Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1492/18.7T8PRD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTA BANCÁRIA
CHEQUE
VALIDADE
RECUSA DE PAGAMENTO PELO BANCO SACADO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO BANCO SACADO
INTERVENÇÃO ACESSÓRIA PROVOCADA
Nº do Documento: RP202204211492/18.7T8PRD.P1
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3, ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O banco onde se encontra aberta a conta sacada não pode legitimamente recusar-se a pagar o cheque que lhe é apresentado pelo seu portador legítimo com o fundamento de que o cheque possui data de validade e esta se encontra ultrapassada.
II - O banco sacado que, ilegitimamente, recusa pagar cheque que lhe foi apresentado e para cujo pagamento a conta se encontrava provisionada, invocando a ultrapassagem da data de validade nele indicada, incorre em responsabilidade civil perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos no artigo 483.º, n.º 1, segunda parte, do Código Civil.
III - A intervenção acessória não muda a causa de pedir nem o pedido da acção, nem esta passa a ter como objecto também a relação que justifica o chamamento; na intervenção acessória, o réu que fez o chamamento não pode formular pedidos contra o interveniente acessório, nem este pode ser condenado na acção com fundamento na relação jurídica invocada para sustentar o direito de regresso.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2021:1492.18.7T8PRD.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., Paredes, instaurou acção judicial contra Banco 1..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede em Lisboa, pedindo a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de €20.000, acrescida de juros vencidos e vincendos desde a recusa de pagamento até integral pagamento.
Alegou para o efeito que é legítimo portador de dois cheques, cada um deles com o montante inscrito de €10.000, sacados sobre uma conta aberta no banco réu, os quais foram apresentados a pagamento pelo autor e, apesar de a conta sacada ter fundos suficientes para o pagamento, o seu pagamento foi recusado pelo réu com o argumento de que os cheques foram apresentados fora do prazo, o que não corresponde à verdade porque os cheques foram apresentados a pagamento no prazo legal e, embora tivessem uma data de validade ultrapassada, faziam parte de um conjunto de 12 cheques em igualdade de circunstâncias que foram pagos pelo réu.
O banco réu contestou a acção, pugnando pela sua improcedência, argumentando que em 30.10.2015 a sua cliente e titular da conta sacada lhe comunicou ter revogado os três cheques mencionados pelo autor por os ter emitido com vários meses de antecedência em relação às respectivas datas e ter posteriormente apurado que não devia ao autor a respectiva quantia, tendo o réu verificado então que a data de validade desses cheques havia expirado em 08.09.2014 e por isso os mesmos deviam ser devolvidos por apresentação fora desse prazo de validade, razão pela qual acabou por recusar o pagamento, sendo certo que o autor não é credor da sacadora dos cheques.
Na oportunidade o banco réu requereu a intervenção acessória da sociedade comercial G... Lda., pessoa colectiva n.º ..., com sede em ..., Sintra, terminando a sua contestação nos seguintes termos: «sendo o réu condenado a efectuar o pagamento das quantias reclamadas deve ser a chamada condenada a ressarcir o réu de tal valor, por ter sido ela a causadora e responsável pelos factos, a título de direito de regresso».
O chamamento foi admitido e, uma vez citada, a interveniente acessória apresentou contestação defendendo que emitiu os cheques por estar erradamente convencida de que devia o montante neles inscrito tendo depois apurado que estava errada e que o seu montante não era devido, razão pela qual revogou os cheques com justa causa, informando o banco dessa revogação e do respectivo fundamento, sendo da exclusiva responsabilidade do banco o que se passou depois com o autor.
Após julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção procedente e condenando o réu nos termos peticionados.
Do assim decidido, o réu interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões [que se reproduzem na parte útil]:
I. […]; II. […]; III. […] IV. Destina-se, o presente recurso, a impugnar a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância […], sendo que o aqui Apelante não se conforma com a decisão proferida na sua globalidade, quer no que concerne à matéria factual dada como provada e não provada, quer quanto à aplicação de direito, pelo que o presente recurso terá por objecto a sentença in totum. V. […].
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto:
VI. Ora, do acervo de factos dados como provados e não provados, na sentença em riste, entende o Recorrente que, atenta a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com a documentação junta aos autos e as regras de distribuição do ónus da prova, que não poderia o Tribunal a quo ter dado como provada a factualidade constante dos pontos 4, 15 e 16 dos factos provados, bem como não deveria ter dado como não provada a factualidade constante dos artigos 28 e 29 da contestação do Banco réu e 14, 15, 16, 17, 18 e 19 da contestação da interveniente.
VII. Entende-se que apenas poderá ser dado como provado que “4) O autor procedeu ao depósito dos 9 primeiros cheques (datados entre 08.01.2015 e 30.09.2015), tendo os mesmos obtido boa provisão, recebendo, em consequência, os montantes neles titulados.”
VIII. Deverá dar-se como provado, no ponto 15, que, “o réu recusou o pagamento dos cheques ao abrigo da carta-circular nº 6/2006/DPG do Banco de Portugal, através da qual, o Banco de Portugal, num conjunto de boas práticas, recomendou a todas as instituições de créditos que passassem a inserir uma data limite de validade nos impressos que forneçam aos seus clientes, e isto depois de ter analisado se podia ou não atender à pretensão da sua cliente, tendo agido com zelo e diligencia”.
IX. Mais, quanto ao ponto 16, face a todos esse eles elementos de prova no sentido de que a emitente dos cheques/interveniente G... Lda. nada devia ao A., pelo contrário era sua credora, deverá ser alterado o ponto 16 passando a facto não provado que a conduta do réu causou um prejuízo ao autor em quantia igual ao montante titulado nos cheques em apreço.
X. Por outro lado, deverá considerar-se como provada a factualidade constante dos artigos 28.º e 29.º da contestação do Banco R. no sentido de que a sociedade G... nada devia ao A., daí ter dado as instruções de revogação dos cheques, pelo que é em claro abuso de direito que o A. se apresenta aos presentes peticionando uma indemnização pela devolução dos cheques e que o valor dos três cheques, inicialmente devido ao A., não era devido à data da revogação.
XI. A sentença indica ainda como factos não provados os factos constantes dos artigo 14.º da contestação da interveniente G... Lda., bem como artigo 15.º, artigo 16.º, artigo 17.º, artigo 18.º e artigo 19.º, crendo-se, no entanto, que face aos depoimento e documentos já escrutinados, deverão tais factos passar a factos provados, e deverá ser aditada à matéria de facto dada como provada com relevância para a boa decisão da causa a seguinte factualidade:
No acto da escritura de compra e venda celebrada em 15/4/2015, o A. teria de receber €100.000,00;
Porém, a Interveniente G... Lda. teve de suportar a divida da vendedora, garantida por hipoteca, no montante de € 115.306,18, de modo a permitir a celebração dessa escritura.
O A. comprometeu-se, em 28/12/2014, a asfaltar em cerca de mais 7 cm de altura a estrada circundante do imóvel, até à celebração da escritura, sendo que a execução desse trabalho importa em mais de €19.000,00 (acrescido de IVA).
No dia 4/11/2015, o A. pediu à chamada, a título de empréstimo, a quantia de €3.500,00.
A interveniente G... Lda. é credora do A. em €37.806, 18, sendo €15.306,18 de distrate de hipoteca, €19.000,00 de custos de asfaltamento, a que acresce IVA, e €3.500,00 de empréstimo, conforme alegado no art.º 18.º da sua contestação, pelo que requer.
Assim, à data da revogação dos cheques, a referida sociedade nada devia ao AA ou à sua sociedade.
XII. Não se podendo aceitar a consideração feita na sentença no sentido que “Acresce referir que todos os demais pormenores quanto às circunstâncias que determinaram a emissão dos cheques e considerando que o motivo invocado pela interveniente na carta remetida não mereceu o acolhimento deste Tribunal, entendemos que a apreciação os mesmos fica pois prejudicada”, assim se demitindo do dever se julgar as questões submetidas à sua apreciação.
XIII. Devendo ainda ser aditado um facto que, no seguimento do depoimento da testemunha BB e CC dê como provado que o cheque n.º ..., datado para 30.11.2015, no valor de €10.000,00, apenas foi pago por mero lapso, por não ter ficado registado, em sistema, a alteração da situação para o mesmo não ser pago.
XIV. Assim, os concretos meios probatórios que, segundo o Recorrente, impõem decisão diversa da recorrida são os seguintes:
- Carta da chamada de 29/10/2015 “revogação de cheques do Banco 1 ...” - doc 1 da contestação da chamada;
- aditamento à adenda (feita em 19/03/2014) ao contrato promessa de compra e venda - cfr. doc 2 junto à contestação da chamada, do qual se retira, do ponto 5, que “O representado da primeira outorgante terá de receber €100.000,00 (cem mil) no acto da escritura, e, do ponto 7, “Antes da escritura, o representado da primeira outorgante, compromete-se em asfaltar as estradas circundantes do prédio em cerca de mais 07 centímetros de altura, relativamente ao nível actual”;
- contrato de locação financeira imobiliária junto com o requerimento da chamada de 16/09/2019 com a ref.ª ……., do qual resulta o valor total do financiamento/investimento - €481.439,90 e do valor da aquisição - €446.000,00;
- talão de depósito do Banco 2... de 15/04/2015, junto com o mesmo requerimento, do qual resulta o valor que a chamada recebeu em conta - €330.693,82 - o qual, somado ao valor do distrate - €115.306,18 - dá o valor da aquisição - €446.000,00;
- fotografia da parte circundante do imóvel que devia ser asfaltada, junta com o mesmo requerimento
- cópia do cheque do pagamento do distrate da hipoteca do imóvel identificado nos autos, feito pelo Banco 2... ao Banco 3..., em 15/04/2015, no montante de €115.306,18, cfr. requerimento da chamada de 12/03/2021 com a referencia 6957975;
- cópia da escritura de compra e venda junta aos autos pelo A. em 19/11/2019 com a ref.ª 5924569;
- informação do Banco 3... de 22/09/2020, com a ref.ª 6557680; e
- mensagem de correio electrónico de 4/11/2015 cfr. requerimento da chamada 16/09/2019 com a ref.3 5748214, da qual resulta provado o empréstimo solicitado pelo A. e comprovativo da sua transferência;
- orçamento datado de 16/1/2017 doc 3 da contestação da chamada;
- depoimento das testemunhas BB (depoimento gravado no programa Habilus Medio Studio com data de 12/11/2019, com início às 10:44:25 e fim às 11:06:03), CC (depoimento gravado no programa Habilus Medio Studio com data de 12/11/2019, com início às 11:07:09 e fim às 11:26:28), DD (depoimento gravado no programa Habilus Medio Studio com data de 12/11/2019, com início às 14:42:17 e fim às 15:22:08), e EE (depoimento gravado no programa Habilus Medio Studio com data de 12/11/2019, com início às 15:35:45 e fim às 16:19:35),
- regras de repartição do ónus da prova.
XV. Mais se concluindo que esses depoimentos mereceram credibilidade ao Tribunal e não foram ademais contrariados por qualquer outra prova que se produzisse, pelo que, decidindo de forma inversa da que vem expendida, ou seja, não considerando provada e não provada a matéria fáctica nos termos expostos, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 414.º e 607.º, n.º 4, do C.P.C. e art. 342.º do Código Civil.
Da aplicação do direito
XVI. Alterada como se espera, a matéria de facto dada como provada, como impõe a crítica ponderação da prova produzida nos autos, ou mesmo que tal alteração não venha a ocorrer, crê o apelante que outra decisão não poderá ser tomada que não seja a da total improcedência da acção, absolvendo-se o Réu Banco 1..., S.A.. do pedido formulado pelo A.
XVII. Ou, mesmo que assim não se entenda, o que por mera hipótese de raciocínio se concede, sempre deverá ser apreciado o direito de regresso do Banco R. sobre a interveniente G... Lda., sob pena de esta última obter um enriquecimento sem causa.
- Da não verificação dos pressupostos necessários à verificação de responsabilidade civil extracontratual
XVIII. […]; XIX. […];XX. Da leitura conjugada do disposto nos artigos 1.º e 2.º da Lei Uniforme sobre Cheques (LUCh), conclui-se que o cheque é um titulo cambiário de crédito, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, no sentido de pagar à vista a soma ou a quantia nele inscrita.
XXI. Entre o Banco R. e a referida sociedade emitente dos três cheques, G... Lda., foi firmado um contrato ou convenção de cheque, através do qual o primeiro assumiu, para com esta segunda e além do mais, o dever de pagar os cheques emitidos pela referida cliente (em regra, desde que a conta esteja devidamente provisionada) e o dever de observar a revogação do cheque.
XXII. Ora, in casu, verifica-se que a revogação dos cheques, segundo instruções dadas pela cliente G... Lda. por, como alegou, ter pago a mais do que teria contratado, ocorreu em 29.10.2015, ou seja, em data anterior à data da emissão e da apresentação a pagamento.
XXIII. Dispõe o artigo 32.º da LUCh que “A revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação” (§ 1.º) e que “se o cheque não tiver sido revogado, o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo.” (§ 2.º)
XXIV. Ou seja, em princípio os cheques não podem ser revogados antes do decurso do prazo legal de apresentação a pagamento previsto no artigo 29.º da LUCh e, caso o sejam, tal revogação apenas poderá produzir efeitos depois de decorrido tal prazo.
XXV. E diz-se em princípio já que, claro está, sempre haverá que distinguir entre revogação propriamente dita (revogação pura e simples) e a invocação de uma justa causa, tal como extravio, furto e outros casos de emissão ou apropriação fraudulenta do cheque, bem como qualquer outra situação que afecte a vontade da emissão ou entrega do cheque ao portador.
XXVI. No entanto, para além dessa justa causa, alegada pela Cliente G... Lda., o motivo pela recusa de pagamento dos cheques nº ... e n.º ... prendia-se, reitere-se, com a expiração do seu prazo de validade - no canto superior direito da frente de ambos os cheques encontra- se inserida a expressão “Impresso/cheque válido até 2014-09-08”, data essa anterior àquelas que constam como sendo a da sua emissão e da sua apresentação a pagamento.
XXVII. A aposição da data de validade que passou a ser impressa nos módulos dos cheques foi resultado da carta-circular nº 6/2006/DPG do Banco de Portugal, através da qual, o Banco de Portugal, num conjunto de boas práticas, recomendou a todas as instituições de créditos que passassem a inserir uma data limite de validade nos impressos que forneçam aos seus clientes, com vista reduzir o risco associado à emissão de cheques por parte dos mesmos, desde logo no que diz respeito à utilização dos cheques como garantia de pagamento e os cheques pré-datados.
XXVIII. Ao não estarem os cheques dentro da referida data de validade, como acontece no caso dos autos, o Banco poderia ou não pagá-los, como, de facto, aconteceu relativamente aos dois cheques em posse do A. e que não foram pagos.
XXIX. O Banco pagou os 9 cheques anteriores porque o podia fazer, mas a partir do momento em que a Cliente G... Lda. deu uma instrução para o não pagamento dos cheques, o ora Recorrente lançou mão dessa faculdade de recusar o pagamento.
XXX. Crê-se, assim, demonstrado que o Banco 1 ... agiu sempre com zelo e diligência, não tendo incumprido qualquer obrigação por si assumida na convenção de cheques firmada com a sua Cliente, emitente dos cheques.
XXXI. E, por isso, ao caso, não tem aplicação a jurisprudência uniformizada no Ac. do STJ de 28/02/2008.
XXXII. Por outro lado, não sendo a sociedade comercial G... devedora de qualquer importância ao A., sempre este se apresenta nesta acção pretendo ser indemnizado em manifesto abuso de direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.
XXXIII. A matéria fáctica dada como provada revela uma alteração substancial das circunstâncias que motivaram a emissão e entrega dos referidos cheques no domínio das relações imediatas entre sacador e tomador.
XXXIV. Assim, dever-se-á concluir que deveria ter sido julgada inteiramente improcedente a acção porque manifestamente destituída de fundamento, fáctico ou legal, a pretensão do A., já que, quer com fundamento na expiração das datas de validade dos cheques, quer com fundamento no pedido de não pagamento dos cheques com fundamento em justa causa dado a emitente ser, à data, credora do A. e nada lhe devia, foi licita e legitima a recusa de pagamento dos cheques.
XXXV. Crendo-se que ficou claro que o Banco só pagou os 9 primeiros cheques porque nunca tinha existido qualquer reclamação por parte da cliente e, dos 3 últimos cheques, objecto do pedido de não pagamento, pagou o cheque n.º ..., datado para 30.11.2015, no valor de €10.000,00, por não ter ficado registado, em sistema, a alteração da situação para o mesmo não ser pago.
XXXVI. Por outro lado, sempre se refira que a alegada responsabilidade que o A. invoca não poderá ser contratual (com inerente inversão do ónus da prova no que, à culpa, diz respeito) dado que nenhum contrato foi firmado entre as partes com os efeitos pretendidos pela A.
XXXVII. Não tem aplicação in casu o disposto no artigo 798.º do CC, nem a culpa se presume nos termos do artigo 799.º do CC., pelo que, apenas se poderá estar, no caso sub judice, perante responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, nos termos do art. 483.º do C.C., incumbindo ao A. a alegação e a prova de todos os pressupostos que geram a obrigação de indemnizar, em conformidade com o princípio geral do ónus da prova previsto no artigo 342 nº 1 do C.P.C.
XXXVIII. Ora, a circunstância dos dois cheques não terem sido pagos não significa que o A. tenha tido algum prejuízo dado que o mesmo se mantem titular do direito substantivo derivado da relação jurídica subjacente.
XXXIX. Sendo que, qualquer eventual indemnização a atribuir sempre corresponderia apenas ao valor dos danos efectivamente sofridos com a devolução dos cheques e não ao seu valor inscrito nos mesmos.
XL. Já que, como estabelece o artigo 562.º do C. Civil “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”
XLI. Determinando, finalmente, o artigo 563.º do mesmo Diploma que “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
XLII. Portanto, a obrigação de reparar um dano supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o dano, crendo-se, assim, manifestamente destituído de fundamento o pedido indemnizatório que o A. formula contra o R. Banco 1 ..., não estando verificados qualquer dos requisitos que pudessem dar origem à obrigação de indemnizar, ou seja, uma actuação ilícita e culposa por parte do Banco 1..., S.A.. (que não existe), o dano e o nexo de causalidade entre o facto ilícito e culposo e os danos.
XLIII. Ora, in casu, não há qualquer facto, nem por acção, nem por omissão, do R., que seja ilícito, o que, só por si, irremediavelmente, inviabiliza qualquer êxito na pretensão indemnizatória do Recorrido já que se deve ter como legitima e justificada a recusa de pagamento dos cheques e o comportamento do Banco não foi culposo, nem leviano, bem pelo contrário.
XLIV. Mas, ainda que assim não se entenda, convirá também salientar que sempre terá que existir um nexo causal entre o facto e o dano, ou seja, um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo R. e os danos sofrido pelo A., de modo a poder afirmar-se, à luz do direito, que o dano é resultante da violação.
XLV. Ora, in casu, não se pode afirmar que a conduta do R. foi ilícita e que os invocados danos não se teriam verificado caso o R. adoptasse um comportamento diferente, faltando, assim, vários requisitos da responsabilidade civil que permitia imputar ao Apelante a obrigação de indemnizar, nos termos do artigo 483.º nº 1 do C.C.
XLVI. Ou seja, alterada como se espera a matéria de facto provada nos termos peticionados, se terá de concluir que os invocados danos não tiveram como consequência a conduta do Banco Recorrente, nem tampouco existiram já que a emitente dos cheques/interveniente G... Lda. nada devia ao A., o mesmo não teve qualquer prejuízo com o não pagamento dos cheques.
XLVII. Deverá, assim, ser revogada a sentença recorrida na parte em que considerou verificados os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual e substituída por uma outra que absolva o apelante do pedido de condenação no pagamento de uma indemnização correspondente ao valor dos dois cheques.
- Do direito de regresso sobre a chamada G...
XLVIII. Conforme factualidade dada como provada (cf. ponto 3 dos factos dados como provados), “Os cheques descritos em 1) e 2) dos factos provados foram preenchidos, assinados e entregues ao Autor pela titular da conta indicada, designadamente, a sociedade comercial “G... Lda.”, num conjunto total de 12 cheques pós-datados, para pagamento do preço de um negócio de compra e venda”, pelo que o alegado direito de crédito que o A. invoca sempre diz respeito à relação jurídica subjacente que mantem com a sociedade comercial G... Lda. e não a qualquer relação com o Banco R.
XLIX. Por esse motivo, se entende, salvo melhor opinião, que, concluindo-se pela existência de danos, se alguma entidade deverá responder pelos mesmos, deverá ser a referida sociedade, e, por isso mesmo, conforme despacho de despacho de 07/11/2018 com a ref.ª 77918925, foi admitido o chamamento porque “Atendendo à factualidade que envolve a relação jurídica descrita materializada nos pedidos deduzidos efectivamente é susceptível de poder resultar da mesma a Termos em que atendendo à própria natureza da relação jurídica subjacente indiciadora da dependência das questões a decidir na causa principal e atendendo aos fundamentos invocados e justificativos da existência por parte da instituição bancária ré de acção de regresso e da sua viabilidade, julgo relevante o interesse que está na base do chamamento e, por conseguinte, defiro a intervenção da identificada firma comercial”.
L. Ora, presente o teor do despacho que admitiu o chamamento, bem como a contestação apresentada pela chamada, é com muita estranheza que o Recorrente apreende o teor da sentença que, quanto a esta questão se limita a referir “Igualmente, carecem de fundamento legal, o alegado direito de regresso da interveniente relativamente ao Banco Réu ou o direito compensação invocado pela interveniente”, pelo que viola, nesta parte, o dever de fundamentação e é nula nos termos da al. b) do n.º 1 do artigo 615.º do C.P.C.
LI. Ora, mantendo-se a condenação do ora recorrente no pagamento do valor titulado pelos cheques ao A. é porque se entenderá que a quantia em causa era efectivamente devida pela G... Lda., e que o Banco tinha obrigação de pagar o cheque.
LII. Desta forma, sendo o montante dos cheques devido pela G... Lda., e sendo o ora recorrente condenado a pagar o mesmo, ter-se-á de concluir que ocorrerá um enriquecimento sem causa por parte da referida empresa.
LIII. Pelo que, nos termos do instituto do enriquecimento sem causa, sempre está a mesma obrigada a devolver ao Banco 1..., S.A.. a quantia em apreço - vd. artºs 473º e segs do Cód. Civil.
LIV. Pelo que, mantendo-se a decisão no que diz respeito à condenação do Banco réu, o que, por mera hipótese de raciocínio se concede, deverá também a interveniente/chamada ser condenada, em sede de direito de regresso, a devolver o valor ao Banco recorrente
LV. A sentença recorrida é, assim, nula nos termos da al. b) do artigo 615.º do C.P.C., porque, em parte, não se entra minimamente fundamentada, e violou o disposto nos artigos 29.º, 32.º. da LUL, 342.º, 473.º, 483.º, 562.º e 563.º, todos do C.C., e 414.º, n.º 4, 614.º, ambos do CPC.
LVI. Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas., Meritíssimos Desembargadores, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, julgando improcedente a acção no que diz respeito ao pedido de condenação do Banco R. ou, subsidiariamente, apreciando o direito de regresso do réu sobre a chamada G....
Não foi apresentada resposta a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
a. Se a sentença recorrida é nula por omissão de pronúncia;
b. Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser alterada nos pontos indicados pela recorrente;
c. Se os factos provados permitem responsabilizar o réu pelas consequências que advieram para o autor do não pagamento dos cheques.

III. Da nulidade da sentença:
O recorrente sustenta que a sentença tem «falta de fundamentação de facto e de direito» da questão relativa ao direito de regresso por si invocado e com base no qual foi chamada à acção a interveniente acessória, vício que nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil torna a sentença nula.
Efectivamente, na sua contestação o banco réu não apenas requereu a intervenção acessória da chamada como formulou a seguinte pretensão: «[sendo o réu condenado a efectuar o pagamento das quantias reclamadas] deve ser a chamada condenada a ressarcir o réu de tal valor, por ter sido ela a causadora e responsável pelos factos, a título de direito de regresso».
A sentença limitou-se de forma lacónica e sem o conteúdo exigível a afirmar que o direito de regresso «carece de fundamento legal».
É manifesto que a questão estava suscitada e que o tribunal tinha de se pronunciar de forma fundamentada sobre ela (artigos 607.º e 608.º do Código de Processo Civil). A «ausência de fundamento legal» é uma afirmação vazia de conteúdo, que não encerra qualquer afirmação substancial para justificar a desconsideração da pretensão e, por isso, é um fundamento inaceitável, que não respeita o conteúdo mínimo da fundamentação de uma sentença judicial que todo o juiz está obrigado a observar.
Por conseguinte, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, a sentença recorrida é nula.
Nos termos do artigo 665.º, n.º 1, do mesmo diploma, tal nulidade da decisão que põe termo ao processo não conduz à anulação de actos processuais e à sua repetição para expurgação do vício, incumbindo a esta Relação substituir-se ao tribunal recorrido e suprir tal nulidade, aditando a fundamentação em falta, o que se fará oportunamente.

IV. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
A recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto, reclamando a alteração dessa decisão quanto a pontos concretos que indica, mais cumprindo os requisitos específicos dessa impugnação.
O primeiro ponto sobre que recai a discordância da recorrente é o ponto 4.
Efectivamente a redacção dada pela 1.ª instância não é correcta. Os cheques, do conjunto de 12 referidos no ponto 3, cujas datas de emissão se situavam entre 08.01.2015 e 30.09.2015 eram nove e não dez como referido no ponto 4 (cf. documento junto pela interveniente com a adenda ao contrato que está na origem da emissão dos cheques).
Todavia, conforme a própria recorrente reconhece, depois da apresentação a pagamento e pagamento desses cheques, o autor era ainda portador de três cheques (os restantes do conjunto de 12), dos quais dois são os que são mencionados na petição inicial e não foram pagos; o outro, com data de emissão de 30/11/2015, foi igualmente apresentado a pagamento e foi pago (tendo depois o banco entendido que o pagamento se deveu a mero lapso e na sequência disso instaurado duas acções judiciais para reaver a respectiva quantia, acções que foram julgadas improcedentes - pontos 24 e 25).
Resulta, portanto, inequívoco que efectivamente o autor apresentou a pagamento um total de dez cheques que foram pagos e dois cheques que não foram pagos (são estes que dão causa de pedir à acção). Se o pagamento do último deles que foi pago se deveu a mero lapso do banco ou antes à alteração da posição do banco face à reclamação sua cliente e sacadora do cheque, é aspecto que esta Relação não considera provado.
Por conseguinte, altera-se a redacção do ponto 4, a qual passa a ser a seguinte:
«4) Do conjunto de cheques referidos no ponto anterior, o autor apresentou a pagamento os 9 cheques com datas de emissão compreendidas entre 08/01/2015 e 30/09/2015 e ainda o cheque n.º ..., com data de 30/11/2015, tendo estes 10 cheques obtido provisão e os respectivos montantes sido pagos ao autor
Esta conclusão justifica que se deva corrigir também oficiosamente a redacção do ponto 11, na qual foi repercutido o mesmo lapso e foi omitido um aspecto importante que está documentado nos autos. Procedendo à correcção, dá-se ao ponto 11 a seguinte nova redacção:
«11) Os 12 cheques do conjunto referido no ponto 3, entregues ao autor em 28/12/2014, tinham todos a mesma data de validade: 08/09/2014.»
No que concerne ao ponto 15 a recorrente tem razão no sentido de que com a redacção que lhe foi dada este ponto não devia constar da fundamentação de facto da sentença, mas não quanto a dever alterar-se a sua redacção como sugere.
A redacção do ponto 15 é, recorde-se a seguinte: O réu ao recusar o pagamento dos cheques, fê-lo em violação das regras legais convocadas em face da relação jurídico-contratual que estabeleceu com o seu cliente, sem proceder com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, impedindo com a sua conduta a cobrança dos cheques pelo seu legítimo portador, ora autor, causando-lhe prejuízo.
Assim, de uma penada, travestindo-o de facto naturalístico ou do mundo ontológico, a Mma. Juíza a quo decidiu de imediato a questão jurídica que a acção coloca, julgando provado que o réu violou as regras legais (quais?) e não procedeu com a diligência de uma pessoa normal. É evidente para nós que estas são as questões jurídicas a decidir e que para as decidir são necessários factos cuja qualificação jurídica sustente a conclusões de direito de que o réu violou normas legais e actuou com negligência.
O actual Código de Processo Civil tem suscitado entre os processualistas acesa polémica sobre a possibilidade de incluir no que na sentença se designa por «factos» ou fundamentos de facto, matéria de direito, conceitos de direito ou mesmo conclusões, bem como sobre a possibilidade de se declarar não escrito o seu conteúdo que corresponda a matéria daquela natureza.
Continuamos a entender que essa promiscuidade entre factos e direito, entre afirmações de factos e conclusões, entre a realidade da vida que cabe descobrir com recurso aos meios de prova e à análise técnica destes para depois se lhe aplicar o direito e as normas, conceitos e institutos jurídicos que conformam aquela realidade, não só não acrescenta absolutamente nada à qualidade da tarefa da aplicação justiça, como, sobretudo, perturba e dificulta a enunciação das questões a decidir e permite, de assentada, como aqui se vê, dar como decidido o que cumpre decidir, piorando as condições para a realização cabal daquela tarefa.
A nosso ver, os factos são os dados do mundo ontológico (objectivos ou subjectivos, exteriores ou interiores) aos quais caberá fazer a aplicação do direito, não podem ser enunciados que encerrem em si mesmos a conclusão jurídica a que o julgador pode chegar. É certo, parece-nos, que em direito só relevam os factos jurídicos, mas isso apenas pode querer significar que os factos relevam na medida do seu significado para o direito (é tudo, portanto, uma questão de critério de eleição da dimensão do facto que importa para determinada finalidade: a aplicação do direito), não que os factos só existam enquanto realidades jurídicas.
Aliás, se os factos existem enquanto tais independentemente do direito, pois é este que surge para responder e regular aqueles que constituem um prius para o direito, não existe qualquer impossibilidade de fazer previamente a sua demonstração probatória para que depois, apurada a realidade que cumpre julgar, se lhes aplicar o direito. A nossa experiência prática de décadas na judicatura diz-nos que misturar os dois momentos só pode gerar equívocos, erros e deturpações que, salvo melhor opinião, não interessam à sã aplicação do direito.
Sublinhe-se que mesmo os que admitem que no domínio do actual Código de Processo Civil possam ser levados ao elenco dos factos provados factos conclusivos ou matéria de direito – posição para a qual temos as maiores reservas – não admitem em circunstância alguma que do elenco da matéria de facto possa constar, como aqui se fez, a afirmação conclusiva da questão de direito que constitui o objecto do processo – para que serviria então a subsunção jurídica se previamente já estava afirmada a solução do pleito como se ela fosse matéria de facto? –.
Portanto, entendemos que deve ser eliminado do ponto 15 a afirmação de que « o réu ao recusar o pagamento dos cheques, fê-lo em violação das regras legais convocadas em face da relação jurídico-contratual que estabeleceu com o seu cliente, sem proceder com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa». Pelas mesmas razões, a redacção não deve ser modificada no sentido preconizado pela recorrente, isto é, para assinalar que o réu «cumpriu a carta-circular n.º 6/2006/DPG do Banco de Portugal» ou que actuou «com zelo e diligência». Esses são aspectos a abordar em sede de qualificação jurídica dos factos.
A menção no ponto 15 de que ao recusar o pagamento dos cheques o réu impediu «a cobrança dos cheques pelo seu legítimo portador, ora autor, causando-lhe prejuízo» é possível, embora no caso se nos afigure já resultar dos demais factos provados.
Com efeito, tendo os cheques sido apresentados a pagamento neste banco e tendo sido ele a recusar o pagamento invocando a ultrapassagem do prazo de validade dos cheques (o que está provado nos pontos 5 a 8) e havendo na conta sacada fundos suficientes para o pagamento dos cheques (ponto 9) é forçoso concluir que ao invocar aquele fundamento para recusar o pagamento dos cheques o réu impediu directa e necessariamente o autor de receber a quantia neles inscrita, sendo esse o prejuízo que se pode afirmar que o autor sofreu.
Assim, decide-se alterar a redacção do ponto 15, a qual passa a ser a seguinte:
«15. Ao recusar o pagamento dos cheques nos termos referidos nos pontos 5) a 8), o réu impediu o autor de receber a quantia neles inscrita, para cuja provisão havia na conta sacada fundos suficientes conforme referido no ponto 9).»
Pelas mesmas razões (impossibilidade de incluir no elenco da fundamentação de facto afirmações puramente jurídicas), importa corrigir oficiosamente a redacção do ponto 21), expurgando-o da afirmação de direito que constitui a sua parte final e que é verdadeiramente a questão que cabe decidir na acção. A sua redacção passa a ser a seguinte:
«21) Quando desse pedido de revogação, constatou também, então, o Banco réu que a data de validade desses cheques havia expirado em 08.09.2014 (cf. resulta da data/informação aposta no lado superior direito dos cheques juntos com a p.i. – “Impresso/cheque valido até 2014-09-08”).»
A recorrente pretende de seguida que se julgue não provado o facto do ponto 16 onde se assinala que o réu causou ao autor um prejuízo igual ao montante titulado pelos cheques cujo pagamento recusou.
A recorrente esgrime com a prova produzida nos autos e da qual resulta que para obter o distrate da hipoteca que incidia sobre o imóvel o banco adquirente suportou a quantia de €115.306,18, a qual supera em €15.306,18 o valor de €100.000 titulado pelo conjunto dos cheques entregues ao autor, e ainda que o contrato-promessa estabelecia o dever de a promitente vendedora colocar asfalto no imóvel «antes da escritura».
Reconhecemos que tal como indicado pela recorrente essa prova foi produzida nos autos; todavia, tanto quanto julgamos, a mesma está longe de permitir a conclusão pretendida pela recorrente (que corresponde ao alegado pela interveniente na carta onde comunicou ao réu a revogação dos cheques). Na verdade, esta conclusão encerra uma conveniente simplificação da realidade que o tribunal não pode acolher.
Desde logo, o contrato-promessa de compra e venda do imóvel foi celebrado entre a sociedade M... Lda. e a sociedade G... Lda., mas o negócio que acabou por ser concretizado foi a venda do imóvel ao Banco 2 ..., S.A. e a locação financeira do mesmo por este Banco à sociedade G... Lda., razão pela qual, de forma a concretizar o negócio almejado por esta, tiveram de existir negociações e acordos com este Banco e só com a cabal demonstração dessas negociações e acordos se poderia julgar demonstrado aquilo que foi efectivamente acordado quanto ao distrate da hipoteca.
Acresce que é impensável que o Banco 2 ... se tivesse disposto a celebrar a escritura de compra do imóvel à sociedade M... Lda. sem previamente se ter inteirado da existência da hipoteca (aliás, como não podia deixar de ser, a escritura menciona o arquivamento de certidão da descrição predial do imóvel) e do montante que seria necessário para obter o respectivo distrate.
Por tudo isso, não basta demonstrar que foi pago um valor pelo distrate, era necessário demonstrar o que foi acordado quanto ao pagamento do distrate e à repercussão desse custo sobre o valor a receber pela vendedora do imóvel.
Essa prova não foi feita, sendo certo que para o efeito não basta comparar o valor de €100.000 que teria de ser pago à vendedora através dos cheques pós-datados (porque não se faz antes a comparação entre o valor idêntico que foi pago na escritura?) com o valor pago pelo banco adquirente ao Banco 3... (€115.306,18) para concluir que a vendedora teria de suportar a diferença quando da própria escritura de compra e venda consta que o cancelamento da hipoteca já se encontra assegurado, ou seja, que o credor hipotecário já tinha de ter recebido o valor total do seu crédito e emitido o respectivo distrate (o que possibilitava o acerto imediato de contas e que à vendedora fosse entregue já só o valor remanescente daquilo que ela tinha a receber no acto da escritura).
Por outro lado, não se pode confundir o preço pelo qual o imóvel foi vendido com o direito de crédito pela expurgação dos ónus que incidiam sobre a coisa. O preço foi acordado pelas partes e aparentemente pressupunha que o bem estivesse livre de ónus e encargos. O preço não se altera por o bem se encontrar onerado. O que sucede é que se existirem ónus e o vendedor não os libertar o comprador pode libertar-se desses ónus pagando ao credor respectivo (a expurgação da hipoteca prevista na alínea a) do artigo 721.º do Código de Processo Civil) e depois exercendo sobre o vendedor o direito de ser ressarcido deste encargo não incluído na economia do contrato, conforme previsto nos artigos 905.º e seguintes do Código Civil que pressupõem o erro ou o dolo.
Na escritura de compra e venda que, como vimos, não foi celebrada com a promitente-compradora, a hipoteca é referida, mencionando-se que o respectivo distrate estava assegurado, razão pela qual a compradora (actuando aqui no interesse da sua cliente e locatária financeira) nunca poderia invocar o erro ou o dolo. Por isso, a questão do eventual pagamento pelo distrate acima do valor previsto pelas promitentes vendedora e compradora teria de ser objecto de outro enquadramento jurídico, não sendo possível, sem a sua demonstração, pretender sem mais fazer as contas como se tivesse sido acordada a redução do preço ou esta fosse devida à margem do disposto nos artigos 905.º e seguintes do Código Civil.
Acresce que a existir o direito da promitente-compradora de ser ressarcida do valor do distrate na parte que excedia €100.000 estaríamos perante um direito de crédito desta sobre a promitente-vendedora, pelo que aquela, para fazer extinguir o direito desta ao preço da coisa prometida vender, teria de invocar a compensação dos respectivos créditos. A carta através da qual esta informou o banco da revogação dos cheques, decisão, aliás, que este não seguiu, mas em resultado da qual decidiu recusar o pagamento com fundamento na ultrapassagem do «prazo de validade» dos cheques, não opera tal compensação (nem a declaração de compensação seria eficaz dessa forma, porque ela teria de ser comunicada ao credor reciproco, não ao banco sacado).
A mesma simplificação se detecta na questão do asfaltamento da envolvente do edifício existente no imóvel. O contrato-promessa previa que o asfaltamento fosse feito «antes da escritura» e no entanto esta foi celebrada alegadamente sem que ele tivesse sido feito, sendo certo que por se tratar de um elemento perfeitamente visível (a promitente-compradora era, aliás, já a ocupante do imóvel por virtude de um contrato de arrendamento, segundo resultou da prova produzida) é impossível invocar a existência de erro sobre esse elemento secundário do imóvel.
Por conseguinte, tendo a escritura sido celebrada por um terceiro (o banco que depois deu o imóvel em locação financeira à promitente-compradora) actuando no interesse da promitente-compradora, haveria que demonstrar que acordo foi estabelecido com este e por que razão se celebrou a escritura, sabendo-se que o asfaltamento não estava feito e não se tendo feito de imediato o abatimento do valor do respectivo custo. Verificando-se os respectivos pressupostos, podia dar-se a circunstância de a promitente-compradora ter um direito de crédito equivalente a esse custo, mas também quanto a ele a compensação de créditos tinha de ser invocada para determinar a extinção em igual medida do direito ao preço do bem.
Nestes termos, a decisão de julgar provado no ponto 16 que o réu «causou um prejuízo ao autor em quantia igual ao montante titulado nos cheques em apreço» está correcta e deve ser mantida porquanto no contexto que acaba por se descrever naquele momento o autor continuava a poder exigir da sacadora o pagamento do montante dos cheques.
Refira-se que em termos de raciocínio estamos a abstrair da circunstância de o pagamento não ser devido ao próprio autor, mas antes à sociedade da qual ele era sócio-gerente e representante legal, pela razão de as partes se conformarem com essa divergência e aceitarem que os cheques foram legitimamente emitidos a favor do autor nessa qualidade, embora sem a mencionar, tal como a representante da sacadora não menciona que intervém em representação da promitente-compradora.
Mantém-se por isso tal decisão.
A recorrente insurge-se de seguida contra a decisão de julgar não provado o alegado nos artigos 28.º e 29.º da respectiva contestação.
O primeiro desses artigos (28.º) compreende um segmento que é pura matéria de direito (que o autor actua «em claro abuso de direito») e que, como tal, não pode ser decidido em sede de fundamentação de facto da sentença.
Compreende ainda um segmento que já constitui matéria de facto (que a G... Lda. «nada devia ao autor») mas que pelos motivos analisados aquando da apreciação da impugnação da decisão relativa ao ponto 16 da matéria de facto não pode ser julgado provado.
Pelo contrário, está absolutamente demonstrado que a G... Lda. era devedora do montante titulado pelos cheques, muito embora se considerasse reciprocamente credora de montantes relacionados com o distrate que considerava não ter de pagar na totalidade e com um trabalho no imóvel que alegadamente não foi realizado pelo anterior proprietário. A decisão de julgar não provado este facto é, pois, correcta e deve ser mantida.
O segundo dos artigos (29.º) repete a alegação do artigo anterior de que o valor dos cheques não era devido à data da revogação. Pelas razões já aduzidas a decisão deve ser mantida.
Por fim a recorrente defende que devem ser julgados provados os seguintes factos provenientes da contestação apresentada pela interveniente acessória e julgados não provados em 1.ª instância:
· No acto da escritura de compra e venda celebrada em 15/4/2015, o A. teria de receber €100.000,00.
· Porém, a interveniente G... Lda. teve de suportar a divida da vendedora, garantida por hipoteca, no montante de €115.306,18, de modo a permitir a celebração dessa escritura.
· O A. comprometeu-se, em 28/12/2014, a asfaltar em cerca de mais 7 cm de altura a estrada circundante do imóvel, até à celebração da escritura, sendo que a execução desse trabalho importa em mais de €19.000,00 (acrescido de IVA).
· No dia 4/11/2015, o A. pediu à chamada, a título de empréstimo, a quantia de €3.500,00.
· A interveniente G... Lda. é credora do A. em € 37.806, 18, sendo €15.306,18 de distrate de hipoteca, €19.000,00 de custos de asfaltamento, a que acresce IVA, e €3.500,00 de empréstimo.
· Assim, à data da revogação dos cheques, a referida sociedade nada devia ao AA ou à sua sociedade.
Estes factos andam à volta do mesmo que já foi analisado. A prova produzida é inquestionável, mas não é bastante para suportar as conclusões simplistas e redutoras que o réu e a interveniente pretendem que sejam retiradas sem que aos autos tenha sido trazidas as explicações complementares necessárias (o que foi acertado com o banco que interveio no negócio, o que foi acertado quanto ao distrate, porque se fez a escritura sem a pavimentação estar feita quando estava acordado que ela tinha de se feita antes da escritura).
Nesse contexto, levando em conta os documentos juntos aos autos, em particular o chamado aditamento à adenda (!) ao contrato-promessa de compra e venda, a escritura de compra e venda, o contrato de locação financeira, a fotografia do imóvel, a cópia do cheque do pagamento feito pelo Banco 2... ao Banco 3..., em 15/04/2015, no montante de €15.306,18 que aparentemente só pode estar relacionado com o distrate, a mensagem de correio electrónico de 4/11/2015 e o depoimento das testemunhas ouvidas, decide-se julgar provados ainda os seguintes factos:
26) No contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a sociedade M... Lda., representada pelo seu sócio gerente e aqui autor, como promitente-vendedora, e a sociedade G... Lda., como promitente-compradora, esta obrigou-se a pagar àquela, a título de preço do imóvel prometido-vender, o montante titulado pelos 12 cheques referidos no ponto 3) e ainda, no acto da escritura de compra e venda, a quantia de €100.000.
27) Nesse mesmo contrato foi estabelecido que «antes da escritura, o representado da primeira outorgante, compromete-se em asfaltar as estradas circundantes ao prédio em cerca de mais 07 centímetros de altura, relativamente ao nível actual».
28) Para adquirir o imóvel à sociedade M... Lda., e o entregar em locação financeira à sociedade G... Lda. o Banco 2 ..., S.A., pagou à Banco 3 ..., a quantia de €115.306,18, para obter o distrate da hipoteca que à data se encontrava registada sobre o imóvel.
29) A escritura de compra e venda foi outorgada sem que se mostrasse feito o asfaltamento referido em 27).
30) A interveniente G... Lda. tem um orçamento para realizar o asfaltamento e os demais trabalhos nele descritos, no montante de €19.000,00, sem IVA.
31) No dia 4/11/2015, por correio electrónico, o autor pediu à interveniente, a título de empréstimo, a quantia de €3.500,00, montante que a interveniente lhe entregou nesse mesmo dia por transferência bancária.

V. Factos provados:
Fruto das modificações acabadas de decidir, são agora os seguintes os factos provados:
1) O autor é dono e legítimo portador do cheque n.º ..., sacado sobre a conta nº. ... do “Banco 1..., S.A..”, agência ... - Lisboa, datado de 31.10.2015, no valor de €10.000,00.
2) É ainda dono e legítimo portador do cheque n.º ..., sacado sobre a conta nº ... do “Banco 1..., S.A..”, agência ... - Lisboa, datado de 31.12.2015, no valor de €10.000.
3) Os cheques descritos em 1) e 2) dos factos provados foram preenchidos, assinados e entregues ao autor pela titular da conta indicada, designadamente, a sociedade comercial “G... Lda.”, num conjunto total de 12 cheques pós-datados, para pagamento do preço de um negócio de compra e venda.
4) Do conjunto de cheques referidos no ponto anterior, o autor apresentou a pagamento os 9 cheques com datas de emissão compreendidas entre 08/01/2015 e 30/09/2015 e ainda o cheque n.º ..., com data de 30/11/2015, tendo estes 10 cheques obtido provisão e os respectivos montantes sido pagos ao autor.
5) No dia 02.11.2015, o autor procedeu ao depósito na conta nº ... do cheque n.º ..., sacado sobre a conta nº ... do “Banco 1..., S.A..”, agência ... - Lisboa, datado de 31.10.2015, no valor de €10.000,00.
6) No dia 04.11.2015, o cheque identificado em 5) foi devolvido pelo réu com o motivo “cheque apresentado fora do prazo”.
7) No dia 30.11.2015, o autor procedeu ao depósito na conta nº ... do cheque n.º ..., sacado sobre a conta nº ... do “Banco 1..., S.A..”, agência ... - Lisboa, datado de 31.12.2015, no valor de €10.000,00.
8) No dia 02.12.2015, tal cheque foi devolvido pelo réu com o motivo “cheque/vale apresentado fora do prazo”.
9) A referida conta sacada tinha fundos suficientes para o pagamento das quantias tituladas nos cheques supra identificados.
10) Indagada pelo autor sobre o motivo apresentado, a réu informou o mesmo que a recusa de pagamento se devia ao facto da validade dos cheques ter já expirado em 08.09.2014.
11) Os 12 cheques do conjunto referido no ponto 3, entregues ao autor em 28/12/2014, tinham todos a mesma data de validade: 08/09/2014.
12) O autor encontra-se, até à presente data, desembolsado do montante titulados nos cheques, designadamente da quantia de €20.000,00.
13) Os supracitados cheques foram depositados dentro do prazo legal para a apresentação a pagamento.
14) O réu sabia que qualquer revogação de cheque só produz efeitos depois de findo o prazo de apresentação.
15. Ao recusar o pagamento dos cheques nos termos referidos nos pontos 5) a 8), o réu impediu o autor de receber a quantia neles inscrita, para cuja provisão havia na conta sacada fundos suficientes conforme referido no ponto 9).
16) A conduta do réu causou um prejuízo ao autor em quantia igual ao montante titulado nos cheques em apreço.
17) Instada a pagar tal montante, certo é que, até à presente data, a réu nada pagou ao autor.
18) A sociedade comercial “G... Lda.” é cliente do Banco réu e titular da conta de depósitos à ordem nº ..., aberta na agência .... ... - Lisboa.
19) Através de comunicação datada de 29.10.2015, no dia 30.10.2015, o réu recebeu da sua cliente “G... Lda.” um pedido de revogação de três cheques por si emitidos e que, infra, se especificam:
- cheque n.º ..., datado para 31.10.2015, no valor de €10.000,00;
- cheque n.º ..., datado para 30.11.2015, no valor de €10.000,00;
- cheque n.º ..., datado para 31.12.2015, no valor de €10.000,00.
20) Para fundamentar esse pedido, alegou essa cliente que emitiu os referidos respectivamente, 10, 11 e 12 meses de antecedência em relação às datas dos mesmos constantes e que, posteriormente, constatou que já não era devedora de qualquer quantia ao autor, nomeadamente das importâncias tituladas pelos cheques em causa, por já ter pago mais do que inicialmente acordado.
21) Quando desse pedido de revogação, constatou também, então, o Banco réu que a data de validade desses cheques havia expirado em 08.09.2014 (cf. resulta da data/informação aposta no lado superior direito dos cheques juntos com a p.i. – “Impresso/cheque valido até 2014-09-08”).
22) A 30.10.2015, o réu introduziu no seu sistema informático a alteração da situação dos cheques para “apresentação fora do prazo – código 06”, a qual, todavia, apenas ficou registada relativamente ao cheque n.º ..., datado para 31.10.2015, no valor de €10.000,00.
23) Apenas em 05.11.2015 e após reclamação apresentada pela cliente “G... Lda.”, a mesma alteração da situação no sistema informático ficou registada relativamente ao cheque n.º ..., datado para 31.12.2015, no valor de €10.000,00.
24) No âmbito do processo comum que correu termos como processo nº 5644/18.1T8SNT foi proferida sentença, transitada em julgado, em 25.02.2019, nos termos e fundamentos que aqui se dão por reproduzidos.
25) Igualmente, correu termos no Juízo Local Cível de Paredes o processo comum nº 237/17.3T8PRD, no âmbito do qual foi proferida sentença que absolveu os réus do pedido, no termos e fundamentos que aqui se dão por reproduzidos.
26) No contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a sociedade M... Lda., representada pelo seu sócio gerente e aqui autor, como promitente-vendedora, e a sociedade G... Lda., como promitente-compradora, esta obrigou-se a pagar àquela, a título de preço do imóvel pro-metido-vender, o montante titulado pelos 12 cheques referidos no ponto 3) e ainda, no acto da escritura de compra e venda, a quantia de €100.000.
27) Nesse mesmo contrato foi estabelecido que «antes da escritura, o representado da primeira outorgante, compromete-se em asfaltar as estradas circundantes ao prédio em cerca de mais 07 centímetros de altura, relativamente ao nível actual».
28) Para adquirir o imóvel à sociedade M... Lda., e o entregar em locação financeira à sociedade G... Lda. o Banco 2 ..., S.A., pagou à Banco 3 ..., a quantia de €115.306,18, para obter o distrate da hipoteca que à data se encontrava registada sobre o imóvel.
29) A escritura de compra e venda foi outorgada sem que se mostrasse feito o asfaltamento referido em 27).
30) A interveniente G... Lda. tem um orçamento para realizar o asfaltamento e os demais trabalhos nele descritos, no montante de €19.000,00, sem IVA.
31) No dia 4/11/2015, por correio electrónico, o autor pediu à interveniente, a título de empréstimo, a quantia de €3.500,00, montante que a interveniente lhe entregou nesse mesmo dia por transferência bancária.

VI. Matéria de direito:
O autor instaurou a presente acção contra o banco réu peticionando o pagamento do valor inscrito nos cheques que lhe apresentou a pagamento e cujo pagamento este recusou, apesar de a conta bancária sob a qual os cheques foram sacados ter provisão para que aquele pagamento fosse feito.
Para o autor essa actuação do réu consubstancia um acto ilícito gerador de responsabilidade civil, pelo que o réu está obrigado a ressarcir o autor do dano resultante do não recebimento do valor inscrito nos cheques.
O réu defendeu-se sustentando, por um lado, que a sua actuação não pode ser qualificada como ilícita porque o «prazo de validade» dos cheques se encontrava ultrapassado e isso autorizava-o a recusar o respectivo pagamento e, por outro lado, que o autor não era credor da sacadora do valor titulado pelos cheques e por isso a sua pretensão configura um abuso de direito, para além de que esse facto afasta o preenchimento dos pressupostos do instituto da responsabilidade civil.
No seu recurso, o réu reitera esta defesa para lograr a alteração da sentença recorrida que considerou preenchidos os pressupostos daquele instituto e o condenou ao pagamento do valor dos cheques.
Antes de entrar propriamente na análise das questões de direito suscitadas pela recorrente é conveniente esclarecer alguns aspectos.
O primeiro é o que de que o argumento usado pelo réu para recusar o pagamento dos cheques de que o autor era legítimo portador foi única e exclusivamente o argumento da ultrapassagem do respectivo prazo de validade. Muito embora a sacadora do cheque lhe tivesse enviado previamente uma carta a comunicar a «revogação» dos cheques pelos motivos descritos na carta, não foi esse o fundamento invocado pelo banco réu para recusar o pagamento dos cheques. O que cabe apreciar é, pois, somente se o banco podia legitimamente recusar o pagamentocom o fundamento que utilizou: a ultrapassagem do «prazo de validade» dos cheques.
Por esse motivo não tem aplicação ao caso o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2008, de 28 de Fevereiro de 2008, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 4 de Abril de 2008, que fixou a jurisprudência no sentido de que «uma instituição de crédito sacada que recusa o pagamento de cheque, apresentado dentro do prazo estabelecido no artigo 29.º da LUCH, com fundamento em ordem de revogação do sacador, comete violação do disposto na primeira parte do artigo 32.º do mesmo diploma, respondendo por perdas e danos perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos nos artigos 14.º, segunda parte, do Decreto n.º 13 004 e 483.º, n.º 1, do Código Civil». Este Acórdão pronunciou-se apenas sobre as situações em que a recusa de pagamento é fundamentada na ordem de revogação do sacador do cheque, não sobre as situações em que essa recusa é justificada pelo banco sacado com a ultrapassagem do prazo de validade do cheque.
O segundo aspecto que importa sublinhar é o de que a conta sacada tinha provisão para o pagamento dos cheques, donde resulta à saciedade que foi apenas a recusa do banco em pagar os cheques que impediu o autor de receber a quantia titulada pelos mesmos.
Essa circunstância afasta a discussão sobre o nexo de causalidade entre o comportamento do banco e o não recebimento da quantia titulada pelos cheques que foi resolvida pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2016, publicado no Diário da República, Série I, de 22/01/2016, no sentido de que «a falta de pagamento do cheque, apresentado dentro do prazo previsto no art. 29.º da LUCh, pelo banco sacado, com fundamento em ordem de revogação do sacador, não constitui, por si só, causa adequada a produzir dano ao portador, equivalente ao montante do título, quando a conta sacada não esteja suficientemente provisionada, competindo ao portador do cheque o ónus da prova de todos os pressupostos do art. 483.º do CC, para ter direito de indemnização com aquele fundamento».
Seja qual for a concepção de nexo de causalidade que se adopte, não há como evitar a conclusão de que havendo na conta bancária fundos suficientes para o pagamento do valor dos cheques o comportamento do banco foi causa directa e adequada do não recebimento pelo autor daquele valor, uma vez que se esse comportamento não tivesse sido adoptado o valor sairia da conta do sacador para a conta do portador dos cheques.
O terceiro e último aspecto que convém deixar claro para situar bem a discussão que deve travar-se é o de que ficou demonstrado que o autor era credor da quantia titulada pelos cheques, rectius, que o autor era credor do preço do imóvel que vendeu e para cujo pagamento os cheques foram sacados e entregues ao autor.
Ao contrário do que vinha defendido pelo banco réu e pelo interveniente, à data o autor era ainda credor dessa parte do preço, uma vez que o seu direito de crédito não se encontrava ainda extinto por qualquer forma, designadamente o pagamento ou a compensação.
A alusão a um erro sobre a base do negócio era manifestamente improcedente porque na data da escritura a sacadora não podia deixar de ter conhecimento da falta de colocação do asfalto (era um elemento visível), bem como da existência do ónus (consta da escritura celebrada por terceiro no seu interesse) e do montante necessário ao seu distrate (que foi pago na mesma data, seguramente antes da escritura para permitir a realização desta).
Eventualmente (dizemos eventualmente porque nem sequer estão demonstrados factos suficientes para considerar preenchidos os pressupostos legais ou contratuais que o permitiriam) a devedora dessa quantia podia ter sobre o autor um crédito recíproco, ainda relacionado com aquele negócio, decorrente, porventura, do incumprimento de algum dever secundário (o dever de executar o asfaltamento com que o imóvel a transmitir devia ser dotado) ou acessório (o dever de libertar o imóvel do ónus real que sobre ele se encontrava registado a fim de ser vendido livre desse ónus) de prestação.
Sendo titular desse direito de crédito, a sacadora podia, querendo, exercer a compensação dos créditos recíprocos, fazendo extinguir nessa medida o crédito do autor, mas para isso necessitava de declarar essa vontade negocial ao próprio autor uma vez que a compensação só se torna efectiva mediante declaração de um dos credores ao outro (artigo 848.º do Código Civil), razão pela qual a comunicação da decisão de revogar os cheques feita pela sacadora ao banco sacado não possuía esse valor ou efeito jurídico.
Nesse contexto jurídico é absolutamente claro que o autor não actua em abuso do direito (leia-se, do direito de acção cartular por inexistência de um direito material - de crédito - emergente da relação subjacente). O que se pode suscitar, ao invés, é se o banco réu actua em abuso do direito ao recusar o pagamento de dois cheques que estavam exactamente na mesma situação dos 9 que pagou antes e do outro que pagou no ínterim: tinham todos a mesma e ultrapassada data de validade.
Feitos estes esclarecimentos que reconduzem as questões a apreciar ao seu núcleo exacto, entremos então na análise das mesmas.
A primeira questão que deve ser respondia enuncia-se deste modo: os bancos sacados podem legitimamente recusar-se a pagar os cheques que lhe são apresentados pelos seus portadores legítimos com o fundamento de que os cheques possuem data de validade e esta encontra-se ultrapassada?
A nosso ver, não podem.
A razão é muito simples: a data de validade é um elemento do título de crédito que não encontra na Lei Uniforme Relativa ao Cheque previsão ou regime, logo é um elemento que não enforma o respectivo regime jurídico e, como tal, não cria direitos ou obrigações para os intervenientes cartulares.
A data de validade é somente um elemento que no exercício dos seus poderes de supervisão da actividade bancária o Banco de Portugal aconselhou os bancos a acrescentarem aos respectivos impressos de cheques para aumentar o controlo sobre a utilização dos cheques e ajudar a combater as más-práticas no uso destes.
A aposição dessa data nos impressos dos cheques não apenas não é obrigatória para os bancos, como não os dispensa, em momento algum, de acatarem e respeitarem os direitos dos intervenientes cartulares, tal como eles se encontram definidos na legislação aplicável, sabendo-se que o Banco de Portugal não é um órgão legislativo e sobretudo as suas instruções de supervisão não podem modificar ou revogar normas de direito internacional como é a Convenção Relativa ao Cheque.
Acresce que a utilização de cheques depois de decorrida essa data de validade não é interdita sequer por indicação do Banco de Portugal que apenas se limita a afirmar que não a recomenda. Por conseguinte, independentemente do que possa suceder na relação entre o banco sacado e o sacador, em sede de convenção do cheque, o direito cartular do legítimo portador do cheque não é afectado, restringido ou extinto pela data de validade aposta no impresso do cheque.
Como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 01/02/2011, processo n.º 815/08.1TBAND-A.C1, e foi depois seguido no Acórdão da Relação de Guimarães de 04/12/2012, ambos in www.dgsi.pt, «a aposição da data de validade que passaram a ser impressas nos módulos dos cheques foi resultado da carta-circular nº 6/2006/DPG do Banco de Portugal. Através dela o Banco de Portugal, num conjunto de boas práticas, recomendou a todas as instituições de créditos que passassem a inserir uma data limite de validade nos impressos que forneçam aos seus clientes, com vista reduzir o risco associado à emissão de cheques por parte dos seus clientes, nomeadamente no que concerne à utilização pelos mesmos dos cheques com garantia de pagamento e os cheques pré-datados. A aposição de tais datas limites impressas nos cheques consubstancia, assim, uma prática bancária, na sequência da aludida carta-circular recomendativa do Banco de Portugal, que nem sequer é vinculativa paras instituições bancárias, não sendo, pois fonte imediata de direito, e como tal não pode colidir com aquilo que se encontra positivado em diplomas legais, e mais concretamente na LUC. Por outro lado, a data limite de validade que passou a ser impressa nos cheques não se integra nos requisitos essenciais (…) que o cheque deve conter, nos termos da definição feita pelo artº 1º da LUC. Pois só esses ali enunciados são essenciais ao cheque, de tal modo que só a falta de algum deles pode colocar em causa a sua validade, levando a que o título não produza efeitos como cheque (cfr. artº 2º da LUC). Por fim, …, a referida questão da validade (limite) prende-se ou tem a mais a ver com o contrato ou convenção do cheque (de que acima demos nota) e com a sua validade e não com a validade intrínseca do próprio cheque. Ao não estar o cheque dentro da referida data de validade (impressa no mesmo pela própria instituição bancária sacada), o banco pode ou não vir a pagá-lo (independentemente da responsabilidade que tal lhe possa trazer), sendo certo, todavia, que, nos termos o disposto na parte final do acima citado artigo 3º da LUC, a inobservância das prescrições referentes à relação de provisão e à convenção de cheque, não podem prejudicar a sua validade enquanto título de crédito cambiário».
A pretensão de que a aposição de uma data de validade nos impressos de cheques que entrega aos clientes confere ao banco sacado o direito discricionário de aceitar pagar os cheques ou recusar o seu pagamento, mesmo que a solicitação ou por impulso do cliente, tal redundaria, no fundo, na derrogação ilegítima e arbitrária das normas da Lei Uniforme que regulam as possibilidades de recusa de pagamento e de revogação do cheque pelo sacador.
Além disso, seria um manifesto abuso de direito o banco sacado pretender fazer uso do privilégio de recusar o pagamento invocando a ultrapassagem do prazo de validade sem que previamente tivesse denunciado a convenção do cheque celebrada com o sacador ao abrigo da qual lhe tinha entregue os impressos de cheque cuja data estava ultrapassada, já que se o cliente continua a poder usar solicitar cheques e a usá-los nenhuma razão existe para não lhe ser consentido que use cheques que já tem em seu poder apesar de terem data de validade ultrapassada.
A segunda questão a responder é a seguinte: o banco sacado que, ilegitimamente, recusa pagar cheques que lhe foram apresentados e para cujo pagamento a conta se encontrava provisionada, invocando a ultrapassagem da data de validade neles indicada, incorre em responsabilidade civil perante o legítimo portador do cheque, nos termos previstos no artigo 483.º, n.º 1, segunda parte, do Código Civil?
Como já referimos esta questão não se encontra resolvida jurisprudencialmente porque o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2008 se pronunciou apenas sobre os casos de recusa de pagamento fundada na ordem de revogação do sacador do cheque, não sobre os casos de recusa com fundamento na ultrapassagem do prazo de validade do cheque. De todo o modo, parece-nos que por maioria de razão a mesma posição deve ser adoptada nestes casos.
É sabido que o cheque é um título de crédito mediante o qual o sacador dá uma ordem de pagamento à vista a um sacado para que pague determinada quantia, em regra a favor de terceiro, o tomador, por conta dos fundos disponíveis junto do banco sacado (artigo 3.º da LU relativa ao Cheque). O cheque é sacado sobre um banqueiro que tenha fundos à disposição do sacador e em harmonia com uma convenção expressa ou tácita, segundo a qual o sacador tem o direito de dispor desses fundos por meio de cheque. A validade do título como cheque não fica, todavia, prejudicada no caso de inobservância destas prescrições.
A partir do momento em que o emitente entrega o cheque colocando-o em circulação, independentemente da data ali indicada como sendo a da subscrição, até ao termo do prazo legal para a sua apresentação a pagamento, o sacador obriga-se a manter a conta devidamente provisionada (artigos 28.º, 29.º e 40.º da LU).
O banco sacado não é parte da relação fundamental, nem é parte na relação cartular. Não existe qualquer relação jurídica directa entre o banco e o beneficiário ou tomador do cheque pelo que aquele não se vincula perante o beneficiário do cheque a efectuar o seu pagamento. É o que resulta de diversas disposições da Lei Uniforma que indicam que o banco sacado não figura entre os obrigados cambiários (artigo 40.º), não pode aceitar cheques (artigo 4.º), não pode conceder aval (artigo 25.º, 2.ª alínea), nem o pode endossar (artigo 15.º, 3.ª alínea) [Neste sentido, v.g., Nogueira Serens, op. cit., pág. 103, Sofia Galvão, Contrato de Cheque - um estudo breve (1992), pág. 22 e 30, Alberto Luís, O Problema da Responsabilidade Civil dos Bancos por Prejuízos que Causem a Direitos de Crédito, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59.º (1999), pág. 898, Januário Gomes, Contratos Comerciais (2013), págs. 195/196].
Na base da emissão de um cheque [cuja origem está numa relação jurídica anterior - a relação subjacente ou causal - que se pretende regularizar] existem duas relações jurídicas distintas: a) a relação de provisão (v.g., depósito, abertura de crédito e descoberto em conta), b) o contrato ou convenção de cheque, que pode ser meramente tácito celebrando-se, na prática, mediante a requisição, pelo cliente, de uma ou mais cadernetas de cheques e a entrega destes ao banco.
A provisão - os fundos disponíveis junto do banco - constitui um dos elementos intrínsecos do cheque e seu pressuposto lógico: o portador do cheque, uma vez legitimado em tal qualidade, está autorizado a cobrar o valor do cheque e a receber do banco sacado que, por sua vez, irá debitar, subsequentemente ao sacador, o montante dos valores que pagar. Pode não haver provisão stricto sensu, mas ter sido acordado entre o banco e o sacador aquele pagar os cheques por este emitidos, como ocorre nas situações em que, ao abrigo de um contrato de abertura de crédito, o titular da conta bancária beneficia de uma linha de crédito até certo montante, ou em que o banco permite ao titular da conta o direito de sacar a descoberto, isto é, mesmo que o saldo seja negativo para o cliente ou se torne negativo em virtude do saque.
A existência de fundos no banco à disposição do sacador não é pressuposto da validade do título apresentado como cheque (artigo 3.º da LU), o qual não fica ferido de qualquer nulidade em caso de falta de provisão. É o chamado princípio da autonomia da relação cambiária, que se manifesta relativamente quer à relação causal subjacente, quer às diversas relações extracartulares.
A convenção de cheque, consubstancia o contrato celebrado entre o banco e o titular de uma conta bancária que atribui ao cliente a faculdade de utilizar os fundos disponíveis através de cheques disponibilizados pelo banco, o qual fica vinculado a honrar o pagamento incorporado no título. Através dessa convenção o banco acede a que o seu cliente mobilize os fundos disponíveis, em relação aos quais detém um direito de crédito, por meio da emissão de cheques.
Da convenção de cheque resulta um conjunto de direitos e deveres a cargo de cada uma das partes, ficando o cliente com o direito de exigir ao banco a entrega de módulos de cheques, em conformidade com o acordado, bem como com o poder de sacar cheques sobre o banco, ou seja o poder de dar ordens de pagamento ao banco, nos termos do contrato, através do título cheque; por sua vez, para o banco emana o dever de disponibilizar ao cliente, nos termos do contrato, módulos de cheques e o dever principal de cumprir a ordem consubstanciada no cheque, ou seja o dever de pagar havendo provisão.
A obrigação de pagamento do cheque ao seu portador legítimo, pelo banco sacado, existirá, assim, sempre que o respectivo sacador disponha de fundos numa conta bancária, haja contrato de cheque, não exista oposição ao pagamento por alguma causa legalmente permissiva e concorram os demais requisitos de validade do cheque.
Na falta de provisão é facultado ao banco sacado, por um lado, recusar o pagamento do cheque que lhe seja apresentado a pagamento e possibilita-se ao portador, por outro, intentar acção penal por cheque sem provisão ou acção de regresso contra o seu sacador.
Na convenção de cheque, evidentemente, tudo se passa entre o banco e o titular da provisão, não sendo o portador parte nessa convenção e não tendo, nessa estrita medida, direito de acção contra a entidade bancária sacada, em face dos princípios do direito cambiário.
O cheque apresentado a pagamento, desde que suficientemente provisionado e emitido ao abrigo de convenção de cheque, vincula o sacado perante o sacador e a recusa injustificada de pagamento dá origem a responsabilidade obrigacional do banco perante o cliente.
O sacado fica, igualmente, com a obrigação de efectuar o devido pagamento perante o portador, uma vez que é este que, por força da lei, se lhe apresenta para tal efeito, não obstante ser alheio à convenção de cheque.
Neste caso, trata-se de uma obrigação legal, não se baseando a obrigação do sacado em qualquer pretenso direito do portador sobre a provisão, o qual é, isso sim, detentor de um valor que pode circular, como sucedâneo da nota de banco, não sendo admissível que a lei, que lhe estabeleceu os condicionalismos da sua aceitação confiante pelos agentes económicos, permita ao sacado a recusa arbitrária do seu pagamento.
Por isso, existindo provisão e tendo a apresentação a pagamento sido feita pelo portador legítimo no prazo legal estabelecido para o efeito, o cheque deverá ser pago, sendo irrelevantes a intenção e instruções do sacador e a disponibilidade de a instituição de crédito em aceitar tais instruções.
A questão de saber se ao recusar o pagamento do cheque por indicação do sacador que no decurso do prazo para apresentação a pagamento lhe comunicou a revogação do cheque, o banco incorre em responsabilidade civil extracontratual, foi entre nós, após longa controvérsia doutrinal e jurisprudencial, resolvida pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2008, já referido.
Nesse Acórdão entendeu-se que continuava vigente a 2.ª parte do artigo 14.º do Decreto n.º 13 004, de 12-01-1927, segundo o qual, no decurso do prazo de apresentação do cheque a pagamento, o banco sacado "não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento na referida revogação", preceito legal do qual emerge a imputação da responsabilidade civil extracontratual ao banco sacado, em face do beneficiário do cheque.
Na fundamentação deste Acórdão escreveu-se o seguinte:
«A obrigatoriedade de pagamento do Banco sacado perante o portador do cheque (em tese geral, não se cuidando, agora, de eventuais causas justificativas de recusa de pagamento) não poderá fundar-se, nem na relação cambiária, nem na convenção de cheque, res inter alios acta, relativamente ao Banco a primeira, quanto ao portador a segunda.
A vinculação, como regra, decorre da própria lei, do valor do cheque, pela mesma assumido, como meio de pagamento.
Certamente, meio de pagamento, sucedâneo da moeda legal no cumprimento de obrigações pecuniárias (e não pagamento, com efeitos liberatórios, nos termos previstos no artigo 550.º do Código Civil) - «meio de pagamento cuja emissão deve estar coberta por disponibilidades constituídas por moeda escritural, representativa da moeda legal emitida pelo Estado (moeda metálica) ou pelo Banco emissor (notas)».
Meio de pagamento, que transcende o quadro contratual privatístico em que foi gerado, cuja dimensão pública, aí implicada a protecção ao portador e a geral confiança na circulação do título, bem como a tutela penal do cheque, vem, além dos segmentos que se devem ter por vigentes do Decreto n.º 13 004, nuclearmente regulada no Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, republicado pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro, com as sucessivas alterações sofridas.
A imposição legal de pagamento dirigida ao Banco sacado, decorre, em termos gerais, do artigo 28.º da LUCH (regulando-se nos artigos 40.º e segs. os procedimentos relativos ao não pagamento) e dos artigos 6.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 454/91, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, cit. e pela Lei n.º 48/2005, de 29 de Agosto.
[…] Se atentarmos, por exemplo, nos artigos 6.º, n.º 2, 8.º e 9.º do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, e, bem assim, no artigo 28.º da LUCH, vemos que a regra é a imposição de pagamento ao sacado. Os casos de não pagamento são ressalvas.
Aliás, a colocação nas mãos do sacado da possibilidade de pagar ou não pagar, de acordo com o seu critério, é de uma violência enorme na relação de confiança que deve haver entre os intervenientes na relação cambiária em causa e entre o público em geral.»
Paralelamente, foram disciplinados procedimentos visando a obrigatoriedade da rescisão da convenção de cheque, bem como a regularização das situações de falta de pagamento: artigos 1.º, 1.º-A e seguintes (redacção do Decreto-Lei n.º 316/97).
Nas soluções de direito interno referidas, vem desenhada uma translação da tutela do cheque: a protecção do portador e da confiança do título é obtida, não com recurso à tutela cambiária (assente na garantia prestada pelo emitente e por eventuais endossantes e avalistas), mas através da tutela do próprio cheque, como meio de pagamento economicamente relevante (assente, com reforçada segurança, na instituição bancária sacada e fornecedora do módulo respectivo). […]
[…]A recusa do pagamento constitui o Banco sacado, desde que verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, na obrigação de indemnizar o tomador do cheque.
Como já resultou do que atrás se disse, a responsabilidade pelo não pagamento do cheque relativamente ao tomador não é contratual.
Também não colhe apoios na jurisprudência ou na doutrina a tese de responsabilidade contratual relativamente ao tomador, assente numa cessão de créditos (…), uma vez que a cessão como contrato não pode ser revogada unilateralmente pelo cedente, sendo inversa a regra decorrente do artigo 32.º da LUCH.
Decorre da conjugação das normas atrás citadas uma obrigação do Banco sacado directamente para com o tomador, só passível de ser configurada como extracontratual (…).
Valem aqui as regras gerais da responsabilidade civil, mormente os artigos 483.º, n.º 1, 562.º e 563.º do Código Civil. Dispõe o artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil que «[a]quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação».
São pressupostos da responsabilidade extracontratual a prática de um facto voluntário do agente, ilícito (violador de um direito de outrem ou de disposição legal), a culpa, o dano e o nexo causal entre o facto ilícito culposo e o dano.
A ilicitude pode derivar da violação de direitos alheios ou de violação de disposição legal destinada a proteger interesses alheios (violação de normas de protecção).
É nesta segunda variante da ilicitude que se pode integrar a conduta do sacado.
(…) Conforme decidido nos Acórdãos deste STJ de 2 de Junho de 1997, processo n.º 96B503, e de 7 de Dezembro de 2005, processo n.º 3451/05-6.ª, o primeiro inserto em www.dgsi.pt e o segundo em Sumários «o Banco sacado que aceita, sem mais, a ordem de revogação de cheque antes de findo o prazo de apresentação a pagamento, e com violação, por isso, do artigo 32.º, n.º 1, da LUCH, não procede com a diligência de pessoa normal, medianamente capaz, prudente, avisada e cuidadosa, e impedindo indevidamente com a sua omissão a cobrança do cheque pelo seu legítimo portador, causando-lhe prejuízo, torna-se civilmente responsável perante o portador por tal prejuízo, na conformidade do disposto no artigo 483.º do CCIV66».
O Banco sacado comete, assim, um acto ilícito e culposo e será responsável pelos danos que, em relação de causalidade adequada, tal comportamento determine.»
Com este Acórdão ficou definido que o portador legítimo do título emitido ao abrigo da convenção de cheque, tendo a conta provisão para o efeito tem direito ao seu pagamento podendo accionar o banco em caso de violação ilegítima de tal direito ao pagamento.
A questão da data de validade do cheque não altera esses pressupostos. Como vimos, essa data é apenas a manifestação de uma boa prática facultativa instituída pelo Banco de Portugal no exercício dos seus poderes de supervisão. Ela não tem no regime jurídico do cheque previsão, regulação ou efeito jurídico de natureza legal que possa enformar o direito do portador legítimo do cheque que o apresentou, no prazo legal, a pagamento a que o valor deste lhe seja pago havendo na conta sacada provisão para o efeito e não havendo qualquer outra causa legítima de recusa de pagamento. Direito esse que nos termos da legislação que regula o cheque é exercitável sobre o sacado e, por conseguinte, cuja violação faz o banco incorrer em violação ilícita de disposição legal destinada à protecção em especial do portador legítimo do cheque provisionado cujo pagamento foi recusado.
Demonstrado que está o primeiro pressuposto da responsabilidade civil (a ilicitude da recusa do pagamento do cheque), convém verificar se estão preenchidos os restantes.
Cremos não restarem dúvidas sobre o pressuposto da culpa porque esta compreende o dolo e a negligência e no caso o banco actuou com dolo directo, isto é, recusou intencionalmente o pagamento dos cheques, não obstante saber que a conta estava provisionada e que se não fosse esse comportamento o pagamento seria feito.
Como não restam dúvidas sobre o dano porque o autor era credor da quantia titulada pelos cheques e deixou de a obter.
Por fim, encontra-se preenchido o requisito do nexo de causalidade porquanto a conta dispunha de provisão para ser feito o pagamento e por isso o comportamento do banco foi causa adequada do não recebimento pelo autor do valor titulado pelos cheques.
Preenchidos todos os pressupostos da responsabilidade civil, o banco réu está incurso na obrigação de indemnizar os danos suportados pelo autor, leia-se, de lhe pagar o valor titulado pelos cheques e para cujo pagamento existia provisão na conta sacada.
Nessa parte o recurso é, pois, improcedente.
Isso decidido, cabe então agora suprir a nulidade antes apontada e decidir se a questão do direito de regresso invocada pelo banco réu na sua contestação deve proceder, ou não, e porquê.
Podemos adiantar desde já a inevitabilidade da improcedência.
Como sabemos, o artigo 260º do Código de Processo Civil consagra o princípio da estabilidade da instância, dizendo que uma vez citado o réu a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
As modificações subjectivas ou relativas às partes podem ocorrer através dos incidentes de intervenção de terceiros previstos na lei ou em casos de sucessão por actos entre vivos ou por falecimento de uma das partes. Um dos incidentes de intervenção de terceiros é precisamente o da intervenção acessória através do qual uma pessoa inicialmente estranha à acção passa a ter nesta o estatuto de assistente.
Pode suceder, com efeito que a parte demandada possa fazer reverter para outrem a obrigação de pagamento do que ela venha a ser condenada na acção. Para acautelar esse direito, o incidente adequado é o da intervenção acessória consagrado no artigo 321º do Código de Processo Civil
Quando o artigo 321º do Código de Processo Civil se refere ao direito de regresso não está apenas a reportar-se aos casos em que a própria lei confere a alguém um direito de regresso como tal expressamente designado. Cabem ainda na previsão do aludido preceito todas as demais situações em que a lei ou o contrato permitam ao demandado reclamar de um terceiro o pagamento do que houve de pagar em consequência da decisão da acção. Trata-se daquilo a que M. Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 179/180, designa por direito de regresso em sentido amplo ou impróprio quando afirma que «…o principal âmbito de aplicação da intervenção acessória provocada coincide com o direito de regresso decorrente de uma relação conexa com o objecto do processo. Quando entendido em sentido próprio, este direito de regresso pode decorrer de uma relação de garantia: imagine-se, por exemplo, que o causador de um dano chama a intervir a companhia de seguros na qual cobriu o risco da sua actividade. Mas, num sentido amplo ou impróprio, o direito de regresso também pode resultar de uma mera responsabilidade baseada, por exemplo, num subcontrato, numa relação de contratos em cadeia ou na evicção...».
Existe uma distinção fundamental sobre a posição que os terceiros intervenientes podem ser admitidos a ocupar na acção a que são chamados e que divide os respectivos incidentes de chamamento em intervenção principal e intervenção acessória.
Na intervenção principal, os terceiros são chamados a ocupar na acção a posição de partes principais. O que fundamenta a sua intervenção é o facto de serem titulares da mesma relação material controvertida que permitiu a demanda do réu (estão numa relação de litisconsórcio com este) ou de a causa de pedir que gera o seu direito de acção ser a mesma da do autor ou então os pedidos a formular por autor e interveniente estarem entre si numa relação de prejudicialidade ou dependência (coligação activa).
Já na intervenção acessória, os chamados vêm ocupar a posição de partes acessórias, sendo a sua intervenção destinada apenas a auxiliar na defesa da parte principal que o chama e que ocupa na acção, necessariamente, a posição de demandado. O que justifica esta modalidade de intervenção não é qualquer comparticipação na relação material controvertida do réu com o autor, não é qualquer proximidade entre causas de pedir e pedidos, é somente a circunstância de entre o réu e o chamado existir uma outra relação jurídica (distinta da que une as partes principais) em função da qual será depois possível ao réu, no caso de decair na defesa, reverter contra o chamado os efeitos da sentença que o condenar.
Assim, o interveniente principal faz valer um direito próprio paralelo ao do autor ou do réu (artigo 312.º) e, por isso, a partir da sua intervenção goza de todos os direitos de parte principal. O interveniente principal é, no fundo e desde a sua intervenção, parte principal, parte com os mesmos direitos da parte a que se associa e, portanto, com a mesma liberdade de definição dos termos da sua intervenção no processo de que gozam as outras partes principais (autor e réu).
O interveniente acessório não faz valer na acção qualquer direito próprio, apenas auxilia a parte a que se associa (necessariamente o réu) a fazer a sua defesa, ou seja, a exercer o direito deste. O objectivo é permitir que as questões que será necessário discutir e decidir na acção para resolver o litígio entre as partes principais (autor e réu) e que em simultâneo tenham repercussão na relação jurídica entre o réu e o chamado possam logo ali ser discutidas com a participação do chamado, de modo a evitar a necessidade de as voltar a discutir e decidir depois na acção de regresso entre o demandado e o chamado. Trata-se, portanto, de uma pura intenção de economia processual.
Na intervenção acessória não ocorre nenhuma situação similar à que ocorre, por exemplo, com a reconvenção ou a apensação de acções, onde efectivamente se dá uma ampliação do objecto da acção, o qual passa a compreender também a causa de pedir e o pedido da reconvenção ou da acção apensada. Na intervenção acessória a intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento (artigo 321.º, n.º 2).
Não se trata, portanto, de discutir nem os pressupostos da acção de regresso, nem o direito do réu sobre o chamado que justificará esse regresso. O fundamento da intervenção acessória é a acção de regresso do réu contra o terceiro, destinada a reverter sobre o terceiro o prejuízo que eventualmente resulte da perda da demanda, pelo que o terceiro tem um interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão, sendo chamado à acção apenas para acautelar esse interesse (cf. Salvador da Costa, in Os Incidentes da Instância, 3ª edição, pág. 127 e seg.).
Por conseguinte, do que se trata é somente de chamar o terceiro a discutir, conjuntamente com as partes principais, as questões da acção, as questões que o litígio entre o autor e o chamado coloca e que estão delineadas nos articulados que estes produziram, e que, em simultâneo, devam ser tratadas e decididas também na acção de regresso.
Lopes do Rego, in Comentários ao Código de Processo Civil, página 252 e seg., transmite estas ideias com as seguintes palavras: «Na base de tal configuração está a ideia de que a posição processual que deve corresponder ao sujeito passivo da relação de regresso, conexo com a controvertida – e invocada pelo réu como causa do chamamento – é a de mero auxiliar da defesa, tendo em vista o seu interesse indirecto ou reflexo na improcedência da pretensão do autor, pondo-se, consequentemente, a coberto de ulterior e eventual acção de regresso ou de indemnização contra ele movida pelo réu da causa principal. (…) o chamado “não deve ser tratado como parte principal”, o seu papel e estatuto reconduzem-se, pois, ao de auxiliar na defesa, visando com a sua actuação processual – não obstar à própria condenação, reconhecidamente impossível – mas produzir a improcedência da pretensão que o autor deduziu no confronto do réu-chamante».
Para Lebre de Freitas, in Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 1999, vol. 1, págs. 585 e 586, «a relação jurídica de regresso depende da que é discutida na acção na medida em que o estabelecimento desta implica a verificação dum pressuposto do direito de regresso ou a existência do direito do autor contra o réu. O terceiro é chamado para que, quanto a essa verificação, se possa constituir perante ele o caso julgado. Consequentemente, só faz sentido que o terceiro auxilie o réu na defesa respeitante às questões implicadas pela verificação do direito do autor».
Para Teixeira de Sousa, loc. cit. pág. 179, «para auxiliar o réu na sua defesa e a sua actividade não pode exceder a discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso que fundamenta a intervenção (…). Com este chamamento, o demandado obtém não só o auxílio do terceiro interveniente, como também a vinculação deste último à decisão, de carácter prejudicial, sobre as questões de que depende o direito de regresso (…). Portanto, a intervenção do terceiro não é acompanhada de qualquer alteração no objecto da causa e, menos ainda, de qualquer cumulação objectiva.»
A intervenção acessória do terceiro limita-se às questões relativas ao pedido ou à causa de pedir com repercussão na existência e no conteúdo do direito de regresso, por deste serem condicionantes. Quanto a estas questões forma-se caso julgado material em relação ao chamado, mas ele não é condenado nesta primeira acção; apenas fica vinculado, em regra, a aceitar os factos dos quais derivou a condenação do primitivo réu propriamente dito, isto é, o que implementou o chamamento.
O caso julgado da sentença estende-se ao chamado de modo a que não seja possível nem necessário que na subsequente acção de indemnização proposta pelo réu contra o chamado se voltem a discutir as questões já decididas no anterior processo, mas não comporta decisão de condenação ou absolvição do chamado. Em princípio, na nova acção de indemnização em que o chamado figure como réu, fica o mesmo vinculado ao conteúdo da sentença da primeira acção como prova plena dos factos estabelecidos nela relativamente ao direito definido e no que concerne às questões de que a acção de regresso dependa.
Em conclusão, o chamamento de terceiro à acção a título de interveniente acessório não muda a causa de pedir nem o pedido da acção. A acção não passa por isso a ter como objecto também a relação que justifica aquele chamamento e, nela, o réu que fez o chamamento não pode formular pedidos contra o interveniente acessório, nem este pode em circunstância alguma ser condenado na acção com fundamento na relação jurídica invocada para sustentar o direito de regresso. Tudo isso são questões que terão de ser suscitadas em nova acção a instaurar pelo réu contra o interveniente acessório e só neste poderá vir a ser proferida qualquer condenação do interveniente em benefício do aqui réu e ali autor.
É por estes motivos que a pretensão do réu contra a interveniente formulada na parte final da contestação devia ter sido rejeitada de imediato e, não o tendo sido antes, deve aqui ser julgada totalmente improcedente.

VII. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida, embora com os fundamentos acabados de referir.

Custas do recurso pelo recorrente, sendo certo que não tendo sido apresentada resposta dos recorridos não há lugar a outro pagamento, designadamente a título de custas de parte, para além da taxa de justiça suportada pelo recorrente
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Porto, 21 de Abril de 2022.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 683)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]