivos na valoração dos vários factos necessários à interpretação e ponderação das normas e servem para constatar que determinados factos estão normalmente ligados a outros factos distintos, permitindo a reiteração desse fenómeno fixar certos princípios gerais, denominados princípios de normalidade que são suscetíveis de aplicação a outros casos não observados.
Cfr.Acórdão do T.R.E. - Tribunal da Relação de Évora de 26/04/2022 in www.dgsi.pt:
«III. O sistema da livre convicção do juiz (artigo 127.º CPP) assenta na razão, nas regras de experiência social comprovada e em presunções probatórias racionalmente fundadas.
IV. A liberdade de apreciação das provas é uma liberdade para a objetividade, para a qual concorrem critérios que permitem estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção. Servindo a motivação do processo de formação da convicção para materializar racionalmente a valoração da prova.
V. As regras de experiência comum (ou técnicas e científicas de conhecimento generalizado) ou máximas da experiência, são juízos ou normas de comportamento social de natureza geral e abstrata, sem ligação a factos concretos sobre que há que decidir, mas concretamente observáveis pela experiência anterior de casos semelhantes. Não sendo produto uma qualquer ciência pessoal, mas de um conhecimento que é partilhado (comum) pela generalidade das pessoas, de um país, de uma região, de uma classe de pessoas e concretizam-se na ideia de que certos factos geralmente ocorrem associados a outros.
VI. Não sendo também presunções, pois estas, contrariamente àquelas, são provas, que assentam necessariamente em factos e são geradoras de factos novos (são ilações que se tiram de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido – 349.º Código Civil)».

Em face do exposto falece o argumento dos Recorrentes.
Portanto por esta via não pode proceder o recurso.

Posto isto, vejamos a questão dos vícios suscitada pela Exmª. Srª. PGA.

As questões da insuficiência da matéria de facto e da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório.
Diz a mesmaPerante a prova dada como provada e não provada, entende-se que não podiam ter sido condenados os arguidos AA, BB, DD e EE como autores materiais do crime de violação de regras de construção, p. e p. no artigo 277.º, n.º1 a) do Código Penal, padecendo a sentença recorrida de insuficiência da matéria de facto dada como provada para a decisão de condenação; contradição insanável entre factos dados como provados e decisão e erro notório na apreciação da prova, o que desde já se invoca por ser de conhecimento oficioso.
Vejamos!
Os arguidos AA e BB são sócios gerentes da arguida A..., e seus representantes-legais e era a pessoa colectiva por eles representada a dona da obra de restauro de uma loja, onde se deu a queda da ofendida GG.
No caso da obra encomendada não era legalmente exigível a elaboração prévia pelo dono da obra de um plano de segurança e a nomeação de um coordenador de segurança, embora fosse sua responsabilidade assegurar, directamente, ou indirectamente, por alguém em sua representação que providenciasse por essas regras de segurança durante a execução material da obra, o que aconteceu através do arguido CC, seu funcionário.
A situação concreta descrita e dada como provada em 12.º, 13.º, 14.º. 15.º. 16.º, 17.º, 18.º, 19.º, 20.º, 21.º, 22.º, 23.º, 24.º, 25,º, 26.º, 27.º, 28.º, 29.º, teve a intervenção directa dos arguidos CC, DD e EE e em nenhum desses factos dados como provados consta que os arguidos AA e BB tenham tido conhecimento da forma concreta como a obra de demolição de parede de 9-10-2019 foi executada e da decisão tomada pelo arguido CC, e cumprida pelos arguidos DD e EE, de não colocarem naquele dia uma protecção nas escadas onde mais tarde a vitima GG veio a caír e em nenhum desses factos se afirma que os arguidos AA e BB tinham conhecimento da dinâmica do prédio ao nível da utilização dos diversos espaços pelos seu moradores.
No entanto, dá-se como provado que incumbia ao arguido CC como encarregado de obras- artigo 8.º dos factos dados como provados- sendo responsável pela supervisão das mesmas, por destacar os funcionários necessários para cada construção, controlar o tipo de serviço e a forma como os trabalhadores deviam realizar as suas tarefas, bem como gerir os materiais necessários à realização das obras.
Dá-se ainda como provado que – artigo 33.º, 34.º, dos factos dados como provados- os arguidos AA e BB agiram por si (…) sendo responsáveis por toda a actividade exercida por esta sociedade e nomeadamente pelas regras de construção que necessitavam de ser respeitadas pelos seus trabalhadores que sob as suas ordens e orientações executavam, e que os mesmos arguidos agindo por si (…) incumpriram voluntaria e conscientemente as obrigações legais de construção civil, representando como possível que causavam perigo para a integridade física de terceiros e conformando-se com ele.
Torna-se evidente que existe por parte do tribunal a quo uma flagrante contradição insanável entre os factos provados e a decisão de condenar estes dois arguidos AA e BB e simultaneamente insuficiência da matéria de facto dada como provada e um erro notório de apreciação da prova.
Por um lado, dá-se como provado que o arguido CC como encarregado da obra era quem diariamente supervisionava a execução da obra, escolhia os funcionários para a executar, decidia do modo como esses trabalhadores deviam executar essas tarefas e que no dia 9 de Outubro de 2019, após a demolição da parede que fazia de divisória entre a entrada da loja e a escadas de acesso aos diferentes andares da habitação o arguido CC ordenou aos arguidos DD e EE que não colocassem qualquer protecção na escadaria, devendo apenas fazê-lo de manhã, dia 10-10-2019;
Por outro lado, afirma-se que os arguidos AA e BB incumpriram voluntariamente as obrigações legais de construção civil, representado como possível o perigo que causavam para a integridade física de terceiros.
Pergunta-se:
- qual a acção ou omissão praticada pelos arguidos AA e BB que constitui violação de regra legal, regulamentar ou técnica respeitante à obra de construção civil em curso que por eles deveria ter sido garantida e não foi e de que forma os mesmos, sem qualquer domínio efectivo das circunstâncias concretas ocorridas e descritas dos artigos 12.º a 29.º dos factos dados como provados, puderam de modo doloso ou negligente, antecipar o perigo em concreto criado para terceiros?
Se é certo que como dono da obra a empresa representada e dirigida pelos arguidos AA e BB estava incumbida de garantir a segurança na obra, nenhum facto dado como provado demonstra que tais arguido, conheciam as circunstâncias concretas da situação que veio a originar a situação de perigo para a integridade física e vida de terceiros e que por isso fizeram ou deixaram de fazer em concreto, a que estavam legalmente obrigados.
O que se verifica dos factos dados como provados é que era o arguido CC, funcionário experiente da arguida A..., que por delegação de funções por parte dos arguidos AA e BB, a quem cabia acompanhar, fiscalizar e decidir sobre o modo de executar as tarefas que implicavam a obra contratada e que foi no âmbito dessas funções e desse desempenho que o arguido CC tomou a decisão transmitida aos arguidos EE e DD de abandonarem a obra sem deixarem a protecção para as escadas, ficando tal tarefa para ser executada no dia seguinte.
Apenas o arguido CC teve pleno domínio de facto para tomar decisão diversa àquela que tomou e só o mesmo ponderou da possibilidade de poder com essa conduta colocar em causa a integridade física ou vida de terceiros, ou conformando-se com esse resultado ou de modo grosseiro confiando que tal resultado não ocorreria.
Dessa forma, também entendemos que os arguidos EE e DD acataram a decisão tomada pelo encarregado de obra no sentido de só no dia seguinte colocarem a protecção nas escadas, cabendo na situação concreta ao arguido CC e não a eles fazer o juízo de segurança e tomar as providências necessárias para o garantir, sendo certo que no D/L 41821/58 de 11 de Agosto e no seu artigo 154.º Os operários cumprirão as prescrições de segurança respeitantes ao seu trabalho, quer estabelecidas pela legislação aplicável, quer concretamente determinadas pela entidade que os dirigir
era ao arguido CC que se impunha em nome e no interesse directo da sua entidade patronal zelar pelo cumprimento das regras de segurança na execução da obra, funções para os quais havia sido indicado pelos arguidos AA e BB.
Entende-se deste modo e exclusivamente pela leitura da sentença recorrida que a mesma padece dos três vícios previstos no artigo 410.º, n.º1, a),b),c), do CPP, considerando-se que por um lado se imputa aos arguidos AA e BB uma conduta- que se desconhece se por acção ou omissão- não se consignando expressamente em que consistiu tal conduta e quais as regras de construção incumpridas ou desrespeitadas, e de que modo poderiam, tendo em conta que os mesmos arguidos não tinham qualquer domínio efectivo das circunstâncias de facto que rodearam a situação descrita nos artigos 12.º a 29.º dos factos dados como provados, ponderar em concreto o perigo resultante da violação dessas regras, e conformar-se com esse perigo concreto para a segurança da vida e integridade física de terceiros. A admitir-se apenas os dados como provados são os mesmos manifestamente insuficientes para a decisão de condenar os arguidos AA e BB como autores materiais do crime de violação de regras de construção, previsto e punido no artigo 277.º, n.º1 a) do CPP.
Mas para além de insuficientes são os factos dados como provados contraditórios entre si, considerando que se imputa directamente ao arguido CC a incumbência de fiscalizar, supervisionar e decidir o modo de executar a obra, escolhendo ele os funcionários para a levar a cabo, e afirmando-se ainda que foi o mesmo arguido que decidiu que a proteção das escadas onde se deu a queda da ofendida só seria colocada no dia seguinte à demolição da parede que servia de divisória e, em sentido totalmente oposto ao afirmado, diz-se que os arguidos AA e BB na situação concreta dos autos incumpriram regras de construção que deviam observar e que ao criarem com essa conduta perigo para a vida e integridade física de terceiros, com esse perigo se conformaram.
O mesmo se dizendo relativamente aos arguidos DD e EE, dado que estes apenas se limitaram a cumprir a ordem que lhes foi transmitida directamente pelo encarregado da obra, o arguido CC e a quem directamente obedeciam.
Por último, de uma forma que se torna evidente à luz das regras da experiência comum e da lógica, o Tribunal a quo ao considerar provados os factos respeitantes à responsabilidade criminal do arguido CC, teria que obrigatoriamente excluir a responsabilidade criminal individual dos arguidos AA e BB e ainda dos arguidos EE e DD, o que levaria a uma decisão de absolvição relativamente a estes arguidos, assim se pugnando.”
Como é sabido os conceitos de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” e de “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão” do erro notório constantes do n.º 2 do artigo 410º do C.P.P. foram já suficientemente trabalhados pela doutrina e pela jurisprudência do nosso mais Alto Tribunal.
À luz de tais ensinamentos é hoje pacífico que:
a) só existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando se faz a formulação incorreta de um juízo em que a conclusão extravasa as premissas ou quando há omissão de pronúncia pelo tribunal, sobre os factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Como se observou no Ac. do S.T.J. de 20-4-2006 (proc.º n.º 363/03, rel. Cons.º R. Costa):
“A insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão de ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. – e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ser apurados na audiência vista a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.” (cfr. no mesmo sentido o Ac. do STJ de 23-10-1997, proc.º 97P318, rel. Dias Girão, também reproduzido no Ac. do STJ de 18-3-2004, proc.º n.º 03P3566, Rel. Simas Santos).
Como vem referido no Ac. do TRC de 30.03.2011, proc. nº 10/10.OPECTB.C1, www.dgsi.pt, este é um vício que se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão esta que é do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre os fundamentos e a decisão [artigo 410º, nº 2, alínea b) do Código de Processo Penal] traduz-se numa “incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão ”(Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 63), podendo configurar-se de três modos distintos:
A)“(…) contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados;
B)“(…) contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada;
C) “(…) contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente” (Recursos, op. cit., pág. 64).
"Por contradição, entende-se o facto de se afirmar ou negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se por proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na qualidade ou na quantidade.
Para os fins do preceito (…) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com o recurso à decisão recorrida no seu todos por si ou com o auxílio das regras da experiência.
Só existe, pois, contradição insanável da fundamentação quando, de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente, dada a colisão entre os fundamentos invocados" - Leal Henriques e Simas Santos, CPP Anotado, Vol.2º, 2ª ed., 2000., p. 739.
C) Erro notório na apreciação da prova.
O “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º do CPP, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Ou seja, este vício verifica-se ou ocorre quando de um facto provado se tira um facto logicamente inaceitável, ou quando se dá como provado algo que é ou está errado, ou ainda quando usando um processo racional e lógico se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.
De forma particularmente clara exarou o STJ, no seu Ac. de 14/04/93, rel: Ferreira Vidigal, www.dgsi.pt, que: “para poder falar-se em erro notório na apreciação da prova refere-se que o colectivo, ao julgar a prova por si exibida, haja cometido um erro evidente, acessível ao observador comum e que o mesmo conste da própria decisão - e não já da motivação desta - por si só ou de acordo com as regras da experiência, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos, ainda que constantes do próprio processo”.
A impugnação da matéria de facto por invocação dos vícios decisórios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP, que são de conhecimento oficioso, traduzem defeitos estruturais da decisão e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo, visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.

Conforme resulta do n.º2 daquele artigo 410º, os vícios da matéria de facto enumerados no artigo 410º do Código de Processo Penal têm, de resultar “do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum”, por conseguinte, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo, nem podem basear-se em documentos juntos ao processo (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., Lisboa, 2002, pág. 71 os quais salientam “que não se pode ir fora da decisão buscar outros elementos para fundamentar o vício invocado, nomeadamente ir à cata de eventuais contradições entre a decisão e outras peças processuais, como por exemplo recorrer a dados do inquérito, da instrução ou do próprio julgamento”; no mesmo sentido Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, pág. 324 e a jurisprudência do STJ citada naquela primeira obra).

Na perspetiva da Srª PGA afirma-se que os sócios gerentes AA e BB tendo presente os factos dados como provados nunca tiveram conhecimento da forma concreta como a obra de demolição da parede foi executada e da decisão tomada pelo arguido CC e cumprida pelos demais arguidos de não ser colocado naquele dia e hora uma proteção nas escadas e em nenhum desses factos se afirma que os mesmos conhecessem a dinâmica do prédio ao nível da utilização do espaço pelos seus moradores.
Analisando os factos dados como provados resulta demonstrado em 3º que os sócios gerentes tinham obrigações decorrentes da especificidade da atividade da sua empresa, associada a construção civil de cumprirem as normas legais respeitantes às regras a observar na construção civil e dentre estas a de assegurar a segurança na obra.
Está também provado que no exercício da sua atividade, a sociedade arguida A..., Ldª, representada pelos sócios arguidos foi contratada para a realização de uma obra de restauro de uma loja, sita no R/C do prédio de habitação, pontos 4º, 5º 10º, 11º, pelo que estes arguidos sabiam que tal prédio era também de habitação e consequentemente frequentado pelos seus moradores e pessoas que ali os visitassem. Ora, se os andares de cima eram afetos a habitação, não podiam deixar de saber que ali se movimentam pessoas e se a obra consistia em também substituir uma parede que dividia a entrada da loja das residências, havendo ali escadas, já que o edifício tem 3 pisos, não podiam deixar de considerar a segurança de que quem ali vivia ao utilizar as escadas.
Nos crimes em questão o agente coloca-se na esfera da imputação, quando aumenta, cria ou não evita o risco.
O arguido CC era o encarregado de obras e portanto era quem estava responsável, por delegação expressa da sociedade A... devidamente representada pelos respetivos sócios pela supervisão das obras, destacando os funcionários necessários, controlando o tipo de serviço, a forma como os trabalhadores deveriam realizar o serviço e gestão dos materiais necessários, ponto 8º. Este arguido era pessoa da confiança sociedade arguida trabalhando para ela há quase 32 anos, ponto 9º.
O princípio da confiança legítima que se acredite que os outros cumprem as suas funções, mas não desonera o cumprimento de deveres próprios.
No ponto 15º dá-se como provado que no local não havia qualquer balizamento ou sinalização da obra. Não obstante sabemos que quem ali morava e frequentava sabia da sua existência, veja-se a fundamentação da decisão e que a inexistência de licença camarária de construção não afasta a obrigação de observância das regras de segurança numa construção. Por sua vez, atenta a tipologia do crime em causa é sempre possível ao nível do dolo haver comparticipação, sendo que para se ser coautor, nos termos do art. 26º do CP, não é necessário que se execute. A execução é um pressuposto. Basta que tome parte direta da decisão. Não tendo que estar presente na execução é suficiente que a acompanhe, tendo em vista o seu sucesso. O contributo é ilícito não pela execução mas pelo dolo, sendo que o dever de vigilância e de respeitar as regras de segurança nestes casos pode ter vários níveis, podendo ser repartido. E é nessa sequência que o tribunal dá como provados os pontos 33º, 34º, 3º, 41º, 43º, 44ºe 45º.
De facto, a questão da autoria nesta criminalidade no âmbito da chamada responsabilidade criminal da “empresa” pode encontrar várias soluções, a saber: a) Responsabilidade da pessoa coletiva; b) Responsabilidade dos funcionários subalternos; c) Responsabilidade dos órgãos colegiais que coordenam a atividade empresarial.
Tudo está em saber se ocorre uma repartição dos deveres funcionais (deveres de vigilância e de controle dos riscos) de acordo com a posição que cada membro ocupa.
Tudo dependerá da análise da estrutura da organização empresarial e das fontes legais ou instrumentais em que se baseiam esses deveres. Em suma, deve atender-se à estrutura da empresa em questão, aos deveres funcionais dos agentes e à sua omissão na implementação dos meios necessários para evitar o resultado. Há que considerar que se trata de crime omissivo de violação de dever que não se exige o domínio do facto, bastando a titularidade do dever violado no momento típico do domínio. Em particular quanto aos quadros superiores da empresa, a estes incumbe em primeiro lugar criar os mecanismos de articulação com os quadros inferiores, impendendo sobre eles o domínio funcional organizativo. A evolução do conceito de autoria imediata no âmbito das organizações, nomeadamente, nas organizações empresariais é matéria que tem vindo a ser desenvolvida por vários autores, nomeadamente por Roxin, propondo-se que os vários tipos de comportamentos no seio da empresa se possam enquadrar na figura da coautoria. A estrutura empresarial com os seus mecanismos de comunicação permite concluir pela existência de um acordo, podendo ser autor aquele que intervém em todo o processo de decisão e de execução nas estruturas da segurança. Dito doutra forma, são os quadros intermédios nas grandes estruturas empresariais que possuem o conhecimento e a competência técnica necessárias para conformar a execução do facto de uma dada maneira.
Nos casos de delegação de poderes não se mostra afastada a possibilidade de responsabilização do quadro superior ou do dirigente da empresa, pois estes têm de facultar aos técnicos os meios necessários para cumprir as medidas de proteção aplicáveis, impendendo sobre aquele o dever de verificar se as funções delegadas estão a ser cumpridas adequadamente. Esse dever não impende apenas sobre o empresário, mas também sobre aqueles que tenham funções relacionadas com o facultar os meios de segurança, desde que essas funções resultem de instrumento idóneo. A responsabilidade não está restringida à obrigação decorrente da lei, pois engloba a obrigação de facto, desde que tenha ocorrido uma delegação de tarefas relativas às medidas de segurança em pessoas da cadeia hierárquica da estrutura empresarial, onde o delegado “assume a posição de garante”, podendo existir vários responsáveis, cuja responsabilidade se apurará segundo o grau de culpabilidade que lhes seja exigível.
O mesmo se diga relativamente aos trabalhadores.
A delegação de poderes dá origem a uma nova posição de garante, do “delegado”, a qual pressupõe um ato formal e também o de se facultar os meios económicos e materiais imprescindíveis ao bom desempenho dessas funções. Estes princípios poderão também ser aplicados aos casos de subcontratação, em função da forma como a segurança decorrente desta foi colocada em prática, quais os instrumentos aplicáveis e os meios necessários para o cumprimento das regras de segurança aplicáveis, bem como da efetiva disponibilidade destes relativamente às condições de trabalho.
A questão da conduta do trabalhador tem vindo a ser abordada, com reflexos laborais e penais, havendo que distinguir várias situações, em particular as seguintes: a) A existência de ação “imprudente” do trabalhador; b) A ação “imprudente”/dolosa do trabalhador em conjugação com a conduta omissiva do empregador ao não fornecer os meios de segurança necessários e exigíveis ao caso; c) A ação do trabalhador que contraria as ordens expressas do empregador quanto às regras a cumprir e os meios de proteção a utilizar (conduta temerária). No entanto, a conduta do trabalhador deve ser analisada e enquadrada com as condições gerais em que a atividade laboral é prestada, na medida em que recai sobre a entidade empregadora o dever de vigiar o cumprimento das regras de segurança, facultando os meios necessários a tal, sob pena de criarem mecanismos de “desresponsabilização” inaceitáveis.

Por estas razões não se pode falar em contradição entre os factos 8º e os factos 33º e 34º, 37º, 38, 39º, 40º, 43º,44ºe 45º.
Alega-se ainda que a situação poderá configurar uma situação de erro notório na apreciação da prova.
Ora, a análise do texto não permite tal conclusão.
Lida e analisada a decisão recorrida, nela não surpreendemos qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida, mostrando-se a decisão bem estruturada com raciocínio lógico e a apreciação das provas efetuada em respeito pelos princípios da livre apreciação da prova, e pelas regras de experiência comum.

Será uma questão de vício de insuficiência da matéria de facto dada como provada?

Para situação a questão impõe-se fazer uma breve incursão no tipo legal de crime em causa.
No preenchimento do crime do artigo 277.º n.ºs 1 do Código Penal a verificação dos elementos típicos deste crime envolve várias questões jurídicas as quais advém, em boa parte, de se estar perante um crime de perigo concreto, um crime específico próprio (segundo a qualidade dos autores), um crime omissivo próprio (omissão de um dever de agir e independente do resultado) e um crime de violação de dever. As regras técnicas aí mencionadas podem ter por fonte a lei, o regulamento ou o uso profissional. Está-se, deste modo, a conferir proteção penal a normas de direito relacionadas com a construção de edificações. E o preenchimento deste tipo, que é de perigo concreto, tanto pode ter lugar por via de ação como por omissão, sendo discutível que se tenha de recorrer ao disposto no artigo 10.º, n.º 2, do Código Penal. O perigo é, aqui, o risco de lesão da vida, integridade física ou do património alheio.
Nos crimes de perigo o legislador penal antecipa a punição para um momento anterior ao resultado, porque a prática de certos atos cria um risco de lesão de bens jurídicos relevantes. E quando o tipo legal pode ser violado por pessoa sobre quem recai um dever especial trata-se de um crime específico próprio, em que a qualidade dos agentes ou o dever que sobre eles impende fundamenta a ilicitude. Trata-se do dever do concreto cumprimento das normas de segurança. O conceito de meios utilizado na lei penal reporta-se aos meios materiais, intelectuais e organizativos, em especial o dever de informação sobre o risco, pois a referida informação é um meio imprescindível para que o trabalho se realize sob os parâmetros adequados de proteção. Por um lado, a noção de meios para efeitos da norma incriminadora engloba os meios materiais e não materiais, coletivos ou individuais, abrangendo a existência dos meios necessários para que os trabalhadores desempenhem a sua atividade em segurança para si e terceiros, com cumprimento das regras aplicáveis. Mas, por outro lado, parece ser ponto assente que a noção de meios, deve ter como fundamento uma qualquer disposição normativa, relacionada com a segurança na obra.
Em particular quanto aos quadros superiores da empresa, a estes incumbe em primeiro lugar criar os mecanismos de articulação com os quadros inferiores, impendendo sobre eles o domínio funcional organizativo.
Tendo presente a matéria fáctica dada por provada, resulta que os arguidos AA e BB delegaram no exercício das suas funções enquanto sócios gerentes e representantes da empresa A... ao arguido CC competências para naquela concreta obra id., em 5º supervisionar as mesmas e sua segurança, nos termos constantes do ponto 8º, 35º. Na concreta relação estabelecida entre CC e os arguidos AA e BB não resulta provado que estes tenham desrespeitado qualquer norma concreta de segurança.
Constata-se que houve uma repartição dos deveres funcionais (deveres de vigilância e de controle dos riscos) de acordo com a posição que cada membro ocupa na hierarquia da empresa.
Nos casos de delegação de poderes não se mostra afastada a possibilidade de responsabilização do quadro superior ou do dirigente da empresa, pois estes têm de facultar aos técnicos os meios necessários para cumprir as medidas de proteção aplicáveis, impendendo sobre aquele o dever de verificar se as funções delegadas estão a ser cumpridas adequadamente. Esse dever não impende apenas sobre o empresário, mas também sobre aqueles que tenham funções relacionadas com o facultar os meios de segurança para os trabalhadores, desde que essas funções resultem de instrumento idóneo.
Ora, no caso dos autos nada se provou a propósito da ausência de fornecimento por parte dos sócios gerentes de meios necessários para o cumprimento das regras de segurança ou que estes não tenham verificado se aquelas funções estavam a ser cumpridas adequadamente.
Por outro lado, nas concretas circunstâncias não vê como poderiam os sócios gerentes ter de alguma forma violado as regras de segurança ainda que por omissão.
De facto, era ao arguido CC que se impunha em nome e no interesse direto da sua entidade patronal zelar pelo cumprimento das regras de segurança na execução da obra, funções para os quais havia sido indicado pelos arguidos AA e BB.
Se é certo que como dono da obra a empresa representada e dirigida pelos arguidos AA e BB estava incumbida de garantir a segurança na obra, nenhum facto dado como provado demonstra que tais arguidos, conheciam as circunstâncias concretas da situação que veio a originar a situação de perigo para a integridade física e vida de terceiros e que por isso fizeram ou deixaram de fazer em concreto, a que estavam legalmente obrigados.
O que se verifica dos factos dados como provados é que era o arguido CC, funcionário experiente da arguida A..., que por delegação de funções por parte dos arguidos AA e BB, a quem cabia acompanhar, fiscalizar e decidir sobre o modo de executar as tarefas que implicavam a obra contratada e que foi no âmbito dessas funções e desse desempenho que o arguido CC tomou a decisão na tarde do dia 09.10.19, transmitida aos arguidos EE e DD de abandonarem a obra sem deixarem a proteção para as escadas, ficando tal tarefa para ser executada no dia seguinte, decisão que não foi previamente autorizada ou comunicada aos sócios gerentes, pelo que dos factos descritos de 12 a 29º, não se pode concluir que puderam de modo doloso antecipar o perigo em concreto criado para terceiros. Tratou-se de uma decisão de gestão diária da obra que escapou ao domínio da imputação àqueles sócios gerentes. Nesta situação concreta não se vê como possam estes arguidos na qualidade de sócios ter aumentado, criado ou não evitado o risco criado.
Como bem refere a Srª PGA “Se é certo que como dono da obra a empresa representada e dirigida pelos arguidos AA e BB estava incumbido de garantir a segurança na obra, nenhum facto dado como provado demonstra que tais arguidos, conheciam as circunstâncias concretas da situação que veio a originar a situação de perigo para a integridade física e vida de terceiros e que por isso fizeram ou deixaram de fazer em concreto, a que estavam legalmente obrigados.”
Aliás, da matéria de facto dada como provada pode claramente concluir-se que não conheciam, não se tendo consignado expressamente em que consistiu tal conduta e de que modo poderiam ponderar em concreto o perigo resultante da violação das regras de segurança que o tribunal apurou e concretizou no ponto 18º e 35º.E neste sentido existe um insuficiência fáctica.
Assim, no caso dos autos nada é apontado a qualquer dos arguidos que indicie que o perigo que objetivamente existia (e tem que existir para o preenchimento do tipo), fosse abrangido pelo dolo do agente, mas antes que o mesmo perigo não foi sequer considerado (neste sentido, ver Ac. deste Tribunal de 16/02/2009, Desembargador Cruz Bucho)
Relativamente aos trabalhadores DD e EE, a matéria fáctica é contundente quanto à sua participação na criação do perigo. Diz o M.P. nesta instância e os recorrentes que se limitaram a obedecer a ordens. Todavia, estes arguidos não recorreram da matéria fáctica criminal interpondo apenas recurso quanto à matéria civil.
De todo o modo, no que diz respeito à comparticipação e ainda para mais no âmbito do conhecimento oficioso de um vício gerador de nulidade atento o disposto no art. 403º, n º 2 al.e) com referência ao art. 402º, als. a) e c) todos do CPP, é sempre possível estender-se esse conhecimento relacionado com a coautoria a esses arguidos.
Ora, já tivemos oportunidade de referir que os trabalhadores podem responder como coautores na violação de regras de segurança se as suas ações em conjugação com a conduta omissiva do empregador ou encarregado de obras (o caso dos autos) com competências delegadas fornecerem ou estabelecerem os meios de segurança necessários e exigíveis ao caso.
A matéria fáctica dada por assente diz-nos que estes arguidos sabiam que iam deixar as escadas desprovidas de segurança ao não substituírem o corrimão por uma estrutura de segurança que evitasse a queda das escadas. Sabiam que não havia iluminação e sabiam que o prédio era habitado. Não contrariaram a ordem dada pelo encarregado de obras nem levantaram qualquer obstáculo a tal ou apresentaram soluções alternativas que evitassem ou atenuassem o perigo criado, conformando-se é o que decorre dos pontos 7º, 16º, 17º, 18º, 19º, 20º, 21º, 22º, 23º, 24, 25º, 38º, 39º, 40º, 43º, 44º e 45, pelo que a situação destes é diferente da dos sócios gerentes que nem sequer estavam no local e não participaram da decisão.
Assim e quanto a estes trabalhadores inexiste qualquer tipo de vício pelas razões supra apresentadas.
Concordando-se que os factos dados como provados são insuficientes para a decisão de condenar os arguidos AA e BB, ocorreu vício que determina a nulidade da decisão o qual pode ser sanado nos termos do já mencionado art. 431º do C.P.P., mas apenas e se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base, al.a) do artigo em questão.
Donde resulta que da análise da matéria de facto dada como provada, não se descortina que mais pudesse o tribunal a quo fazer para apuramento das insuficiências ora detetadas, na medida em que os próprios factos apurados permitem desde logo concluir que os sócios gerentes não tiveram qualquer participação na decisão de não colocação de estrutura de segurança nas escadas e que esta decisão foi apenas tomada pelo encarregado de obras no exercício das suas competências sem qualquer consulta prévia àqueles sócios os quais lhe haviam delegado competência para tomar todas as providências relativas à segurança da obra e em quem confiavam plenamente, sendo certo que não esteve em causa não colocar a estrutura de segurança, mas sim o momento em que a mesma seria colocada, tendo-se apurado que devido às circunstâncias próprias da gestão daquela obra em concreto foi determinado colocar tal estrutura no dia seguinte, pelo que sem demais delongas não se justifica o reenvio do processo para a primeira instância, que seria inútil em face do já apurado e nesta medida por forma a sanar-se o vicio em questão decide-se eliminar da matéria fáctica dada por provada e no que respeita tão-somente aos arguidos BB e AA os seguintes factos : 34º, 37º e 43º, 44º e 45 na parte imputada aos arguidos AA e BB.
Não se dá cumprimento ao disposto no art. 424º, nº 3 do CPP e, porquanto a questão que determinou a alteração da matéria fáctica suprarreferida decorre do já alegado nos recursos pelos arguidos e do parecer da Sr.ª PGA, os quais tiveram oportunidade de ser respondidos pela assistente, como ocorreu com a resposta que apresentou e com a notificação que lhe foi feita nos termos do art. 417º, n º 2 do CPP.
Importa ainda referir a propósito da responsabilidade penal da pessoa coletiva que esta se mantém, porquanto tanto o encarregado de obras como os trabalhadores pedreiros agiram sempre por conta da sociedade e no seu interesse, artigos, entre outros, 6º, 7º e 42 dos factos provados.
Estabelece o artigo 11.º do C.P. que as pessoas coletivas podem ser responsabilizadas por determinados crimes estabelecidos no n.º 2 dessa disposição (porque nem todos os crimes podem ser praticados por pessoas coletivas), e entre os quais se incluem o crime de infração de regras de construção, dano em instalações e perturbação de serviços do art. 277º do C.P.
Para responsabilizar a pessoa coletiva é necessário que se cumpram determinados requisitos ou pressupostos:
1. O facto deve ter sido praticado em nome da pessoa coletiva e no interesse coletivo;
2. Por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança que passam a ser subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas a que a pessoa coletiva seja condenada em determinados casos;
3. A responsabilidade da pessoa coletiva é excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito;
4. A responsabilidade das pessoas coletivas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes.
Ora, a matéria fática provada vai no sentido que a atuação quer do encarregado de obras quer dos trabalhadores pedreiros não foi contrária a ordem ou instrução expressa dos sócios gerentes na qualidade de representantes da sociedade A.... Pelo contrário, foi-lhes depositada total confiança para levarem a cabo os trabalhos de execução e nessa medida, tudo o que ali foi decidido foi no interesse e por conta da sociedade A..., pelo que não pode deixar de ser responsabilizada.

De realçar ainda que uma vez que não houve impugnação fáctica nos termos legalmente suprarreferidos, não pode naturalmente questionar-se o elemento subjetivo do tipo legal de crime em causa, pelo que tendo sido dado como provada a prática de crime doloso, ainda que na forma eventual, mantém-se tal imputação, ficando excluída a abordagem de conduta negligente que surge da parte dos recorrentes na perspetiva da sua versão subjetiva dos factos, mas que não coincide com a versão encontrada pelo tribunal a quo no exercício da sua livre apreciação devidamente fundamentada e que não contraria as regras da experiência atendendo ao conjunto dos factos dados como provados, tanto mais que deu expressamente como não provada a negligência.
Improcede nesta parte também o recurso.

Das medidas da pena.
Tendo presente a eliminação fáctica suprarreferida, os arguidos AA e BB terão de ser absolvidos e nenhuma pena se lhes aplicar.
Relativamente à arguida “A..., Lda”, mantém-se a sua responsabilização.
O tribunal a quo a propósito decidiu:
O crime de infração de regras de construção agravado pelo resultado, previsto e punido pelo artigo 277º, n.º 1 do Código Penal é punido com pena de prisão de um a oito anos.
No que concerne à pena aplicável à sociedade arguida, prescreve o artigo 90º-A do Código Penal, no seu n.º 1, que “Pelos crimes previstos no nº2 do artigo 11º, são aplicáveis às pessoas coletivas e entidades equiparadas as penas principais de multa ou dissolução”.
Estabelece o artigo 90º-B do Código Penal o seguinte:
“1. Os limites mínimo e máximo da pena de multa aplicável às pessoas coletivas e entidades equiparadas são determinados tendo como referência a pena de prisão prevista para as pessoas singulares.
2. Um mês de prisão corresponde, para as pessoas coletivas e entidades equiparadas, a 10 dias de multa.
3. Sempre que a pena aplicável às pessoas singulares estiver determinada exclusiva ou alternativamente em multa, são aplicáveis às pessoas coletivas ou entidades equiparadas os mesmos dias de multa.
4. A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71.º
5. Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 100 e (euro) 10 000, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos com os trabalhadores, sendo aplicável o disposto nos n.os 3 a 5 do artigo 47º”.
No caso em apreço, a pena abstratamente aplicável aos arguidos pessoas singulares é de um a oito anos de prisão.
Assim, a pena de multa a aplicar à sociedade arguida tem como limite mínimo 120 dias de multa e como limite máximo 960 dias.”
Mais adiante refere:
A determinação da medida da pena, conforme dispõe o artigo 71º do Código Penal, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, pelo que importa concretizar, relativamente a cada um dos arguidos e à sociedade arguida, considerando que a culpa das pessoas coletivas ou entidades equiparadas tem por referencia a atuação dos seus representantes, quais as circunstâncias atinentes ao seu comportamento que relevam em sede de prevenção e de culpa, para o que tomaremos em consideração o disposto no artigo 71º, n.º 2, sendo certo que o elenco é meramente exemplificativo e atendendo ao princípio da proibição da dupla valoração.
No caso dos autos, há que ponderar que os arguidos agiram com dolo eventual (artigo 14º, n.º 3 do Código Penal), pelo que a intensidade do dolo não é elevada.
Por sua vez, o grau de ilicitude dos factos e de culpa dos arguidos deve considerar-se de relevo médio, tendo em conta que se colocou em perigo a integridade física de todos os moradores do prédio onde decorriam as obras, e de outros utilizadores pontuais das escadas.
Por outro lado, importa ponderar as consequências da conduta omissiva dos arguidos, que neste caso se traduziu numa lesão efetiva da integridade física de GG, que sofreu um traumatismo cranioencefálico e uma ferida extensa craniana ao nível frontal/parietal direita na decorrência da queda, lesões objetivamente graves.
Impõe-se ainda ponderar o grau de violação dos deveres impostos aos arguidos e à sociedade arguida, tendo em conta, por um lado, o desrespeito por direitos fundamentais (integridade física de terceiros) e, por outro o desrespeito pelo ordenamento jurídico, ao violar o estatuído nas nomas já citadas do Decreto nº 41821/58, de 11/8, do Decreto-Lei n.º 38382/51, de 07 de Agosto e da Portaria 1532/2008, de 29 de dezembro.
Acresce o particular modo de execução dos factos, aqui revelado na total omissão de colocação de qualquer proteção no lanço de escadas que ficou a descoberto com a demolição da parede, na medida em que, após demolirem a parede, os arguidos DD e EE, segundo as instruções do arguido CC, e sob as ordens dos arguidos AA e BB, legais representantes da sociedade arguida, não colocarem de novo o corrimão da escadaria, nem qualquer outro dispositivo de segurança, ou sequer uma sinalização de risco de queda, e a gravidade das suas consequências, já aludida, uma vez que da omissão destes deveres resultou uma lesão grave da integridade física de GG.
Impõe-se ainda ponderar as funções que cada um dos arguidos desempenha na sociedade arguida, e o maior ou menor poder de decisão de cada um deles.
As necessidades de prevenção geral positiva serão de colocar aqui a um nível de relevo médio, porquanto, não obstante causar alarme social, não é frequente a sua prática.
No que diz respeito às exigências de prevenção especial, as mesmas são reduzidas, uma vez que os arguidos e a sociedade arguida não têm antecedentes criminais.
Ademais, os arguidos AA, BB, CC e DD confessaram a maior parte dos factos que lhe eram imputados na acusação pública, essencialmente no que concerne à factualidade objetiva, assim tendo colaborado com a realização da justiça, encontram-se ainda inseridos social, profissional e familiarmente, e demonstraram algum pesar pelas lesões à integridade física causadas à vítima GG.
Quanto à sociedade arguida, nada se apurou quanto à sua situação económica.
Assim, face ao acima exposto quanto ao dolo, à ilicitude, ao grau de culpa, às exigências de prevenção especial e não esquecendo as exigências de prevenção geral de reafirmação da norma violada, nos termos já por nós abordados, justificar-se-á uma pena concreta mais próxima do limite mínimo da moldura penal quanto a todos os arguidos e quanto à sociedade arguida, julgando-se adequada a aplicação das seguintes penas:
- uma pena de 02 (dois) anos de prisão em relação a cada um dos arguidos AA, BB e CC;
(…)
- uma pena de 300 (trezentos) dias de multa em relação à sociedade arguida “A..., Lda
Relativamente ao quantitativo diário estipulou:
“Tendo em conta que nada se apurou quanto às condições económicas da sociedade arguida, e atendendo ao disposto no artigo 47º, n.º 2 do Código Penal e no artigo 90º-B, n.º 5 do Código Penal, o tribunal entende adequado fixar o quantitativo diário no montante de 100,00€ (cem euros), correspondente ao mínimo legal, assim perfazendo o montante total de 30.000,00€ (trinta mil euros).”
Quanto ao quantitativo diário nada se nos afigurar dizer uma vez que foi corretamente aplicado o mínimo legal.
Relativamente ao número de dias fixado. Constata-se que a medida encontrada situa-se abaixo de 1/3 da moldura abstrata da pena, pretendendo a recorrente que se fixe pelo mínimo. Ora, a mesma não se mostra exagerada atendendo ao perigo efetivamente criado com as consequências que decorreram da conduta omissiva, com bem explica o tribunal a quo e supra se reproduz.
O mesmo se pode dizer relativamente ao arguido CC.
O tribunal decidiu aplicar-lhe a pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução.
Como se vê da leitura deste segmento da decisão recorrida, cuja fundamentação também de acolhe na íntegra, o Tribunal a quo foi escrupuloso, pronunciando-se sobre todos os factores que se impunha, com base na matéria de facto assente, e designadamente sobre os factores que os recorrentes invocaram como fundamento de diminuição da pena, tendo sido realizada uma dosimetria equilibrada, tendo em atenção os parâmetros legais, quanto à pena aplicada.
Veja-se que as penas se situam no primeiro terço da moldura penal abstrata, ponderação que de modo algum se pode considerar excessiva, tendo em conta o tipo legal de crime em causa, revelando ter tido adequadamente em conta a situação pessoal e económica destes arguidos.
Por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo há muito que «Em matéria de medida concreta da pena, apesar de se mostrar hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar» substituída pela de autêntica aplicação do direito, aceitando-se a sindicabilidade da correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa e a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.»[2]

No mesmo sentido, entre outros, entendeu-se no acórdão da Relação de Coimbra de 05-04-2017[3] que:
«I - No quadro da moldura penal abstracta, a fixação [da pena] estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
II - Relativamente à determinação do quantum exacto de pena [só] será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada.»

Esta jurisprudência reflete a ideia, que perfilhamos, de que a alteração da medida concreta da pena em sede de recurso deve respeitar a zona de liberdade do julgador em 1.ª Instância ao fixar o quantum da pena, desde de que se situe entre os referidos limites que satisfazem as necessidades de prevenção especial (o mínimo necessário à salvaguarda das expectativas comunitárias e o máximo balizado pela culpa do agente) e não ocorra violação das regras da experiência comum ou manifesta desproporção na pena aplicada.

No caso em apreço, pelas razões que constam da decisão recorrida, que aqui acolhemos, a fixação da medida concreta das penas foi realizada de modo proporcional, adequado e necessário, tendo em conta a medida da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial, sendo de manter.

Peticiona a recorrente A... a atenuação especial da pena.
Este instituto está especialmente previsto para este tipo de crime no art. 286º do C.P., mas pressupõe de antemão que o agente tenha removido voluntariamente o perigo antes de se ter verificado dano substancial ou considerável.
Ora, facilmente se constata que a colocação posterior de suporte de segurança nas escadas, aconteceu já depois da infeliz vítima ter caído das escadas por ausência de tal estrutura de segurança e que dessa queda resultaram sérios danos corporais na pessoa da vítima, cfr. pontos 46º, 47º, 48º e 49º dos factos provados, pelo que não estão reunidos os pressupostos da aplicação deste regime. E também se não verificam os requisitos do regime geral da atenuação especial da pena do art. 72º do C.P, porquanto atento o seu conteúdo :
1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.
Inexistem quaisquer circunstâncias nem a recorrente as enuncia que diminuam consideravelmente a ilicitude do seu comportamento, não sendo o período associado à COVID circunstância que possa associar-se ao conceito de diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.
Improcedem pois, os recursos nesta parte dos arguidos A..., Ldª e CC.
Os arguidos DD e EE não questionaram a sua responsabilidade criminal.

Do pedido cível.
Objeto:
Os recorrentes A..., Ldª, AA, BB e CC pedem a absolvição do pedido cível, invocando que foi dado como não provado o nexo de causalidade entre a conduta omissiva e o resultado final da morte de GG, questionando o nexo de causalidade entre as eventuais doenças e sofrimento da falecida e o acidente e ainda sofrimento da filha.
Mais referem que a vítima já sofria de outras doenças e dores, não tendo sentido ser condenados a pagar à própria falecida, que não é parte na ação e não deduziu qualquer pedido de indemnização, nem a sua filha o fez em seu nome.
Subsidiariamente, pedem a redução dos montantes fixados.

Também os demandados DD e EE invocam falta de nexo de causalidade entre o crime e os danos invocados. Inexistência de qualquer pedido indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG, ocorrendo violação do art. 77º do CPP e ainda do disposto no art. 566º, nº 3 do CC.
Vejamos.
Atendendo à absolvição da prática do crime que se impõe relativamente aos arguidos AA e BB, nada será de se lhes exigir em termos de responsabilidade civil.
Já o mesmo não de dizer relativamente aos demais arguidos.
A este respeito o tribunal a quo referiu:” A assistente/demandante FF deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos/demandados, pugnando pela condenação solidária dos mesmos no pagamento da quantia de 1.000,00€, a título de danos patrimoniais, e de quantia não inferior a 50.000,00€, a título de danos não patrimoniais, acrescidas de juros moratórios à taxa legal desde a citação até integral e efetivo pagamento, danos sofridos em consequência da prática do crime imputados ao arguidos (cfr. fls. 307 a 313).
Dispõe o artigo 483º do Código Civil que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
A simples leitura do preceito mostra que vários pressupostos condicionam, no caso geral da responsabilidade por factos ilícitos, a obrigação de indemnizar imposta ao lesante, cada um dos quais desempenha um papel especial na complexa disciplina das situações geradoras do dever de reparação do dano, os quais poderão ser enunciados pela seguinte forma: a) o facto voluntário, controlável pela vontade humana; b) a ilicitude; c) o nexo de imputação do facto ao lesante; d) o dano sobrevindo à conduta ilícita e culposa; e) um nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Concretamente a respeito do nexo de causalidade entre o facto e o dano, a nossa lei adotou a designada doutrina da causalidade adequada, ao estabelecer que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão - artigo 563º do Código Civil.
A propósito deste pressuposto, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem decidido no sentido de que, segundo a doutrina da causalidade adequada, consagrada no aludido artigo 563º do Código Civil, para que um facto seja causa de um dano é necessário, antes de mais, no plano naturalístico, que ele seja condição sem a qual o dano não se teria verificado e, depois, que em abstrato ou em geral, seja causa adequada do dano.
Com efeito, a teoria da causalidade adequada impõe, num primeiro momento, a existência de um facto naturalístico concreto, condicionante de um dano sofrido, para que este seja reparado.
Depois, ultrapassado aquele primeiro momento, pela positiva, a teoria da causalidade adequada impõe, num segundo momento, que o facto concreto apurado seja, em abstrato e em geral, adequado e apropriado para provar o dano.
Tal significa que a doutrina da causalidade adequada determina que o nexo da causalidade co-envolva matéria de facto (nexo naturalístico: o facto condição sem o qual o dano não se teria verificado) e matéria de direito (nexo de adequação: que o facto, em abstrato ou geral, seja causa adequada do dano).
Assim, no nexo de causalidade entre o facto e o dano, a ligação é feita, em último termo, mediante um nexo de adequação do resultado danoso à conduta.
Como ensina Galvão Telles (citado por Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., 578) "determinada ação será causa adequada de certo prejuízo se, tomadas em conta as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa ação ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar ".
Daqui resulta que, de acordo com a teoria da adequação, só deve ser tida em conta como causa do dano aquela circunstância que, dadas as regras da experiência e o circunstancialismo concreto em que se encontrava inserido o agente (tendo em atenção as circunstâncias por ele conhecidas ou cognoscíveis) se mostrava como apta, idónea ou adequada a produzir esse dano.
Mas para que um facto deva considerar-se causa adequada daqueles danos sofridos por outrem, é preciso que tais danos constituam uma consequência normal, típica, provável dele, exigindo-se, assim, que o julgador se coloque na situação concreta do agente para a emissão da sua decisão, levando em conta as circunstâncias que o agente conhecia e aquelas circunstâncias que uma pessoa normal, colocada nessa situação, conheceria.
Do exposto flui que a teoria da causalidade adequada apresenta duas variantes: uma formulação positiva e uma formulação negativa.
Segundo a formulação positiva (mais restrita), o facto só será causa adequada do dano, sempre que este constitua uma consequência normal, ou típica daquele, isto é, sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como um efeito provável dessa verificação.
Na formulação negativa (mais ampla), o facto que atuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias anormais, excecionais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.
Por mais criteriosa, deve reputar-se adotada pela nossa lei a formulação negativa da teoria da causalidade adequada (Antunes Varela, Obra citada, págs 921, 922 e 930; Pedro Nunes de Carvalho (Obra citada, pág. 61).
Consequentemente, o comando do artigo 563º do Código Civil "deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito, para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz, adequada desse efeito (Pires de Lima e Antunes Varela, Cód. Civil Anotado, Vol. IV, 4º ed, pág. 579).
No que concerne aos danos patrimoniais, rege o princípio da reposição natural, expresso no artigo 562º, nº 2, do Código Civil. Sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente morosa para o devedor, há que lançar mão, nos termos do artigo 566º, nº 1, do Código Civil, da indemnização em dinheiro a fixar de acordo com a teoria da diferença entre aquilo que o lesado perdeu por causa do facto danoso e o que, natural e previsivelmente, não teria perdido se o facto não tivesse ocorrido – cfr. artigo 566º, nº 2, do Código Civil.
Mais estabelece o n.º 3 do artigo 566º que se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Nos termos do artigo 564º do Código Civil, este dever de indemnizar imposto ao autor da lesão compreende dois danos distintos, a saber, o prejuízo causado e os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão. Em anotação a este preceito legal, dizem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA (in “Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra, 1987, p. 579) que o n.º 1 se refere “ao que correntemente é designado por danos emergentes e lucros cessantes. Os primeiros correspondem aos prejuízos sofridos, ou seja, à diminuição do património (já existente) do lesado; os segundos aos ganhos que se frustraram, aos prejuízos que lhe advieram por não ter aumentado, em consequência da lesão, o seu património”.
No que concerne aos danos não patrimoniais, de acordo com o estatuído no artigo 496º, nº 1, do Código Civil, apenas serão atendidos aqueles danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, gravidade que deve ser apreciada objetivamente. Com efeito, a gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objetivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de fatores subjetivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada),1 de forma que os simples incómodos ou contrariedades não justificam a indemnização por danos não patrimoniais.
1 PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I, 4ª edição revista e atualizada, Coimbra Editora, Limitada, Coimbra-1987, página 499.
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
A indemnização não visa, então, propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido.
Diga-se, ainda, que a jurisprudência tem vindo a decidir que a indemnização em causa não pode assumir um cariz miserabilista, de molde a que possa constituir uma efetiva compensação por esses danos (vide, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Outubro de 1994, CJSTJ, Tomo III, pág. 92 e o Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 1994, CJ, Tomo II, pág. 135) mas não pode também ser tão elevada que possa constituir um enriquecimento indevido. Ou seja, na fixação do montante da indemnização ora em discussão deve o tribunal orientar-se por um critério de equidade, que não pode fazer corresponder a indemnização a um enriquecimento despropositado do lesado, nem a uma simples esmola, a um valor meramente simbólico.
Apreciemos, de per se, e no confronto com a factualidade apurada nestes autos, cada um dos pressupostos enunciados, atenta a pretensão da aqui demandante.
Atenta a factualidade provada, não restam dúvidas que os arguidos e a sociedade arguida praticaram factos ilícitos, na medida em que configuram a prática de um crime, cabendo considerar que a descrita conduta dos arguidos constitui uma omissão, dominada pela vontade, culposa, ilícita e à qual são imputáveis os danos sofridos pela mãe da demandante, e pela própria demandante e tidos por demonstrados, tendo ficado inequivocamente demonstrado que tais danos só ocorreram devido à conduta omissiva dos arguidos, e que tais danos foram uma consequência normal e previsível da conduta omissiva dos arguidos, verificando-se, assim, o nexo de causalidade entre tal conduta e tais danos.
Resultou, então, provado que GG sofreu danos, que foram consequência da atuação dos arguidos, que esta faleceu e que a assistente/demandante é sua filha, e como tal sua herdeira, e que a própria assistente/demandante sofreu danos, que foram consequência da atuação dos arguidos.
Com efeito, provou-se que GG era mãe da assistente FF, com quem residia, e até ao momento da queda, determinada pela omissão dos arguidos, mantinha autonomia para o exercício das suas atividades diárias; que, após a queda, deixou de ser autónoma para o exercício das suas atividades diárias e passou a ficar acamada e totalmente dependente de terceiros, sobretudo da assistente, até à data do seu falecimento, ocorrido a 09/12/2019; que, em consequência da queda, sofreu um traumatismo cranioencefálico parietal direito, uma fratura de crânio aberta e com afundamento, esfacelo fronto parietal direito, dor dorso lombar, craniana, cervical, torácica, abdominal, e ao longo da coluna vertebral cervical, sutura de extenso escalpelo na região fronto parietal direita, dreno micro tubular, fratura de costelas, hematomas subpleurais, nos ápices pulmonares bilaterais, higroma cerebral compatível com sangue intracerecral, fratura fronto esfenoidal direita, sem afundamento, fraturas das paredes do seio maxilar direito com hemissinus associado, e equimose e edema da hemiface direita, e que tais lesões acarretaram para a mesma intensas e enormes dores.
Nessa medida, há que concluir pela verificação integral dos pressupostos da responsabilidade civil extra-contratual subjetiva, o que implica o nascimento da obrigação de indemnizar (artigo 483º do Código Civil).
Com efeito, tais danos não adviriam para a vítima GG se não tivesse sofrido a queda, sendo ademais danos previsíveis de tal queda, determinada pela conduta omissiva dos arguidos, pelo que dúvidas não restam quanto ao nexo de causalidade entre a omissão dos arguidos e os aludidos danos (cfr. artigo 563º do Código Civil).
Por outro lado, a demandante é a única titular do direito a tutela indemnizatória, tendo em conta que é filha e única herdeira da vítima (cfr. artigos 495º, nº 3 e 496º, nº 2, ambos do Código Civil.
Resultou ainda provado que, em consequência da queda e das lesões sofridas, nos dois meses que se seguiram, a assistente teve que fazer face a despesas com medicamentos, cremes protetores para impedir escaras, fraldas e alimentação própria para a vítima GG, uma vez que a mesma não conseguia mastigar, no que despendeu, para além do mais, a quantia de 234,17€; que, para fazer face a tais despesas, a assistente recorreu à ajuda financeira de terceiros que lhe emprestaram diversas quantias em dinheiro, que se encontra ainda a reembolsar; que a assistente sofreu angústia e sofrimento por ter presenciado a queda da sua mãe e pelo desespero que sentiu ao vê-la com as lesões cerebrais que sofreu, por ter sido cuidadora diariamente da sua mãe, e por presenciar o seu sofrimento ao longo de dois meses, e pelo sacrifício de ter de fazer face a todas as tarefas para cuidar da mãe acamada; e que tudo isto provocou e provoca à demandante noites de insónia, com profundo nervosismo.
Ora, tais danos não adviriam para a assistente se a vítima GG, sua mãe, não tivesse sofrido a queda, sendo ademais danos previsíveis de tal queda, determinada pela conduta omissiva dos arguidos, pelo que dúvidas não restam quanto ao nexo de causalidade entre a omissão dos arguidos e os aludidos danos da assistente/demandante (cfr. artigo 563º do Código Civil).
Tudo considerado, encontram-se preenchidas as condições legalmente exigidas para sustentar a aplicação do facto ilícito extracontratual como fonte da obrigação de indemnizar, sendo que os danos decorrentes da atuação dos arguidos que resultaram provados têm natureza patrimonial e não patrimonial.
No que concerne aos danos patrimoniais, neste caso sofridos diretamente pela assistente/demandante, resultou provado que despendeu, para além do mais, a quantia de 234,17€ em medicamentos, cremes protetores para impedir escaras, fraldas e alimentação própria para a vítima GG, no período compreendido entre 09 de Outubro e 09 de Dezembro de 2019, sendo que, não tendo sido possível apurar o valor exato destas despesas neste período, mas tão só um valor parcial, fazendo apelo aos critérios da equidade, afigura-se-nos adequado fixar tal montante em 1.000,00€, conforme peticionado. A tal quantia devem acrescer os juros à taxa legal, contados desde a citação, até efetivo e integral pagamento.
No que concerne aos danos não patrimoniais, impõe-se considerar quer os danos sofridos pela vítima GG, já falecida, quer os danos sofridos pela assistente.
Para a fixação dos danos não patrimoniais a ressarcir neste caso há que considerar a factualidade provada, devendo ser tomados em consideração o contexto da omissão dos arguidos, a própria atuação em si e as consequências da mesma, o grau de lesão na personalidade moral da vítima e da demandante, e o período durante o qual perdurou o seu sofrimento, e a situação económica dos arguidos.
Conjugando estes factos, crê-se razoável, adequado e, dentro dos condicionalismos referidos, justo e equitativo, fixar o montante indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG na quantia de 8.000,00€ (oito mil euros), a pagar solidariamente pelos arguidos/demandados à demandada/assistente, sua herdeira, e fixar o montante indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos pela assistente/demandante na quantia de 2.000,00€ (dois mil euros), a pagar solidariamente pelos arguidos/demandados à demandada/assistente.
Na fixação deste valor atribuído a título de danos não patrimoniais foi tomada em consideração a desvalorização da moeda, pelo que, sendo valores atualizados, são devidos juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença e até integral e efetivo pagamento (arts.566º, nº 2 do Código Civil e AUJ nº 4/2002; 804.º e 805.º, nº 1 e 3; 806º, nº 1 e 2, todos do Código Civil e artigo 1.º da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril).
Nesta medida, impõe-se julgar o pedido de indemnização civil deduzido parcialmente procedente em conformidade, nos termos das aludidas disposições legais.”
Concordando com tudo o mais, existe apenas um senão relativamente aos danos de natureza não patrimonial.
Refere o tribunal “Por outro lado, a demandante é a única titular do direito a tutela indemnizatória, tendo em conta que é filha e única herdeira da vítima (cfr. artigos 495º, nº 3 e 496º, nº 2, ambos do Código Civil.”
(…) “impõe-se considerar quer os danos sofridos pela vítima GG, já falecida” e (…)”Conjugando estes factos, crê-se razoável, adequado e, dentro dos condicionalismos referidos, justo e equitativo, fixar o montante indemnizatório por danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG na quantia de 8.000,00€ (oito mil euros), a pagar solidariamente pelos arguidos/demandados à demandada/assistente, sua herdeira(…)”
Ora, ocorre que os danos de natureza não patrimonial relacionados com sofrimento da vítima só são devidos por direito próprio a familiares próximos no caso de a morte ter ocorrido na sequência dos factos ilícitos, ou seja, desde que exista o nexo de causalidade provado entre a morte e os factos ilícitos geradores da responsabilidade criminal e civil, art. 496º, n º 2 do CC.
Ora, o tribunal a quo não deu como provado tal nexo, ver ponto f) dos factos não provados. Consequentemente a fixação de indemnização a este título não sendo um direito próprio da filha FF, só poderia reclamá-la como sucessora universal da vítima.
Para esse efeito, haveria que demonstrar nos autos que era a única herdeira da vítima. Aliás o tribunal a quo partiu com esse pressuposto, embora se desconhecendo sustentado em quê, uma vez que nenhum documento constava nos autos que atestasse tal e como se sabe tal só poderá ser provado por documento autêntico através de uma habilitação de herdeiros.
Por essa razão esta instância não descortinando tal documento nos autos solicitou a sua junção.
Constata-se agora da sua análise, porquanto entretanto junta a certidão, que FF não é a única herdeira universal de GG existindo mais dois herdeiros, um irmão e um sobrinho, o que significa que não podia o tribunal a quo ter fixado indemnização a seu favor, por duas ordens de razões:
1. A demandante não a pediu em nome da vítima, mas título próprio e como vimos não tem esse direito uma vez que a morte não adveio em consequência da queda no dia 09.10.19.
2. Não o podia fazer desacompanhada dos demais herdeiros, ocorrendo uma situação de litisconsórcio necessário ativo, art. 35º do CPC.

Donde decorre uma situação de falta de legitimidade, que impõe a absolvição da instância cível dos demandados quanto à compensação de eventuais danos de natureza não patrimonial que tenham caído na esfera da vítima, art. 278º e 279º do CPC.
O que significa que o tribunal não podia ter fixado a favor da demandante a quantia de €8.000,00 por danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG.

No demais, a decisão a quo mostra-se bem ponderada, relativamente aos pressupostos da responsabilidade civil, nomeadamente na ponderação dos danos não patrimoniais provocados, sendo relevante o sofrimento tido pela impetrante ao ver a mãe a sofrer nas condições descritas e montantes fixados.
De facto, não é despiciendo dizer que no caso concreto a demandante ao ver a sua mãe nas condições em que ficou depois da queda, retrata um mínimo de intensidade duma dor, angústia, desgosto e sofrimento moral que segundo as regras da experiência e do bom senso se torna inexigível em termos de resignação, logo merecedor de tutela do direito.
Ainda no que toca aos danos de natureza patrimonial.
Importa reter que o tribunal deu como provado que era autónoma até à queda. Deixou de o ser a partir dali, ficando acamada e dependente de terceiros e foi a assistente quem a socorreu despendendo com medicamentos, cremes protetores, fraldas e alimentação, despendendo, para além do mais a quantia de €234,17. Este último valor diz respeito a despesas de farmácia e fraldas, não abarcando as demais que foram fixadas de forma equitativa. Atendendo ao valor encontrado e ao período de cerca de dois meses em que esteve acamada a vítima, não consideramos o remanescente fixado, cerca de €766,00, exagerado.
Finalmente e ainda relativamente aos pressupostos da responsabilidade civil importa referir que sendo o tipo legal de crime de perigo concreto e de resultado, tal não significa que não se possa fixar responsabilidade civil pela prática do mesmo.
O crime de violação de regras de construção é um crime, como diz Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário ao Código Penal, anotação ao art.º 277º, de perigo concreto, quanto ao grau de lesão dos bens jurídicos, e de resultado, quanto à forma de consumação do ataque ao objeto da ação, que é a construção humana.
Protege os bens jurídicos da vida, integridade física e património de valor elevado de outrem, incluindo o tipo objetivo as ações e omissões que infrinjam regras legais, regulamentares ou técnicas que devam ser observadas no planeamento, direção ou execução de construção, demolição ou instalação, ou na sua modificação ou conservação.
É um crime “…específico próprio, que, como todos os que integram esta categoria dogmática, delimita o círculo de agentes.” (ac. do TRL de 3/02/2010, Relator Desembargador Carlos Almeida, in www.dgsi.pt), o que implica que o agente tenha que ter atuado no exercício de uma atividade profissional relativa ao planeamento, direção, execução ou fiscalização de uma obra, ou seja, violando por ação ou omissão (neste caso, por violação de dever) “…regras que compõem o saber técnico (knowhow), para o planeamento e execução da obra, bem como para a prevenção de acidentes dos trabalhadores e de terceiros à obra que vivam ou circulem junto à obra. As regras técnicas podem ter fundamento na lei, em regulamentos ou em usos profissionais.” (anotação ao art.º 277º na obra citada de Paulo Pinto de Albuquerque).
É aplicável a teoria da imputação objetiva do resultado à ação. O que significa que a conduta pode ser suscetível de criar danos na vítima. Como se viu no caso dos autos a infração das regras de segurança traduziu-se numa queda que criou danos graves na vítima e reflexamente na demandante, sendo evidente o nexo de causalidade entre os mesmos.
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Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso criminal interposto pelos arguidos AA e BB e improcedente relativamente aos arguidos A..., Lda e CC:
-absolve-se AA e BB da prática do crime de infração de regras de construção p.e.p. pelo art. 277º, n º 1, al.a) do C.P, alterando-se a matéria fáctica quanto aos mesmos nos termos supradescritos.
- Mantém-se a condenação criminal do tribunal a quo dos demais arguidos, confirmando-se a sentença a quo recorrida.

Julgam-se parcialmente procedentes os recursos limitados ao pedido cível e nessa medida:
-absolve-se os demandados da instância e consequentemente da condenação ao pagamento da quantia de €8.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima GG.
-Mantendo-se no demais a decisão cível a quo.

Sem custas a cargo dos arguidos AA e BB (arts. 513.º, n.º 1, do CPPenal).
Custas a cargo dos arguidos A....Ldª e CC que fixo em 4Ucs.
Custas do pedido cível na proporção de decaimento.


Sumário:
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Porto, 08 de março de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator)

Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Cf., entre muitos outros, acórdão de 11-10-2007, Proc. n.º 07P3171, acessível in www.dgsi.pt.
[3] Cf. Proc. n.º 47/15.2IDLRA.C1, acessível in www.dgsi.pt.