Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4393/13.1TBMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
SEGURO FACULTATIVO
COBERTURA DO SEGURO
Nº do Documento: RP201506234393/13.1TBMAI.P1
Data do Acordão: 06/23/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Nos contratos de seguro facultativo, por danos próprios, não existe, uma obrigação de indemnizar em sentido próprio, isto é, de reparar um dano reconstituindo a situação que existiria se o mesmo não tivesse ocorrido, mas uma obrigação de entregar uma prestação em dinheiro, que visa proporcionar ao credor o valor que as respetivas espécies possuam como tais, até ao limite do capital seguro.
II - Porque assim é, estamos perante uma obrigação pecuniária, e não diante de uma obrigação de indemnização, em que a mora deve ser ressarcida mediante o pagamento de juros à taxa legal a contar do dia da constituição em mora, salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal, e não mediante uma prestação diversa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Procº 4393/13.1TBMAI.P1

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório
1- B…, residente na Rua …, n.º …, em Vila do Conde, instaurou a presente ação declarativa, com processo sumário, contra a Companhia de Seguros C…, S.A., com sede na …, n.º ., em Lisboa, alegando, em breve resumo, que celebrou com esta sociedade um contrato de seguro nas modalidades de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pelos danos causados a terceiros, pelo capital de 3.250.000,00€, e de seguro facultativo por danos próprios, com as coberturas de choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo e atos maliciosos, respeitantes ao seu veículo automóvel, ligeiro de passageiros, de marca Mercedes, modelo …, com a matrícula ..-BH-.., até ao montante acordado de 14.600,00€, sem franquia para o caso de furto ou roubo.
Sucede que, na vigência desse contrato, ou seja, no dia 14/01/2013, pelas 00h30m, estacionou o referido veículo na Rua …, em …, Maia. Quando voltou ao local, para regressar a casa, porém, verificou que daquele seu veículo tinham sido furtadas diversas peças e tinham-lhe sido causados danos que enumera, os quais o impossibilitavam de circular.
Participou, por isso, esta ocorrência às entidades policiais e à Ré, mas esta última recusou-se a reparar o seu veículo já referenciado, bem como a fornecer-lhe uma viatura de substituição e a pagar-lhe o aparcamento na oficina onde aquele se encontra guardado.
Pretende, assim, que, nesta sede, a Ré seja condenada a pagar-lhe, 11.503,28€; a quantia que vier a ser liquidada em execução de sentença em resultado da paralisação do seu dito veículo desde a data de entrada da petição inicial em juízo até à data em que vier a liquidar o custo da sua reparação ou até à sua entrega devidamente reparado; bem como, a quantia que vier a ser liquidada referente a aparcamento do mesmo veículo desde a data do sinistro até à reparação, tudo acrescido de juros de mora desde a citação até integral pagamento.
2- Contestou a Ré, refutando esta pretensão, não só por ignorar as circunstâncias em que se deram os eventos danos descritos, mas ainda por estarem excluídos do contrato de seguro em causa os lucros cessantes ou perdas de benefícios ou resultados advindos ao segurado em virtude das privações de uso e quaisquer outros danos eventualmente sofridos pelo A.
3- Dispensada a audiência prévia, proferido o despacho saneador e fixados os temas de prova, seguiu o processo para audiência de julgamento, após a qual foi proferida sentença que julgou a presente ação parcialmente procedente, por provada, condenando a Ré a pagar ao A., a quantia de 8.683,28€, acrescida de juros de mora a contar da data da citação, à taxa de 4%, até integral pagamento, e absolvendo-a do mais peticionado.
4- Inconformado, reagiu o A., interpondo recurso para este Tribunal, rematando a sua motivação concluindo o seguinte, em súmula:
- Por força do não cumprimento voluntário das obrigações a que a Ré se encontra adstrita, dentro de um prazo razoável, viu-se o A. obrigado a permanecer sem viatura desde a data do sinistro (14/04/2013) até à altura em que o pode mandar reparar e pagar à oficina reparadora a reparação, ficando ainda obrigado perante a oficina reparadora a pagar o valor correspondente ao aparcamento da sua viatura desde que para lá a transportou até ao início da reparação.
- Ora, este prejuízo decorre, única e exclusivamente, da falta de cumprimento voluntário, por parte da Ré, das suas obrigações decorrentes do contrato celebrado e pelo qual recebeu o respetivo preço ou contrapartida.
- A permitir-se uma situação destas, é o mesmo que fornecer à parte mais forte no contrato, que é uma seguradora, um instrumento para se descartar das suas obrigações.
- Atenta a matéria de facto dada como provada nos autos, existe, por parte da Ré, a violação de deveres acessórios de conduta, do que resulta ter o A. o direito a reclamar daquela a indemnização peticionada a título de paralisação/privação de uso do seu veículo e, ainda o valor em débito à oficina reparadora a título de aparcamento, equivalente ao dano revelado no interesse contratual positivo, que encontra guarida no disposto nos arts. 562º, 566º, 762º nº2, 798º nº1 e 801º nº2, todos do CC.
- Tivesse a R. seguradora cumprido a sua obrigação contratual em prazo razoável, e teria o A. oportunidade de reparar de imediato o seu veículo sem que daí adviesse o manifesto e agravadíssimo prejuízo decorrente de falta de veículo e aparcamento da viatura.
- Tal não ocorreu por responsabilidade exclusiva da R. seguradora.
- Donde decorre a obrigação de ressarcir o A. pelos prejuízos que lhe causou, designadamente em razão da violação dos seus deveres contratuais e não contratuais ou, principais e acessórios.
- Ao recusar o pagamento a que se encontrava obrigada, a Ré violou o equilíbrio contratual e rompeu a colaboração inter-subjectiva que a lei pretende, ao consagrar os deveres acessórios de lealdade, por referência à boa- fé no cumprimento dos contratos.
- No caso dos autos, ocorre violação de deveres acessórios de conduta por parte da Ré e, apenas a si imputável, donde resulta o direito que assiste ao A. de reclamar os prejuízos decorrentes da falta de veículo durante o tempo em que esteve privado do seu veículo e, bem assim as despesas inerentes ao aparcamento da viatura na oficina pois que, dado o seu estado era inviável o seu aparcamento na via pública, valores esses equivalentes ao dano revelado no interesse contratual positivo, achando guarida no disposto nos artºs 562º, 566º, 762º nº2, 798º nº1 e 801º nº2 C.Civ.
- Deve assim ser alterada a sentença recorrida, condenando-se a R. no pagamento de indemnização a título de privação de uso, à razão de 30,00€ por dia ou outro valor que se entenda equitativo, desde a data do sinistro até à data em que o A. o pode reparar e, bem assim, no montante a liquidar em execução de sentença referente ao valor a pagar pelo A. à oficina reparadora a título de aparcamento da sua viatura, conforme peticionado.
- A sentença recorrida viola o disposto nos artigos 562º, 566º, 762º nº2, 798º nº1 e 801º nº2, entre outros.
Pede, assim, a procedência deste recurso e, por via disso, a alteração da sentença recorrida em conformidade com a tese exposta.
5- A Ré respondeu em apoio do julgado.
6- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
A- Definição do seu objecto
O objecto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (artigos 608º nº 2, “in fine”, 635º, nº 4 e 639º nº1 do Código de Processo Civil).
Assim, observando este critério no caso presente, o objeto deste recurso reconduz-se unicamente à questão de saber se o A. tem direito à indemnização que reclama pela privação de uso da sua viatura e pelo aparcamento a que esta foi sujeita.
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B- Fundamentação de facto
Vem estabelecida, sem impugnação neste recurso, a seguinte factualidade julgada provada:
1) No dia 14 de Abril de 2013, pelas 00h30, o Autor estacionou o seu veículo automóvel, de marca Mercedes Benz, modelo …, com a matrícula ..-BH-.., na Rua …, freguesia …, concelho da Maia.
2) Quando regressou ao local onde deixara estacionado o seu veículo, pelas 02:00h, vindo do D…, para regressar a casa, encontrou o seu veículo automóvel com o vidro lateral do lado do condutor partido, tendo-lhe sido retirados o espelho retrovisor do lado do condutor, o aileron traseiro, a grelha da frente, o airbag do volante, a consola central (AC, rádio e apoio de braço), a moca da caixa de velocidades e o pneu suplente,
3) O Autor formalizou, no posto da GNR, da Maia, a denúncia criminal contra desconhecidos pelo crime de furto, pelas 2h:42:11 do dia 14 de Abril de 2013.
4) No seguimento da participação do sinistro, a Ré remeteu ao Autor a carta datada de 24 de Junho de 2013, a comunicar que não assumia o pagamento da indemnização por não se ter feito prova pelo Autor de que o sinistro tenha ocorrido nos moldes participados e ainda que, os danos da viatura foram pela Ré avaliados em € 8.683,28.
5) Na sequência do referido em 2), e desde essa data, o veículo ficou impossibilitado de circular.
6) O Autor é proprietário do veículo automóvel referido em 1).
7) O veiculo automóvel referido em 1) era utilizado diariamente pelo Autor para se deslocar para o trabalho,
8) uma vez que, exerce a atividade de afinador de tintas para a industria automóvel e desempenha a sua atividade nas instalações dos vários clientes no Porto e Póvoa de Varzim, que lhe solicitam serviço,
9) O Autor utilizava ainda o veículo para ir almoçar a casa, tendo passado almoçar perto do trabalho.
10) O Autor passou a ter que usar boleias, ir a pé, pedir favores, andar de táxi com todos os incómodos e prejuízos daí advenientes.
11) Um veículo de substituição custava cerca de 70,00€ por dia, valor este incomportável para o rendimento do Autor.
12) O Autor procedeu à reparação do veículo automóvel referido em 1) em Dezembro de 2014.
13) A oficina reparadora exigiu ao Autor o pagamento de aparcamento do período em que o veículo ali permaneceu sem reparação.
14) Na data do sinistro, o Autor tinha transferido para a Ré, a responsabilidade civil emergente da circulação do aludido veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Mercedes Benz, modelo …, com a matrícula ..-BH-.., através do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil de danos causados a terceiros titulado pela Apólice n.º …/……../…, cujas condições contratuais gerais e especiais constam de fls. 69 a 81, cujo teor se dá aqui por reproduzido.
15) Na data do sinistro, e titulado pela mesma apólice com o nº .../……../…, estava em vigor o contrato de seguro facultativo de danos próprios do aludido veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca Mercedes Benz, modelo …, com a matrícula ..-BH-.., com a cobertura de choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo e atos maliciosas até ao montante acordado de 14.600,00€, sem franquia para o caso de furto ou roubo, cujas condições contratuais gerais e especiais constam de fls. 82 a 121, cujo teor se dá aqui por reproduzidos.
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C- Fundamentação jurídica
Neste recurso, está em causa, fundamentalmente, a questão de saber se o A. tem o direito a haver da Ré alguma quantia monetária para o compensar pela privação do uso da sua viatura de matrícula ..-BH-.., bem como do custo do aparcamento a que a mesma foi sujeita, em virtude dos danos por ela sofridos no evento já transcrito, ocorrido no dia 14/04/2013.
Na sentença recorrida, respondeu-se negativamente a esta questão com o argumento principal de que estando nós perante um contrato de seguro facultativo, por danos próprios, “não existe neste contrato uma obrigação de indemnizar em sentido próprio, isto é, de reparar um dano reconstituindo a situação que existiria se não tivesse ocorrido o dano (…), [mas sim] o dever de entregar ao tomador do seguro uma quantia correspondente ao valor do dano, até ao limite do capital seguro…”.
Logo, não sendo esse o caso dos autos, em relação aos citados danos, não tem o A. direito a ser por eles indemnizado.
O A., todavia, não se conforma com esta conclusão e defende, ao invés que, tendo a Ré violado os deveres acessórios de conduta que tinha para consigo, designadamente o dever de reparar, em prazo razoável, o seu veículo, e não o tendo feito, é ela responsável pela reparação daqueles danos.
Cremos, no entanto, salvo o devido respeito, que esta tese não é de subscrever.
Não restam quaisquer dúvidas de que o contrato de seguro celebrado entre o A. e a Ré não previa qualquer prestação monetária destinada a compensar os danos que ora estão em causa. O que previa, tão só, era a reparação dos danos emergentes “de choque, colisão ou capotamento, furto ou roubo e atos maliciosas até ao montante acordado de 14.600,00€, sem franquia para o caso de furto ou roubo”.
Aliás, em conformidade com o disposto nos n.º 2 e 3, do artigo 130.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, a cláusula 4ª das coberturas facultativas, expressamente previa que ficam excluídos os “[l]ucros cessantes ou perdas de benefícios ou resultados advindos ao segurado em virtude privações de uso, despesas de substituição ou depreciação do veículo seguro em razão do sinistro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais”.
De modo que não podem restar quaisquer dúvidas de que o A. não pode acionar a Ré em virtude do incumprimento deste tipo de prestações.
Não existe, na verdade, no contrato em apreço, uma obrigação de indemnizar em sentido próprio, isto é, de reparar um dano reconstituindo a situação que existiria se o mesmo não tivesse ocorrido (artigo 562º do Código Civil). O que existe é, tão só, uma obrigação de entrega de uma prestação em dinheiro, que “visa proporcionar ao credor o valor que as respetivas espécies possuam como tais”[1]. Ou seja, uma obrigação pecuniária (artigo 550º do Código Civil). O simples facto de estarmos perante um contrato de seguro em que, no ato da celebração, o valor dessa prestação ainda não se encontra concretamente determinado, não afeta aquela qualificação. Bem pelo contrário: faz parte da caracterização de tal prestação, pois que, nos termos do disposto no artigo 128º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro que já referenciámos, “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
É, pois, inequívoco que estamos perante uma obrigação pecuniária e não diante de uma obrigação de indemnização.
Ora, nos termos do artigo 806º nº1 do Código Civil, “[n]a obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora”; juros que são os legais “salvo se antes da mora for devido um juro mais elevado ou as partes houverem estipulado um juro moratório diferente do legal” (nº 2), o que não sucedeu na situação em apreço.
Só na responsabilidade civil por factos ilícitos (extracontratual) ou baseada no risco o credor pode exigir do devedor uma indemnização superior à fixada no regime primeiramente citado, alegando que a mora lhe causou no caso concreto prejuízo mais elevado (nº3)[2]. Mas, não sendo esse o caso, visto que estamos no domínio da responsabilidade contratual, a regra a aplicar é a que começámos por enunciar. De modo que, nunca o A. poderia ser indemnizada pela Ré em função do dano que lhe adveio com a privação do uso do seu veículo em causa ou mesmo do seu aparcamento.
É verdade que este entendimento não é pacífico na jurisprudência. Há quem defenda que deve ser atribuída uma indemnização pela privação do uso do veículo sinistrado mesmo nos casos em que não foi contratada a cobertura facultativa de privação desse uso, considerando tal indemnização devida por violação de um dever acessório de conduta quando a seguradora demorou mais do que o razoável para o apuramento da indemnização devida e para o seu pagamento[3].
Mas, como se sublinhou no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/10/2013[4], a referida interpretação “atribui uma indemnização para além do valor contratado e confere (…) um tratamento igual a duas situações desiguais: a dos segurados que convencionaram a cobertura adicional da privação do uso e os que não a contrataram, sendo que os primeiro até estão adstritos a limites contratuais diários”.
De modo que também nós não vemos razões jurídicas bastantes para, no caso em apreço, seguir tal entendimento. O que significa que a sentença recorrida é de manter, com o que improcede integralmente o presente recurso.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, mantém-se a sentença recorrida.
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Porque decaiu na totalidade, as custas serão pagas pelo Apelante – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
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Porto, 23/06/2015
João Diogo Rodrigues
Rui Moreira
Henrique Araújo
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[1] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol I, 7ª ed., pág. 844.
[2] Cfr. neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol II, 3ª ed. revista, pág. 69.
[3] Neste sentido se expressou o voto de vencido exarado no Ac RG de 10/10/2013, Procº 598/12.0TBVCT.G1 e Acórdão desta Relação de 25/01/2011, Procº 3322/07.6TJVNF.P1, consultável em www.dgsi.pt. no qual se sumariou o seguinte:
I - Os deveres acessórios de conduta, ainda que não resultando do contrato, resultam sem dúvida do princípio da boa fé, tal como plasmado no art° 762° nº 1 do Código Civil, representando uma transferência, para o campo contratual, do princípio neminem laedere ou partem non- laedere.
II - Actua em violação de um dever acessório de conduta a seguradora que, sabendo não ser contratualmente responsável pelos danos de privação de uso, demorou mais do que o razoável para o apuramento da indemnização devida e para o seu pagamento, violando o equilíbrio contratual e rompendo a colaboração inter-subjectiva, causando os referidos danos, bem como danos morais, na pessoa do beneficiário do seguro”.
[4] Procº 598/12.0TBVCT.G1, consultável em www.dgsi.pt.