Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
146/15.0GAFLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: CRIME
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
ARTIGOS DE PIROTECNIA
BOMBAS DE CARNAVAL
Nº do Documento: RP20170913146/15.0GAFLG.P1
Data do Acordão: 09/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 46/2017, FLS 47-54)
Área Temática: .
Sumário: I - O artefacto vulgarmente conhecido por bomba de carnaval não se integra na categoria F1, mas pelas suas características acomoda-se na categoria F2, pois que, não obstante a sua baixa capacidade agressiva, pelo perigo que gera para a integridade física das pessoas justifica a tutela penal.
II - O facto de não ser livre a sua venda, no mínimo, levaria o arguido a representar a possibilidade de a sua aquisição e detenção serem proibidas.
III - Indiciada a verificação da materialidade da infracção e conhecida a proibição legal, segundo as regras da experiência comum, podemos deduzir que aquela foi cometida com dolo.
IV - São pois suficientes os indícios que justificam a submissão do arguido a julgamento
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 146/15.0 GAFLG.P1
Recurso penal (decisão instrutória)
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
No âmbito do processo comum que, sob o n.º 146/15.0 GAFLG, corre termos pela Secção de Instrução Criminal (J2) da Instância Central da Comarca do Porto Este, depois de ver inviabilizada a suspensão provisória do processo que promoveu (fls. 34 e segs.) porque o Sr. Juiz de instrução não se manifestou concordante (fls. 42/43 e 85) o Ministério Público deduziu acusação em processo sumaríssimo contra B..., imputando-lhe factos que, em seu critério, consubstanciam a prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma proibida.
Depois de manifestar a sua oposição ao julgamento em processo sumaríssimo (com o consequente reenvio do processo para a forma comum), o arguido veio requerer a abertura de instrução, com os fundamentos que expôs no requerimento (RAI) de fls. 118 e segs.
Realizados os actos instrutórios julgados necessários e pertinentes, após o obrigatório debate instrutório, foi proferida decisão instrutória de não pronúncia (fls. 141 e segs.).
Não se conformou o Ministério Público com tal decisão e dela interpôs recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes conclusões (em transcrição integral):
a) “O Mmº Juiz a quo decidiu no seu douto despacho de 03/11/2016 não pronunciar o arguido B... pelo crime de detenção de arma proibida, conforme vinha acusado em processo sumaríssimo, por entender que os factos que constavam da acusação não configuravam crime, e também que o arguido não tinha consciência da ilicitude do seu comportamento, ao deter, como detinha, aquele material pirotécnico;

b) O Ministério Público entende que a conduta do arguido que detinha aquele material pirotécnico integra o crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelos artºs 2º, nº5, af) e ah) e 86º, nº1, d), da Lei nº 5/2006, de 23/02.

c) Com efeito, incorreu o MMº JIC em erro notório na apreciação da prova quando, sem possuir especiais conhecimentos pirotécnicos, afastou 3 exames directos realizados pela GNR que classificavam o petardo “C...” como engenho pirotécnico, pelos efeitos sonoros ou caloríficos que possuía, podendo causar ferimentos, nomeadamente queimaduras, amputações de dedos ou mãos;

d) Em obediência ao princípio da oficiosidade e à descoberta da verdade material, devia o MMº JIC, tendo dúvidas sobre a classificação do material, ordenar novos exames ou perícias, ou pedir esclarecimentos aos já realizados;

e) Não o tendo feito, violou, entre outros, os artºs 268º, 269º, 288º, 289º e 290º, todos do Código de Processo Penal;

f) Entendemos ainda que ao declarar que o arguido não conhecia a ilicitude do seu comportamento, o MMº JIC extrapolou as suas competências, conhecendo de factos que nem sequer o arguido vinha alegando no seu RAI, violando o princípio da vinculação temática;

g) Além do mais, é público e pacífico hoje que a posse de material pirotécnico, que nem sequer é de venda livre e acessível ao público, é ilícita, o que o arguido bem sabia, pelo que o erro que o MMº JIC invoca será sempre censurável, o que determinará a sua punição;

h) Ao decidir como decidiu, violou, entre outros, o artº 379º, nº1, c), do Código de Processo Penal e o artº17º, do Código Penal”.
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Admitido o recurso (despacho a fls. 176) e notificado o arguido, veio este apresentar resposta à respectiva motivação defendendo a manutenção da decisão recorrida.
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Subiram os autos ao tribunal de recurso e, já nesta instância, na intervenção a que alude o n.º 1 do artigo 416.º do Código de Processo Penal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu extenso e douto parecer em que, secundando a posição assumida pelo magistrado do Ministério Público recorrente, se pronuncia pelo provimento do recurso, porquanto:
- o objecto apreendido foi examinado por quem, para tanto, tinha os necessários conhecimentos técnicos e competência;
- inexistindo elementos em sentido diverso, impunha-se ter como assentes as características (desse objecto) indicadas no exame realizado, ou seja, que se trata de um “artefacto com composição pirotécnica (massa do tiro), matérias ou matéria explosiva muito sensível da categoria F2 – e não F1 – tanto pelas suas características, como pelos seus efeitos sonoro e calorífico e demais características indicadas a 20-22 e 69-70”;
- que o arguido conhecia as características desse artefacto decorre, não só das declarações que prestou (nunca afirmou desconhecê-las) como de regras de experiência comum;
- inequívoco é, ainda, que o arguido não estava autorizado a adquirir um tal engenho.
Conclui que estão indiciados factos que preenchem todos os elementos típicos do crime de detenção ilegal de arma, pelo que deve proceder o recurso.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, sem qualquer resposta.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
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Sabendo-se que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigo 412.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e, entre outros, o acórdão do STJ de 27.05.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, está evidenciada a importância desse ónus a cargo do recorrente.
O Ministério Público deduziu acusação contra B..., imputando-lhe a prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, al.d), com referência ao artigo 2.º, alíneas af) e ag), da Lei n.º 5/2006, de 23/02 (com as alterações posteriores, a última resultante da Lei 50/2013, de 24/07), por ter entendido que, no termo do inquérito, estavam reunidos fortes indícios de que os factos denunciados efectivamente ocorreram, foram praticados pelo arguido e consubstanciam aquele ilícito penal.
Contrariamente, o Sr. Juiz de instrução entendeu que não se indicia a prática de qualquer crime, por duas razões:
- não há indícios de que o artefacto/engenho que o arguido tinha na sua posse não fosse da categoria 1, já que não foi realizada uma perícia ao mesmo, nem mesmo um verdadeiro exame, e muito menos resulta indiciado que o engenho pirotécnico fosse da categoria F2, como categoricamente afirma o MP na acusação;
- mesmo que se pudesse afirmar que o artefacto em causa continha substâncias explosivas pirotécnicas (massa de tiro) com vista a produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno, em consequência de reacções químicas exotérmicas auto-sustentáveis, de risco não baixo e efeito sonoro significante e como tal nunca poderia ser da categoria 1, sempre se tinha de concluir, mesmo que indiciariamente, que o arguido não era capaz de conhecer as características de tal objecto, pela evidente razão de o mesmo não as fornecer tout court, apesar de dever fornecer por força de imposição legal, pois que só conhecendo as características do objecto é que o arguido poderia formular a consciência de a sua detenção ser proibida, ou seja, só nessa situação é que o arguido se poderia decidir livremente a detê-lo apesar da proibição.
Por isso o despacho de não pronúncia.
Tal como acontece com o encerramento do inquérito[1], normalmente, a questão central do despacho que encerra a fase de instrução é a de saber se foram recolhidos indícios suficientes (pressuposto fundamental, quer da dedução de acusação, quer da prolação de despacho de pronúncia, pois, de contrário, terá de ser arquivado o inquérito e proferido despacho de não pronúncia) da existência de crime e, na afirmativa, quem foi o seu agente e se este é punível.
Daí poder dizer-se que a questão (única) a apreciar e decidir neste recurso será a de ponderar se os indícios probatórios recolhidos nas fases preliminares do processo (inquérito e instrução) são de molde a justificar que se leve o arguido a julgamento pelos factos descritos na acusação e com o enquadramento jurídico-penal que o Ministério Público lhes deu.

II - Fundamentação
Comecemos com uma breve incursão pelo direito.
O artigo 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro[2], que contém o regime jurídico das armas e munições (RJAM), diz-nos que comete o crime de detenção de arma proibida quem, sem autorização, fora das condições legais, ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, transferir, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação, transferência ou exportação, usar ou trouxer consigo alguma das armas ou algum dos instrumentos, engenhos, equipamentos, produtos ou substâncias elencados nas suas quatro alíneas.
Para o caso, interessa-nos considerar, especificamente, a detenção de artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício de categoria 1” a que alude o trecho final da alínea c) daquele preceito legal.
As alíneas af) e ag) do n.º 5 do artigo 2.º do RJAM definem o que deve entender-se por:
Artigo de pirotecnia”: qualquer artigo que contenha substâncias explosivas ou uma mistura explosiva de substâncias, concebido para produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno ou uma combinação destes efeitos, devido a reações químicas exotérmicas autossustentadas (al. af))[3];
Fogo-de-artifício de categoria 1”: o artigo de pirotecnia destinado a ser utilizado para fins de entretenimento que apresenta um risco muito baixo e um nível sonoro insignificante e que se destina a ser utilizado em áreas confinadas, incluindo os fogos-de-artifício que se destinam a ser utilizados no interior de edifícios residenciais.
Também com interesse para o caso, o artigo 6.º do Dec. Lei n.º 34/2010, de 15 de Abril, que, no seu n.º 1, estabelece as seguintes categorias de fogos-de-artifício em função do tipo de utilização, finalidade e nível de risco:
Categoria 1: fogos-de-artifício que apresentam um risco muito baixo e um nível sonoro insignificante e que se destinam a ser utilizados em áreas confinadas, incluindo os fogos-de-artifício que se destinam a ser utilizados no interior de edifícios residenciais;
Categoria 2: fogos-de-artifício que apresentam um risco baixo e um nível sonoro baixo e que se destinam a ser utilizados em áreas exteriores confinadas;
Categoria 3: fogos-de-artifício que apresentam um risco médio, que se destinam a ser utilizados em grandes áreas exteriores abertas e cujo nível sonoro não é prejudicial para a saúde;
Categoria 4: fogos-de-artifício que apresentam um risco elevado, que se destinam a ser utilizados exclusivamente por pessoas com conhecimentos especializados, comummente conhecidos por «fogos-de-artifício para utilização profissional», e cujo nível sonoro não é prejudicial para a saúde humana.

Assim, se o artefacto em causa, pelas suas características, puder ser incluído em alguma das referidas categorias, que não na categoria 1, uma vez que o arguido não tinha autorização para a sua aquisição e/ou detenção, estará verificado o tipo objectivo do crime previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
O Sr. Juiz de instrução considerou
suficientemente indiciado que:
No dia 17/02/2015, pelas 21h30m, na rua ..., ..., Felgueiras, no âmbito da festa D..., sem qualquer autorização ou licenciamento, o arguido detinha um engenho pirotécnico, vulgo bomba de carnaval, denominado C..., com as medidas 30mm x 10mm, e

não suficientemente indiciado que:
1. O engenho pirotécnico referido em 1 era de categoria F2.
2. O engenho pirotécnico referido em 1 contém substâncias explosivas pirotécnicas (massa de tiro) com vista a produzir um efeito calorífico, luminoso, sonoro, gasoso ou fumígeno, em consequência de reacções químicas exotérmicas auto-sustentáveis, de risco não baixo e efeito sonoro significante.
3. O arguido conhecia as características do referido engenho pirotécnico.
4. O arguido agiu como agiu, por se conformar com a possibilidade de vir a ser criminalmente responsabilizado pela sua posse fora das condições legais, resultado que representou e o não deteve.
5. Sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Antes de mais, importa fazer notar que a integração do engenho apreendido ao arguido em alguma das mencionadas categorias é importante para a tipicidade da conduta, mas é uma conclusão que há-de decorrer das suas características, nomeadamente de saber se há suporte probatório indiciário bastante para se afirmar que continha as referidas substâncias explosivas pirotécnicas com vista a produzir os aludidos efeitos.
É, pois, a análise dos indícios existentes e a ponderação da sua suficiência, ou não, para fazer prosseguir o processo para julgamento que vai ocupar-nos.
*
Com já se aludiu, tal como acontece com o encerramento do inquérito[4], a questão central do despacho que encerra a fase de instrução é a de saber se foram recolhidos indícios suficientes (pressuposto fundamental, quer da dedução de acusação, quer da prolação de despacho de pronúncia, pois, de contrário, terá de ser arquivado o inquérito e proferido despacho de não pronúncia) da existência de crime, na afirmativa, quem foi o seu agente e se este é punível.
Saber quando é que os indícios da existência de crime são suficientes para esse efeito é questão que tem dividido a doutrina e a jurisprudência e por isso justifica-se que nos detenhamos sobre este ponto.
O n.º 2 do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal (aplicável à decisão instrutória por força do disposto no art.º 308.º, n.º 2) diz-nos quando devem considerar-se suficientes os indícios recolhidos: têm essa virtualidade sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
Ao Ministério Público e ao juiz de instrução exige-se, então, que formule um prognóstico, uma previsão sobre o que acontecerá em julgamento.
Mas a definição legal da suficiência de indícios não nos elucida sobre o significado da expressão “possibilidade razoável” de condenação e é neste ponto que divergem aqueles que têm estudado[5] o tema e também a jurisprudência.
Uma primeira posição (minoritária e que podemos considerar já ultrapassada) defende que a suficiência de indícios basta-se com a mera possibilidade (ainda que diminuta) de futura condenação em julgamento[6].
Uma posição intermédia (denominada teoria da probabilidade dominante, que, reconhecidamente, é a que tem apoio na letra da lei) considera que para acusar ou pronunciar alguém é necessário que, num juízo de prognose, se conclua que é mais provável a sua futura condenação do que a sua absolvição.
Neste sentido, pode ver-se (em www.dgsi.pt/jstj) o acórdão do STJ de 08.10.2008 (Relator: Cons. Soreto de Barros) em que se afirma que «possibilidade razoável» é a que se baseia num juízo de probabilidade, “uma probabilidade mais positiva do que negativa, de que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha”.
Por último, a posição que recolhe os favores da maioria da doutrina advoga ser necessário que dos indícios resulte uma forte ou séria possibilidade de condenação em julgamento.
Fala-se, a este propósito, em “possibilidade particularmente qualificada” ou de “probabilidade elevada” de condenação[7].
Importa, no entanto, realçar que autores há que não autonomizam esta posição da anterior e tanto falam em “alta probabilidade” como em “probabilidade mais forte” de futura condenação do que de absolvição do acusado.
Assim acontece com o Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, I, 1984, 133) que se pronuncia nos seguintes termos: “os indícios só serão suficientes e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando seja mais provável do que a absolvição”.
Assim também o acórdão do STJ de 18.0.2005, www.dgsi.pt/jstj (Relator: Cons. Pereira Madeira), onde pode ler-se que “aquela «possibilidade razoável» de condenação é uma possibilidade mais razoável, mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é (mais) provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.
O Professor Castanheira Neves (“Sumários de Processo Criminal”, lições policopiadas, 1968, 38-39) vai, ainda, mais longe, defendendo que “na suficiência de indícios está contida a mesma exigência de “verdade” requerida pelo julgamento final” ou “um tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer a dúvida (ou logre impor uma convicção)”[8].
Feita esta incursão pela doutrina e pela jurisprudência sobre o conceito de suficiência de indícios, voltemos ao caso concreto.
A pergunta que se impõe é esta: face aos elementos de prova existentes, se o arguido for submetido a julgamento pelos factos que o Ministério Público lhe imputa, que prognóstico é possível fazer? Será de considerar altamente provável a sua futura condenação, ou, pelo menos, será mais provável a condenação do que a absolvição?
Já sabemos que para o Sr. Juiz de instrução, a absolvição impor-se-á porque “não há indícios que o artefacto/engenho que o arguido tinha na sua posse não fosse da categoria 1” e “muito menos resulta indiciado que o engenho pirotécnico fosse da categoria F2”.
Na óptica do Sr. Juiz de instrução, já que não foi realizada uma perícia ao artefacto nem mesmo um verdadeiro exame, e uma vez que este já foi destruído, nunca será possível conhecer as suas características.
Não obstante, deu como indiciado que se tratava de uma vulgar “bomba de carnaval”.
Há alguns equívocos que importa, desde já, desfazer.
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O recorrente Ministério Público alega que o Sr. Juiz “incorreu em erro notório na apreciação da prova quando, sem possuir especiais conhecimentos pirotécnicos, afastou 3 exames directos realizados pela GNR que classificavam o petardo “C...” como engenho pirotécnico, pelos efeitos sonoros ou caloríficos que possuía, podendo causar ferimentos, nomeadamente queimaduras, amputações de dedos ou mãos”.
O erro notório na apreciação da prova é um vício da decisão sobre matéria de facto, um vício da sentença.
Nesta fase do processo está em causa, não propriamente a apreciação da prova pelo tribunal, mas sim a avaliação dos indícios probatórios recolhidos que permitirá formular um juízo de (in)suficiência desses indícios, tendo em vista a decisão de levar, ou não, o caso a julgamento.
Por isso, não pode falar-se em factos provados e não provados (que, nos termos do artigo 374.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, integram, necessariamente, a fundamentação da sentença) como se da fase de julgamento se tratasse, mas de factos indiciados e não indiciados.
Em suma, os vícios decisórios do n.º 2 do artigo 410.º do Cód. Proc. Penal são defeitos que afectam a sentença[9], não também a decisão instrutória.
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O recorrente Ministério Público fala em “petardo”, referindo-se ao artefacto apreendido.
No entanto, a Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, não acolhe essa designação, mas sim os termos “explosivo civil” e “engenho explosivo ou incendiário improvisado” na alínea a) do n.º 1 do artigo 86.º.
O termo “petardo” pretende designar um objecto semelhante a uma bomba de carnaval, mas em tamanho maior, pois contém maior quantidade de pólvora e por isso é mais perigoso.
Ora, face às pequenas dimensões (30mm x 10mm) do engenho que o arguido tinha na sua posse, não pode haver dúvidas de que se tratava de uma “bomba de carnaval” e não de um “petardo”.
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Apesar da confusão e falta de rigor terminológico que se observa na prática judiciária quando se fala em perícias e exames (são, relativamente, frequentes as alusões a “exames periciais”, a “informações periciais” ou, simplesmente, a “informações”, figuras que a lei processual penal não acolhe[10]), estamos perante figuras jurídicas do direito probatório distintas e com regulamentação legal diversa.
A perícia é considerada um meio de prova, ao passo que um exame é um meio de obtenção de prova (a distinção resulta, desde logo, da inserção sistemática das pertinentes normas que definem os respectivos regimes).
É ordenada (a perícia), oficiosamente ou a requerimento, pela autoridade judiciária competente (Ministério Público, juiz de instrução ou juiz de julgamento, excepto a perícia sobre as características físicas ou psíquicas de pessoa que não haja prestado consentimento, a que alude o n.º 2 do art.º 154.º, que é sempre ordenada por juiz).
Diferentemente do que acontece com o exame, só pode realizar uma perícia quem tenha especiais conhecimentos técnicos, artísticos ou científicos (art.º 151.º) e para tanto seja especialmente nomeado para cada caso por despacho da autoridade judiciária (que indica, de forma sumária, o respectivo objecto).
Os exames podem ser realizados por qualquer pessoa, sem especiais exigências de conhecimento ou preparação técnica. Por isso são, em regra, efectuados por órgãos de polícia criminal[11].
No entanto, um exame pode ser realizado (e pode mesmo exigir que seja feito) por quem tenha especiais conhecimentos técnicos, artísticos ou científicos quando a detecção de vestígios requeira esses conhecimentos.
A perícia tem uma finalidade valorativa (o perito interpreta e avalia os vestígios da prática do crime).
Por seu turno, o exame tem uma finalidade descritiva: visa a inspecção e detecção de vestígios da prática de um crime e a sua descrição em auto, ou seja, é, essencialmente, uma actividade de recolha de meios de prova, sejam pessoais ou reais. Como ensina o Professor G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, vol. II, Verbo, 5.ª edição, 281), “a finalidade do exame é fixar documentalmente ou permitir a observação directa pelo tribunal de factos relevantes em matéria probatória” e, mesmo quando efectuado por pessoa com especiais conhecimentos, “o exame distingue-se da perícia porquanto aquele apenas descreve o que o examinador observa…”
A actividade dos peritos culmina com a elaboração de um relatório, no qual são formuladas conclusões devidamente fundamentadas. Nas conclusões, os peritos emitem uma opinião, tiram dos vestígios as ilações que eles consentem[12], apreciam ou qualificam os factos que são objecto da perícia à luz dos conhecimentos técnicos ou científicos que possuem.
Como está bem de ver, quem tenha realizado a perícia (ou participado na sua realização, se for uma perícia colegial) só pode intervir na audiência como perito e para prestar esclarecimentos.
A perícia, ou melhor, o respectivo juízo técnico, científico ou artístico, tem um reforçado valor probatório, estando, em princípio, subtraído à livre apreciação do julgador.
Já o resultado de um exame é livremente apreciado pelo tribunal.
Apesar de se referir no auto de notícia de fls. 3 que “por se tratar de um artigo de pirotecnia vai o mesmo ser remetido para perícia/destruição, pela Equipa de Inactivação de Engenhos Explosivos da Guarda Nacional Republicana”, certo é que não foi realizada qualquer perícia. Aliás, não se justificava, pois não eram necessários especiais conhecimentos técnicos ou científicos para descrever as características do objecto.
Mas impunha-se a realização de um exame e era o que devia ter determinado a magistrada do MP titular do inquérito. Em vez disso, determinou que a GNR informassese o objecto apreendido configura um objecto pirotécnico, e se o mesmo se enquadra como «arma» nos termos e para os efeitos do RJAM” e foram “informações” que a entidade policial remeteu para os autos (fls. 10-12, 20-22 e 69-70).
Não é a circunstância de haver “informações” e não um “relatório de exame” que permite afirmar, como se afirma na decisão instrutória que, verdadeiramente, não foi efectuado um exame ao objecto.
Apesar de, na “informação” inicial (fls. 10-12), se referir que “os dados respeitantes ao engenho pirotécnico são muito poucos, para se poder dar uma informação mais concreta” (anotando-se até a inexistência de uma fotografia, quando, na realidade, existia registo fotográfico do objecto), nas informações posteriores já se garante que o artefacto foi directamente “verificado e observado” e são indicadas as suas características.
O registo fotográfico que acompanha a última “informação” é sinal de que, efectivamente, se procedeu a essa “verificação e observação” e, portanto, que são fiáveis as informações transmitidas.
Comum a todas as “informações” é a afirmação peremptória de que o “engenho” não pode ser integrado na categoria 1 (ou F1, como se queira) e que o mais ajustado é incluí-lo na categoria 2 (ou F2). Conclusão que se baseia “nos conhecimentos teórico-práticos, fruto da experiência, assim como pelas situações/experiências análogas já vivenciadas operacionalmente com artefactos com as mesmas características”.
Recorde-se que os artigos de pirotecnia da categoria 1 são aqueles que apresentam um risco tão baixo e um nível sonoro tão insignificante que se destinam a ser utilizados no interior de casas de habitação.
Ora, só a alguém sem um mínimo de sensatez ou mentalmente insano ocorreria fazer rebentar bombas de carnaval dentro da sua casa de residência, pois é da experiência comum que tais artefactos, pelos seus efeitos caloríficos, podem causar queimaduras e, pelos seus efeitos sonoros, podem provocar lesões auditivas.
Admitir a possibilidade de um tal artefacto integrar aquela categoria 1 vai contra a razão e as regras da lógica.
Aliás, como decorre do auto de notícia, foi o deflagrar (e, portanto, o efeito sonoro provocado) de uma bomba de carnaval que despertou a atenção do agente de autoridade que o elaborou e que justificou a abordagem do arguido, o qual trazia consigo, no bolso das calças que vestia, o engenho apreendido, muito provavelmente, do mesmo tipo que o deflagrado.
São estes indícios que, analisados em conjunto, concatenadamente, conjugando-os e estabelecendo correlações internas entre eles, fazendo inferências ou deduções de factos conhecidos (sobretudo o facto de se tratar de uma “bomba de carnaval”) e tendo sempre presentes as regras da lógica e as máximas da experiência, ao contrário do que concluiu o Sr. Juiz de instrução, permitem adquirir a certeza bastante de que o artefacto que o arguido detinha não se integra na categoria 1 e que, pelas suas características, acomoda-se na categoria 2 (ou F2)[13], pelo que o tipo objectivo do ilícito descrito no artigo 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, está indiciariamente preenchido.
O Sr. Juiz de instrução não fez essa avaliação de conjunto dos indícios existentes, a sua análise é fragmentária e não teve na devida conta as referidas regras, pelo que não pode manter-se o juízo que fez sobre a suficiência dos indícios.
Resta, então, ponderar se pode considerar-se indiciada a verificação dos elementos subjectivos do tipo legal, ou seja, se o arguido agiu com dolo em qualquer uma das suas modalidades.
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O dolo é conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica.
Pratica um crime doloso todo aquele que, no momento e nas circunstâncias em que age (ora, por acção, ora por omissão), fá-lo com conhecimento e vontade de realização da factualidade material típica, ou seja, da conduta descrita como crime.
Pode considerar-se suficientemente indiciado que o arguido conhecia as características do objecto que lhe foi apreendido (e que tornavam proibida a sua aquisição e detenção, a não ser que tivesse a necessária autorização para o efeito) e, mesmo assim, livremente, quis adquiri-lo e detê-lo?
O Sr. Juiz de instrução concluiu pela negativa e justificou assim a sua conclusão:
“E mesmo que alguma reserva fosse colocada ao supra afirmado, acima de tudo como é possível afirmar, tal como já se referiu, que o arguido conhecia as características de tais objectos, ou seja do concreto artefacto que detinha e que lhe foi apreendido.
Na verdade, estando em causa um crime doloso, não se vê como seja possível afirmar o dolo, sabendo-se que este, de uma forma simplista, consiste no propósito de praticar o facto descrito na lei penal, sendo a sua estrutura composta por um elemento intelectual ou cognoscitivo e por um elemento emocional ou volitivo, no primeiro caso está em causa a representação ou previsão pelo agente do facto ilícito típico com todos os seus elementos integrantes e à consciência de que esse facto é censurável e no segundo à vontade de realização do facto ilícito previsto pelo agente.
Na verdade, como vem sido entendido, o dolo é um elemento de natureza subjectiva que pertence ao foro íntimo de cada pessoa, apenas podendo ser aferido, quando o agente não reconheça e assuma a vontade livre e consciente da sua acção, à luz das regras da experiência, do contexto da mesma acção e dos indícios objectivos concorrentes no caso concreto.
No caso, como se disse, o arguido afirma não ter praticado o crime, pelo que pode concluir-se que não reconhece ou assume a vontade livre e consciente da sua acção.
Ora, pertencendo ao foro íntimo a representação ou previsão pelo agente do facto ilícito típico com todos os seus elementos integrantes, bem como a consciência de que esse facto é censurável, tal como a vontade de realização do mesmo, se previsto pelo agente, o tribunal só o poderá apreender de forma indirecta, "através da submissão de actos de natureza externa, empiricamente observáveis, ao crivo das regras da experiência e da ordem natural das coisas".
Sabendo-se que o crime não é punível a titulo de negligência, mesmo que se considerasse suficientemente indiciado que o concreto artigo de pirotécnica não pertence à categoria 1 (ou categoria F1), não se vê como, em face da ausência de indicação no artefacto pirotécnico das próprias características, se possa afirmar que o arguido, mesmo indiciariamente, "conhecia as características de tais objectos" e como tal que "agiu como agiu, por se conformar com a possibilidade de vir a ser criminalmente responsabilizado pela sua posse fora das condições legais, resultado que representou e o não deteve" e que "sabia, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei".
Aliás, olhando para a informação prestada nos autos nem o autor da mesma sabe as concretas características do objecto que viu e afirma ter examinado, pois não foi capaz de as fazer constar nos autos, já que o que fez constar, com todo o respeito, não exige um conhecimento especial, sendo perfeitamente acessível ao comum dos cidadãos, bastando uma fita métrica e alguma verbalização conclusiva.
Concluindo, não conhecia o arguido, não sabia, não tinha condições objectivas de o saber e nem lhe era exigível que procurasse certificar-se, quais as características do artefacto que comprou e que detinha quando lhe foi apreendido (v.g. com interesse os ensinamentos a retirar do acórdão do TRP, de 25/02/2015, proc. 120/08.3GCBGC-A.G1.Pl, dgsi.pt)”.
Não havendo confissão do arguido e sendo o dolo (tal como a negligência) uma atitude pessoal do agente perante o dever-ser jurídico-penal (portanto, relacionado com realidades psicológicas), só por via indirecta se pode chegar a uma conclusão sobre a intenção (ou previsão) quanto à realização da factualidade material típica por parte do agente.
A negação do arguido, ao contrário do que parece ter sido entendido na primeira instância, não leva, forçosamente, à impossibilidade de provar essa factualidade subjectiva.
De resto, o arguido nunca afirmou não ter praticado o crime. Quando prestou declarações nessa qualidade, limitou-se a admitir “os factos constantes no auto de notícia de fls. 3”.
Por isso, das suas declarações não é possível extrair qualquer conclusão sobre se representou, ou não, os elementos objectivos do crime em causa, designadamente as características do artefacto que tinha na sua posse
Cabe aqui referir que o conhecimento que se requer não é uma noção exacta, reflectida, pormenorizada, bastando um conhecimento difuso, desde que possibilite a percepção do que é básico na realidade objectiva descrita no tipo legal. E no que tange aos elementos normativos do tipo, é evidente que o agente não tem que possuir um conhecimento rigoroso, técnico-jurídico, próprio de um jurista, sendo suficiente “uma valoração paralela na esfera do leigo”.
As declarações prestadas pelo arguido quando foi interrogado nessa qualidade têm, pelo menos, a virtualidade de indiciar que ele adquiriu vários artefactos como o que lhe foi apreendido e por isso não é, minimamente, verosímil a sua versão de que os encontrou no chão[14].
Por isso, e tendo em consideração a época (de carnaval) em que tal aconteceu, não parece razoável qualquer dúvida sobre o carácter livre e voluntário da sua conduta.
Indiciado o facto subjectivo revelador do elemento volitivo do dolo, resta saber se também o elemento cognitivo é de ter por suficientemente indiciado.
Já sabemos que o Sr. Juiz de instrução rejeitou, liminarmente[15], essa possibilidade com o argumento de que, se o artefacto pirotécnico não tinha (e devia ter) a indicação das respectivas características, não se pode afirmar que o arguido as conhecia e, por conseguinte, sabia que era proibida a sua aquisição e posse, não autorizadas.
Salvo o devido respeito, não nos parece que o argumento seja de acolher e, muito menos, decisivo para concluir que o arguido não conhecia as características do engenho. Diremos até que não teve qualquer influência na decisão do arguido de adquirir o objecto pirotécnico a falta de indicação (no próprio engenho) das suas características, tal como não seria a existência dessa indicação a demover o arguido do seu propósito.
Ele, simplesmente, quis adquirir, e efectivamente adquiriu, “bombas de carnaval”.
Muito provavelmente, o arguido nem conhecia o significado da expressão “artigo de pirotecnia”. Muito menos conheceria o que significava a integração desses artigos em categorias e por isso a indicação, no artefacto, das suas características (que o Sr. Juiz de instrução considerou fundamental para aferir do dolo do agente) seria irrelevante para o arguido.
No entanto, pode considerar-se do conhecimento geral que as vulgares “bombas de carnaval” são bombas de arremesso (ninguém de bom senso faz deflagrar um tal engenho sem o arremessar, o mais longe possível, ao chão) que, pela sua composição, têm um efeito sonoro (ao deflagrar, provocam um estrondo) e um efeito luminoso e calorífico (podem provocar queimaduras em quem os manipula).
Por isso, também pode considerar-se do conhecimento do comum dos indivíduos que as “bombas de carnaval”, se manipuladas por pessoa inexperiente, podem causar lesões graves (no próprio e em terceiros).
É isso mesmo que se extrai do preâmbulo do Dec. Lei n.º 474/88, de 22 de Dezembro, que veio limitar e condicionar a venda desses engenhos, e que o Ex.mo PGA, pertinentemente, citou no seu parecer:
“Todos os anos são noticiados inúmeros acidentes provocados pela utilização das chamadas «bombas de Carnaval». As vítimas de tais acidentes, alguns de reconhecida gravidade, são, na sua grande maioria, crianças em idade escolar.
Em face do exposto, a que acresce o ruído, particularmente perturbador do sossego, provocado pelo uso daqueles explosivos nas brincadeiras carnavalescas de crianças e adolescentes, impõe-se a tomada de medidas que ponham termo a esta situação.
Sendo certo que as conhecidas «bombas de Carnaval» são apenas um tipo das tecnicamente designadas «bombas de arremesso», espécie de fogos-de-artifício, considerados produto explosivo, torna-se necessário integrar sistematicamente as soluções normativas a adoptar no quadro dos pertinentes instrumentos jurídicos em vigor, nomeadamente os aprovados pelo Decreto-Lei n.º 376/84, de 30 de Novembro.
Com o presente diploma, a venda e o lançamento das bombas de arremesso e, designadamente, das chamadas «bombas de Carnaval» ficam sujeitos ao licenciamento prévio, susceptível de concessão, apenas, a maiores de 18 anos, restringindo-se o seu uso à realização de fins não lúdicos, caso da defesa de produções agrícolas ou florestais, e ainda ao exercício da caça de batida”.
São desconhecidas as circunstâncias em que o arguido adquiriu as «bombas de carnaval», mas tudo indica que o fez clandestinamente, pois nem sequer tinha idade para tanto.
O facto de não ser livre a sua venda, no mínimo, levaria o arguido a representar a possibilidade de a sua aquisição e detenção serem actos proibidos.
Indiciada que está a verificação da materialidade da infracção e conhecida a proibição legal, segundo as regras da experiência comum, podemos deduzir que aquela foi cometida com dolo.
Importará lembrar que a verdade material que se busca em processo penal não é uma verdade absoluta, não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, que todos sabem estar para além da capacidade do conhecimento humano, mas sim a “certeza bastante para as necessidades práticas da vida, a certeza histórico-empírica” (Professor Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 246).
Como faz notar o professor Antunes Varela (A. Varela, Rev. Leg. e Jurisp., 116.º, pág. 339), a prova de determinado facto não visa obter a certeza absoluta, irremovível da (sua) verificação, antes se reporta “apenas a certeza subjectiva, a convicção positiva do julgador ou, o que vale por dizer, apenas aponta para a certeza relativa dos factos pretéritos da vida social, e não para a certeza absoluta do fenómeno de carácter científico” (A. Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência, 116.º, pág. 339).
Analisado o material probatório disponível, a conclusão a que, sem esforço, se chega é que, sendo o arguido levado a julgamento pelos factos descritos na acusação, e mantendo-se a prova existente, é bem mais provável a sua condenação do que a sua absolvição.
São, pois, suficientes os indícios da prática, pelo arguido, de um crime previsto e punível pelo artigo 86.º, n.º 1, al. d), com referência às alíneas af) e ag) do n.º 5 do artigo 2.º da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, e por isso não pode manter-se a decisão recorrida.

IIIDecisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que pronuncie o arguido B... pela prática dos factos narrados na acusação, com o enquadramento jurídico-penal nela indicado.
Sem tributação.
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 13/09/2017
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
___________
[1] Nos termos do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público deduz acusação quando tiverem sido recolhidos “indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente” e no art.º 308.º substituiu-se o termo “crime” por “pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, expressão que corresponde à definição de crime que, “para efeitos do disposto no presente Código”, se contém no art.º 1.º do Cód. Proc. Penal.
[2] Com as alterações que lhe foram, sucessivamente, introduzidas pelas Leis n.os 59/2007, de 04/09, 17/2009, de 06/05, 26/2010, de 30/08, 12/2011, de 27/04 e 50/2013, de 24 de Julho.
[3] Idêntica definição se contém no artigo 3.º, al. a), do Dec. Lei n.º 34/2010, de 15/4.
[4] Nos termos do art.º 283.º do Cód. Proc. Penal, o Ministério Público deduz acusação quando tiverem sido recolhidos “indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente” e no art.º 308.º substituiu-se o termo “crime” por “pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança”, expressão que corresponde à definição de crime que, “para efeitos do disposto no presente Código”, se contém no art.º 1.º do Cód. Proc. Penal.
[5] Cfr. Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no Processo Penal Português”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, organizadas pela FDL e pelo C.D. de Lisboa da Ordem dos Advogados, em 2004, págs. 155 e segs., estudo de que, neste ponto, vamos servir-nos.
[6] Parece ser esta a posição de Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, 183) quando afirma: “para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido da certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais da ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade de que foi cometido o crime pelo arguido”.
[7] Assim, Jorge Gaspar (“Titularidade da Investigação Criminal e Posição Jurídica do Arguido”, Revista do Ministério Público, n.º 88, 101 e segs.), Carlos Adérito Teixeira (“Indícios Suficientes”: Parâmetros de racionalidade e “instância de legitimação”, Revista do CEJ, n.º 1, 160) e Paulo Dá Mesquita “(“Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária”, 2003, 90 e segs.).
[9] Posição perfilhada por Jorge Noronha e Silveira, estudo citado, 171, pois considera que entre juízo de probabilidade (próprio da fase de instrução) e juízo de certeza (da fase de julgamento) não existe uma diferença essencial.
Na mesma linha, parece estar António Cluny que afirma: “A decisão de acusar deve basear-se já num juízo muito próximo do que preside à decisão do juiz: Por um lado, porque ela se constitui como um pré-juízo fundado na mesma teleologia; por outro, porque a metodologia que preside à investigação incorpora valores e alguns métodos em tudo semelhantes aos usados pelo juiz com vista à decisão” (Pensar o Ministério Público Hoje”, 1997, 49).
[10] E decisões que possam equiparar-se a sentenças, como as decisões sobre a concessão, ou não, de liberdade condicional.
[11] No entanto, na Lei n.º 5/2004, de 19 de Agosto, que contém o regime jurídico das perícias médico-legais e forenses, fala-se, com manifesta falta de rigor, em exames periciais.
[12] Aos órgãos de polícia criminal cabe, também, a importante função de preservação das provas, tomando as providências cautelares necessárias para impedir o seu extravio, nos termos previstos no art.º 249.º do Cód. Proc. Penal.
[13] Cavaleiro Ferreira, “Curso de Processo Penal”, 1.º Vol, 1986, p. 222
[14] Cabe assinalar que os artigos de pirotecnia que se integram na categoria 2 são engenhos de capacidade agressiva baixa, mas o perigo que geram para a integridade física das pessoas justifica a tutela penal.
[15] E sempre haveria detenção, suficiente para integrar o tipo objectivo do ilícito em causa.
[16] Fê-lo logo no despacho de fls. 42/43, em que negou a sua concordância à suspensão provisória do processo.