Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1956/11.3T2OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CONTRATO DE LOCAÇÃO FINANCEIRA
INCUMPRIMENTO
CLÁUSULA PENAL COMPULSÓRIA
Nº do Documento: RP201497031956/11.3T2OVR-A.P1
Data do Acordão: 07/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Se em consequência da aplicação das várias cláusulas contratuais previstas para o incumprimento do locatário financeiro, o locador acabar por receber pelo incumprimento um valor muito superior ao que receberia se o contrato tivesse sido regularmente cumprido, deve ser-lhe recusado o direito de exigir ainda o pagamento de uma cláusula penal compulsória – por aplicação do art. 812 do Código Civil, sem passar pela aplicação das normas do art. 811 do CC ou do art. 19 da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Oposição à execução 1956/11.3T2OVR-A do juízo de execução de Ovar

Sumário:
Se em consequência da aplicação das várias cláusulas contratuais previstas para o incumprimento do locatário financeiro, o locador acabar por receber pelo incumprimento um valor muito superior ao que receberia se o contrato tivesse sido regularmente cumprido, deve ser-lhe recusado o direito de exigir ainda o pagamento de uma cláusula penal compulsória – por aplicação do art. 812 do Código Civil, sem passar pela aplicação das normas do art. 811 do CC ou do art. 19 da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

B…, Lda, deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa, em processo comum, que lhe foi movida por C…, SA, querendo que se declare a nulidade da livrança dada à execução, por força da nulidade das cláusulas do art. 10 “das condições gerais” do contrato de locação financeira nº ……, que violam o art. 19/c) do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85, de 25/10, e sucessivas alterações), ou, quando assim não se entender, que se considere extinta a dívida exequenda com a recuperação do bem locado pelo Banco e sua posterior venda a terceiro e que a livrança visava garantir.
Alega para o efeito que o título dado à execução é uma livrança subscrita em branco por si, na sequência de um contrato de locação financeira celebrado entre ela e um terceiro entretanto incorporado no Banco, contrato esse que não esclareceria as condições de preenchimento do título dado à execução, nem o acto de preenchimento foi junto com o título executivo; a executada só teve cópia do contrato quando o Banco propôs procedimento cautelar nos termos do art. 21 do DL 149/95 de 24/07, para a apreensão do veículo locado, o que veio a conseguir; o Banco escreveu à executada em 18/10/2010 comunicando-lhe que os valores vencidos e não pagos ascendiam a 6.040,14€, referente às rendas 32ª e seguintes e despesas de incumprimento e que procediam à resolução do contrato; de acordo com esta carta, a executada podia fazer precludir o direito à resolução do contrato “mediante o pagamento das rendas em atraso, acrescida de 50%, no prazo de 8 dias a contar da data da presente notificação.”; à data da resolução do contrato, a executada tinha pago 31 rendas, sendo a 1ª de 16.528,93€ + IVA e as restantes de 753,42€ + IVA, cada, e estava em mora em relação a 6 prestações, ou seja, menos de 10 % do capital em dívida. O Banco acabou por vender a viatura a terceiro pelo preço 23.600€ (a 03/02/2011) e, não satisfeito com isso e com os quase 50.000€ pagos pela executada, vem agora pedir à executada e avalistas não só os 6.040€, mas 9.734,33€, após o preenchimento abusivo da livrança, acrescido dos juros de mora; segundo a executada, o entendimento da melhor doutrina e jurisprudência é no sentido de que quando a locadora financeira resolve o contrato e recupera o bem locado, não pode exigir uma indemnização correspondente à totalidade das prestações não pagas, vencidas e vincendas, sem descontar o valor do bem recuperado; sempre segundo a executada, o contrato tem cláusulas nulas; a seguir a ter dito isto, transcreve as cláusulas dos arts. 4/9, 4/10, 10/1 e 10/2 do contrato, mas depois aponta a nulidade ao art. 10, sem especificação de ponto e alíneas, por violação do disposto no art. 19/c) do RCCG; acrescenta que no caso não só não houve qualquer prejuízo com a resolução do contrato como o Banco ficou beneficiado com a recuperação do veículo e sua venda; mais à frente diz que as cláusulas inseridas no art. 10/2, alíneas b) e c) das “condições gerais”, conjugadas entre si, são manifestamente desproporcionadas, pelo que são nulas, como decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 08/11/2011 (103/08.3TMDA-A.C1).
O exequente contestou, impugnando parte dos factos base da excepção e os efeitos que a executada pretende tirar dos mesmos: é falso, diz, que não tenha sido entregue, no momento da outorga do contrato de locação, cópia do mesmo; tanto foi entregue a cópia do contrato como a cópia da autorização para preenchimento da livrança, devidamente assinada pela executada e pelos avalistas, e todo o teor dos documentos explicado; a executada não pagou a renda que se venceu em 15/05/2010, nem as seguintes, pelo que em 03/11/2010 foi resolvido o contrato; resolvido o contrato, além da obrigação de restituir o bem locado ao locador – o que apenas se logrou por via do procedimento cautelar instaurado – sobre o locatário impendia a obrigação de pagar as rendas, comissões e outros encargos ou despesas de sua conta, vencidos e não pagos, acrescida de juros de mora, e pagar a título de indemnização uma importância igual a 20% da soma das rendas vincendas e do valor residual, acrescido de juros de mora, tudo conforme o n.º 2 da mesma cláusula 10.ª das condições gerais do contrato; assim, a livrança foi preenchida pelo valor que resulta do incumprimento e consequente resolução, a saber, o correspondente a 6 rendas vencidas (de 15/5/2010 a 15/10/2010) acrescida dos respectivos juros de mora, calculados até 20/12/2010, no valor de 5.386,49€, mais despesas no valor de 2.223,10€, e indemnização no valor de 2.124,74€, tudo num total de 9.734,33€, do que resulta que carece de sentido e fundamento o alvitrado “preenchimento abusivo”; resolvido o contrato e restituído o veículo à locadora – para o que foi necessário o recurso a procedimento judicial, pois que a executada o continuava a usar sem pagar as rendas devidas – é, obviamente, a sua proprietária, no exercício desse seu direito, livre de o vender; o critério subjacente à fixação do valor da indemnização devida em caso de resolução do contrato é ponderado, justo e equilibrado, e a referida cláusula contratual não é nula, nem – ainda que o fosse – poderia ter como consequência a nulidade da livrança. Em articulado posterior, na sequência de despacho judicial para o efeito, apresentou uma factura de venda do veículo, com data de 16/03/2011 e o valor de 19.187€ + IVA à taxa de 23%, no total de 23.600,01€.
Depois foi proferida sentença julgando improcedente a oposição, e, em consequência, determinando o prosseguimento da execução, com custas da oposição pela executada.
A executada interpôs recurso desta sentença - para que seja revogada e substituída por outra que julgue procedente a oposição - terminando as suas alegações com as seguintes conclusões úteis:
II – Em resultado da venda da viatura locada, por 23.600€ e tendo em conta as rendas, juros e comissões pagas pela locatária à locadora, [esta] em nada ficou prejudicada com o incumprimento do contrato.
III – Se o contrato de locação financeira nº ……, tivesse sido escrupulosamente cumprido pela locatária, o Banco teria recebido menos do que o que efectivamente veio a obter com a venda do veículo locado.
IV – A cláusula penal contratualmente fixada face à ausência de qualquer dano para a locadora, terá que ser substancialmente reduzida ou mesmo anulada.
V – O entendimento da melhor doutrina e jurisprudência vai no sentido de quando a locadora financeira resolve o contrato e recupera o bem locado, não pode exigir uma indemnização correspondente à totalidade das prestações não pagas vencidas e vincendas, sem descontar o valor do bem recuperado, sob pena da violação do disposto nos arts. 811/3 e 812 do Código Civil.
VI – No caso dos presentes autos, há uma desproporção integradora da previsão do art. 19/c) do DL 446/85 de 25/10, no que se refere às cláusulas do art. 10 das “condições gerais” do contrato de locação financeira nº 170587 e que as fere de nulidade e consequentemente inviabiliza o pedido formulado no requerimento executivo do Banco.
VII – Como consequência da nulidade das cláusulas supra mencionadas, deveria o Sr. juiz a quo aplicar as normas legais acima citadas e declarar nula a livrança dada à execução.
VIII – O Sr. juiz a quo, na fixação da cláusula penal, se entendesse admiti-la com validade, deveria ter tido em consideração todos os valores pagos pela executada, bem como o valor obtido com a venda da viatura por parte da locadora.
O Banco apresentou contra-alegações defendendo a improcedência do recurso; diz, no essencial, que não existe qualquer relação que seja entre o destino que ela, como proprietária do bem, lhe entendeu conferir (como podia: art. 7 do DL 149/95) e o valor que a executada deve porque não cumpriu o contrato; qualquer “exercício contabilístico” feito pela executada é absolutamente inerte; o valor que a cláusula fixa para a indemnização – 20% da soma do valor das rendas vincendas e do valor residual – está directamente indexado ao número de rendas pagas e de rendas por pagar; isto é, quanto mais pagar o locatário, menor é a indemnização; é ostensivo o equilíbrio e proporcionalidade da indemnização – rectius do critério fixado na cláusula que prevê a indemnização; aliás, são várias as decisões que asseveram a justiça de uma cláusula que prevê uma indemnização ao locador, em caso de incumprimento do contrato pelo locatário, de valor igual a 20% da soma do valor das rendas vincendas e do valor residual: assim, os acórdãos do STJ de 01/02/2001, proferido na revista 3137/00, e de 11/01/2001, proferido na revista 3622/00, e o ac. do TRP de 13/11/2000.
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Questões a decidir: se as cláusulas do art. 10 do contrato devem ser substancialmente reduzidas ou mesmo anuladas (ou ao abrigo do art. 19/c do DL 446/85, ou ao abrigo dos arts. 811/3 e 812 do CC); se o valor do bem recuperado deve ser descontado no valor da indemnização correspondente à totalidade das prestações não pagas vencidas e vincendas; ou se se devem ter em consideração – e com que fim - todos os valores pagos pela executada; e quais os reflexos das decisões tomadas sobre estas questões na livrança exequenda.
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Os factos dados como provados são os seguintes (os cinco primeiros vêm dos factos assentes e os dois últimos foram dados como provados com base em documentos não impugnados):
a) O Banco instaurou execução, em processo comum, reclamando o pagamento de 9.734,33€, acrescidos de juros de mora a contar de 06/01/2011, à taxa anual de 4% ao ano, até integral pagamento.
b) Funda a execução na livrança n.º ………………, emitida pela executada em 15/10/2007, e preenchida pela referida importância, com vencimento em 06/01/2011.
c) A livrança está conexa com o contrato de locação financeira n.º ……, celebrado entre as partes no dia 29/08/2007, conforme cópia do instrumento de contrato junto a fls. 13 e ss destes autos, cujos dizeres se dão por inteiramente reproduzidos, sendo o bem financiado o veículo com a matrícula ..-BF-...
Nas condições particulares desse contrato consta que o preço de aquisição do veículo foi de 49.556,18€ (não incluindo IVA no montante de 10.418,22€); que o prazo era de 48 meses, com o mesmo número de rendas; o valor residual era de 2% (= 991,24€); dizia que a garantia era uma livrança em branco subscrita pelo locatário e avalizada pelos sócios e cônjuges, com o respectivo pacto de preenchimento da livrança.
Desse contrato constam, entre outras, as seguintes cláusulas sob a rubrica: “condições gerais”
Art. 4 sob a epígrafe “Rendas e outras despesas”, no seu ponto 9 “Em caso de não pagamento pontual de quaisquer quantias devidas por força deste contrato, serão devidos juros de mora calculados à taxa legal de juros de mora para créditos comerciais, acrescida da sobretaxa moratória legal, sem prejuízo do direito que cabe ao locador de resolver o contrato.”
E no seu ponto 10, “sem prejuízo do disposto no número anterior, a falta de pagamento pontual de qualquer uma das rendas devidas no âmbito do presente contrato, importará para o cliente o pagamento de uma comissão de despesas de cobrança, a acrescer ao valor da renda seguinte.”
No art. 10, em caso de resolução do contrato, estatui no seu ponto 1: “O contrato poderá ser resolvido, por iniciativa do locador, em caso de não cumprimento pelo locatário das suas obrigações...”
E no ponto 2.: “Em caso de resolução, qualquer que seja o fundamento, o locatário fica obrigado a:
a) “Restituir o bem ao locador em condições idênticas às previstas no nº 3 do artigo anterior, sob pena de aplicação do estabelecido no nº 4 do mesmo artigo.”
b) “Pagar as rendas, comissões e outros encargos ou despesas de sua conta, vencidos e não pagos, acrescidas de juros de mora calculados nos termos previstos no nº 7 do artigo 4 destas condições gerais.”
c) “Pagar a título de indemnização por perdas e danos, uma importância igual a 20% da soma das rendas vincendas e do valor residual, acrescida de juros calculados como referido na alínea anterior.”
d) À data da resolução daquele contrato (18/10/2010), a exe-cutada tinha pago 31 prestações, sendo a 1.ª no valor de 16.528,93€ + IVA e as restantes no valor de 753,42€ cada + IVA.
e) A executada estava em mora em relação a 6 prestações.
f) Dão-se por inteiramente reproduzidos os dizeres do documento de preenchimento da livrança junto a fls. 32 destes autos.
g) O veículo foi vendido pelo Banco pelo preço de 19.187€ + IVA no valor de 4.413,01€ [conforme factura junta pelo Banco, com data de 16/03/2011 e que serviu para prova do facto consignado]
[na alínea c) dos factos provados, transcreveram-se, do documento que a sentença deu aí por reproduzido, algumas das cláusulas particulares, com base no próprio documento, legível na parte aproveitada, e algumas das cláusulas gerais com base nas transcrições da executada que não foram impugnadas pelo Banco; nesta última parte não se transcreveram directamente, porque o contrato junto aos autos está praticamente ilegível, quer no processo em papel quer no processo electrónico; este tribunal de recurso teve que solicitar ao tribunal recorrido o requerimento executivo e documentos anexos ao mesmo, mas tal não redundou em melhoria da situação, neste aspecto, visto que o Banco não tinha junto à execução, cópia do contrato…]
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Do recurso sobre a matéria de direito
Depois de ter deixado cair a questão da nulidade do contrato (implicitamente posta com a referência ao facto de não lhe ter sido entregue cópia do mesmo) e de ter deixado de fazer referências ao preenchimento abusivo da livrança, a executada centra a oposição na questão da nulidade de algumas cláusulas do contrato, sendo que tudo acaba por ter a ver, no essencial, com o eventual excesso da cláusula do art. 10/2c) do contrato.
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O valor excessivo da pena que está a ser exigida ao abrigo do art. 10/2c) do contrato
O contrato celebrado entre as partes iniciou-se em 29/08/2007 e terminaria a 29/08/2011. Por aquilo que foi dado como provado, era suposto que até ao fim do contrato o Banco recebesse 52.930,91€ [= 16.528,93€ + (47 x 753,42€) + 991,24€] e ficasse sem o veículo que tinha comprado por 49.556,18€ para o poder locar à executada. O lucro do Banco, em 4 anos, seria, pois, de 3.374,73€, para além da disponibilidade das quantias que lhe fossem sendo pagas.
Em 15/03/2011, mais de 5 meses antes da data prevista para o fim do contrato, o contrato já não existia e o Banco tinha tornado a ser proprietário, sem a oneração da locação, do veículo que tinha o valor de 19.187€ (valor que se sabe ser o valor real porque o Banco o vendeu por esse valor nesse período, com uma factura do dia seguinte), tendo recebido do executado 39.131,53€ [= 16.528,93€ + (31 x 753,42€)]. Ou seja, 5 meses antes do fim do contrato, já o Banco tinha em seu poder 58.318,53€, mais 5.387,62€ do que aquilo que iria receber se o contrato tivesse sido cumprido, ou seja, 5.387,62€ para além do lucro contratual previsto de 3.374,73€
Apesar disto, o Banco ainda quer receber mais 20% do valor das rendas vincendas e do valor residual “a título de indemnização por danos e perdas” (é o que consta da cláusula), para além de que lhe está a pedir ainda o pagamento das rendas vencidas e não pagas, dos juros moratórios sobre estas e das despesas de cobrança da dívida.
[nos factos provados nada se especifica quanto a estes valores… O Banco dizia que a cláusula dos 20% dava o valor 2.124,74€; se assim for e sabido que o valor residual do veículo era de 991,24€, que as rendas vincendas eram 11 e que a cláusula era de 20% do valor residual e das rendas vincendas, temos o seguinte: 20% de 991,24€ são 198,25€; logo o resto é de 9.632,45€, pelo que as 11 rendas vincendas eram de 875,67€ cada uma; este valor das rendas vincendas está próximo do valor que é indicado, no documento do Banco junto pela executada em relação às rendas vencidas, que eram 6, tendo as duas primeiras, a 32ª e a 33ª, o valor de 865,18€, e as outras quatro o valor de 872,39€; sendo isto assim, não está certo o valor de 753,42€ que se diz ser o de cada uma das 30 rendas pagas, porque esse valor foi subindo até atingir 865,18€ e depois 872,39 e, por fim, 875,67€; e também não está certo o valor que se diz, na sentença, estar em dívida pelas 6 prestações, que não é de 4.519,20€, mas sim 5.219,92€, nem o valor que se diz ter sido pago com as 30 prestações, que não foi de 22.602,60 (= 753,42€ x 30); mas tudo isto não tem relevo na maior parte da resolução das questões que se colocam, como se irá vendo]
Ora, aquilo que antecede demonstra que o Banco acabou por não ter quaisquer outros prejuízos com a situação; teve sim um lucro superior a 159% do previsto: estava à espera de receber 3.374,73 e recebeu 8.762,35€ [como já se viu, o Banco poderia estar à espera de receber mais, dada a mais que provável indexação do valor das rendas, e por isso o lucro seria superior; mas, como também já se referiu, neste caso também o Banco terá recebido muito mais, visto que as 30 prestações não teriam sido de 753,42€, mas de valores sucessivamente maiores, até atingirem os tais 875,67€, pelo que, tudo o que se diz ou irá dizendo, poderia ser dito à mesma, embora com as necessárias adaptações]
Em contrapartida, vistas as coisas do lado da executada, ela pagou 39.131€ de “rendas” [tendo em conta os factos dados como provados, esquecendo o § que antecede], sendo que as “rendas” em causa “não representa[m] a simples contrapartida da concessão do gozo da coisa. […] excede[m] claramente o valor que um mero locador cobraria pelo mero uso do bem. T[ê]m […] um conteúdo diverso. Nela se abarcam […] outros parâmetros, tais como o custo da coisa e a margem de lucro do locador” (Gravato Morais, Manual da locação financeira, 2ª edição, 2011, Almedina, pág. 106; Ferreira de Almeida, Contratos II, Almedina, 2011, 2ª edição, pág. 194 fala de um função de amortização). Ora, antes do fim do contrato, já a executada tinha perdido a parte das rendas que tinha a ver com o custo da coisa, ao mesmo tempo que tinha perdido a expectativa de vir a adquirir o veículo. Essa parte perdeu-a sem qualquer contrapartida. E agora o Banco ainda lhe pede o pagamento de 20% das rendas vincendas, a “título de indemnização de danos e perdas” (para além das rendas vencidas, dos juros moratórios e das despesas de cobrança).
Por tudo isto (ou seja, um lucro desmesurado para o Banco, um pesado prejuízo para a executada), obrigar que a executada pagasse ainda mais estes 20%, isto é, deixar que o Banco ainda recebesse mais estes 20%, seria permitir um lucro que iria para além de toda a razoabilidade. A exigibilidade do cumprimento da cláusula do art. 10/2c), no caso concreto, perante o que foi dado como provado, traduz-se numa pretensão manifestamente excessiva: a cláusula em causa, junto com as outras consequências previstas no contrato perante o incumprimento contratual [restituição do veículo, rendas vencidas, juros moratórios, despesas de cobrança…], iria aumentar o lucro perfeitamente anormal já obtido pelo Banco.
Assim sendo, justifica-se o uso da norma do art. 812 do CC, não permitindo, no caso, que o Banco obtenha qualquer valor a título da cláusula prevista em 10.2.c) do contrato.
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Doutrina no sentido do defendido
No sentido do que antecede, diz Rui Pinto Duarte (O Contrato de Locação Financeira – Uma Síntese, Direito e Justiça, Direito comercial e das sociedades, Estudos em memória do Prof. Dr. Paulo M. Sendin, 2012, pág. 107), relativamente a este tipo de cláusulas:
“Por vezes, surgem vozes no sentido de que tais cláusulas são manifestamente excessivas e, portanto, susceptíveis de redução, nos termos do art. 812 do Código Civil.
Não é, porém, viável fazer um tal juízo com carácter geral. Só perante cada situação de resolução é possível apurar se a cláusula é manifestamente excessiva. Dos direitos que a resolução gera para o locador pode resultar lucro ou prejuízo relativamente ao que se verificaria se o locatário cumprisse. Depende do valor do capital em divida à data da resolução e do valor pelo qual o locador aliene a terceiros o bem objecto da locação financeira (ou, se se preferir, do valor de mercado desse bem). Se este valor for maior do que aquele, todo o montante da cláusula penal é um «sobrelucro», que poderá ser considerado manifestamente excessivo. Se esse segundo valor for menor do que o primeiro, o montante da cláusula penal destinar-se-á primacialmente a compensar o prejuízo, podendo até nem ser suficiente para isso (sobretudo quando a resolução tenha lugar num momento em que o capital em divida seja elevado e o bem pouco valha no mercado de segunda mão).”
Januário Gomes, por sua vez, lembra que os contratos de locação financeira “estão por vezes municiados com um ‘arsenal’ de garantias adicionais e de cláusulas penais a favor do locador de tal desproporção e dimensão que, para além de poderem consubstanciar, objectivamente, situações de sobregarantia, justificam o recurso criterioso ao regime comum dos negócios usurários, da cláusula penal – maxime no que concerne à sua redução (art. 812 do CC) - e, necessariamente, a montante, do regime limitativo da LCCG” (Contratos comerciais, 2013, Almedina, pág. 360).
Paulo Mota Pinto (Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, 2008, págs. 1618-1619, nota 4634, parte inicial) refere que não põe “em causa o eventual carácter manifestamente excessivo dos montantes fixados, ou a falta de previsão do desconto resultante da recuperação do bem pelo credor, nos casos em questão” e (na nota 4635) “a possibilidade de os montantes fixados deverem ser reduzidos por serem manifestamente excessivos (art. 812/1), numa apreciação em que se terá igualmente de considerar a previsão, ou não, de um desconto nos danos sofridos pelo credor em razão da recuperação da contraprestação que realizara ou da liberação da sua obrigação de a realizar.”
Esta referência ao desconto, compreende-se melhor se se tiver em conta que alguns contratos de locação financeira prevêem que se o bem restituído for vendido ou relocado, o locatário terá direito a receber 80% da importância paga nos termos da cláusula em causa (é Gravato Morais, obra citada, pág. 249, que chama a atenção para esta previsão, com remessa para o ac. do TRL de 03/02/1994, publicado na CJ de 1994, tomo I, pág. 118, mas a previsão foi retirada deste acórdão e não deste autor).
A falta deste desconto torna ainda mais manifesta, pois, a excessividade da cláusula em causa.
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Crítica às razões da sentença
A sentença recorrida considera, no entanto, que “se o contrato fosse cumprido até final (48 prestações), [o Banco] continuaria a receber as rendas e isso possibilitar-lhe-ia o retorno do capital investido (49.586,78€) e as contrapartidas financeiras de lucro inerentes ao contrato celebrado.” E que, “com o contrato resolvido, por causa não imputável ao locador, essas contrapartidas esperadas não podem ser alcançadas.” Bem como que “a realização de um valor (19.187€ sem IVA) com a venda do veículo não pode ser considerado como um sucedâneo dessas contrapartidas, porque o bem não foi novamente colocado no mercado por valores idênticos aos que constam do contrato resolvido. Nesta hipótese, o retorno já seria igual, pelo que a pena seria então manifestamente excessiva por inexistência de prejuízos.”
Ou seja, só se o automóvel tivesse sido agora vendido pelo Banco pelo valor de 49.589,78€ e não apenas por 19.1787€ é que, para a sentença recorrida, a pena seria manifestamente excessiva por inexistência de prejuízos.
Pelo que já se disse não se concorda com esta construção: prejuízos efectivos acabou por não haver, como já se demonstrou, pelo que eles não deixariam de existir apenas se a venda tivesse sido efectuada por 49.589,78€; e o facto de a venda não ter sido efectuada por este valor não impede que um lucro a mais de 159% (para além do previsto) já possa ser considerado excessivo.
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Cláusula de fixação antecipada da prestação e cláusula penal em sentido estrito
A cláusula em causa foi considerada na sentença – e pelas partes - como uma cláusula penal no sentido do art. 810/1 do CC, ou seja, uma cláusula de fixação antecipada da indemnização.
Mas não é esta a melhor interpretação de tal cláusula, como logo o revela um dos argumentos do Banco: quanto mais o locatário pagar menor é a “indemnização”. Assim é, de facto. Pelo que, no início do contrato, se o locatário quiser deixar de cumprir o contrato, tem perante ele a ameaça de pagar um valor elevado e provavelmente muito superior aos prejuízos (se o veículo vier a ser restituído logo no início, é muito provável que o valor dele esteja ainda perto do valor pelo qual foi comprado pelo locador). Assim, por norma, a cláusula funcionará como uma ameaça, compelindo o locatário a cumprir o contrato. Pelo que se está assim perante uma cláusula penal em sentido estrito e não perante uma cláusula de fixação antecipada da indemnização.
Como diz Pinto Monteiro (Cláusula penal e indemnização, Almedina, 1990, págs. 608/619), ao referir-se à cláusula penal em sentido estrito: “ao ser celebrado o acordo, a fim de pressionar o devedor a cumprir, o credor estipula uma sanção, que o primeiro aceita, nos termos da qual fica legitimado a exigir uma prestação mais gravosa, em alternativa à prestação inicial, uma vez não satisfeita esta. Trata-se, portanto, de uma ameaça exercida através de uma forma de satisfação alternativa do interesse do credor, sem que a mesma passe pela via indemnizatória, uma vez que ela é prosseguida por uma outra prestação […] ao lado da inicialmente devida. […C]onfigura uma obrigação com faculdade alternativa do credor.”
Neste mesmo sentido, Gravato Morais, em relação a cláusulas do tipo da que está em causa nos autos, pois que considera que as estipulações em causa não têm por função liquidar a indemnização, pois que excedem os danos previsíveis (obra citada, págs. 249 e 257)
Para este tipo de cláusulas, neste tipo de contratos, relativamente a este tipo de bens, esta normal superioridade do montante estipulado em relação aos danos previsíveis não é, pois, apenas um indício de que se trata de uma cláusula penal em sentido estrito - Nuno Manuel Pinto Oliveira (Princípios de direito dos contratos, Coimbra editora, 2011, nota 1261, pág. 923) diz que “a não correspondência entre a pena e os prejuízos previsíveis constitui apenas um indício de que os contraentes decidiram atribuir-lhe uma função compulsória (ou compulsivo sancionatória)” – mas um elemento inequívoco nesse sentido.
A distinção tem relevo designadamente a nível da apreciação da excessividade da cláusula contratual, ou seja, da aplicação do art. 812 do CC (como ensina, com desenvolvimento, António Pinto Monteiro, no seu estudo Sobre o controlo da cláusula penal, comemorações dos 35 anos do CC e dos 25 anos da reforma de 1977, vol. III, Coimbra Editora, 2006, especialmente págs. 204/206).
É que sendo a cláusula uma cláusula penal em sentido estrito, tendo ela como função a compulsão ao cumprimento do contrato, pressionando o devedor a cumprir com o receio de vir a ter de pagar mais do que aquilo que pagaria se cumprisse pontualmente o contrato, e não a de fixação do montante da indemnização, a excessividade do seu montante não pode ser apreciada do mesmo modo, já que se terá de entrar em conta com este fim compulsório. Como diz Pinto Monteiro, “o tribunal não pode deixar de ter em conta a finalidade prosseguida com a estipulação da cláusula penal, para averiguar, a essa luz, se existe uma adequação entre o montante da pena e o escopo visado pelos contraentes.” E mais à frente: “tal não significa, porém, de imediato e por si só, que a pena não seja, ainda assim, redutível, uma vez que factores supervenientes, igualmente atendíveis em sede de redução judicial, podem tê-la tornado manifestamente excessiva.” (Sobre o controlo da cláusula penal…págs. 205/206)
Ou seja, o art. 812 do CC aplica-se à mesma, mas com o alcance distinto (no sentido do alcance geral do art. 812 do CC, veja-se, para além de Pinto Monteiro, Brandão Proença, Lições de Incumprimento e não cumprimento das obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 399; também Gravato Morais, obra citada, pág. 261, embora considere, como neste acórdão, que a cláusula é uma cláusula penal em sentido estrito, defende a possibilidade da aplicação do art. 812).
Mas mesmo assim não se pode aceitar que o Banco, para além do lucro normal do contrato, e do lucro de mais 159%, ainda recebesse mais os 20% da cláusula do art. 10/2c) do contrato celebrado.
Ou seja, nesta hipótese de cláusula penal em sentido estrito, com-pulsória em vez de indemnizatória, compreender-se-ia, talvez, que o Banco viesse a receber, no final do contrato, um lucro superior a 50% do esperado, a título de cláusula penal, o que daria 5.062,09€ (= 3.374,73€ + 1.687,36€), mas já não que recebesse ainda mais 109% e mais os 20% da cláusula.
(Considerando uma cláusula do mesmo tipo da dos autos uma cláusula de fixação antecipada da indemnização, em vez de uma cláusula penal em sentido estrito, veja-se o ac. do TRP de 09/09/2013, 5619/08.9TBMTS-A.P1, que, por isso, não admite, no caso, a exigibilidade da cláusula, “porque não havendo prejuízo não pode haver indemnização.” O resultado prático, no caso, acaba por ser o mesmo)
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Do desconto do preço da venda posterior a terceiro
O Banco diz que o negócio com fez com terceiro, depois da resolução do contrato, nada tem a ver com a executada. Ele era dono do bem, o contrato foi resolvido, ele podia fazer o que quisesse com o bem. A sentença recorrida também seguiu esta argumentação do Banco.
Mas esta argumentação apenas teria relevo se se tivesse seguido uma das vias defendidas pela executada, qual seja, a do desconto do preço do bem na quantia exequenda.
Só que não se está a seguir esta via. O valor da venda efectuada pelo Banco depois da resolução está apenas a servir de prova do valor do bem nessa data. É uma forma de revelar o valor do bem no património do Banco à data da resolução. Não se está a descontar o preço da venda, está-se sim a somar o valor de mercado do bem ao valor do que a executada pagou ao longo da execução do contrato, para se ver aquilo que o Banco obteve perante a situação e se é razoável que ainda obtenha mais alguma coisa a título de uma pena compulsória.
De qualquer modo, pelo que já se viu, não é aceitável, a desconsideração total deste negócio proposta pelo Banco. Daí as referências que foram sendo feitas ao desconto.
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Não aplicação do art. 811/1 do CC
Com o que antecede, não se aplicou uma das normas invocadas pela executada, isto é, não se fez uso do disposto no art. 811/1 do CC.
É que esta norma não é chamada para o caso: o Banco não está a exigir, cumulativamente, o cumprimento da obrigação principal e o pagamento da cláusula penal. O que o Banco fez foi, sim, resolver o contrato.
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Não aplicação do art. 811/3 do CC
E muito menos se está a aplicar outra das normas invocadas pela executada, isto é, a do art. 811/3 do CC.
É que esta norma não tem aplicação à situação: ela liga-se ao nº. 2 do art. 811 do CC, ou seja, prevê para o caso de uma cláusula penal com convenção sobre o dano excedente. Ora, a cláusula contratual em causa, para além de não ser uma cláusula de fixação antecipada da indemnização, não prevê a indemnização do dano excedente.
No sentido de que o art. 811/3 está ligado necessariamente ao art. 811/2, bem como ao nº. 1 do art. 810, todos do CC, não tendo um âmbito geral, veja-se António Pinto Monteiro, em a Pena e o dano, Estudos em homenagem a Miguel Galvão Teles, vol. II, Almedina, Out2012, págs. 664/666 e, entre muitos outros, por último, no seu comentário ao ac. do STJ de 24/04/2002, na RLJ 142, nº. 3976, Set-Out de 2012, págs. 60 e segs (art. 811/3 do CC: ‘requiem’ pela cláusula penal indemnizatória), e Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, Coimbra editora, 2011, págs. 931/933.
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Não aplicação do art. 19/1c) da LCCG
E também não se está a seguir outra das vias defendidas pela executada, qual seja a da nulidade da cláusula por desproporção, com aplicação do art. 19/c) do regime das CCG.
Pois que esta norma estabelece o regime de cláusulas que são proibidas por, consoante o quadro negocial padronizado, consagrarem cláusulas penais desproporcionadas aos danos previsíveis, isto é, em abstracto, e não em relação aos prejuízos concretos.
Ora, em abstracto não se pode dizer que a cláusula em causa fosse desproporcional aos prejuízos previsíveis: quanto mais tempo o veículo ficasse em poder da executada, menos valeria no momento em que fosse entregue ao Banco e maior seria o valor que a executada teria de pagar pelo período de disponibilidade do bem (a título de rendas vencidas ou a título de indemnização pelo aproveitamento ilícito do bem).
No sentido de que esta desproporção tem que ser vista face aos prejuízos previsíveis no momento da celebração do contrato e não face aos prejuízos concretos depois do incumprimento, veja-se, com desenvolvimento, Nuno Manuel Pinto Oliveira, Cláusulas acessórias ao contrato, Almedina, 2005, págs. 117 a 128, para além de Pinto Monteiro, nos vários estudos já citados; contra, veja-se o ac. do TRC citado pela executada.
E no sentido que estas cláusulas não são desproporcionais, em abstracto, vejam-se todos os autores já citados e, para além deles, Raquel Tavares dos Reis, O contrato de locação financeira no direito português: elementos essenciais, Gestão e Desenvolvimento, 11 (2002) 113-165, especialmente págs. 142/143, consultado numa versão digital on-line., e de Nuno Manuel Basto Silva Ferreira, A Locação Financeira Restitutiva Universidade do Minho, Escola de Direito, Abril de 2012, consultado em https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/20817/1/Nuno%20Manuel%20Basto%20Silva%20Ferreira.pdf
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Apesar do que antecede, tem que se reconhecer que o valor destas cláusulas está sempre no limite da desproporção. Por um lado, já se viu acima que elas são cláusulas penais em sentido estrito, precisamente porque o seu montante é fixado acima do valor dos prejuízos previsíveis. Também já se viu que, ao não preverem o desconto da recuperação do bem, agravam a diferença de valores. Por último, o caso dos autos revela que, normalmente, o bem objecto do contrato não tem a enorme desvalorização que, em regra se diz ter – veja-se, por exemplo, a argumentação da locadora no caso do ac. do TRL de 15/01/2009 (9574/2008-8) citado já de seguida): “no contrato de leasing de veículos, exige-se a aplicação de um capital considerável e a empresa locadora assume elevados riscos com a disponibilização imediata do bem, cuja utilização implica a sua rápida degradação ou obsolescência -, e, portanto, a restituição do bem vai, normalmente, permitir a nova celebração de contratos que vão dar novos lucros aos locadores.
Por tudo isto, compreende-se muito bem que o acórdão do TRL de 15/01/2009 (9574/2008-8) tenha considerado que uma cláusula do tipo da dos autos, mas com o valor de 25%, é desproporcionada aos prejuízos previsíveis - “é desproporcionada a cláusula que prevê que, em caso de resolução do contrato devida a incumprimento do locatário, deverá este pagar ao locador, e além do mais, uma indemnização de valor equivalente a 25% das rendas vincendas. - e compreende-se também facilmente a bondade do recurso do MP contra a decisão da 1ª instância que tinha determinado a redução da percentagem para 20%. Apesar de, por ora, se aceitar a validade de tais cláusulas, desde que limitadas a esta última percentagem.
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Quanto às outras cláusulas do contrato
Mas tudo o que antecede só vale em relação ao valor da quantia exequenda que tem correspondência com a cláusula do art. 10/2c).
Já não em relação às outras cláusulas referidas genericamente pela executada, ou mesmo, mais especificamente, em relação às outras cláusulas do art. 10 do contrato (mesmo o acórdão do TRC por ela invocado, só se refere à cláusula penal, não em relação às outras cláusulas do contrato).
A executada sabia que o Banco está a exigir, na execução, não só a cláusula do art. 10/2c) do contrato, mas também as rendas vencidas à data da resolução, os juros moratórios e as despesas de cobrança.
Ora, embora a executada ataque genericamente todas as cláusulas do art. 10, e mesmo as do art. 4 do contrato, os argumentos que utiliza, principalmente do ac. do TRC já referido, só dizem respeito à cláusula do art. 10/2c) e não às outras.
Nem podia ser de outro modo.
Com efeito, em 18/10/2010 a executada estava em dívida em 6 prestações de rendas, num total de, pelo menos, 4520,52€ {embora, mais provavelmente, como já se viu, 5.222,08€ [= (2 x 865,18€) + (4 x 872,93€)]}. Ou seja, a executada tinha estado a utilizar o veículo e tinha deixado de pagar a contraprestação por essa utilização. Este valor correspondia a uma dívida já vencida. E a resolução do contrato não tem eficácia em relação a ela, por força da aplicação analógica da primeira parte do nº. 2 do art. 434 do CC (como é defendido por exemplo, por Gravato Morais, obra citada, págs. 250/251), aliás reforçada pela cláusula 10/2b) do contrato [neste sentido, veja-se também o sumário do ac. do TRC de 20/05/2014, 1246/11.1TBVIS-A.C1: e) Dado que a revogação do contrato de locação financeira não tem eficácia retroactiva, o locatário não fica desvinculado da obrigação de pagamento das rendas vencidas, e dos respectivos juros, até ao momento em que a revogação do contrato opere.]
Portanto, o Banco tem direito a este valor (das rendas vencidas e não pagas). Tal como tem direito aos respectivos juros de mora que se venceram até à data do requerimento executivo (e aos vincendos).
E ainda havia a comissão para despesas de cobrança, que também nada tem a ver com a cláusula penal e que a executada não pôs em causa em concreto dizendo que a elas não havia lugar ou que estavam mal calculadas. Aliás, é notório que a situação de incumprimento do contrato, por banda da executada, originou trabalho, logo mais despesas, para o Banco no sentido de cobrar os valores em dívida. Nada justifica que se impeça o Banco de cobrar o valor corresponde enquanto uma das parcelas da quantia exequenda.
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O valor da cláusula do art. 10/2c)
Apesar de todas as considerações que se foram fazendo relativamente aos valores dados como provados, a verdade é que nenhuma das partes impugnou a decisão relativa à matéria de facto. Assim, o que importa, é que o valor das rendas vincendas só pode ser o de 8.287,62€ (= 11 x 753,42€). E o valor residual era de 991,24€. Ora, 20% da soma destes valores (8.287,62€ + 991,24€ = 9.278,86€) é 1.855,77€.
Portanto, é só em relação a este valor que se recusa ao Banco a possibilidade de o exigir da executada (e, por reflexo, aos co-executados avalistas), por aplicação do art. 812 do CC.
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Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a oposição, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por esta que reduz a quantia exequenda em 1.855,77€ e determinando que a execução prossiga pelo valor restante.
Custas do recurso e da oposição pela executada e pelo exequente na proporção do decaimento.

Porto, 03/07/2014
Pedro Martins
Judite Pires
Teresa Santos