Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0515880
Nº Convencional: JTRP00038973
Relator: BORGES MARTINS
Descritores: NEGLIGÊNCIA
EXCESSO DE VELOCIDADE
Nº do Documento: RP200603220515880
Data do Acordão: 03/22/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 435 - FLS. 195.
Área Temática: .
Sumário: A obrigação de regular a velocidade de forma a que, nas concretas circunstâncias de marcha, não constitua perigo para a segurança das pessoas e das coisas, encontra o seu limite razoavel na comum previsibilidade dos eventos, para além da qual não pode falar-se juridicamente de imprudência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam os juizes deste Tribunal da Relação:

No Proc. n.º …./02.6, ….º Juízo Criminal da Comarca do Porto, foi condenado B…….., solteiro, ajudante de electricista, filho de C…… e de D……., nascido em 13 de Julho de 1982 em Paranhos, Porto e residente na Rua ….., n.º …., ….., Gondomar, como autor material de um crime de homicídio negligente, previsto e punido, pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 5 (cinco) meses de prisão; como autor material de uma contra-ordenação, prevista pelo artigo e punida pelo artigo 24.º, n.º 1 e 3 do Código da Estrada, na coima de 200,00 € (duzentos euros).

Recorreu o arguido, considerando que deveria ter sido absolvido. Em síntese, adiantou os seguintes fundamentos para tal desfecho:
- deveriam ter sido dados como não provados os factos constantes de 5 ), 6) , 9), 10) , 11) e 15) – impugnação esta do juízo da matéria de facto ao abrigo do disposto no art.º 412.º, ns. 3 e 4 do CPP;
- deveria ter sido considerado provado que o arguido conduzia com prudência, respeitando a sinalização existente, a cerca de 30 ou 40 km /h;
- o tribunal recorrido desvalorizou indevidamente o depoimento da testemunha E……, e valorizou o depoimento da testemunha F……;
- a interpretação do art.º 137.º do CP no sentido de poder ser aplicada, porque se o arguido circulasse a uma velocidade inferior provavelmente não teria ocorrido o acidente é inconstitucional porque viola o princípio da presunção de inocência, vertido no n.º 2 do art.º 32.º da CRP;
- a guinada do veículo que o arguido conduzia para a faixa contrária efectuou-se após o mesmo ter concluído a curva;
- ao afirmar-se que a velocidade a que o arguido circulava era excessiva, sem provar a que velocidade seguia, só porque o arguido não controlou a marcha do veículo, está a retirar conclusões sem base fáctica que as sustentem.

Respondeu o M.º P.º junto do Tribunal recorrido, nos seguintes termos:
- não deve ser apreciada a pretendida alteração do juízo acerca da matéria de facto, por inobservância, da parte do recorrente, do requisito previstos no n.º 4 do art.º 412.º do CPP;
- foi feita uma apreciação da prova de acordo com as regras legais, nomeadamente o princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.º 127.º do CPP, apenas pretendendo o recorrente que a sua versão dos factos fosse reconhecida pelo Tribunal de recurso;
- deverá o arguido ser absolvido da prática da contra-ordenação causal prevista no art.º 24.º do CE, em virtude de se estar perante um concurso ideal de infracções, sendo aplicável neste ponto o art.º 136.º do CE.

O Exmo PGA junto deste Tribunal da Relação considerou o seguinte no seu parecer:
- o procedimento criminal relativo à contra-ordenação encontra-se prescrito;
- o recorrente tira de cada depoimento conclusões que nenhum deles permite; antes indicam factos que apontam para a existência de culpa do arguido;
- é plenamente correcta a asserção de que o arguido seguia com velocidade excessiva.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º2 do CPP.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Foi a seguinte a fundamentação da matéria de facto:

2. Factos provados:
No dia 30 de Dezembro de 2002, cerca das 20.45 horas, o arguido descia a Estrada da Circunvalação na direcção de Rio Tinto – Freixo ao volante do veículo de marca HONDA CRX de matricula ..-..-KE, levando como passageiro, ao seu lado, a vítima G……;
- Naquela altura estava já noite, chovia e o piso estava molhado;
- À mesma hora, subia a mesma estrada na direcção Freixo-Rio Tinto, o taxista F….. ao volante do seu Táxi da marca MERCEDEZ de matrícula ..-..-MI o qual se aproximava do poste de iluminação n.º 843, à sua direita e de uma curva à sua esquerda logo a seguir;
- O arguido por seu turno, descendo, aproximava-se da mesma curva à sua direita;
Porém, apesar da curva à sua direita, apesar do piso molhado, o arguido entrou com o HONDA na curva à sua direita sem reduzir a velocidade e sem prestar atenção e por isso, entrou em despiste, deslizando em cima do chão molhado e ganhando o HONDA maior velocidade por a estrada ser a descer;
No despiste o arguido foi embater primeiro no direito da via atento o seu sentido de marcha e depois, com a traseira do HONDA, rodopiando, foi embater nos railes protectores da Circunvalação, do lado esquerdo, entrando totalmente na parte esquerda da faixa de rodagem, atendendo ainda ao seu sentido de marcha;
- Ligo após o HONDA foi embatido pelo veículo MERCEDEZ de matrícula ..-..-MI de F….. que já tinha abrandado ao ver o despiste do HONDA mesmo à sua frente;
- Do acidente resultaram directa e necessariamente:
- Para o taxista F……., dores e escoriações na face e tornozelo direito e dores no corpo;
Para a vítima G……, fractura dos arcos laterais da 2.ª à 5.ª costelas à direita com infiltração sanguínea, lacerações nos pulmões, hemotórax Bilateral e outras lesões descritas no relatório da autópsia e que foram causa directa e necessária da sua morte;
- O arguido sabia e podia ter agido de outra maneira ao chegar àquela curva, reduzindo a velocidade e entrado na curva com cuidado e atenção para evitar o despiste;
- Se tivesse agido desse modo não se teria despistado, não se teria despistado o veículo do arguido e não se teriam verificado as tristes consequências supra referidas;
- Entrou o arguido a uma velocidade não concretamente apurada, mas superior à que era adequada a evitar o despiste do veículo conduzido pelo arguido;
- O veículo HONDA conduzido pelo arguido estava em bom estado e era possível por isso, reduzir a velocidade antes da curva para nela entrar com toda a segurança e sem risco de despiste;
- Sabia o arguido quais eram os cuidados que deveria ter tomado para evitar o despiste.

Provou-se ainda que:
O arguido conhecia bem o local onde se deu o acidente porque passava lá muitas vezes;
O arguido agiu sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, não tendo previsto o resultado ou, se o previu, confiou em que se não produziria, agindo com violação das normas da prudência e do trânsito;
O arguido mostrou uma atitude contrita em audiência de julgamento
O arguido tem como habilitações literárias o 6.º ano de escolaridade;
Aufere um vencimento mensal equivalente ao salário mínimo nacional;
Vive em casa própria que está a pagar ao banco com uma quantia mensal declarada de 350,00 €, sendo ajudado pela mãe;
É pessoa considerada e estimada na região onde vive;
O arguido sofre psicologicamente desde a data do acidente, tendo nele padecido o seu pior acidente;
O arguido é pessoa respeitada e respeitadora no meio onde se insere;
Vai com frequência ao cemitério onde se encontra sepultado o malogrado G…….;
No ano de 2003 trabalhou na construção civil para a empresa H…… Lda;
Tem como antecedentes criminais uma condenação pela prática de um crime de condução ilegal praticado no dia 02/08/1999, na pena de admoestação.

Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente:
Que o arguido tivesse entrado na curva acima descrita, a mais de 50 km por hora;
Que o local fosse bastante escuro;
Que houvesse óleo na estrada antes do acidente;
Que os travões tivessem bloqueado;
Que a direcção do veículo se tivesse partido;
Que o arguido tivesse padecido de algum sintoma que o incapacitou no momento que antecedeu o acidente;
Que o arguido conduza com prudência, respeitando a sinalização existente;
Que o veículo MERCEDEZ de matrícula ..-..-MI de F…… que já tivesse parado ao ver o despiste do HONDA mesmo à sua frente.

3. Motivação:
A convicção do Tribunal fundamentou-se no seguinte:
O arguido alegou em audiência não se lembra do acidente e do modo como este ocorreu.
Confirmou que o veículo por si conduzido e que lhe pertencia estava em “ordem” até porque tinham estado (ele e a vítima) a colocar uma nova embraiagem.
Explicou ainda que conhecia o local do acidente porque passava lá com frequência, fazendo sempre a curva “à velocidade normal” dando a entender que respeitava o limite máximo de 50 km.
Quanto às testemunhas de acusação.
A testemunha E……, referiu além do mais, que ia a conduzir um veículo atrás do Táxi da marca MERCEDEZ. A certa altura vê o veículo conduzido pelo arguido a atravessar-se na frente do táxi. A testemunha até porque viria atrás do táxi, não soube explicar o modo como se deu o acidente, confirmando que se trata de uma curva perigosa onde se dão muitos acidentes. A testemunha não se apercebeu da existência de óleo no pavimento, acrescentando que na altura estava a chover e que ainda que o piso se encontrava escorregadio. O local é bem iluminado.
A testemunha F……. prestou o seu depoimento de forma coerente e convincente.
Confirmou que o arguido quando já estava a fazer a curva já se encontrava “fora de da sua mão”. Depois a testemunha fechou os olhos e sentiu o embate sendo certo que este ocorreu entre a parte lateral direito do veículo conduzido pelo arguido e a parte frontal do veículo taxai MERCEDZ por si conduzido.
A testemunha confirmou ainda que o arguido devia seguir a uns 50 km por hora sendo certo que a curva em causa é perigosa.
As restantes testemunhas não presenciaram o acidente.
A testemunha I…….. confirmou que o arguido é bom rapaz sendo que ele e a vítima mortal do acidente se davam como irmãos.
A testemunha J……. agente da Brigada de trânsito da PSP confirmou a participação junta aos autos por si elaborada, acrescentando que a curva em causa não é “conhecida” por ter óleo no pavimento.
Também esta testemunha confirmou que mesmo a velocidade de 50 KM por hora, tendo-se pronunciado quanto aos aspectos abonatórios do arguido.
A testemunha C……. pai do arguido, não presenciou o acidente tendo procurado convencer o tribunal, além do mais, que o seu filho circula habitualmente “devagar”.
A matéria de facto, resulta assim não só dos depoimentos das duas primeiras testemunhas de acusação, como também da análise exaustiva da participação do acidente sendo certo que os veículos não saíram do lugar desde o acidente e até à chegada dos agentes da PSP.
Quanto às condições pessoais e económicas do arguido, o tribunal, na falta de outros elementos, valorou as suas próprias declarações e ainda parcialmente o depoimento das testemunhas por ele indicadas.
Quanto ao mais, o tribunal fundou a sua convicção no relatório de autópsia e no certificado do registo criminal do arguido juntos aos autos.

Fundamentação:

1.A contra-ordenação relativa ao excesso de velocidade.
Note-se que a data em que a mesma terá sido cometida reporta-se a 30.12.2002, com implicação ao nível do procedimento criminal, em termos de prescrição ocorrida.
A mesma contra-ordenação encontra-se prevista no art.º 24.º, n.º 1 do CE e é sancionada pelo n.º 3 deste preceito legal com coima de 120 a 600 euros.
Atento o determinado no art.º 27.º, alínea c) do DL n.º 433/ 82 (regime geral das contra-ordenações), o qual impõe o prazo de prescrição do procedimento criminal nos casos de montante inferior a 2 493,99 euros como sendo de um ano, acrescido de metade por força do art.º 28.º, n.º 3 do mesmo diploma legal, mostra-se este prazo decorrido em 30.6. 2004 – tendo o depósito da notificação da acusação sido efectuado em 3.7.2003, conforme fls. 107 dos autos. Mas opera a suspensão da prescrição, prevista no art.º 27.º-A, n.º 2 de 6 meses, introduzido pela Lei n.º 109 / 2001, DR de 24.12, I série, prazo manifestamente decorrido em 10.3.2005, data do julgamento.

2. A impugnação do juízo acerca da matéria de facto.

Não se detectam no texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência, os vícios elencados no art.º 410.º, n.º 2 do CPP, de conhecimento oficioso.
Quanto à adesão que o tribunal fez da versão apresentada pela acusação, em detrimento da do arguido, convém lembrar aqui que um princípio que informa o processo penal é o da livre apreciação da prova. Dispõe o art. 127.º do CPP que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. É no equilíbrio destas duas vertentes (as regras da experiência e a livre convicção do julgador) que a prova há-de ser apreciada.
Este princípio da livre apreciação da prova é válido em todas as fases processuais, mas é no julgamento que assume particular relevo. Não que se trate de prova arbitrária, no sentido de o juiz decidir conforme assim o desejar, ultrapassando as provas produzidas, A convicção do juiz não deverá ser puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável. Tal decorre do art.º 374.º, nº 2 do CPP, o qual determina que a sentença deverá conter “ uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”.
Mas a decisão do juiz há-de ser sempre uma “convicção pessoal “- até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais “- Prof. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, vol. I, ed. 1974, pag. 204).
Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável do princípio da oralidade. Como ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “a oralidade, entendida como imediação de relações ( contacto directo) entre o juiz que há- de julgar e os elementos de que tem de se extrair a sua convicção ( pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação da prova é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”.
O art. 127.º do CPP indica-nos um limite à discricionaridade do julgador: as regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Assim, a exposição tanto possível completa sobre os critérios lógicos que constituíram o substracto racional da decisão- art.º 374.º, n.º 2 do CPP- não pode colidir com as regras da experiência.
Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
Na mencionada obra, a este propósito refere o Prof. Figueiredo Dias: “ Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento(...). De qualquer modo, desde o momento em que- sobretudo por influxo das ideais da prevenção especial- se reconheceu a primacial importância da consideração da personalidade do arguido no processo penal, não mais se podia duvidar da absoluta prevalência a conferir aos princípios da oralidade e da imediação. Só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais”- págs. 233-234.
Os juízos dados como assentes na decisão recorrida asseveram-se como plenamente legítimos face ao conteúdo do princípio da livre apreciação da prova. A versão dada com provada é plausível e não contraria as leis da lógica: o veículo conduzido pelo recorrente deixou de circular pela faixa de rodagem que lhe era destinada, invadiu a faixa de rodagem destinadas aos veículos que circulavam em sentido contrário – o que provocou um acidente com um desfecho trágico a nível de uma vida humana. Não foi encontrado nenhuma linha de causalidade diversa daquela em que primacialmente se impunha o agir humano do arguido.
O tribunal recorrido teve acesso a outros elementos, como tom de voz, gestos, capacidade física dos intervenientes, que lhe permitirão formar a sua convicção, a qual não resulta aqui sindicável.
O recorrente envereda pela via da impugnação da credibilidade que a testemunha A mereceu em desfavor da testemunha B, pela parte do tribunal: o M.º Juiz a quo desvalorizou o depoimento da única testemunha, E…….., totalmente independente que relatou pormenorizamente e de forma coerente o acidente, só porque vinha atrás do condutor da outra viatura que participou no embate e não teria a mesma visibilidade. Contudo, não referiu que também não teve o mesmo nervosismo, as imprecisões e contradições que teve a testemunha que conduzia o veículo que embateu no do arguido. Ou seja, deu credibilidade á testemunha F……., que conduzia o veículo que embateu no arguido, cujo depoimento se revelou confuso, próprio de quem tem receio de ser implicado no mesmo, uma vez que foi o seu veículo que embateu no do arguido e “provocou” a morte do seu amigo(...).
Por esta passagem se pode ver que o recorrente reivindica para si o uso da livre apreciação da prova – esquece, todavia, que a mesma, por força do disposto no art.º 127.º está legalmente reservada ao tribunal.
É inócuo processualmente o acto do recorrente de sobrepor a sua convicção sobre as provas produzidas à do Tribunal de 1.ª Instância – Ac. do STJ de 25.5.2005, CJ, Acórdãos do STJ, Tomo II, pág. 210.
O recorrente transcreve as passagens do registo de prova que no seu entender implicariam que dessem como não provados os pontos constantes de 5 ), 6), 9), 10), 11) e 15); e que deveria ter sido considerado provado que o arguido conduzia com prudência, respeitando a sinalização existente, a cerca de 30 ou 40 km /h.
Escreveu o Prof. Germano Marques da Silva: “ Tem suscitado dificuldades de aplicação a matéria do registo de prova, uma das principais alterações agora introduzidas, sobretudo a transcrição das gravações. As dificuldades serão, estou em crer, superadas logo que se compreenda plenamente que o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, mas constitui apenas remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância” ( in “ Forum iustitiae”, Maio de 1999 pág. 21 ).
A posição expressa pelo recorrente a propósito desta matéria parece apontar para o entendimento de que este Tribunal estaria agora em condições de proceder a um novo julgamento, considerando credível a versão do arguido e não a da acusação.
Mas, pelas razões expostas supra, tal não é viável. O mecanismo de impugnação da prova previsto no art.º 412.º, ns. 3 e 4 do CPP destina-se antes a corrigir aquilo que se constata serem erros manifestos de julgamento e que resultem ostensivos da leitura do registo de prova; já não a fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do principio da livre convicção de quem tem a difícil missão de julgar.
Os mencionados depoimentos para que o recorrente chama a atenção e referenciados no registo de prova não são de molde a imporem uma decisão diversa da recorrida.
Porque não revelam saber essas testemunhas a que velocidade circulava o veículo conduzido pelo arguido; se este conduzia com prudência ou não. Nem o próprio arguido, na parte transcrita mostra ter qualquer conhecimento de como o acidente ocorreu, pois sustentou que de nada se recordava.
Concretizando e cotejando com os passos mencionados na motivação:
O arguido refere que não tem explicação nenhuma para o sucedido, designadamente haver óleo no pavimento – fls. 5 da motivação.
A testemunha E……, que seguia atrás do taxista, refere que, no momento do acidente, o veículo conduzido viria a 30 /40 km/h, que não vinha a grande velocidade, que o arguido fez a curva completamente e só depois se despistou –fls. 7 e 10 da motivação.
Ainda, a testemunha J……., agente da PSP, emite a opinião de que na curva em questão a velocidade de 40 Km / h já é excessiva, estando o tempo chuvoso – fls. 11, penúltima linha, da motivação.
Por fim, a testemunha Joaquim Fernandes, taxista, tem uma versão do despiste do veículo conduzido pelo arguido baseada em conjecturas: eu para mim o problema foi o orvalho (fls. 13) / 50 /40/50.A velocidade não era grande, o problema foi para mim a humidade ou se tinha lá qualquer coisa não sei( fls. 19).
De referir que esta testemunha menciona coerentemente que o despiste antecedeu a finalização da curva – fls. 14 e 19.

Não tem qualquer base probatória o raciocínio subsequente da motivação de que o arguido concluiu a curva e só depois disso é que se verificou o despiste por razão não apurada. Nenhuma testemunha, nem o próprio arguido mencionou esta circunstância, não se percebendo porque é formulada agora a pretensão de que seja dada como provada.
Aliás, a dita testemunha J……, segundo a fundamentação elaborou o croquis de fls. 13 e confirmou o seu teor em audiência- não sendo o mesmo impugnado pelo arguido. Sucede que o mesmo é perfeitamente claro na documentação que o lugar onde o acidente se verificou não permite supor que o veículo conduzido pelo arguido executou a curva perfeitamente e só na recta subsequente se veio a despistar na direcção da faixa contrária.

3. A presunção de inocência do n.º 2 do art.º 32.º da CRP.

Segundo o recorrente a interpretação do art.º 137.º do CP no sentido de poder ser aplicada, de que se o arguido circulasse a uma velocidade inferior provavelmente não teria ocorrido o acidente é inconstitucional, violando o preceito supra indicado.
Nos termos do disposto no art.º 32.º, n.º2 da CRP, “ Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Porque se aplica o preceito independentemente de se apurar a velocidade a que seguia, e o art.º 24.º, n.º1 do CE determina que “o condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.
Para que as disposições legais supra indicadas sejam aplicáveis, é imprescindível, no caso concreto que o acidente fosse previsível.
E não era previsível para um homem médio que, se circulasse a uma velocidade inferior conseguiria evitar o acidente.O próprio Sr. Juiz na decisão recorrida manifestou que não tinha certeza de que o arguido se circulasse a uma velocidade inferior não tinha tido o acidente, quando referiu Se a velocidade fosse inferior o veículo conduzido pelo arguido teria provavelmente mantido uma trajectória que lhe teria permitido não invadir a parte da faixa de rodagem contrária.
Esta argumentação, salvo o devido respeito, não tem qualquer rigor, porque se limita a justapor e a confundir, dando a ideia que considera semelhantes, três conceitos bem distintos: dúvida, probabilidade e previsibilidade.
Importa burilá-los para se constatar a inconsistência total dessa argumentação.
Primeiro: o aspecto da presunção de inocência.
Sobre esta noção e preceito constitucionais, pode ler-se na “Constituição Portuguesa Anotada”, Jorge Miranda - Rui Medeiros, Coimbra Editora, tomo I, 2005, pág. 356:
A presunção de inocência é também uma importantíssima regra sobre a apreciação da prova, identificando-se com o princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a culpabilidade do acusado é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado o esforço processual para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de ónus de prova a seu cargo baseado na prévia presunção da sua culpabilidade. Se a final da produção da prova permanecer alguma dúvida importante e séria sobre o acto externo e a culpabilidade do arguido impõe-se uma sentença absolutória.

Esta a definição positiva do princípio; a seguir, os mesmos autores delimitam o mesmo em termos de exclusão daquilo que ele aparentemente significa- aparência essa que o recorrente reproduz:

O princípio da presunção de inocência é também por vezes identificado com o da livre convicção do julgador, o que determinaria o pleno afastamento do âmbito do processo penal de toda a espécie de presunções legais. Não o cremos. As presunções fundam-se no senso comum, nas regras válidas da experiência, constituindo princípios de direito para a valoração da prova. Trata-se, a maioria das vezes de uma vigilância moderada do juiz. As presunções não dispensam o tribunal de procurar a verdade e de assegurar ao arguido todos os meios práticos para demonstrar o infundado da presunção. A regra é a da razão natural, mas em situações extremas, na dúvida impõe-se a presunção legal.

Também se deixa aqui um registo doutrinal interessante sobre esta especifica matéria:
A obrigação de regular a velocidade de forma a que, nas concretas circunstâncias de marcha, não constitua perigo para a segurança das pessoas e das coisas, encontra o seu limite razoável na comum previsibilidade dos eventos, para além da qual não pode falar-se juridicamente de imprudência. Se assim não fosse, face a inúmeras meras possibilidades, a velocidade mais reduzida poderia não bastar para evitar o sinistro e os veículos seriam inutilizáveis(...); face a factos anormais e imprevisíveis não é de conceber um comportamento de diligência e prudência eficaz a evitar os efeitos do perigo de dano que elevem estas a um grau manifestamente superior ao da experiência normal de um cidadão médio - cfr. págs. 75-76, Tomo II, “ Commento Teorico-pratico del Codice della Strada” , Tommaso Perseo, Editrice La Tribuna, Piacenza, perante idêntico preceito legal.
Cabe também dizer que não é correcta a afirmação do recorrente segundo a qual para que as disposições legais supra indicadas sejam aplicáveis, é imprescindível, no caso concreto que o acidente fosse previsível. Não, o que é imprescindível é que essa previsibilidade incida sobre os muito possíveis efeitos que poderiam decorrer de factores perigosos que ocorriam na altura da condução, ainda para mais de forma conjugada, como a inclinação da via, uma curva perigosa já conhecida do arguido, o piso escorregadio derivado de chuva, a própria noite, embora mitigada pela iluminação pública.
Se o arguido tivesse pautado a sua condução pela prudência, relativamente a este conjunto de circunstâncias, certamente não teria ocorrido o embate com consequências avultadas a nível pessoal, como decorre da simples leitura do ponto 8) da matéria provada.
A dúvida é um estado subjectivo do sujeito que julga, não a controvérsia que uma versão diversa aportada pelo arguido possa trazer ao tratamento cognitivo dos factos passados - não perpassa da fundamentação mencionada que ela tenha subsistido no espirito do julgador até final e este tenha decidido apesar dela em desfavor do arguido.
Não é defensável sustentar que o próprio Sr. Juiz na decisão recorrida manifestou incerteza de que se o arguido circulasse a uma velocidade inferior não tinha tido o acidente, quando referiu que se a velocidade fosse inferior o veículo conduzido pelo arguido teria provavelmente mantido umas trajectória que lhe teria permitido não invadir a parte da faixa de rodagem contrária.
Isto porque o conceito de probabilidade utilizado neste argumento do Sr. Juiz não é o da probabilidade ex ante, que diz respeito ao futuro, e tolerando o cenário de vários acontecimentos futuros, todos possíveis, mas o de probabilidade ex post, baseada já sobre um conjunto de evidências particulares referenciadas no conjunto dos factos provados, entre as quais está manifestamente o conteúdo do ponto 12) da matéria provada, o qual é assertivo quanto ao bom estado de funcionamento do veículo conduzido pelo arguido- e reportada a um acontecimento que era mais razoável e confiável esperar-se: o arguido ter executado a mudança de direcção imposta pela curva em termos de normalidade.
Finalmente, a pretensa violação da presunção de inocência constitucional deriva de equívoco. O recorrente defende que a intervenção do tribunal consistiu em apenas fazer derivar da materialidade do acidente a culpa do arguido, sem ter investigado factualidade correspondente a tal culpa.
Tal equívoco consiste em esquecer que a verdade que se visa apurar nos processos não é a verdade ontológica, naturalística, mas sim uma verdade prática, processualmente válida - cfr. “ O Processo da Crença” Fernando Gil e outros, Gradiva, 2004, págs. 278-279.
Antes de o julgamento se realizar e o tribunal deliberar, nada estava provado, nem mesmo que ocorreu um acidente de viação.

4. O excesso de velocidade.

A velocidade que o condutor imprima ao veículo, além de respeitar os limites legais, tem que ser doseada de acordo com os obstáculos ou dificuldades que no momento da condução se façam sentir.
O juízo acerca desse excesso tem a ver com as circunstâncias de lugar, de tempo, do tráfego que aí flui e também com os efeitos provocados pelo embate do veículo, sem necessidade de uma precisa determinação da velocidade objectiva que animava o veículo.
Esse juízo, além da afirmação relativamente a um estado de coisas, comporta uma imputação culposa: na velocidade excessiva, censura-se ao agente não ter querido conduzir à velocidade impeditiva dos perigos resultantes da configuração ou estado da via, das características dos veículos, etc. - Ac. STJ, de 12.2.1975, BMJ, 244.º, pág. 161.
Significa tal que qualquer condutor de um veículo deve conservar constantemente o controlo da velocidade imprimida ao mesmo e conduzir de forma prudente e razoável. Não significa, porém, que seja obrigado em qualquer momento a ter o absoluto domínio do veículo, quaisquer que sejam as contingências da circulação – isso equivaleria a obrigá-lo à inércia, pois só assim poderia esconjurar de todo qualquer dano a pessoas e coisas.
O condutor não tem apenas a obrigação de imprimir ao veículo uma velocidade adequada, relativamente às circunstâncias, em ordem a evitar resultados danosos; mas tem também o dever de circular a uma velocidade que não seja causa de desordem ou distúrbio para a circulação. Protege o legislador não só a segurança estradal mas também a normal fluidez do tráfego.
Por um lado, não se provou qualquer facto anormal ou imprevisível que permitisse excluir o juízo de culpa supra mencionado, como seria o caso de uma falha dos travões, quebra do semi-eixo, óleo na estrada, etc.
Por outro, provou-se um conjunto de circunstâncias que integram o conceito de velocidade excessiva, como sejam as constantes dos pontos 2) , 4) , 5) ( piso molhado) , 6), 8) , 12), 14).
Nada há pois nestas matérias a censurar à decisão recorrida.

Decisão:

Pelo exposto, acordam os juizes deste Tribunal da Relação em:
- julgar extinto o procedimento criminal por prescrição, relativamente à contra-ordenação prevista no art.º 24.º, n.º1 e n.º 3 do CE;
- julgar improcedente o recurso interposto pelo mesmo arguido B……., confirmando a decisão recorrida.
O recorrente pagará 5 UCs de taxa de justiça.

Porto, 22 de Março de 2006.
José Carlos Borges Martins
Èlia Costa de Mendonça São Pedro
João Inácio Monteiro
José Manuel Baião Papão