Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
24/13.8TJPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
CASO JULGADO FORMAL
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Nº do Documento: RP2015091524/13.8TJPRT-A.P1
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O despacho que apenas manda cumprir o disposto no art.º 41.º, n.º 2, do CIRE não faz caso julgado formal relativamente à apreciação da inexistência de fundamentos dos embargos à sentença declaratória da insolvência por se limitar a assegurar o seguimento deste procedimento, sem decidir uma questão concreta.
II - A resolução definitiva da questão da competência territorial impede a reapreciação da mesma questão, ainda que com base em fundamentos diferentes, constituindo caso julgado formal.
III - A falta de notificação da junção de documentos que não serviram para a decisão e sobre os quais as partes tiveram oportunidade de se pronunciar não integra violação do principio do contraditório, nem constitui nulidade processual.
IV - Não é inepta a petição inicial de embargos, por contradição do pedido com a causa de pedir, quando nela são alegados factos e requeridos meios de prova susceptíveis de afastar os fundamentos da declaração de insolvência e é formulado o pedido de revogação da respectiva sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 24/13.8TJPRT-A.P1
Da Comarca do Porto – Instância Local – Secção Cível – J9

Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Dr. Vieira e Cunha
2.º Adjunto: Dr.ª Maria Eiró
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto - 2.ª Secção:

I. Relatório

B…, Lda., deduziu contra C…, melhor identificados nos autos, oposição de embargos à insolvência deste pedindo:
A) Que se julgue provada e procedente a excepção da incompetência territorial, anulando-se o processado após o requerimento de apresentação à insolvência e remetendo-se os autos para o Tribunal Judicial da Comarca de S. João da Pesqueira;
B) Subsidiariamente, que se declare provada e procedente a oposição e, por via dela, que seja revogada a sentença de declaração de insolvência, com as legais consequências.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
O Tribunal de S. João da Pesqueira é o competente para o processo de insolvência, por o devedor/insolvente residir na freguesia …, daquele concelho e comarca.
Não se verificam os requisitos para a declaração da insolvência, porquanto não se provou que as dívidas estejam já vencidas, qual o valor do bem imóvel referido na matéria de facto assente, nem que o insolvente seja apenas titular desse bem, pois fora dono de outros bens de que dispôs formal e ficticiamente para se furtar às suas responsabilidades e que serão objecto de impugnação pauliana, dispondo, ainda, de outros rendimentos não inferiores a 5.000,00 € mensais.
Além disso, ao requerer a declaração de insolvência apenas em 4/1/2013, violou o seu dever de apresentação.
Ofereceu prova, incluindo testemunhal, e requereu diligências.

Mandado cumprir o disposto no art.º 41.º, n.º 2, do CIRE, apresentaram contestação, em separado, o devedor e a massa insolvente, impugnando parte dos factos alegados, afirmando que a excepção da incompetência territorial já fora definitivamente julgada, por decisão transitada em julgado, e concluindo pela improcedência dos embargos, com a consequente manutenção da sentença de declaração de insolvência, acrescentando o primeiro que foi extrapolado o âmbito legal dos embargos.

A embargante respondeu sustentando que inexiste caso julgado formal quanto à questão da incompetência, por falta de identidade de sujeitos, visto que a decisão foi proferida quando ainda não era parte na acção.

Após a realização de parte das diligências requeridas e algumas vicissitudes para aqui irrelevantes, foi designada a audiência de discussão e julgamento para 25/5/2015, tendo, entretanto, sido requerida, pela embargante, em 22/5/2015, a suspensão da instância com fundamento na pendência da acção com processo comum instaurada pela massa insolvente, por a considerar causa prejudicial.

No dia designado, no início da audiência, foi proferido o seguinte despacho:
“Tendo em conta que corre termos nestes autos a acção de impugnação Pauliana contra o Insolvente e restantes partes que foram intervenientes nos negócios celebrados relativamente aos bens imóveis identificados nos Embargos à Insolvência no art.º 35 alíneas b), d), g) e i) e tendo em conta o requerimento apresentado pelo credor Embargante, cremos que o resultado da procedência da acção poderá trazer algum efeito útil aos presentes embargos.
É certo que a acção declarativa apensa a estes autos foi interposta pela Massa Insolvente de C…, tendo como resultado que os aludidos imóveis passem a fazer parte da respectiva Massa, enquanto que os Embargos à Insolvência tem o efeito de não considerar C… como Insolvente, dado que o mesmo dispõe de património.
Porém, sem que o património regresse à esfera jurídica do mesmo através de uma declaração de nulidade e/ou de ineficácia das transmissões patrimoniais que o mesmo tenha feito, jamais será possível considerar que o mesmo não se encontra numa situação de Insolvência.
É que o Insolvente neste momento não dispõe de praticamente qualquer património em seu nome, e por mais que nos aludidos Embargos à Insolvência se venha a alegar que o mesmo simuladamente se colocou numa situação de não lhe ser possível liquidar as suas dívidas, jamais se poderá declarar que o mesmo não se encontra numa situação de Insolvência.
Tendo em conta que, efectivamente, estes Embargos não são de molde a obter o efeito útil pretendido pelo próprio Credor na sua petição inicial, considerando, inclusivamente, que o pedido efectuado se mostra em contradição com a causa de pedir, julgamos os mesmos improcedentes, sendo certo que devia ter existido, a priori, um despacho de indeferimento liminar dos aludidos Embargos em conformidade com os art.ºs 40º e 41º do CIRE.
Face ao exposto, ouça-se desde já as partes para o respectivo exercício do contraditório.”

A ilustre mandatária da embargante, que se encontrava presente, pronunciou-se pelo prosseguimento dos embargos, por o insolvente não auferir unicamente o rendimento de 420,00 € mensais e não ser titular apenas do imóvel rústico indicado.
Por sua vez, a ilustre mandatária da administradora da insolvência sustentou a manutenção desta, admitindo, embora, a prova dos rendimentos do insolvente.
E a ilustre mandatária do insolvente concordou com o proposto, em conformidade com o que havia alegado na contestação.
De seguida, foi proferido o seguinte despacho:
“Tendo em conta o que se deixou explanado supra relativamente aos Embargos à Insolvência, cremos que efectivamente considerando que os bens imóveis através destes Embargos não regressem de forma alguma à esfera jurídica do Insolvente, ainda que o Embargante venha alegar que o mesmo é proprietário de facto dos aludidos bens, tal alegação não produz qualquer efeito jurídico pelo que não existe qualquer efeito útil no prosseguimento da presente acção.
Por outro lado, de acordo com os documentos juntos aos autos sobre os rendimentos auferidos pelo insolvente, verifica-se que os mesmos apenas dizem respeito até ao ano de 2009, rendimentos esses recentes da exploração das verbas, não existindo quaisquer outros que permitam concluir que o mesmo não poderia ter sido declarado Insolvente à data em que o mesmo se apresentou à Insolvência.
De resto, as questões fácticas alegadas no requerimento de Embargo à Insolvência estão efectivamente em contradição com o pedido formulado, sendo certo que os mesmos só poderiam surtir efeito útil através das acções Impugnação Pauliana, devendo, até, inclusivamente, serem apreciadas em sede de Incidente de Qualificação da Insolvência.
Face ao exposto, julgam-se improcedentes os presentes embargos em conformidade com o disposto no art.º 278º al. b) e e) e 186º n.º 1 e 2 b), do CPC, determinando-se a absolvição do Réu na presente acção.
Custas a cargo Embargante.
Registe e notifique.”

Inconformada com este despacho, a embargante interpôs recurso de apelação e apresentou a respectiva alegação com as seguintes conclusões:
“1. O tribunal a quo julgou os presentes embargos improcedentes com fundamento na contradição entre o pedido e a causa de pedir, entendendo que deveria ter existido a priori um despacho de indeferimento liminar, em conformidade com o disposto no artigo 40.º e 41.º do CIRE.
2. Ora, por despacho de 29.05.2013, com a referência CITIUS 11641057, entendeu, o mesmo tribunal, que não existia motivo para indeferimento liminar, ordenando o cumprimento do artigo 41.º, n.º 2, do CIRE.
3. O referido despacho não foi objecto de qualquer tipo de impugnação, tendo transitado em julgado.
4. Formou-se, assim, caso julgado formal quanto à não existência de fundamentos para o indeferimento liminar da pretensão da embargante.
5. Assim, deve o despacho recorrido, no segmento referido, ser revogado e substituído por outro que ordene que o processo baixe para realização de audiência de julgamento seguindo os seus ulteriores termos.
6. Por outro lado, na sua petição inicial, a embargante suscitou a questão da incompetência territorial do tribunal recorrido e sobre a qual o despacho recorrido não se pronunciou.
7. Tal omissão de pronúncia constitui nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE, que expressamente se invoca com as legais consequências.
8. Mais, por requerimento datado de 22/05/2015, com Ref.ª Citius n.º 4850401, a embargante requereu a suspensão da instância com fundamento no disposto no artigo 272.º, n.º 1 do CPC, ou seja, pendencia de causa prejudicial.
9. Ora, apesar de iniciar o despacho impugnado relacionando-o com o referido requerimento, o tribunal a quo também não se pronunciou sobre o mesmo, nem deferindo, nem indeferindo.
10. Ocorreu, assim, a nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, al. d) do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE, que expressamente se invoca com as legais consequências, devendo, juntamente com a procedência dos restantes segmentos impugnatórios, ser então proferida decisão ordenando a suspensão nos termos requeridos.
11. A isto acresce que, para decidir o que entendeu ser uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, o tribunal a quo lançou mão de elementos probatórios requeridos pela ora recorrente, mas que nunca lhe foram notificados, nem sobre os quais se pode alguma vez pronunciar.
12. Tal argumentação é logicamente oposta à da existência de contradição entre pedido e causa de pedir, visto que, afinal, teve de ser produzida prova sobre a matéria de facto alegada nos embargos, não sendo possível, para chegar a tal conclusão, proceder à mera aferição da existência lógico-dedutiva de nexo entre aqueles, a qual não careceria sequer de prova.
13. A verdade é que a decisão do tribunal a quo se fundou em elementos carreados para os autos após decisão de inexistência de motivos para o indeferimento liminar dos embargos, por um lado,
14. Constituindo surpresa para a ora recorrente, por outro.
15. Com efeito, os ditos elementos foram requeridos pela embargante na sua petição inicial, o tribunal ordenou a notificação dos organismos ali identificados para prestar as informações requeridas, o que fizeram. No entanto, o tribunal em momento algum notificou a embargante dos ditos documentos que, nem notificados, nem sujeitos a prazo de vista e a contraditório, acabaram por vir a ser utilizados pelo tribunal na fundamentação do despacho recorrido.
16. O tribunal violou as normas previstas nos artigos 3.º, n.º 3, 415.º, 427.º e 439.º do CPC, influindo directamente aquela omissão na sentença e na decisão da causa, o que expressamente se invoca com as legais consequências.
17. Finalmente, o tribunal a quo defendeu que as questões fácticas alegadas na petição inicial dos embargos estão em contradição com o pedido formulado, sufragando que aqueles só surtiriam efeito com a anulação dos negócios ali descritos, que classificou como o verdadeiro propósito ou interesse da embargante.
18. No entanto, a finalidade dos embargos resume-se à demonstração de que o insolvente detinha mais património e rendimentos do que aqueles que foram considerados na sentença de declaração de insolvência.
19. O tribunal recorrido confunde, assim, o efeito útil deste processo, que é demonstrar nova factualidade relevante para a apreciação dos requisitos que determinam a declaração da insolvência, com o efeito da declaração de nulidade dos negócios ali identificados.
20. Confusão que a ora recorrente nunca fez, conforme resulta expressamente do alegado no artigo 64.º da petição inicial.
21. Na verdade, a recorrente nunca pretendeu anular qualquer negócio, mas tão-só uma nova apreciação da sentença que declarou a insolvência,
22. Carreando para os autos factualidade não considerada na acção de insolvência, que respeitou não só aos negócios translativos de propriedade dos imóveis referidos no artigo 35.º, alíneas b), d), g) e i) da PI, mas também aos rendimentos que efectivamente o insolvente vinha e vem auferindo,
23. E susceptível de fundamentar a desconsideração da personalidade jurídica das entidades que intervieram nos referidos negócios como uma corolário da excepção material de abuso de direito.
24. Pelo exposto, entende a recorrente que, produzida a totalidade da prova requerida, podem, de facto, ser afastados os fundamentos da declaração de insolvência.
25. Face ao exposto, o tribunal violou as normas previstas nos artigos 186.º, n.º 1 e n.º 2, al b) e 278.º, al b) e al. e) do CPC e artigos 40.º, n.º 2, 41.º, n.º 2 e n.º 4 do CIRE, o que desde já se invoca com as legais consequências.
NESTES TERMOS E COM O DOUTO SUPRIMENTO DE V.ªS EX.ªS, DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, CONSEQUENTEMENTE, O DESPACHO RECORRIDO SER REVOGADO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE ACOLHA OS ARGUMENTOS SUPRA EXPENDIDOS.”

Contra-alegou o insolvente pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Remetidos os autos a este Tribunal, porque o despacho de admissão do recurso era omisso quanto à nulidade por omissão de pronúncia, por se considerar indispensável, foram os autos devolvidos à 1.ª instância para que se pronunciasse sobre ela e fosse o mesmo devidamente instruído.
Porém, limitou-se a escrever:
“Considerando o teor da decisão proferida em acta nestes autos de embargos à insolvência, entendemos que a questão da nulidade sobre a falta de pronúncia quanto ao pedido de suspensão da instância resulta prejudicado, motivo pelo qual não foi apreciado.
Quanto à questão da nulidade por falta do exercício do contraditório, não existe qualquer nulidade, dado que o citado princípio foi cumprido em todo o processado e na própria acta consta que fora dada a palavra à parte contrária a fim de se pronunciar.
Quanto à questão da competência territorial, diligencie a secção a fim de proceder à junção aos autos da decisão proferida”.

Remetidos, novamente, os autos, constatando-se que continuava a faltar a certidão da decisão proferida sobre a incompetência territorial, insistiu-se pela sua junção e, obtida esta, foram mantidos o regime de subida e o efeito fixados ao recurso.

Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente (cfr. art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do actual CPC, aqui aplicável), não podendo este Tribunal de 2.ª instância conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais que aqui não relevam, e tendo presente que nele se apreciam questões e não razões, as questões a dirimir consistem em saber se:
1. O despacho liminar que mandou cumprir o disposto no art.º 41.º, n.º 2, do CIRE formou caso julgado formal quanto à inexistência de fundamentos de indeferimento;
2. O despacho impugnado padece de nulidade por omissão de pronúncia da questão da incompetência territorial;
3. Existe nulidade por omissão de pronúncia por falta de apreciação do requerimento de suspensão da instância com fundamento na pendência de causa prejudicial;
4. Houve violação do princípio do contraditório, por falta de notificação da junção de elementos probatórios;
5. Inexiste ineptidão da petição por contradição do pedido com a causa de pedir.

II. Fundamentação

1. De facto

Na decisão dessas questões importa considerar assente, para além do que se deixou dito no antecedente relatório, a seguinte factualidade[1]:
A) C… apresentou-se à insolvência alegando que exerce as funções de gerente na D…, Lda., com sede em …, S. João da Pesqueira, recebe o vencimento mensal de 420,00 €, não dispõe de qualquer outro rendimento, tem dívidas que ascendem a, pelo menos, 653.416,56 € e é proprietário de um prédio rústico que é manifestamente insuficiente para satisfazer as suas dívidas.
B) Por despacho de 23/1/2013, a Sr.ª Juíza do 2.º Juízo Cível da Comarca do Porto, a quem fora distribuído o processo de insolvência, declarou-se incompetente, em razão do território, declarando competente o Tribunal Judicial de S. João da Pesqueira[2].
C) Esse despacho foi revogado por decisão singular deste Tribunal de 12/3/2013, transitada em julgado, que declarou a competência territorial do tribunal recorrido, mandando que os autos aí prosseguissem os legais termos.
D) A insolvência foi declarada por sentença de 3/5/2013, confirmada por acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 19/7/2013.
E) Ali, foram dados como provados os seguintes factos:
“1. O requerente C…, separado de pessoas e bens, nasceu em 4 de Março de 1957, na freguesia …, concelho de S. João da Pesqueira, e reside na Rua …, nº …, .º Direito, Porto.
2. O requerente exerce as funções de gerente na D…, Lda., com sede na Rua …, nº ., …, S. João da Pesqueira, e recebe o vencimento mensal de € 420,00.
3. O requerente é titular de um imóvel rústico, com a área de 81.600 ha, denominado E…, sito na freguesia …, concelho de S. João da Pesqueira.
4. O requerente, à data da propositura da acção, tem dívidas que contraiu em várias entidades bancárias e outras, no montante de € 653.416,56”.
F) A credora B…, Lda., deduziu os presentes embargos em 27/5/2013.
G) E, em 22/5/2015, requereu a suspensão da instância com fundamento na pendência da acção declarativa comum que a massa insolvente de C… instaurara contra este insolvente, F… e G…, S.A., onde pediu, em via principal, a declaração de nulidade das vendas efectuadas pelo 1.º demandado à segunda demandada e desta à terceira, referentes aos prédios identificados nas alíneas b), c), d), g) e i) do art.º 35.º da petição de embargos, e, subsidiariamente, a impugnação pauliana dos mesmos negócios.

2. De direito

2.1. Do caso julgado formal do despacho liminar

Sustenta a apelante que o despacho liminar proferido nos embargos formou caso julgado formal, como tal, impeditivo da apreciação da inexistência de fundamentos para o indeferimento liminar.
Coloca, assim, a questão do valor do referido despacho.
Antes de mais, importa relembrar o seu teor, que é o seguinte: “Cumpra o disposto no art. 41.º n.º 2 do Cire”.
Este normativo dispõe: “[n]ão havendo motivo para indeferimento liminar, é ordenada a notificação do administrador da insolvência e da parte contrária para contestarem, querendo, no prazo de cinco dias”.
O mesmo mantém, desta forma, em sede de processo de embargos à sentença declaratória da insolvência a figura do indeferimento liminar, abandonada, em geral, no domínio do processo civil comum.
Tal indeferimento justifica-se nos casos previstos na alínea a) do n.º 1 do art.º 27.º do CIRE, aqui aplicável por analogia, dada a falta dos seus contornos no âmbito deste processo. Deste modo, os embargos deverão ser liminarmente rejeitados quando o pedido de revogação da sentença a que se reportam seja manifestamente improcedente ou quando ocorram, de forma evidente, excepções dilatórias insupríveis de que deva conhecer oficiosamente[3].
De resto, estas causas de indeferimento liminar estão contempladas no n.º 1 do art.º 590.º do CPC, aqui também aplicável ex vi art.º 17.º do CIRE.
Porém, a verdade é que a petição de embargos não foi indeferida no momento do liminar, tendo o respectivo despacho ordenado apenas o cumprimento do disposto no n.º 2 do citado art.º 41.º, ou seja, a notificação do administrador da insolvência e da parte contrária para contestarem.
Não há dúvida de que se trata de um despacho de natureza jurisdicional, susceptível de recurso nos termos gerais, sobre o qual recai, por isso, a força de caso julgado.
Todavia, tal despacho não decidiu qualquer questão relativa à verificação ou não de algum fundamento dos embargos, nem às condições específicas da sua dedução, limitando-se a assegurar o seguimento do presente procedimento de oposição de embargos à insolvência.
Deste modo, não tem a virtualidade para sobre ele recair caso julgado formal, nos termos dos art.ºs 620.º, n.º 1 e 625, ambos do actual CPC[4].
Com tal despacho, ordenando as aludidas notificações, sem decidir de mérito qualquer questão, não se decidiu em definitivo nenhuma questão.
Nesta conformidade, não é lícito invocar a autoridade do caso julgado para impedir a reapreciação da inexistência de fundamentos dos embargos, da sua manifesta improcedência ou de alguma excepção dilatória insuprível de que devesse ter tomado conhecimento.
Nada tendo sido apreciado em concreto, é insustentável concluir que se esgotou o poder jurisdicional do juiz sobre essa matéria.
Daí que não haja qualquer violação do caso julgado formal, como sustenta a apelante, pelo que improcedem as correspondentes conclusões.

2.2. Das nulidades por omissão de pronúncia

O art.º 615.º, n.º 1, al. d), primeira parte, do CPC dispõe que a sentença é nula quando “o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”.
Esta causa de nulidade da sentença, também aplicável aos despachos por força do n.º 3 do art.º 613.º do CPC, é referente aos seus limites e está em correlação com o disposto na primeira parte do n.º 2 do art.º 608.º do mesmo Código que impõe ao juiz “resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Reporta-se à falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar e não de argumentações, razões ou juízos de valor aduzidos pelas partes, aos quais não tem de dar resposta especificada ou individualizada, conforme tem vindo a decidir uniformemente a nossa jurisprudência[5] e assim tem sido entendido pela doutrina[6].
Vejamos cada um dos fundamentos invocados.

2.2.1. Da questão da incompetência territorial

O primeiro fundamento invocado como causa de nulidade foi a omissão de pronúncia da questão da excepção da incompetência territorial, suscitada na petição de embargos.
E, efectivamente, no presente caso, não se mostra que essa questão tivesse sido apreciada, em momento posterior à sua invocação, designadamente no despacho impugnado, o qual deveria começar por apreciar essa mesma questão processual, por ter precedência lógica relativamente às restantes, nos termos do n.º 1 do art.º 608.º do CPC.
E não o foi, por razões que se desconhecem, já que nada foi dito, quanto a essa omissão, mesmo aquando da devolução ordenada ao abrigo do disposto no n.º 5 do art.º 617.º do CPC, aqui aplicável ex vi art.º 17.º do CIRE.
Por isso, e porque a apreciação da questão da competência se colocava antes da decisão das restantes questões, ocorre a mencionada nulidade, impondo-se, agora, o seu suprimento, conhecendo da suscitada questão da incompetência territorial, nesta sede, segundo a regra da substituição do tribunal recorrido, estabelecida nos n.ºs 1 e 2 do art.º 665.º do CPC.
No entanto, o deferimento da arguição da referida nulidade não determina a procedência da mencionada excepção.
É que são coisas diferentes: uma é a nulidade decorrente da omissão de pronúncia sobre a questão suscitada, outra é o conhecimento dessa mesma questão.
E a questão da competência fora decidida, por decisão desta Relação de 12/3/2013, já transitada em julgado, atribuindo-a ao tribunal recorrido – o então 2.º Juízo Cível da Comarca do Porto.
Nos termos do n.º 2 do art.º 105.º do CPC, “[a] decisão transitada em julgado resolve definitivamente a questão da competência, mesmo que esta tenha sido oficiosamente suscitada”.
Tal como escrevem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7]: “A resolução definitiva da questão pelo tribunal da causa circunscreve a sua eficácia no âmbito do processo em que é proferida, constituindo caso julgado formal, por se tratar de decisão sobre a relação jurídica processual (art. 620); mas como, declarada a incompetência do tribunal, o processo é remetido para o tribunal julgado competente, nele prosseguindo a instância, a decisão proferida é vinculativa para este tribunal. Por outro lado, o preceito específico do n.º 2 tem ainda o alcance de impedir a reapreciação da competência relativa do tribunal, ainda que com base em diferente argumento ou fundamento (Teixeira de Sousa, Estudos cit., p.133), diversamente do que acontece com os pressupostos em geral (art. 595-3)…”
Tendo a questão da competência já sido decidida, por decisão transitada em julgado, não pode ser novamente discutida, sendo aquela decisão impeditiva de a reapreciar nesta sede, pois formou caso julgado formal, tornando-se aqui vinculativa.
Trata-se da autoridade do caso julgado que é diferente da excepção do caso julgado.
Embora ambos pressuponham o trânsito em julgado (art.º 628.º do CPC), a autoridade do caso julgado não carece da tripla identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, exigida pela excepção do caso julgado, constituindo efeitos distintos da mesma realidade jurídica[8].
A este respeito, o Prof. Lebre de Freitas ainda escreveu[9]: “A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito”, enquanto que “a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.
E tem sido entendido que a autoridade do caso julgado, diversamente da excepção de caso julgado, pode funcionar independentemente da verificação da tríplice identidade a que alude o art.º 581.º do CPC, mas pressupondo a decisão de determinada questão que, por isso, não pode voltar a ser discutida[10].
E se assim é relativamente ao caso julgado material, por maioria de razão o será quanto ao caso julgado formal, que recai unicamente sobre a relação processual, tornando-se obrigatória dentro do processo (art.º 620.º, n.º 1 do CPC).
Tendo sido declarada a competência territorial do tribunal recorrido no processo principal, por decisão transitada em julgado, é evidente que a competência se fixou nele para todos os processos que devam seguir os seus termos por apenso, independentemente dos sujeitos, resolvendo-se, assim, definitivamente tal questão.
É quanto basta para se julgar improcedente a excepção da incompetência arguida e, com ela, as conclusões que se lhe referem.

2.2.2. Da apreciação do requerimento da suspensão da instância

A recorrente invocou outra nulidade da sentença com base em omissão de pronúncia, por não ter sido apreciado o requerimento de suspensão da instância que havia deduzido, em 22/5/2015, com fundamento em pendência de causa prejudicial.
Embora tenha sido aflorado tal requerimento no despacho impugnado, não foi nele decidida essa questão, nem tinha que o ser, visto que não é objecto dos embargos deduzidos.
No entanto, dado que foi apresentado requerimento autónomo, devia o mesmo ter sido apreciado, também em despacho autónomo, não sendo de o considerar prejudicado, como é óbvio, como foi esclarecido em momento posterior à prolação do despacho impugnado. Não o tendo sido, foi cometida uma nulidade processual, a qual pode ser aqui apreciada, por estar coberta pelo despacho proferido e aqui impugnado[11].
E, fazendo-o, importa, desde já, dizer que não há lugar à pretendida suspensão da instância.
Expliquemo-nos:
O invocado art.º 272.º do Código de Processo Civil prescreve:
“1. O tribunal pode ordenar a suspensão quando a decisão da causa estiver dependente do julgamento de outra já proposta ou quando ocorrer outro motivo justificado.
2. Não obstante a pendência de causa prejudicial, não deve ser ordenada a suspensão se houver fundadas razões para crer que aquela foi intentada unicamente para se obter a suspensão ou se a causa dependente estiver tão adiantada que os prejuízos da suspensão superem as vantagens.
3. (...)
4. (…).”
Do n.º 1 deste preceito resulta para o tribunal um poder discricionário em si, mas cujo exercício se torna vinculado, ao fazer depender a suspensão da pendência de uma causa prejudicial já proposta, no momento do respectivo despacho, sendo irrelevante que ela já pendesse ou não à data da propositura da acção dependente[12].
Uma causa é prejudicial em relação a outra quando a decisão daquela pode prejudicar a decisão desta, isto é, quando a procedência da primeira tira a razão de ser à existência da segunda. Tal situação ocorre quando a causa prejudicial tenha por objecto uma questão cuja decisão possa modificar ou destruir o fundamento ou a razão de ser da causa dependente[13] ou quando “tenha por objeto pretensão que constitui pressuposto da formulada”[14] nesta última.
Além da verificação do nexo de prejudicialidade, terão de ser observados os limites impostos pelo n.º 2, pelo que a suspensão não pode ser ordenada quando ocorrer alguma das situações nele previstas[15].
Por outro lado, o art.º 8.º, n.º 1 do CIRE dispõe que “[a] instância do processo de insolvência não é passível de suspensão, excepto nos casos expressamente previstos neste Código”.
Este preceito torna aqui inaplicável o invocado art.º 272.º, pois, estando a suspensão da instância expressamente prevista no CIRE, não têm aplicação, quanto a essa matéria, o CPC.
E o CIRE não dispõe de preceito que se ajuste ao presente caso.
Como se escreveu no acórdão da RL de 6/10/2011, proferido no processo n.º 1034/09.5TYLSB-C.L1-8[16], citando outro do Tribunal da Relação de Évora de 19/12/2006[17], ambos a propósito de questões semelhantes «(…) o carácter urgente do processo (…) não se compagina com delongas a pontos de ficar indefinidamente suspenso na mira de serem trazidos à massa bens ou dinheiros de que o insolvente nem sequer foi reconhecido titular e, por isso mesmo, de incerta existência, sobretudo quando dependentes das contingências da prova numa acção declarativa (…). Daí que a suspensão do processo se restrinja aos casos contemplados nos artºs 8º nº 2, 10º, al b), 264º, nº 3 alínea b) (pré-existência de outro processo de insolvência) e que a suspensão da liquidação dependa dedução de embargos à sentença declaratória da insolvência (art 40° n° 3) ou da existência de um plano de insolvência (…).»
Portanto, nunca pode haver lugar a suspensão com base na pendência de pretensa causa prejudicial, no âmbito do art.º 272.º do CPC.
Embora não se trate de um processo de insolvência, propriamente dito, a oposição por embargos não deixa de ser um processo com ele relacionado, na medida em que visa impugnar a sentença declaratória da insolvência, mediante a alegação de novos factos e invocação de meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal (n.º 2 do citado art.º 40.º).
Seguindo este entendimento, facilmente se conclui que não há lugar à pretendida suspensão da instância.
Acresce que nem sequer se vislumbra que a acção de nulidade ou de impugnação pauliana constitua causa prejudicial destes embargos, em face dos objectivos visados por cada uma dessas acções e dos fundamentos que podem servir de base aos embargos nos termos do n.º 2 do citado art.º 40.º.
Termos em que, suprindo a nulidade cometida, se decide indeferir o requerimento de suspensão da instância.

2.3. Do princípio do contraditório

A recorrente invocou, ainda, a nulidade processual decorrente da falta de notificação dos elementos probatórios juntos ao processo, por si requeridos, e da oportunidade de sobre eles se pronunciar.
Sustenta, assim, a violação do princípio do contraditório.
Mas sem razão.
O art.º 3.º, n.º 3, do CPC estabelece que “[o] juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.
Como já tivemos oportunidade de escrever no acórdão de 23/6/2015, proferido no processo n.º 5046/13.6TBVFR.P1[18] «o princípio do contraditório tem sido considerado pela jurisprudência constitucional como ínsito no direito fundamental de acesso aos tribunais, envolvendo como vertente essencial a proibição da privação ou limitação do direito de defesa do particular perante as instituições judiciais, permitindo a cada uma das partes “deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário, e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras”[19].
Visa-se a proibição da prolação de decisões surpresa, já que não é lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
No plano da prova, o princípio do contraditório exige, além do mais que não importa aqui considerar, que “a produção ou admissão da prova tenha lugar com audiência contraditória de ambas as partes”; que “estas possam pronunciar-se sobre a apreciação das provas produzidas por si, pelo adversário ou pelo tribunal”[20].
Uma das derivações do direito à prova, “desde há muito consagrada no nosso direito positivo, implica que, proposta uma prova pré-constituída, à parte contrária seja facultado, antes da admissão, impugnar a sua admissibilidade e força probatória e que, estando em causa uma prova constituenda, lhe seja facultado impugnar a sua admissibilidade e intervir no ato da sua produção (art. 415). Mas implica também que as mesmas faculdades sejam reconhecidas a ambas as partes quando a iniciativa da prova seja oficiosa”.

Por fim, cabendo ao juiz apreciar a prova, as partes têm o direito de, antes da apreciação final, isto é, antes da decisão sobre a matéria de facto (hoje integrada na sentença final), se pronunciarem sobre os termos em que ela deve ser feita (art. 3-3). É-lhes assim facultado, uma vez produzidas todas as provas, discuti-las, pronunciando-se sobre a matéria de facto que consideram e aquela que não consideram provada, em debates orais que têm lugar ainda na audiência (art. 604, n.ºs 3-2 e 5)”[21] ».
É certo que a prova documental obtida não foi notificada às partes, designadamente à embargante.
Porém, além de ter sido obtida a seu requerimento, o que faz pressupor o alcance do seu conteúdo, a mesma em nada contribuiu para a decisão da causa, pois que não foi conhecido do mérito dos embargos.
Estes foram julgados improcedentes – bem ou mal, não importa para este efeito - com fundamento em contradição do pedido com a causa de pedir, o que implica a nulidade de todo o processo, por ineptidão da petição inicial, com a consequente absolvição do embargado da instância, embora não tivesse sido essa a decisão!
Ainda que os mandatários das partes não se tivessem pronunciado sobre a admissibilidade de tais documentos, nem sobre a sua força probatória, tiveram oportunidade de o fazerem quando lhes foi dada a palavra para se pronunciarem, no início da audiência, quanto à anunciada contradição do pedido com a causa de pedir e depois de, quanto a esta, se ter feito referência à impugnação pauliana, o que pressupõe a análise dos documentos juntos aos autos e a ela referentes.
Se, então, não se pronunciaram sobre os ditos documentos foi porque não quiseram.
Podemos, assim, concluir que não houve violação do princípio do contraditório, inexistindo a arguida nulidade processual, desde logo, porque a lei não a prescreve, nem a omissão cometida influiu no exame ou na decisão da causa (art.º 195.º, n.º 1, do CPC).
Improcedem, por conseguinte, as correspondentes conclusões.

2.3. Da ineptidão da petição inicial por contradição do pedido com a causa de pedir

No despacho recorrido, oficiosamente, foi julgada verificada a excepção dilatória da nulidade de todo o processo, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, nos termos dos art.ºs 186.º, n.ºs 1 e 2, b) e 278.º, n.º 1, al. b), ambos do CPC, por se ter entendido que a acção de impugnação pauliana, interposta pela massa insolvente, não permitiria o regresso à titularidade do insolvente dos bens que constituem seu objecto, concluindo pela “absolvição do Réu na presente acção”, em vez da absolvição da instância, como seria correcto afirmar se se verificasse tal excepção (cfr., ainda, os art.ºs 576.º, n.º 2 e 577.º, b) do CPC).
Contra este entendimento, insurge-se a apelante, defendendo que não existe qualquer contradição, visto que os pedidos estão em total harmonia com os factos integrantes da causa de pedir, onde alegou a existência de bens e rendimentos bastantes para afastar os fundamentos da declaração de insolvência.
E tem razão, no que se refere ao pedido subsidiário, único que importa apreciar, visto que o principal já foi definitivamente apreciado e decidido.
Com efeito, o citado art.º 186.º dispõe, no n.º 1, que “[é ] nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial”.
E, no n.º 2, estabelece os casos de ineptidão, importando considerar aqui o previsto na alínea b) que ocorre “quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir”.
A propósito deste caso de ineptidão, determinante da nulidade de todo o processo, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre escreveram, no Código de Processo Civil anotado, já citado, págs. 354 a 357:
“Tal como no caso do art. 615-1-c (oposição entre os fundamentos e a decisão), trata-se aqui da contradição lógica, distinta da inconcludência jurídica, isto é, da situação em que é alegada uma causa de pedir da qual não se pode tirar, por não preenchimento da previsão normativa, o efeito jurídico pretendido, constituindo causa de improcedência da acção. Veja-se a clara formulação de Antunes Varela, em anotação ao ac. do STJ de 10.11.83, RLJ, 121, ps. 121-122, bem como, em aplicações concretas da distinção, além desse os acs. do STJ de 7.7.88 (Pinheiro Farinha), BMJ, 379, p. 592, e de 14.3.90, AJ, 2, p.90, bem como o ac. do TRG de 24.4.12 (Eva Almeida), proc. 2281/11.5TBGMR.G1. A fronteira entre essa contradição e esta inconcludência é, porém, difícil de estabelecer.
Em primeiro lugar, há que ter em conta que a ocorrência de factos impeditivos do efeito jurídico pretendido pelo autor, ainda que por ele sejam alegados na petição inicial, é irrelevante para a configuração do vício….
Em segundo lugar, considerado o princípio jura novit curia (art. 5-3), não basta que o efeito jurídico pretendido pelo autor não se retire da norma jurídica constitutiva por ele invocada: sempre haverá que ter em conta todas as outras normas constitutivas do sistema aplicáveis aos factos alegados, das quais o juiz o poderá oficiosamente retirar.
Mas, em terceiro lugar, não basta ainda à contradição entre o pedido e a causa de pedir que nenhuma norma constitutiva estatua o efeito jurídico pretendido como consequência dos factos invocados como causa de pedir…. Mais do que isso, é preciso, como escreveu Alberto dos Reis, Comentário, II, p. 381, que haja oposição entre o pedido e a causa de pedir, que o pedido brigue com a causa de pedir…. Mas, fora deste tipo de casos, em que se pode falar ainda da ininteligibilidade da causa de pedir enquanto fundamento do pedido (Castro Mendes, Direito processual civil cit., II, p. 490) ou da ininteligibilidade do pedido como consequência daquela causa de pedir (Anselmo de Castro, Direito processual civil cit., II, ps. 224-226), encontrar-nos-emos já no domínio da inviabilidade, não no da ineptidão…”.
Sabe-se que o pedido é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e que a causa de pedir é o acto ou facto jurídico concreto que ele aduz como título aquisitivo desse direito[22].
Deste modo, a causa de pedir traduz-se no facto jurídico de que emerge o direito que se pretende fazer actuar, ou seja, no facto jurídico concreto em que o autor funda o pedido que formula[23].
É, aliás, o que resulta do n.º 4 do art.º 581.º do CPC, onde se estabelece que “[n]as acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real, nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.
É inquestionável a relevância do pedido e da causa de pedir, já que é por eles que se identifica a acção e é por eles que ficam circunscritas as questões decidendas.
Porém, uma coisa é o concreto facto jurídico invocado e outra a qualificação jurídica que dele se operar.
Vigorando entre nós, nesta matéria, a teoria da substanciação, não basta ao autor identificar o direito invocado, através do seu conteúdo e objecto. Impõe-se-lhe, ainda, que concretize a sua causa de pedir, isto é, o facto ou o título constitutivo do direito de que se arroga.
A causa de pedir é o acto ou o facto jurídico em que o autor se baseia para fundamentar o seu pedido[24].
A mesma radica no facto oferecido pela parte e não na valoração que se lhe atribui, sendo que também não se deve confundir com os meios de que a parte se serve para o sustentar ou demonstrar[25], pois os meios são as provas e os argumentos por via dos quais se procura estabelecer a existência do facto jurídico que serve de fundamento à acção[26].
No caso em análise, está em causa, como se disse, o pedido subsidiário, o qual consiste, repete-se, na revogação da sentença de declaração de insolvência, com as legais consequências.
Para fundamentar este pedido, a embargante alegou factos tendentes a demonstrar que o insolvente dispunha, à data da declaração da insolvência, de bens e rendimentos que obstavam a essa declaração.
São, portanto, tais factos que constituem a causa de pedir da acção, no caso que agora importa considerar.
Entre eles não se vislumbra qualquer contradição.
Não integra a afirmada contradição, como é óbvio, a pendência da acção de impugnação pauliana, por ter sido proposta pela massa insolvente já depois da declaração da insolvência e ser o momento dessa declaração que importa aqui considerar, não obstante os seus efeitos.
Com os embargos, pretende-se impugnar a sentença declaratória da insolvência e os mesmos “são admissíveis desde que o embargante alegue factos ou requeira meios de prova que não tenham sido tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da declaração de insolvência”, como, claramente, consta do n.º 2 do art.º 40.º do CIRE.
Deste modo, “os embargos destinam-se a permitir a apreciação de nova matéria de facto ou novos meios de prova, que não tenham sido objecto de anterior apreciação pelo tribunal”[27].
Tais factos foram alegados, bem como foi requerida a produção de novos meios de prova.
E inexiste contradição entre eles e o pedido subsidiário, que falta apreciar.
Não se verifica, assim, a ineptidão da petição inicial, vício de conteúdo que lhe foi imputado erradamente no despacho recorrido, não havendo consequentemente lugar à nulidade de todo o processo e à consequente absolvição da instância, muito menos à “absolvição do Réu na presente acção” nele decretada, impondo-se o prosseguimento dos autos para produção de prova e posterior apreciação do pedido deduzido.

O recurso merece, pois, provimento, nesta parte.

Sumariando para concluir:
1. O despacho que apenas manda cumprir o disposto no art.º 41.º, n.º 2, do CIRE não faz caso julgado formal relativamente à apreciação da inexistência de fundamentos dos embargos à sentença declaratória da insolvência por se limitar a assegurar o seguimento deste procedimento, sem decidir uma questão concreta.
2. A resolução definitiva da questão da competência territorial impede a reapreciação da mesma questão, ainda que com base em fundamentos diferentes, constituindo caso julgado formal.
3. A falta de notificação da junção de documentos que não serviram para a decisão e sobre os quais as partes tiveram oportunidade de se pronunciar não integra violação do principio do contraditório, nem constitui nulidade processual.
4. Não é inepta a petição inicial de embargos, por contradição do pedido com a causa de pedir, quando nela são alegados factos e requeridos meios de prova susceptíveis de afastar os fundamentos da declaração de insolvência e é formulado o pedido de revogação da respectiva sentença.

III. Decisão

Pelo exposto julga-se a apelação parcialmente procedente, nos termos referidos, e revoga-se o despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento dos autos, com a produção de prova requerida e posterior apreciação do pedido subsidiário, formulado sob a alínea B).
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Custas pela parte vencida a final.
*
Porto, 15 de Setembro de 2015
Fernando Samões
Vieira e Cunha
Maria Eiró
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[1] Única que foi possível repescar destes autos, já que nenhuma foi dada como provada.
[2] Entretanto extintos, face à nova organização do sistema judiciário operada pela Lei n.º 62/2013, de 26/8.
[3] Neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, reimpressão de 2009, pág. 213.
[4] No mesmo sentido, embora reportando-se a convite para a junção de prova complementar, decidiu o acórdão do STJ de 7/5/2015, proferido no processo n.º 15698/04.2YYLSB-C.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde é citado outro de 16/1/2014, relatado pelo mesmo Relator (Granja da Fonseca), no agravo n.º 1296/04.4YYPRT-A.P1.S1 – 7ª Secção, constando do respectivo sumário “V – O despacho proferido pela 1ª instância a convidar o recorrente/executado para indicar o valor da oposição à execução não tem o alcance – pretendido pelo mesmo – de considerar recebida a oposição, afastando a possibilidade de a mesma poder vir a ser indeferida pelo facto de não se encontrar articulada”.
[5] Cfr., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 11/11/87, BMJ n.º 371, pág. 374, de 7/7/94, BMJ n.º 439, pág. 526, de 25/2/97, BMJ n.º 464, pág. 464 e de 6/5/2004, in www.dgsi.pt.
[6] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2.ª edição revista e actualizada, pág. 91, em face do CPC anterior, que continha os correspondentes art.ºs 668.º, n.º 1, d) e 660.º, n.º 2, de igual teor.
[7] No Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, 3.ª edição, pág. 215.
[8] Cfr. acórdão do STJ de 21/3/2013, processo n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1, acessível em ww.dgsi.pt.
[9] No Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, 2ª ed., pág. 354.
[10] Cfr., neste sentido, entre outros, acórdãos do STJ de 13/12/2007, processo n.º 07A3739; de 6/3/2008, processo n.º 08B402 e de 23/11/2011, processo n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1 e de 21/3/2013, processo n.º 3210/07.6TCLRS.L1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt., bem como o nosso acórdão de 22/10/2013, proferido no processo n.º 272/12.8TBMGD.P1, acessível no mesmo sítio da internet.
[11] Sobre a distinção dos meios de reacção contra as nulidades, podem ver-se, designadamente:
- o Prof. José Alberto dos Reis que escreveu: “A reclamação por nulidade tem cabimento quando as partes ou os funcionários judiciais praticam ou omitem actos que a lei não admite ou prescreve; mas se a nulidade é consequência de decisão judicial, se é o tribunal que profere despacho ou acórdão com infracção de disposição da lei, a parte prejudicada não deve reagir mediante reclamação por nulidade, mas mediante interposição de recurso. É que, na hipótese, a nulidade está coberta por uma decisão judicial e o que importa é impugnar a decisão contrária à lei; ora as decisões impugnam-se por meio de recursos (art. 677º) e não por meio de arguição de nulidade do processo “ - in Comentário ao Código de Processo Civil, II, 507;
- o Prof. Manuel de Andrade que também escreveu: “Basta um simples requerimento a que se dá o nome de reclamação…Mas se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho) que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão, em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. É a doutrina tradicional, condensada na máxima: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se” - in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 183;
- o Prof. Antunes Varela que refere: “Se, entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”- in Manual de Processo Civil, 1985, pág. 393;
- o Prof. Anselmo de Castro que também escreveu: “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora, o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (art.º 677.º, n.º 1), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional (art.º 666.º)”. Porém, depois de algumas reticências relativamente à aplicação do disposto no art.º 666.º a todas as decisões, acrescentou que aquela construção “não tem sequer sentido quanto àquelas nulidades de que o juiz não pode conhecer oficiosamente (todas as nulidades secundárias e as principais a partir do saneador” - in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, 1982, pág. 134.
[12] Cfr., entre outros, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, volume 1.º, 3.ª edição, pág. 535 e jurisprudência aí citada, que nos dispensamos de reproduzir aqui, e, quanto ao poder discricionário, mas vinculado, ainda que sobre o artigo correspondente do CPC de 1961 – o art.º 279.º - cujos n.ºs 1 a 3 são idênticos, os acórdãos do STJ, de 1/10/1991, BMJ 410º-656 e de 18/4/2002, processo n.º 02B014, disponível em www.dgsi.pt.
[13] Ac. da RP, de14/5/98, processo n.º 9830543, cujo sumário está disponível em www.dgsi.pt.
[14] Lebre de Freitas, obra e local citados.
[15] Cfr. o nosso acórdão de 14/4/2015, proferido no processo n.º 5050/13.4TBMTS.P1, que aqui reproduzimos, nesta parte.
[16] Disponível em www.dgsi.pt.
[17] Disponível no mesmo sítio da internet.
[18] Disponível em www.dgsi.pt.
[19] Cfr. Acs. T.C., 11.º vol., pág. 741 e 20.º vol., pág. 495.
[20] Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, vol. 1.º, 3.ª edição, pág. 8.
[21] Ibidem, pág. 9.
[22] Cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, 1939, págs. 321 e 322.
[23] Cfr. acórdão do STJ, de 27/11/90, BMJ n.º 401, pág. 579.
[24] Cfr. José Alberto dos Reis, Comentário ao CPC, vol.2. pág. 370.
[25] Cfr. Ac. da RC de 22/2/2005 na CJ, ano XXX, tomo 1, pág.37.
[26] Cfr. José Alberto dos Reis in CPC anotado, vol. 3, pág. 121 e o nosso acórdão de 5/2/2013, proferido no processo n.º 389/10.3TBCPV.P1 que aqui vimos seguindo nesta parte.
[27] Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2.º ed., pág. 225, nota 269.
No mesmo sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, reimpressão de 2009, pág. 209.