Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2332/20.2T8PNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INCIDENTES DA INSTÂNCIA
INTERVENÇÃO DE TERCEIROS
CONTRATO PROMESSA
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PROPRIEDADE
TRANSFERÊNCIA
FRACÇÃO AUTÓNOMA
DESPESAS DE CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RP202109062332/20.2T8PNF.P1
Data do Acordão: 09/06/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Na sentença, o julgador apenas tem de tomar conhecimento das questões colocadas pelas partes nos articulados próprios e nas respostas a estes – onde se definem pedido, causa de pedir e exceções - e não em todos os demais requerimentos que as partes apresentem nos autos, de modo que não é toda e qualquer omissão de pronúncia que dá origem à nulidade da sentença prevista no art. 615.º, n.º1 al. d) CPC, mas apenas a que respeita ao pedido, causa de pedir (do lado do A.) e exceções (alegadas pelo R.).
II – Os incidentes de intervenção de terceiros pressupõem uma causa que já está pendente entre determinadas partes iniciais, sendo de fazer intervir quem não foi inicialmente demandante e demandado (art. 311.º CPC), o que obsta à formulação de pedido de intervenção de terceiros logo na petição inicial.
III – Na sequência de contrato de promessa incumprido, decretada a execução específica do mesmo, a sentença produz os efeitos da declaração negocial do faltoso, sendo com o trânsito desta que se opera a transferência da propriedade sobre o imóvel prometido.
IV - No caso de prestações destinadas a custear as despesas do edifício constituído em propriedade horizontal, em caso de alienação de fração, as mesmas representam uma contrapartida de um uso ou fruição (das partes comuns do edifício), devendo ser pagas pelo alienante ou pelo adquirente que delas usufrua efetivamente, independentemente da data da sua aprovação em assembleia de condóminos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2332/20.2T8PNF.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
AUTORA: B..., residente na Rua …, n.º …, esq. fr, …, Vila Nova de Gaia.
Réus: C…, Ldª, com sede na Rua do …, n.º …, Freamunde e D..., residente na Rua …, n.º …, …, Penafiel.

Por via da presente ação declarativa de simples apreciação e de condenação, pretende a A. sejam os RR. condenados a reconhecer que na data da constituição da dívida de condomínio, a fracção “J” não era sua propriedade, tendo-lhe o imóvel sido transmitido a partir de 6 de Agosto, após o pagamento dos impostos devidos pela sua aquisição; a reconhecer que o pagamento de tal dívida não é da responsabilidade da A.; a abster-se quanto à mesma de continuar a enviar comunicações ou avisos para pagamento; a indemnizar a A. em € 8.000,00, relativamente ao prejuízo não patrimonial que sofreu por via de alegadas condutas ilícitas, bem como a indemnizá-la do prejuízo patrimonial que vier a ser apurado em liquidação de sentença.
Para tanto alegou ter adquirido uma fração em propriedade horizontal, insistindo a administração do condomínio para que pague despesas com obras do condomínio aprovadas em momento anterior à respetiva aquisição do imóvel.
Formulou o pedido de intervenção principal, na qualidade de demandados, dos anteriores proprietários da fração.

Contestaram os RR., afirmando que a designação inicial do demandado, assim identificado na p.i (E…) não corresponde a pessoa coletiva, mas a marca utilizada pela sociedade administradora do condomínio. Pretendem a absolvição do segundo R., legal representante da sociedade Ré, por ilegitimidade. Deduzem incidente de valor e afirmam que as quotas de condomínio foram aprovadas em assembleia que decorreu depois da aquisição do imóvel pela A. e se refere a obras que ainda não foram realizadas e de a A. beneficiará, sendo a mesma responsável pelo respetivo pagamento. Pretendem a condenação da A. como litigante de má-fé.

A A. apresentou réplica opondo-se à procedência do incidente de valor; solicitou a substituição de E… por C…, Ld.ª. Requereu a condenação dos RR. como litigantes de má-fé. Afirma nunca ter sido convocada para qualquer assembleia de condóminos.

Foi proferido despacho indicando às partes a intenção de decisão final em saneador-sentença, tendo-se as mesmas pronunciado por escrito a este respeito.
A 11.3.2021, foi proferido saneador-sentença, absolvendo os RR. do pedido e julgando prejudicado o incidente de intervenção provocada.
Foram os seguintes os factos aí dados como provados:
1º - Por sentença proferida, no dia 27/02/2018, no processo n.º 904/15.6T8FLG (na qual eram autores F… e G… e ré B…), transitada em julgado em 14/06/2019, foi decidido, entre outras coisas, o seguinte:
a) julgar procedente a acção e improcedente a reconvenção;
b) “declarar, em substituição da ré e em execução específica do contrato promessa de compra e venda celebrado entre as partes em 4/07/2013, vendido, livre de ónus e encargos, à ré B…. a fracção autónoma designada pela letra “J”, habitação do tipo T-dois, no segundo andar, voltada ao gaveto da Rua… e Avenida …, com um terraço e lugar de garagem na subcave com o nº …, integrada num prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, freguesia de … (…), concelho de Felgueiras, descrito no Registo Predial sob o número novecentos e trinta e oito/19970626, inscrito sob o artigo …., condenando-se a ré neste sentido, tudo sem prejuízo da obrigação da mesma de pagar o remanescente do preço acordado”.
2º - Em Assembleia de condóminos do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, freguesia de … (…), realizada a 25 de Junho de 2019, exarada em documento intitulado “Ata número 02/2019”, foi deliberado e aprovado o que consta do documento 8 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais, designadamente:
“(…) Ponto Um da Ordem dos Trabalhos – Obras urgentes a realizar no edifício, foram apresentados orçamentos de empresas da especialidade para intervenções na cobertura.
(…)
Depois de uma breve explicação do conteúdo de cada orçamento, os condóminos deliberaram por unanimidade em realizar a obra na cobertura e na clarabóia. Posteriormente os orçamentos foram colocados à votação, tendo sido obtidos os seguintes votos das fracções: (…).
Desta maneira, foi aprovado por maioria em fraccionar o pagamento em doze quotas mensais, divididas pela permilagem de cada fracção, vencendo-se a primeira no mês de Agosto de 2019 e as restantes nos meses consecutivos seguintes.
(…)”
3º - A aquisição por via da execução específica decretada no processo identificado em 1º foi registada, na respectiva Conservatória do Registo Predial, a favor da autora em 7/08/2019.

Desta sentença recorre a A., invocando a sua nulidade e visando a respetiva revogação, com base nos argumentos expostos nas conclusões que transcrevemos:
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A sociedade Ré contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, culminando as suas contra-alegações de recurso com as seguintes conclusões:
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Também o segundo R. se opõe à procedência do recurso, concluindo deste jeito:
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Os autos correram vistos legais.

Questões a decidir, tendo em conta as conclusões recursivas que são as que balizam o objeto do recurso (arts. 635.º, nºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil):
Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Da responsabilidade da A. pelo pagamento das despesas de condomínio aprovadas em assembleia de 25.6.2019 para obras urgentes no edifício.

FUNDAMENTAÇÃO
Fundamentos de facto
Os factos que interessam à decisão da causa são os acima descritos e que ficaram consignados na decisão recorrida.

Fundamentos de Direito
A nulidade da sentença por omissão de pronúncia acha-se prevista no 615.º, n.º 1 d ) CPC e respeita às questões que o juiz devesse apreciar. Constitui o contraponto do disposto no art. 608.º, n.º 2 que impõe que a sentença resolva as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação.
As questões que as partes submetem à apreciação são aquelas que constituem o pedido e a causa de pedir, isto é, o objeto da ação.
O objeto desta ação centra-se na alegada ausência da qualidade de proprietária da A. sobre uma fração de um imóvel constituído em propriedade horizontal em ordem à não sujeição da mesma à obrigação de pagamento das dívidas de condomínio alegadamente constituídas antes da aquisição dessa qualidade.
É isso que se alega da petição inicial.
Nesse articulado introdutório da lide, convencida de que havia proposto a ação contra a parte judiciária correta – a sociedade administradora de condomínios – a A. não invocou qualquer questão relativamente a suposta ausência de capacidade judiciária de E.., designação que efetivamente usou para apodar a Ré.
Com a contestação, a verdadeira sociedade administradora do condomínio – C…, Unipessoal, Ld.ª – refere ser aquela denominação (E…) apenas uma marca, invocando a ausência de personalidade judiciária da inicialmente demandada.
No articulado seguinte – de resposta àquela exceção – a A. veio dizer o seguinte, no art. 11.º: Por consequência, no sistema informático deve ser completada e corrigida a identificação da Ré, quem, nesta conformidade, se designa C… & … – UNIPESSOAL LDA detentora daquela marca E… –Gestão e Administração de Condomínios, conforme os documentos juntos pela Ré à sua contestação.
Neste articulado de resposta à exceção nada se diz quanto a suposta incapacidade judiciária da E… para cobrança das quotas em causa, sendo os articulados a sede própria para alegar factos e opor exceções e não uma qualquer outro requerimento.
Na sentença, o julgador apenas tem de tomar conhecimento das questões colocadas pelas partes nos articulados próprios e nas respostas a estes – onde se definem pedido, causa de pedir e exceções - e não em todos os demais requerimentos que as partes apresentem nos autos.
Daí que a sentença destes autos não tivesse que conhecer de uma suposta incapacidade judiciária para a prática de actos, como sejam os de cobrança de dívidas ao condomínio, pela E….
Não se verifica, assim, qualquer nulidade.
Por outra parte, e quanto a este tema da incapacidade de E… para cobrança de dívidas, diga-se desde já tratar-se de uma falsa questão.
Não é de um problema de (in) capacidade jurídica que se trata.
A capacidade jurídica de gozo pressupõe que o ente dispõe, previamente, de personalidade jurídica.
“De acordo com a doutrina tradicional, a capacidade jurídica distingue-se da personalidade jurídica pela sua dimensão quantitativa. Enquanto a personalidade jurídica seria uma qualidade reconhecida pelo Direito às pessoas singulares (e atribuída a certas entidades); a capacidade jurídica exprimiria a medida de direitos e de obrigações de que uma pessoa é suscetível”[1].
Ora, a E… não é sequer uma pessoa coletiva, pelo que, antes de capacidade jurídica, falta-lhe personalidade jurídica.
É, assim, errado aludir-se ao disposto no art. 67.º CC (normativo que alude a capacidade jurídica), sendo, por isso, também despropositado dizer-se que esta norma sofreu qualquer interpretação pretendida de inconstitucional (?), pois o que está em causa é, verdadeiramente, a ausência de personalidade jurídica.
Todavia, mesmo assim, é absolutamente inócuo o que alega a A. a este respeito.
Veja-se que o problema que a A. pretende ver resolvido é o de saber se a mesma deve ou não ao condomínio as despesas aprovadas em assembleia de condóminos realizada ao abrigo do disposto no art. 1431.º CC.
A entidade responsável pela definição de quem deve o quê ao condomínio é a assembleia e não a administração do condomínio.
A assembleia deliberou no sentido de que os condóminos devem determinada quantia para obras urgentes.
De modo que a dívida existe (sem prejuízo do que adiante se dirá quanto à obrigação que exista ou não a carga da A. de a pagar).
Coisa distinta – e que não afeta a existência da dívida – é se na carta de cobrança, a administração do condomínio se identificou correctamente ou não.
A cobrança de dívidas não é um negócio jurídico para o qual a lei exija personalidade ou capacidade jurídica, sendo certo que estas dívidas em concreto são cobradas pela administração do condomínio (art. 1436.º al. e) CC) e não por outras entidades.
Mas, mesmo que o fosse e a cobrança destes autos se considerasse nula, nem por isso estava resolvido o pretendido pela A.: a sua não responsabilização pelas despesas aprovadas na assembleia de 25.6.2019.
Bastaria à administração do condomínio – agora identificando-se correctamente – remeter nova carta de cobrança à A. e o problema decidendo continuaria a existir.
Vê-se, pois, o quanto é despicienda a errónea a invocada ausência de capacidade jurídica da E….
É também errada a pretensão de que C… Unipessoal, Ld.ª, seja considerada assistente nos autos. Como é, igualmente, a pretendida participação processual dos primitivos vendedores da fração como intervenientes principais, do lado passivo.
Ambas as pretensões constituem absolutos non sense processuais, reveladores de uma não assimilação do que são os incidentes de alteração subjetiva da instância.
Quanto à Ré C…. Unipessoal, Ld.ª, foi a própria A. quem, no segundo articulado que apresentou e apodou de réplica, como acima ficou transcrito, pretendeu de forma expressa a substituição da errada primitiva demandada pela pessoa coletiva detentora de personalidade jurídica e judiciária com legitimidade para a demandada. Se assim não fosse, e se não operasse a substituição processual, o resultado seria a absolvição do R. da instância por falta de personalidade judiciária.
Para além disso, um assistente é figura distinta: é quem intervém nos autos, a seu pedido, para auxiliar qualquer das partes que já figuram primitivamente na ação (art. 326.º CPC).
Ora, se o verdadeiro R. – a sociedade administradora do condomínio – não se encontrasse na ação, de que modo admitir a assistência da própria administração do condomínio? Se não houvesse R. primitivo, a quem assistiria este pretenso assistente?
Isto já não contando com a errática admissão como R., pessoa singular, do legal representante da sociedade administradora, a quem falece qualquer legitimidade, não tendo interesse em contradizer, apesar do decidido em primeira instância e já transitado em julgado.
Sendo assim, não se vê o que pretenderá a A. quando refere nas suas conclusões ter sido desrespeitado o disposto no art. 3.º, n.º 3 CPC, ao mencionar impor-se ao tribunal apurar quem colocou a E… a efetuar atos de cobrança.
Que matéria se acha nos articulados que respeite a tal pretensa responsabilidade? E em que é isso altera a responsabilidade da condómina aqui A. perante os co-proprietários do prédio relativamente às despesas que os mesmos aprovaram em assembleia de condomínio?
Mesmo o pedido de indemnização formulado em nada beneficiaria desse apuramento, pela razão simples de que pretensão de compensação por danos não patrimoniais apenas é atendida quando estão em causa ofensas e danos de gravidade objetiva (é assim que postula o normativo do art. 494.º, n.º1 CC). Não assim, quando se invoca ter-se sido erradamente notificado para fazer face a despesas de condomínio, caso em que não é cabível qualquer pretensão indemnizatória.
Do mesmo modo, o que pretende a A. quanto à intervenção de terceiros (os primitivos proprietários) como RR., incidente que deduziu logo na petição inicial?
É linear que os incidentes de intervenção de terceiros pressupõem uma causa que já está pendente entre determinadas partes iniciais, sendo de fazer intervir quem não foi inicialmente demandante e demandado.
É o que liminar e cristalinamente resulta do disposto no art. 311.º CPC.
Ora, se a A. demandou outros RR. e pretendia que interviessem na ação também os proprietários originários da fração, deveria tê-los demandado logo também como RR., não cabendo nunca, seja a que título for, formular pedido de intervenção de terceiros na petição inicial.
Ademais, o objeto da ação não é qualquer discussão sobre a validade ou invalidade da assembleia de condóminos que deliberou as quotas aqui em causa, pois a A. não alegou, nem na petição inicial, nem no articulado em que exerceu contraditório relativamente à contestação, qualquer fundamento relativo à regularidade dessa deliberação, nomeadamente quanto à sua convocatória, nem finalizou com qualquer pedido de invalidade da decisão colegial.
É, pois, infundado que pretenda fosse efetuada prova quanto à convocatória dos condóminos para aquela assembleia. Em julgamento, nunca essa matéria seria discutida, muito simplesmente porque não constitui objeto da ação.
A alusão ao disposto nos arts. 411.º e 457.º CPC é, assim, completamente deslocada.
No que tange ao que interessa verdadeiramente à pretensão deduzida na petição inicial.
Em 25.6.2019, data da deliberação da assembleia de condóminos, a A. era já proprietária da fração?
Cabe-lhe pagar as despesas aí deliberadas?
Como veremos, a resposta à segunda questão não depende necessariamente da resposta à primeira.
A A. alega que o preço é um elemento essencial do contrato e que apenas foi integralmente pago o preço da fração em 2.8.2019.
Na petição inicial, ainda referia o pagamento dos impostos como condição para se tornar proprietária do imóvel em causa.
Porém, a transferência da propriedade não se dá por efeito de pagamento do preço e, menos ainda, do cumprimento de obrigações tributárias.
Quanto à constituição dos direitos reais rege o princípio da consensualidade, querendo-se com este significar que o simples acordo, substancial e formalmente válido, produz os efeitos reais visados (transferência de titularidade), sem que seja necessário um ato ulterior de entrega da coisa, de pagamento do preço, de pagamento de impostos ou de inscrição em registo.
Resulta este princípio, que alguns apelidam de “princípio da consensualidade”[2], do disposto no art. 408.º CC.
No caso dos autos, não houve contrato de compra e venda ou outro.
Na verdade, na sequência de contrato de promessa incumprido, foi decretada execução específica do mesmo, dispondo então o art. 830.º, n.º 1 CC, que a sentença produz os efeitos da declaração negocial do faltoso.
Nesse caso, o depósito do preço será efetuado antes de o juiz proferir a sentença sobre o mérito do pedido de execução específica e dentro do prazo por ele determinado[3].
Há, no entanto, autores e decisores judiciais que admitem que a sentença que decreta a execução específica condicione a sua eficácia ao depósito do preço pelo promitente-comprador[4].
A sentença que decretou a execução específica do imóvel da A. não optou por nenhuma das referidas teses e ordenou desde logo a execução específica, condenando a Ré (aqui A.) no pagamento do preço.
O pagamento do preço, não foi, assim, estabelecido como condição de eficácia da sentença.
Deste modo, a transferência da propriedade operou-se quando se produziu a declaração negocial do faltoso, isto é, pela sentença.
A sentença, por sua vez, apenas se tornou firme na ordem jurídica quando transitou em julgado, isto é, quando deixou de ser passível de recurso ordinário ou de reclamação, segundo a definição que consta do art. 628.º CPC.
A sentença que atribuiu à A. a propriedade da fração transitou em julgado no dia 14.6.2019, pelo que foi nesse dia que se transferiu para a demandante a propriedade do imóvel.
As despesas de condomínio aqui em causa – destinadas a obras urgentes a realizar no futuro – foram aprovadas em assembleia de 25.6.2019, portanto, já depois de a A. ser dona da fração.
Não se discute aqui se a convocação para a reunião foi efetuada devidamente, porquanto, como já vimos, a A. não alegou nos seus articulados qualquer facto relativamente à validade da deliberação em apreço, tendo-se limitado a considerar não lhe ser exigível o valor em apreço por ter adquirido a propriedade posteriormente à deliberação o que, como acabámos de ver, não é verdade.
Agora, no que toca à responsabilidade pelas despesas ali aprovadas, cumpre, desde já, referir não ser correto afirmar-se, como se faz na sentença recorrida, que as dívidas dos condóminos se transmitem com o imóvel como se se tratasse de uma consequência da sequela reconhecida aos direitos reais.
Não é assim.
A sequela inerente aos direitos sobre as coisas é a faculdade que compete ao titular do imóvel de o perseguir onde quer que se encontre.
Do aqui se trata (quando se alude a contribuição dos condóminos para o condomínio) é de uma obrigação ob rem ou propter rem, isto é, de uma obrigação imposta tendo em atenção certa coisa e a quem dela for titular[5], discutindo-se se essa obrigação é ou não ambulatória (coisa distinta da sequela), isto é, se obrigação acompanha o direito real ao qual está funcionalmente ligada, aquando da transmissão deste a terceiro[6].
No caso das dívidas de condomínio, dispõe o art. 1424.º, n.º 1 CC: Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas fracções.
Estas obrigações são ambulatórias em caso de transmissão da fração?
No caso de prestações em atraso, destinadas a custear as despesas habituais do edifício, para Henrique Mesquita[7]é injusto fazê-las recair sobre o adquirente da fração por duas ordens de razão:
a) O adquirente não dispõe de qualquer elemento objetivo que revele ou indique a existência de dívidas;
b) As aludidas prestações representam uma contrapartida de um uso ou fruição (das partes comuns do edifício) que couberam ao alienante e, por isso, só a ele deve competir o respetivo pagamento.
Sandra Passinhas considera o mesmo, realçando o facto de o adquirente da fração autónoma, antes da transmissão, não ter forma de verificar se existem dívidas do proprietário anterior. É que o art. 1.º, n.º 3 do DL 268/94, de 25.10, dispõe que o administrador apenas deve facultar as atas aos condóminos e a terceiros titulares de direitos relativos às frações, excluindo-se, deste modo, o terceiro que pretenda adquirir uma fração autónoma (embora os promitentes-compradores disponham dessa faculdade)[8].
Já para José Alberto Vieira, a transmissão do direito real implica a transmissão da obrigação real. Se a fonte da obrigação propter rem é o direito real, o titular respectivo está investido no dever de a cumprir, mesmo que eventualmente haja adquirido o direito após o vencimento da mesma[9].
A análise jurisprudencial revela que os nossos tribunais têm dado uma solução casuística à problemática.
Veja-se, por exemplo, o ac. STJ, de 8.6.2017, Proc.10076/03.3TVLSB,L1.S1: Tratando-se, assim, de prestações periódicas necessárias à conservação e fruição das partes comuns, o proprietário tem de suportar aquelas que se vençam posteriormente à aquisição do imóvel, por isso que o adquirente de uma fração suportará as ditas " despesas de condomínio" aprovadas em assembleia de condóminos anterior à aquisição que se vençam depois da aquisição, mas não as anteriores precisamente porque, quanto a estas, não ocorre ambulatoriedade.
No mesmo sentido, ac. RG, de 8.4.2021, Proc. 1521/20.4T8GMR-A.G1: tem natureza ambulatória a obrigação de pagamento de obras de conservação profunda do telhado e das fachadas de um imóvel em regime de propriedade horizontal que, além do mais, embora já tivessem sido aprovadas à data da transmissão da fração ainda não tinham sido realizadas.
Ainda, desta Relação e secção, ac. 9.3.2020, Proc. 9918/18.3T8OVR-A.P1 : I - A obrigação de pagamento das despesas com partes comuns de um imóvel em regime de propriedade horizontal constitui uma típica obrigação propter rem. II- Todavia, a sua natureza ambulatória ou não ambulatória nem sempre se apresenta com a mesma linearidade. III- Assim, quando se trate de despesas relativas à conservação das partes comuns (conservação das coberturas fachadas etc.) do edifício, importa distinguir se as reparações estavam ou não executadas e concluídas à data da alienação da fracção. IV- No primeiro caso (reparações ainda não executadas ou não concluídas) o encargo das respectivas despesas, na proporção respectiva, deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo adquirente, pois que, dispunha objectivamente de todos os elementos para se aperceber da existência da obrigação, além de que será ele a retirar proveito do gozo do bem ao qual foi incorporada aquela beneficiação. V- No segundo caso (reparações já executadas e concluídas) o encargo deve ser suportado, salvo acordo em contrário, pelo alienante, pois que, o adquirente não dispõe agora de quaisquer elementos objectivos que indiciem ou denunciem a existência da obrigação.
Do exposto deflui que, tratando-se de obrigação de pagamento de obras extraordinárias do condomínio, como sucede com as reparações urgentes no edifício, as mesmas são pagas pelo condómino, adquirente da fração (mesmo que aprovadas as dívidas antes da aquisição da fração), quando tais reparações ocorram já depois da aquisição, uma vez que é este quem beneficiará das obras em apreço.
Na situação vertente, as obras não só foram aprovadas já depois da aquisição da fração pela A. (ainda que a mesma eventualmente não haja sido convocada para a assembleia respetiva), como, sobretudo, ainda não foram executadas, sendo-o já durante a propriedade do imóvel pela A., cabendo a esta suportar as quotas respetivas.
A isto se não opõe o facto de o imóvel ter sido, eventualmente, vendido sem ónus e encargos. Desde logo porque esse acordo entre anterior e novo proprietário não é oponível ao condomínio. Quando muito, seria fundamento para o novo proprietário solicitar ao anterior o reembolso do que eventualmente viesse a pagar. Depois, porque a sentença que operou a transferência de propriedade não salvaguardou a existência de qualquer acordo anterior que exonere a nova proprietária do pagamento das dívidas de condomínio aprovadas antes ou depois da aquisição do imóvel.
De modo que, sendo esta a interpretação que merecem os normativos em apreço, nenhuma censura merece a sentença recorrida que julgou em conformidade com o ordenamento vigente que acolheu com rigorosa observância dos ditames constitucionais, mormente do invocado em sede de conclusões recursivas.
Revela-se, pois, de todo infundado o presente recurso.

Dispositivo
Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Porto, 6.9.2021
Fernanda Almeida
António Eleutério
Maria José Simões
______________
[1] António Agostinho Guedes, Comentário ao Código Civil, Universidade Católica, Parte Geral, p. 166.
[2] Ana Afonso, Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Universidade Católica, p. 68.
[3] Neste sentido, Galvão Telles, Direito das Obrigações, 1997, p. 136-17; Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, VII, Direito das Obrigações, 2014, p. 432-433; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 2018, p. 226.
[4] Assim Gravato Morais, Contrato-Promessa em Geral, 2009, p. 150-151; Nuno Pinto Oliveira, “Contributo para o estudo do regime jurídico do sinal, in Estudos em Homenagem ao Prof. Henrique Mesquita, 2010, p. 287. Ac. RC, de 23.5.2017, Proc. 431/16.4T8LLRA-A.C1.
[5] Para Menezes Cordeiro, na categoria das obrigações reais, não interessa a identidade da pessoa obrigada, apenas se deve considerar a causa da obrigação e a titularidade do direito real onerado. Nestes termos, define a obrigação propter rem como sendo aquela cujo sujeito passivo (o devedor) é determinado não pessoalmente (intuitus personae), mas realmente, isto é, é determinado por ser titular de um qualquer direito real sobre a coisa, Direitos Reais, 1993, p. 367.
[6] Cfr. Manuel Henrique Mesquita, Obrigações Reais e Ónus Reais. 2003, p. 316, nota 21;
[7] Cit., p. 322.
[8] A Assembleia de Condóminos e o Administrador na Propriedade Horizontal, 2009, p. 319 e ss.
[9] Direitos Reais, Coimbra Editora, 2008, p. 109.