Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
504/19.1T8PVZ.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: NULIDADE DA SENTENÇA
CONTRATO PROMESSA
INCUMPRIMENTO
RESPONSABILIDADE DA MEDIADORA
TEORIA DO TERCEIRO CÚMPLICE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
SIMPLES CONSTRANGIMENTOS
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RP20220127504/19.1T8PVZ.P2
Data do Acordão: 01/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Não constitui causa de nulidade da sentença a omissão de determinados factos provados e não provados, ainda que sejam tidos como relevantes para a decisão da causa. Os factos não se confundem com as questões a decidir.
II - Sem prejuízo da eventual existência de responsabilidade pelos efeitos danosos causados ao destinatário do negócio por qualquer conduta ilícita e culposa, a mediadora imobiliária, não sendo parte no contrato-promessa de compra e venda, mas apenas um terceiro núncio da vontade do seu cliente, promitente-vendedor expressa (no contrato de mediação), não responde pelo incumprimento definitivo do mesmo nos termos do art.º 442º do Código Civil, seja por violação de deveres principais ou de deveres acessórios e laterias de conduta.
III - É nula a sentença, designadamente por excesso de pronúncia e condenação ultra vel petitum, quando condena o réu no pagamento de uma indemnização com base em fundamento diferente daquele que é invocado na petição inicial como causa de pedir. Se o autor pede a condenação conjunta do promitente-vendedor e do mediador imobiliário pelo incumprimento definitivo do contrato-promessa de compra e venda, o último apenas por danos não patrimoniais, não pode absolver aquele e condenar este por ter violado um suposto contrato de depósito da quantia que lhe havia sido entregue a título de sinal.
IV - A jurisprudência mais moderna tem vindo aceitar, excecionalmente, situações de responsabilidade de terceiro relativamente a um contrato --- teoria do terceiro cúmplice --- mas apenas nas situações em que o terceiro impediu o cumprimento da obrigação agindo com abuso de direito. São situações em que a conduta de terceiros se mostre particularmente chocante e censurável por dar origem a uma situação de injustiça gritante. Neste caso pode responder perante o credor em sede de responsabilidade extracontratual.
V - Na violação do contrato não são indemnizáveis, a título de dano não patrimonial, constrangimentos resultantes do facto de uma das partes ter que permanecer na sua habitação por se ter frustrado a aquisição de determinado imóvel que estava a negociar e ter de procurar outra casa para passar a residir.
VI - Na litigância de má fé haverá sempre que ponderar o princípio da culpa na ação dos litigantes, sob pena de fazer recear a qualquer interessado o direito de recorrer livremente aos tribunais para fazer valer os seus direitos ou de se opor na ação com alguma incerteza sobre o fundamento da sua defesa.
VII - Visando-se a litigância de má fé substantiva para aplicação de uma sanção, a sua caraterização deve resultar sobretudo da matéria de facto assente, ainda que com ela se deva, quando tal se justifique, confrontar o fundamento da ação ou da defesa do litigante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 504/19.1T8PVZ.P2 (apelação)
Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Vila do Conde – J 1

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
AA, NIF ..., e cônjuge, BB, NIF ..., residentes na Rua..., ..., Freguesia ..., Concelho de ..., intentaram ação declarativa, com processo comum, contra:
- CC, NIF ..., e DD, com o NIF ..., residentes na Rua..., ..., Freguesia de ..., Concelho de ... e
- S..., , LDA., denominada “L...”, com sede na Rua..., ... ..., alegando essencialmente que a A., por si e em representação do seu cônjuge, com a intermediação da 2ª R. imobiliária, em representação dos 1ºs RR., assinou um contrato-promessa de compra e venda de um imóvel em que figura como promitente-compradora, sendo ali promitentes-vendedores os 1ºs RR.
O preço do prédio era de € 160.900,00, tendo os entregado à 2ª R. a quantia de € 16.900,00 a título de reserva, sinal e princípio de pagamento.
Sem que isso se justificasse, quando os AA. ainda estavam a diligenciar pela obtenção de crédito bancário para pagamento do imóvel objeto do contrato, receberam um e.mail da 2ª R. pela qual esta resolveu o contrato com fundamento na recusa definitiva dos AA. em cumprir o contrato-promessa, informando que o promitente vendedor iria depositar o valor do sinal, em singelo.
Porém, a comunicação infundada do promitente-vendedor ao promitente-comprador, através da 2ª R., sua representante, de que não irá cumprir o contrato celebrado, integra por si só, uma situação de incumprimento definitivo, que se presume culposo.
O contrato-promessa deve ser resolvido e os 1ºs RR condenados a devolver aos AA a quantia de € 33.800,00, correspondente ao valor do sinal em dobro, acrescida de juros de mora, nos termos do artº 442º nº 2 do Código Civil, ou, caso se entenda que não houve culpa dos RR., deve o valor do sinal ser devolvido em singelo, acrescido dos respetivos juros de mora, a contar da citação.
Admitindo que a 2ª R. não tinha autorização dos vendedores para prometer vender o bem e ao não demonstrar que tudo tivesse feito para cumprir com o prometido, tornando em definitivo o seu incumprimento, atuou sem a diligência exigível ao homem médio, isto é, atuou culposamente e constituiu-se responsável pela restituição do sinal em dobro.
Alegam ainda os AA. que sofreram danos não patrimoniais por terem deixado de procurar casa, convencidos que ficaram de que o contrato-promessa iria ser cumprido, e que todo o comportamentos dos RR. ao longo do tempo que mediou a assinatura do contrato e a receção da carta a comunicar que a resolução do contrato iria ter lugar por incumprimentos dos AA. é abusivo, excedendo os limites que a tutela da confiança impunha, o que dá aos AA. o direito de ser indemnizado, nos termos gerais, por valor não inferior a € 10.000,00.
Terminaram o seu articulado com a apresentação do seguinte pedido.
«Termos em que e nos mais de direito, deve a presente acção ser declarada procedente por provada e por via dela os RR. condenados a:
a) Deve o contrato promessa ser resolvido por culpa exclusiva dos promitentes vendedores.
b) O comportamento do promitente-vendedor que exprima a vontade de não querer cumprir, reconduz-se ao conceito de recusa de cumprimento, o que permite considerá-lo inadimplente de forma definitiva o que deve ser declarado.
c) 1ºs RR. condenados a pagar aos AA. a quantia de 33.800,00 euros, acrescida de juros de mora nos termos do artº 442 nº2 do CC. desde a data da distribuição da acção até efectivo integral pagamento. Ou, caso se entenda que não houve culpa dos RR., que estes sejam condenados a pagar aos Autores a quantia de € 16.900,00 euros acrescida de juros contados desde a data da data da distribuição da acção até efectivo e integral pagamento.
d) Os 1ºs e 2ªs RR. condenados a pagar aos AA. quantia nunca inferior a 10.000,00 a titulo de compensação por danos não patrimoniais.»

Citados, os 1ºs RR. e a 2ª R. contestaram autonomamente a ação.
Os 1ºs RR. invocaram a ilegitimidade passiva da 1ª R. mulher, por o bem prometido ser um bem próprio do 1º R., nunca o podendo ter prometido vender. Depois impugnaram grande parte da matéria de facto alegada na petição inicial, começando por alegar que foi a A. mulher que desistiu do negócio, sem que ainda houvesse um contrato-promessa fina,l e que nunca receberam qualquer quantia a título de sinal.
O R. marido não elaborou nem mandou elaborar, não subscreveu nem enviou à autora a ..., junta à petição inicial como doc. nº 9 e nunca deu poderes de representação à R. S..., LDA, para além da mediação imobiliária, designadamente poderes para assinar ou resolver contratos.
Inexistindo contrato-promessa assinado pelas partes, estas não se vincularam validamente, pelo que nenhuma responsabilidade contratual pode ser invocada.
Quaisquer incómodos que os AA. tenham sofrido não são imputáveis aos 1ºs RR.
Acrescentam que, mesmo que se considerasse válido o contrato-promessa de compra e venda, os 1ºs RR. não o resolveram. Os AA., para transformar a mora em incumprimento definitivo, teriam que notificar os réus nos termos do artigo 808º do Código Civil, concedendo-lhes prazo razoável para cumprir a obrigação, ou invocando perda de interesse na prestação, o que não fizeram.
Terminam pedindo a procedência da exceção da ilegitimidade da 1ª R. mulher e a improcedência da ação, com as legais consequências.

Na sua contestação, a 2ª R. invocou, em primeiro lugar, a sua ilegitimidade passiva, alegando depois que agiu correta e diligentemente no exercício da sua atividade de mediação imobiliária.
Impugnou parcialmente os factos alegados na petição inicial e descreveu uma versão de factos diferente daquela que os AA. trouxeram à ação para justificar o incumprimento do contrato, alegando que a promitente-compradora condicionava o negócio à realização de obras cuja resposta dependia dos 1ºs RR. e nunca da contestante.
Tendo conseguido que os 1ºs RR. aceitassem celebrar o negócio nas condições exigidas pela A., esta acabou por desistir do negócio.
Diz-nos ainda que nem a R. nem a sua funcionária atuante, EE, eram ou são representantes dos 1ºs RR., limitando-se a exercer as suas funções de mediação imobiliária.
O cheque recebido nunca chegou a transitar para os promitentes-vendedores, nem foi depositado, pelo que não tem que ser devolvido em dobro.
A A. litiga de má fé, por que foi a A. que, com as suas exigências suplementares e depois de o ter aceitado inicialmente, determinou que o negócio não tivesse sido concretizado imediatamente.
Termina no sentido de que a ação seja julgada totalmente improcedente e a A. condenada em multa e indemnização condigna a favor da contestante.

Os AA. responderam às exceções invocadas na condenações e pediram a condenação dos RR. como litigantes de má fé em multa e indemnização condigna a favor deles.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, no que se julgou improcedentes as exceções de ilegitimidade da 1ª R. mulher, DD, e da 2ª R.
Foi definido o objeto do litígio e indicaram-se os temas de prova.
O tribunal pronunciou-se também sobre os meios de prova e a designação de data para a realização da audiência final.
Teve lugar aquela audiência, em três sessões, após a qual foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Termos em que se decide:
1. Condenar a S..., LDA a pagar:
a. Aos AA., a título de compensação por danos não patrimoniais, a quantia global de € 5.000,00.
b. A título de litigância de má-fé, a multa de 10 UC’s.
2. Custas por AA. e R. S..., LDA na proporção do decaimento.
3. No mais absolvem-se AA. e RR. do peticionado.
Mais se determina a notificação dos AA. para os efeitos do disposto no art.º 543.º, n.º 3 do C.P.Civil.».
*
Inconformada, recorreu a 2ª R. (única condenada), em apelação, tendo alegado em 191 páginas, com as seguintes CONCLUSÕES:
«1.- A Recorrente não se conforma com a decisão de facto e de direito que impendeu sobre a causa.
2.- A douta sentença recorrida é nula por omissão de pronuncia.
3.- O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre questões, algumas delas aceites por confissão, outras demonstradas documentalmente, e que poderiam e deveriam ter resultado especificadas, com relevância para a decisão de mérito
4.- Reportam-se tais questões a factos alegados pela defesa essenciais à decisão das concretas controvérsias centrais a dirimir.
5.- Deveria o Tribunal recorrido ter conhecido e declarado provada a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:

Da Petição Inicial
24.º
Quer o cheque no valor de € 16.900,00, emitido pela Autora, com o n.º ..., quer a minuta do contrato promessa assinada unilateralmente pela Autora, mantiveram-se na posse da Ré contestante, que aguardava a aceitação do negócio pelos co-réus. DOC. 4
27.º
No dia 11 de dezembro, às 9.23 horas, a Ré comunicava à Autora que o “proprietário ainda não decidiu se vai avançar com a venda”. DOC.5.
31.º
A Ré explicou à Autora que não deveria prosseguir com o processo de financiamento junto da banca, pois que o negócio estava suspenso até uma decisão final dos vendedores, os co-réus, e aconselhou inclusivamente a Autora a procurar e escolher outro imóvel, comunicando-lhe que os vendedores aparentavam não ceder às suas pretensões.
32.º
Por tal motivo, e com a intenção de ver se lhe interessava para comprar, no dia 08 de janeiro, a Autora visitou um outro imóvel que a Ré contestante havia angariado e estava a promover a venda, situado na rua .., n.º…, na freguesia de ..., em ..., conforme ficha de visita que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. DOC.8.
33.º
A Autora apresentou uma proposta de € 170.000,00 para comprar o referido imóvel e entregou um cheque de sinal de € 17.000,00 (n.º...). DOC.9 e 10.
34.º
Porém, logo após ter celebrado tal negócio, a Autora comunicou à Ré contestante que desistia de tal negócio e procedeu ao levantamento do sinal que havia entregue, no dia 16 de janeiro, conforme documento que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. DOC.11.
39.º
O cheque de reserva que havia sido entregue pela Autora nunca foi entregue pela Ré contestante aos co-réus e, por isso, nunca foi recebido pelos co-réus ou depositado.
40.º
A Ré contestante só entregaria tal cheque aos vendedores, os co-réus, quando recebesse deles o original do contrato assinado e obtivesse a confirmação da aprovação do financiamento pela Autora.
41.º
No dia 17 de janeiro, após ter recebido a confirmação por email que os vendedores, os co-réus, aceitavam vender o imóvel nas condições por ela impostas, e a cópia do contrato assinado pelo co-réu varão, a Autora dirigiu um email à Ré contestante, comunicando-lhe:
“conseguem resolver alguma coisa em relação à sua anulação?” DOC.13.
A seguinte factualidade vertida na Contestação dos co-Réus CC e DD:
26. O réu marido nunca recebeu qualquer sinal.
29. Supõe que o cheque lhe seria entregue após a outorga e assinatura do contrato promessa final.
30. O que nunca veio a suceder, por desistência da autora.
6.- A douta sentença é, por isso, nula por omissão de pronuncia, nos termos do artigo 615.º, n.º1, alínea e) do C.P.C..
7.- Sem prescindir, sempre pode o Tribunal de Recurso dar como provada tal factualidade, com recurso aos seguintes meios de prova:

Da Petição Inicial:
“24.º
Quer o cheque no valor de € 16.900,00, emitido pela Autora, com o n.º ..., quer a minuta do contrato promessa assinada unilateralmente pela Autora, mantiveram-se na posse da Ré contestante, que aguardava a aceitação do negócio pelos co-réus. DOC. 4” – Factualidade aceite pelos Autores: Fls. 84, artigo 16.º da Resposta dos Autores; assentada de fls. 67 verso;
27.º
No dia 11 de dezembro, às 9.23 horas, a Ré comunicava à Autora que o “proprietário ainda não decidiu se vai avançar com a venda”. DOC.5. – Factualidade resultante da assentada depoimento Autora, de fls.167 dos autos;
31.º
A Ré explicou à Autora que não deveria prosseguir com o processo de financiamento junto da banca, pois que o negócio estava suspenso até uma decisão final dos vendedores, os co-réus, e aconselhou inclusivamente a Autora a procurar e escolher outro imóvel, comunicando-lhe que os vendedores aparentavam não ceder às suas pretensões. Factualidade assente por acordo e aceitação expressa dos Autores: Fls. 84, artigo 17.º da Resposta dos Autores;
32.º
Por tal motivo, e com a intenção de ver se lhe interessava para comprar, no dia 08 de janeiro, a Autora visitou um outro imóvel que a Ré contestante havia angariado e estava a promover a venda, situado na rua .., n.º …, na freguesia de ..., em ..., conforme ficha de visita que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. DOC.8.
33.º
A Autora apresentou uma proposta de € 170.000,00 para comprar o referido imóvel e entregou um cheque de sinal de € 17.000,00 (n.º...). DOC.9 e 10.
34.º
Porém, logo após ter celebrado tal negócio, a Autora comunicou à Ré contestante que desistia de tal negócio e procedeu ao levantamento do sinal que havia entregue, no dia 16 de janeiro, conforme documento que se junta e cujo teor se dá por integralmente reproduzido. DOC.11.
Factualidade aceite expressamente pelos Autores Fls. 84 dos autos, artigo 18.º da Resposta dos Autores; além disso, a Autora visitou outro imóvel para comprar, em 08 de janeiro, conforme resulta quer da sua confissão, quer dos documentos de fls. 66, 66 verso, 67 e 67 verso.
39.º
O cheque de reserva que havia sido entregue pela Autora nunca foi entregue pela Ré contestante aos co-réus e, por isso, nunca foi recebido pelos co-réus ou depositado. Factualidade resultante da assentada do depoimento da Autora;
40.º
A Ré contestante só entregaria tal cheque aos vendedores, os co-réus, quando recebesse deles o original do contrato assinado e obtivesse a confirmação da aprovação do financiamento pela Autora. Factualidade resultante do acordo de reserva de fls.60 e do depoimento do gerente da Ré S..., Lda.
41.º
No dia 17 de janeiro, após ter recebido a confirmação por email que os vendedores, os co-réus, aceitavam vender o imóvel nas condições por ela impostas, e a cópia do contrato assinado pelo co-réu varão, a Autora dirigiu um email à Ré contestante, comunicando-lhe:
“conseguem resolver alguma coisa em relação à sua anulação?”
DOC.13. Factualidade resultante da assentada do depoimento da Autora AA e da aceitação (artigos 19.º a 22.º da resposta dos Autores, a fls.84 verso dos autos).

Da contestação
26. O réu marido nunca recebeu qualquer sinal.
29. Supõe que o cheque lhe seria entregue após a outorga e assinatura do contrato promessa final.
30. O que nunca veio a suceder, por desistência da autora.
Tal matéria foi objeto de impugnação por desconhecimento da Autora, ao artigo 28.º da sua resposta (fls.85), devendo equivaler a aceitação expressa, por se tratar de facto pessoal dos Autores.

Sem prescindir,
8.- Deveria ainda ter sido declarado não provado que a entrega do cheque a que se refere o ponto 10 dos factos provados tenha ocorrido a ..., mas antes a ... - Factualidade decorrente da reapreciação do depoimento/declarações de parte do legal representante da Ré S..., LDA e confissão da Autora AA e documento de fls. 147.
9.- Deveria ter sido declarada não provada a matéria do ponto 15 dos factos declarados provados, de que a A. entregou na R. imobiliária todos os documentos necessários para a apreciação de concessão do crédito bancário para aquisição do imóvel. – Factualidade decorrente, desde logo, de o contrato promessa só ter sido assinado pelo co-Réu CC em 17 de janeiro de 2019 e da reapreciação do depoimento da Autora AA.
10.- Deveria ainda ter sido declarada não provada a matéria de facto do ponto 24 dos factos provados, de que os AA. não fizeram outro negócio porque entregaram o sinal de € 16.900,00 que não lhes foi devolvido.
Por um lado, existe excesso de pronuncia, sendo tal decisão nula, nos termos do artigo 615.º, n.º1, alíneas d) e e) do C.P.C., pois que tal matéria não foi alegada pelos Autores e, por isso, não podia ser conhecida pelo Tribunal.
Por outro lado, a causa de pedir e pedido dos Autores, designadamente no que se refere a danos morais, é alusiva ao período entre a data da assinatura da promessa e/ou entrega do cheque e a resolução do contrato promessa.
E durante esse período, como é bom de ver, os Autores não fizeram outro negócio porque estavam a aguardar a confirmação deste. – CONFORME CONFISSÃO DOS AUTORES DE ARTIGOS 16, 17 e 18 DA RESPOSTA.
Acresce que tal matéria está em contradição com a prova que resulta da confissão da Autora que o cheque não foi sacado e que tampouco é válido e, por isso, não houve a entrega de qualquer sinal.

Por outro lado, e sem prescindir,
11.- Deveria ter sido declarada provada a matéria dos pontos 39, 40, 41, 42 e 43 dos factos não provados, com recurso ao depoimento da testemunha EE, cuja reapreciação se requer, e ainda aos documentos de fls. 64 verso e 65 verso.

Sem prescindir,
DO DIREITO
12.- A decisão de condenação da Ré S..., Lda. é uma verdadeira decisão surpresa e que excede a causa de pedir e pedido, configurando uma inovadora perspetiva jurídica de factos que sequer foram alegados.
13.- Os Autores pedem a condenação dos Réus no pagamento do dobro do sinal, por resolução ilícita do contrato promessa, e no pagamento da quantia de € 10.000,00 a título de danos morais, por não terem concretizado o negócio definitivo entre a data da celebração da promessa e entrega do cheque, pelos Autores, e a data da resolução do contrato promessa.
14.- O Sr. Juíz do Tribunal recorrido condenou a Ré S..., LDA por não ter devolvido o cheque de sinal, violando o contrato de depósito (que nunca esteve em discussão nos autos), e com isso tendo alegadamente inviabilizado que os Autores fizessem outro negócio.
15.- O que é certo é que sequer ficou provado que tivesse sido solicitada a restituição do cheque pelos Autores à Ré S..., LDA, e muito menos que os Autores alguma vez disso tivessem reclamado ou se queixado. Bem antes pelo contrário, os Autores queriam dar como provado o pagamento do cheque, para poderem reclamar, como reclamaram, o dobro do sinal.
16.- Mas, sabe-se lá como, o Mmo. Juíz do Tribunal recorrido deu como provada factualidade não alegada e em contradição com a causa de pedir e pedido dos Autores. Era isso que queria ouvir … e escrever.
17.- A douta sentença é nula por excesso de pronuncia, nos termos das alíneas d) e e) do n.º1 do artigo 615.º do C.P.C..
18.- Mas também é nula porque foi ainda violado o disposto ao artigo 3.º, n.º3 do C.P.C.
19.- E a Ré não teve direito a um processo equitativo, tendo por isso ocorrido também a violação do disposto ao artigo 20.º, n.º4 da Constituição da República Portuguesa.
20.- O invocado prejuízo dos Autores reside, alegadamente, no incumprimento do contrato promessa, e nas consequências do mesmo.
21.- Questão diferente, reservada para a análise jurídica da causa, é a que respeita aos requisitos de validade, eficácia e consequências do eventual cumprimento – ou falta dele - de um contrato de depósito. Não resulta que em sede de produção de prova ou julgamento, as partes tenham sido confrontadas com a questão – validade, eficácia e consequências do contrato de depósito.
22.- Para além de que foram os Autores a pretender a anulação do negócio e não a Ré; já que esta tinha todo o interesse no seu cumprimento.
23.- Não existindo contrato promessa, ou sendo este nulo, não podem existir danos morais decorrentes do seu alegado incumprimento.
24.- Sempre consubstanciaria abuso de direito os Autores obterem a condenação da Ré a uma indemnização por alegado incumprimento de um contrato nulo.
25.- Foram ainda violados, na sua interpretação e aplicação, os artigos 1187.º e seguintes do C.C., artigo 11.º, n.º 1 do DL. 57/2008 de 26 de Março e 563.º do C.C.
26.- Por consequência, também foi violado o disposto aos artigos 542. e seguintes, pois que a Ré S..., LDA não litigou – nem litiga – de má-fé.» (sic)
Visa, assim, a obtenção de uma solução diferente para a ação: a absolvição da 2ª R. do pedido e da condenação como litigante de má fé.
*
Não foram oferecidas contra-alegações.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
As questões a decidir --- exceção feita para o que for do conhecimento oficioso --- estão balizadas pelas conclusões da apelação da 2ª R. S..., LDA., acima transcritas, no âmbito do conteúdo da decisão recorrida (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Estão para apreciar e decidir as seguintes questões:
1. Nulidade da sentença, por omissão de pronúncia;
2. Nulidade da sentença, por excesso de pronúncia;
3. Erro de julgamento na decisão proferida em matéria de facto;
4. Nulidade do contrato-promessa e os danos decorrentes do seu incumprimento;
5. Abuso de direito;
6. Litigância de má fé.
*
III.
São os seguintes os factos considerados provados pelo tribunal a quo com interesse para a decisão da causa[1]:
1. A Autora AA é casada com o A. BB, desde 10.6.204, sem que tivesse sido celebrada convenção antenupcial.
2. A Segunda Ré sob a denominação “L...” tem o seu estabelecimento na Rua ... em ... comunhão de adquiridos.
3. A Autora em representação do casal, no dia 27 de Novembro de 2018, assinou, nas instalações da R. imobiliária um contrato promessa rubricando todas as folhas.
4. Consta nesse contrato, cláusula primeira, que:
Os primeiros contraentes são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano, sito na Rua..., ..., Freguesia de ..., Concelho de ..., inscrito na matriz predial com o artº ...74, com o alvará de licença de utilização emitido pela Camara Municipal ..., que se junta em anexo e com o certificado energético em emissão(…)”.
5. Da cláusula segunda resulta que os RR. CC e DD prometem vender aos Autores o imóvel acima descrito devoluto de pessoas e bens, livre de ónus encargos e responsabilidades, pelo valor de 169.000,00 euros, devendo ainda os aqui RR. reparar o tecto da cozinha e a parede da sala.
6. Consta da cláusula terceira que, até ao dia 5 de Dezembro os segundos contraentes, aqui AA. entregariam aos RR. a quantia de 16.900,00 euros a título de sinal e princípio de pagamento por cheque.
7. Da cláusula quinta do contrato-promessa consta que os AA. obrigam-se a entregar, no prazo de 8 dias, toda a documentação para aprovação do empréstimo bancário; bem como resulta a obrigação dos promitentes-vendedores de entregar aos promitentes compradores toda a documentação necessária para a realização da escritura de compra e venda.
8. Naquela data a A. não recebeu qualquer exemplar do mesmo porquanto os primeiros-contraentes também denominados de promitentes vendedores não estavam presentes e teriam de assinar.
9. Contrato promessa esse, que lhe foi apresentado por EE, funcionária da R. Imobiliária, a qual ficou de recolher a assinatura e as rubricas dos promitentes-vendedores, sendo que depois entregaria uma cópia do contrato à A.
10. No dia 21/11/2018 a A. mulher entregou na agência da R. FF, a EE, cheque datado de 04-12-2018 o cheque com o número ..., no valor de 16.900,00 euros (dezasseis mil e novecentos euros) à ordem de CC, entregue como garantia da sua boa-fé e para reservar o imóvel objecto da promessa de contratar a aplicar como sinal e princípio de pagamento do prédio em causa.
11. Os AA. receberam, pelo menos a 17.1.2019, uma cópia digitalizada, assinada pelo R. CC, do contrato-promessa que a A. havia assinado a ...11.2018.
12. Em 11.12.2018 a R. S..., LDA, através da sua funcionária EE, comunica, via email, à A. mulher que “Os bancos ainda não enviaram as pre-aprovações e o proprietário ainda não decidiu se vai avançar com a venda.”.
13. No dia 26.12.2018, mais uma vez questionada sobre se o contrato iria para a frente ou não, EE respondeu à A. mulher que “o proprietário ficou de dar uma resposta até sexta-feira dia 28.12.2018.”.
14. Segundo a cláusula quarta do contrato-promessa foi fixado o dia 27.2.2019 como limite para outorgar a escritura.
15. A A. entregou na R. imobiliária todos os documentos necessários para a apreciação de concessão do crédito bancário para aquisição do imóvel.
16. A A. solicitou à R. imobiliária os documentos relativos ao imóvel a comprar com vista a diligenciar junto do Banco ...1 e do Banco ...2 a obtenção a concessão do crédito bancário, o que aquela nunca providenciou.
17. No dia 18.01.2019 a A. mulher enviou para EE o seguinte email:
Bom dia, Mas o prazo se não for cumprido não será por minha culpa, mas sim por parte do vendedor e este pode ser anulado visto ele não ter entregue a documentação a tempo de efectuar a escritura no tempo previsto e além disso terá de dobrar o sinal é isso que está escrito no contrato que ainda não me foi enviado por email, por esse motivo é que ainda não se efectuou o pedido de credito pois da minha parte toda a documentação foi entregue no prazo que lá esta mencionado.
18. Nesse mesmo dia EE responde:
Ele tem toda a documentação do imóvel, é só marcar a escritura
19. Os AA. nunca tiveram qualquer contacto com os promitentes-vendedores, aqui Primeiros RR., nem tão pouco tiveram acesso ao seu número de telefone/ telemóvel ou ao seu email pessoal.
20. Nunca os AA. receberam qualquer original do contrato promessa.
21. EE sabia que os AA. iriam recorrer a crédito para a aquisição do imóvel.
22. No dia 29 deste mês de Janeiro a Autora - mulher recepcionou email de EE com o assunto “ incumprimento de contrato promessa de compra e venda” com o seguinte conteúdo:
Bom dia Exma. Cliente AA,
Tendo em conta a sua recusa em avançar com a compra do prédio urbano sito na Rua..., ..., em ..., … e incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda celebrado e em vigor somos a informar que o promitente-vendedor CC irá depositar o cheque de sinal de 16.900,00€ como indemnização pelo incumprimento doloso da sua parte conforme previsto na clausula 10ª.
De facto, o contrato promessa previa que V/Exa. iria recorrer a financiamento bancário no valor de 152.000,00€ e que teria 8 dias para entregar-nos todos os documentos indispensáveis para aprovação bancária, no entanto, V/Exa. Foi protelando o envio da respetiva documentação e acabou por não submeter o pedido de financiamento bancário em nenhuma Instituição bancária, faltando aos compromissos e obrigações assumidas, constantes nas clausulas 4ª e 5ª do contrato promessa celebrado. Mais informamos que irá receber uma carta do proprietário a comunicar a mesma decisão.
Em caso de dúvidas ou esclarecimento adicional não hesite em contactar-nos, estamos ao seu dispor.
Subscrevo-me com os melhores cumprimentos,
Drª EE”.
23. Posteriormente os AA. receberam carta assinada, e enviada pela gerência da R. S..., LDA com conteúdo exactamente igual.
24. Os AA. não fizeram outro negócio porque entregaram o sinal de € 16900,00 que não lhes foi devolvido.
25. Os AA. tiveram de se remediar no mesmo prédio onde antes residiam, com os constrangimentos que levaram os AA. a procurar casa para passarem a residir.
26. O R.CC estava interessado em vender o imóvel que lhe pertencia, e no estado em que se encontrava, pelo preço de € 169.000,00.
27. A A. subscreveu acordo de reserva de imóvel e de entrega de sinal e princípio de pagamento.
28. O R. CC assinou contrato promessa de compra e venda, relativo ao imóvel em questão, em 27 de novembro de 2018, após ter sido colocado como único promitente vendedor e expurgado a cláusula segunda a qual ele, promitente vendedor, se obrigava a fazer obras.
29. Quer o cheque no valor de € 16.900,00, emitido pela Autora, com o n.º..., quer a minuta do contrato promessa assinada pela Autora, mantiveram-se na posse da R. S..., LDA.
30. No dia 11.12.2018, pelas 11.42 horas, a A. comunicou à R. S..., LDA:
estou com certa urgência em encontrar casa
31. Com a intenção de ver se lhe interessava para comprar, no dia 8 de Janeiro de 2019, a A. visitou um outro imóvel que a R. S..., LDA havia angariado e estava a promover a venda, situado na rua .., n.º…, na freguesia de ..., em ….
32. A Autora apresentou uma proposta de € 170.000,00 para comprar o referido imóvel e entregou um cheque de sinal de € 17.000,00 (n.º...)..
33. Após a A. comunicou à Ré S..., LDA que desistia de tal negócio e procedeu ao levantamento do sinal que havia entregue.
34. A R. S..., LDA comunicou ao R. CC que a A. não pretendia mais adquirir o imóvel deste o que este aceitou.
35. O R. CC contratou a R. S..., LDA para que esta promovesse a venda do imóvel propriedade daquele, supra identificado.
*
O tribunal considerou não provada outras matérias, como se segue[2]:
36. Fosse essencial para os AA. celebrar a escritura até 27.2.2019 e que EE soubesse da essencialidade para os AA. daquele prazo.
37. Os AA. na expectativa de celebração do negócio que teria de ser feito impreterivelmente até ao dia 27/2/2019, deixaram de procurar casa, para habitação sua e da respectiva família.
38. A Autora aceitou adquirir o imóvel por € 169.000,00 nas condições em que o mesmo se encontrava.
39. A R. S..., LDA tenha sido surpreendida com a exigência da A. em que o promitente-vendedor fizesse obras de reparação no imóvel.
40. A R. S..., LDA informou a A. que os co-réus poderiam vir a recusar a alteração ao contrato, que não havia tido o seu prévio conhecimento ou consentimento.
41. A R. S..., LDA aguardasse a aceitação, pelo R. CC, da obrigação de fazer as obras.
42. O R. CC e mulher tivessem aceite vender o imóvel por € 169.000,00 bem como se obrigado a fazer as obras pretendidas pela A., em troca da redução da comissão da R. S..., LDA.
43. Foi a A. que com as suas exigências suplementares, que depois de ter aceite inicialmente contratar, implicou que o negócio definitivo não tivesse ocorrido.
*
*
IV.
Ab initio est ordiendum, por razões de precedência lógica, iniciaremos a nossa análise pela apreciação das invocadas causas de nulidade da sentença.
1. Nulidade da sentença, por omissão de pronúncia
Começa a recorrente, 2ª R., por afirmar que a sentença não se pronunciou sobre um determinado conjunto de factos alegados na petição inicial e na contestação dos 1ºs RR. e que deveria ter sido considerado provado pelo tribunal a quo[3].
Escreveu a apelante nas conclusões de recurso:
«(…)
3.- O Tribunal recorrido não se pronunciou sobre questões, algumas delas aceites por confissão, outras demonstradas documentalmente, e que poderiam e deveriam ter resultado especificadas, com relevância para a decisão de mérito
4.- Reportam-se tais questões a factos alegados pela defesa essenciais à decisão das concretas controvérsias centrais a dirimir.
5.- Deveria o Tribunal recorrido ter conhecido e declarado provada a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
(…)».
Vejamos!
A nulidade por omissão de pronúncia está prevista no art.º 615º, nº 1, al. d), do Código de Processo Civil:
1. É nula a sentença quando:
(…)
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.
Esta norma está em correlação com o art.º 608º, nº 2, também do Código de Processo Civil. O juiz tem que resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sob pena de omissão de pronúncia. Além dessas só aprecia e decide aquelas cujo conhecimento a lei lhe imponha ou permita.
Esta nulidade há de resultar da violação do referido dever.
Não confundamos questões com factos e argumentos ou considerações. A questão a decidir está intimamente ligada ao pedido da providência e à respetiva causa de pedir[4]. Relevam, de um modo geral, as pretensões deduzidas e os elementos integradores do pedido e da causa de pedir.[5] O facto material é um elemento para a solução da questão, não é a própria questão.
A propósito de tal vício, escreveu Anselmo de Castro[6]: “A palavra questões deve ser tomada aqui em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir (melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a “fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sobre os aspectos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”.
Já Alberto dos Reis ensinava[7] que “uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão”.
Os factos não constituem, pois, a questão cujo conhecimento fosse imposto ao tribunal e, não estando o juiz obrigado a apreciar e a rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a sua procedência, o facto de não lhes fazer referência ou de decidir com insuficiência de matéria de facto, não determina a nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
A omissão de tratamento, pelo tribunal, de factos alegados pelas partes que a recorrente considera relevantes pode ser, como foi efetivamente, suscitada em sede de impugnação da decisão proferida em matéria de facto, e influir na boa decisão da ação, mas não é causa de nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Improcede a primeira questão do recurso.
*
2. Nulidade da sentença por excesso de pronúncia
Defendem depois os AA. o excesso de pronúncia da sentença, invocando a violação das al.s d) e e) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, por ter dado como provado o ponto 24 da matéria de facto, com o argumento de que tal matéria não foi alegada pelas partes.
Mais uma vez, é matéria de facto que aqui está em causa e não a pronúncia sobre qualquer questão que não devesse ser apreciada, seja por não ter sido suscitada, seja por não ser do conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2, do Código de Processo Civil). Valem aqui os fundamentos da decisão da questão anterior (omissão de pronúncia). A apelante não invoca um verdeiro excesso de pronúncia.
É em sede de impugnação da decisão proferida em matéria de facto que esta questão do conhecimento de matéria de facto não alegada deve ser tratada, no âmbito da aplicação do art.º 5º do Código de Processo Civil. E, na verdade, a recorrente não deixou de a trazer à liça também naquela sede.
Ainda propósito desta questão de conhecimento de um facto não alegado, a recorrente invoca também a violação da al. e) do nº 1 do mesmo art.º 615º, segundo a qual, a sentença é nula também quando “o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”. Mas não vai além da citação daquela alínea nas conclusões da apelação (não a citou no corpo das alegações), sem qualquer sustentação argumentativa.
Não vemos em que é que a consideração como provado de um facto não alegado possa representar “a condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”. Não que o atendimento de um novo facto não alegado não possa conduzir àquele efeito jurídico; todavia não é em função dele que se afere da nulidade da sentença, com base na referida al. e), mas em função do pedido ou dos pedidos da ação (ou da reconvenção). É a não coincidência da decisão com os petita partium que determina aquela nulidade da sentença. É na ultrapassagem, na sentença, do limite do pedido que a invalidade reside.
A discussão do excesso de factos atendidos não se faz em sede de nulidade da sentença, por não se enquadrar em qualquer dos fundamentos taxativamente previstos nas al.s a) a e) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil.
Improcede também esta questão de nulidade invocada pela apelante.
*
Não foram aquelas as únicas causas de nulidade da sentença suscitadas pela recorrente, 2ª R. Acusa a sentença, mais uma vez de excesso de pronúncia e de condenação ultra vel petitutm, nos termos das al.s d) e e) do nº 1 do citado art.º 615º com outros fundamentos que passamos a sintetizar assim:
- A condenação a R. S..., Lda.. é uma decisão surpresa e excede a causa de pedir e o pedido da ação;
- Os AA. pedem a condenação dos RR. no pagamento do dobro do sinal por resolução ilícita do contrato-promessa, por não terem concretizado o negócio definitivo entre a data da celebração da promessa e entrega do cheque relativo ao valor do sinal e a data da resolução do contrato;
- O tribunal condenou a 2ª R., mediadora imobiliária, por não ter devolvido aquele cheque, violando o contrato de depósito (não discutido nos autos), por ter inviabilizado que os AA. fizessem outro negócio;
- Foi violado o princípio do contraditório (art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) e o direito a um processo equitativo;
- O prejuízo que os AA invocam reside no alegado incumprimento do contrato-promessa e suas consequências; porém, o tribunal tratou da validade, eficácia e consequências do (in)cumprimento de um contrato de depósito, questão com a qual as partes nunca foram confrontadas.

Renovemos aqui a transcrição do pedido da ação:
«Termos em que e nos mais de direito, deve a presente acção ser declarada procedente por provada e por via dela os RR. condenados a:
a) Deve o contrato promessa ser resolvido por culpa exclusiva dos promitentes vendedores.
b) O comportamento do promitente-vendedor que exprima a vontade de não querer cumprir, reconduz-se ao conceito de recusa de cumprimento, o que permite considerá-lo inadimplente de forma definitiva o que deve ser declarado.
c) 1ºs RR. condenados a pagar aos AA. a quantia de 33.800,00 euros, acrescida de juros de mora nos termos do artº 442 nº2 do CC. desde a data da distribuição da acção até efectivo integral pagamento. Ou, caso se entenda que não houve culpa dos RR., que estes sejam condenados a pagar aos Autores a quantia de € 16.900,00 euros acrescida de juros contados desde a data da distribuição da acção até efectivo e integral pagamento.
d) Os 1ºs e 2ªs RR. condenados a pagar aos AA. quantia nunca inferior a 10.000,00 a título de compensação por danos não patrimoniais.»
Resumindo, os AA. pretendem que seja declarada a resolução de um contrato-promessa de compra e venda de um determinado imóvel celebrado entre a A. mulher, na qualidade de promitente-compradora, e o R. marido, na qualidade de promitente-vendedor, por incumprimento definitivo e culposo deste último. Como efeito da resolução, pretendem também os AA. a condenação dos 1ºs RR. no pagamento aos AA. do valor da quantia entregue a título do sinal, em dobro ou, caso se conclua pela inexistência de culpa dos 1ºs RR., a restituição do valor do sinal (€ 16.900,00), em singelo.
Relativamente à 2ª R., agora recorrente, pretendem os AA. que seja condenada a pagar-lhes, juntamente com os 1ºs RR., uma indemnização de € 10.000,00, a título de compensação por danos não patrimoniais.
É a nulidade da sentença por excesso de pronúncia e por condenação ultra vel petitum relativamente àquela indemnização que agora se debate.
Ainda que correndo o risco de nos repetirmos quanto à matéria da nulidade da sentença, é conveniente desenvolvê-la, agora face à sua invocação.
Do art.º 608º, cuja leitura deve ser correlacionada com a citada al. d) do nº 1 do art.º 615º, ambos do Código de Processo Civil, resulta o princípio geral de que a sentença deve corresponder à ação, no sentido de que o juiz deve pronunciar-se sobre tudo o que se pedir e só sobre o que for pedido e de que o juiz deve pronunciar-se tomando por base todos os elementos de facto oferecidos pelas partes em apoio das suas pretensões e só com base nesses elementos.[8] Só há identidade entre a questão posta pelas partes e a questão resolvida pelo juiz quando uma e outra reunirem três elementos comuns: sujeitos, objeto (as pretensões jurídicas a que as partes aspiram) e o facto jurídico ou causa jurídica.
Já o art.º 609º, nº 1, do mesmo código, prevê a matriz da manifestação do princípio do dispositivo quanto ao pedido: “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”[9].
Em matéria de pedido, o juiz não pode, por regra, sobrepor-se à vontade das partes[10]. É a própria substância da relação controvertida que está em causa.
Enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é, pois, de grande importância o modo como o pedido se mostra formulado, por o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor.
Ensinava já Alberto dos Reis[11] que o princípio do dispositivo é, substancialmente, a projeção, no campo processual, daquela autonomia privada que, dentro dos limites marcados pela lei, encontra a sua afirmação mais enérgica na figura tradicional do direito subjetivo. Deverá ser coerentemente mantido no processo civil como expressão irrefragável do poder, atribuído aos particulares, de dispor da sua esfera jurídica própria.
A não coincidência da decisão com os petita partium determina a nulidade da sentença (art.º 615º, nº 1, al. e), do Código de Processo Civil).
Por um lado, através do pedido, as partes delimitam o thema decidendum da ação, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se à situação real conviria ou não providência diversa. Por outro lado, a sentença não deve ultrapassar o limite do pedido, não podendo o juiz, como diz a lei, condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir.
Na decisão que profere, o juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; e na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado. A sentença, seja condenatória ou absolutória, não pode pronunciar-se sobre mais do que o que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida.
Já defendia também Alberto dos Reis que “suprimir estes princípios equivaleria a reformar, mais do que o processo, o próprio direito privado; dar ao juiz o poder de iniciar ex officio um pleito que os interessados querem evitar, ou de conhecer de factos que as partes não alegaram[12], significaria cercear, no campo do direito processual, aquela autonomia individual que, no campo do direito substancial, a lei vigente reconhece e garante”[13]. É matéria na disponibilidade das partes.
Alberto dos Reis dá exemplos evidentes[14]: “Se o autor pediu que o réu fosse condenado a pagar determinada quantia, não pode o juiz condená-lo a entregar coisa certa; se o autor pediu a entrega de coisa certa, não pode a sentença condenar o réu a prestar um facto; se o pedido respeita à entrega duma casa, não pode o juiz condenar o réu a entregar um prédio rústico, ou a entregar casa diferente daquela que o autor pediu; se o autor pediu a prestação de determinado facto (a construção dum muro, por hipótese), não pode a sentença condenar na prestação doutro facto (na abertura duma mina, por exemplo).
Quanto ao excesso de pronúncia, renovamos o que atrás já afirmámos, devendo entender-se por questões os problemas concretos a decidir em cada ação ou reconvenção. O tribunal estará a exceder a pronúncia quando está a decidir uma questão externa ao objeto do processo, discutindo, por exemplo, uma obrigação estranha à causa de pedir e ao pedido nela formulado, e assim surpreendendo as partes, que não discutiram nem tinham que discutir na ação aquela questão.
A causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão de estar para com a decisão.
Ensina também Alberto dos Reis[15]: “A petição inicial, para ser uma peça bem elaborada e construída, deve ter a contextura lógica dum silogismo, deve poder reduzir-se, em esquema, a um raciocínio, com a sua premissa maior (razões de direito), a sua premissa menor (fundamentos de facto) e a sua conclusão (pedido). O autor, ao preparar e organizar a petição, há-de raciocinar como raciocinará mais tarde o juiz, na sentença, para julgar procedente a acção. O esqueleto da petição terá de ser forçosamente um silogismo, sob pena de não poder desempenhar convenientemente a função que lhe é própria. … se a petição não puder transformar-se, em substância, num silogismo, se não tiver sido concebida e elaborada sobre a base dum silogismo mentalmente formulado, há-de ser fatalmente uma peça infeliz e comprometedora.
A causa de pedir, na ação declarativa, é o acervo de factos constitutivos da situação jurídica que, através do pedido, o autor quer fazer valer em Juízo. O autor, cumprindo o ónus de substanciação, indica na petição inicial os factos constitutivos da situação jurídica que quer fazer valer ou negar, ou integrantes do facto cuja existência ou inexistência afirma. São eles que constituem a causa de pedir, que corresponde ao núcleo fáctico essencial tipicamente previsto por uma ou mais normas como causa do efeito de direito material pretendido (art.ºs 5º, nº 1, 186º, nºs 1 e 2, al. a), 552º, nº, al. d) e 581º, nº 4, do Código de Processo Civil). Não se define pelo facto jurídico abstrato, mas pelo facto ou factos concretos essenciais cujos contornos se enquadram na configuração legal. O elemento objetivo da ação passa pela causa de pedir, ou causa pretendi, o facto jurídico essencial que está na base da pretensão ou, como refere Anselmo de Castro[16], o elemento causal do poder de ação, o próprio facto jurídico genético do direito, ou seja, o acontecimento concreto, correspondente a qualquer «fattispecie» jurídica que a lei admita como criadora de direitos, abstração feita da relação jurídica que lhe corresponda.
A causa de pedir é um elemento essencial para a identificação da pretensão processual, estando com esta logicamente correlacionada.
Nos termos da petição inicial, a causa de pedir da ação radica no incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa de compra e venda pelos 1ºs RR. promitentes-vendedores, determinante da restituição do valor do sinal em dobro, ao abrigo do art.º 442º, nº 2, do Código Civil, ou, na falta de culpa deles, a restituição do valor do sinal, em singelo.
Acresce o pedido de indemnização por danos não patrimoniais sobre todos os RR., incluindo a R. recorrente, para o que relevam os seguintes fundamentos de facto também alegados na petição inicial:
«(…)
40º.
A Autora questionou verbalmente a referida EE[17] sobre a hipótese de desistirem do contrato, devolvendo-lhe o sinal, ao que aquela lhe disse que o contrato teria de ser anulado e que dependeria do vendedor.
41º.
No dia 29 deste mês de Janeiro a Autora-mulher recepcionou email da D. EE com o assunto “incumprimento de contrato promessa de compra e venda” conforme documento que protesta juntar em 10 dias com o seguinte conteúdo:
“Bom dia Exma. Cliente AA,
Tendo em conta a sua recusa em avançar com a compra do prédio urbano sito na Rua..., ..., em ..., ... e incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda celebrado e em vigor somos a informar que o promitente-vendedor CC irá depositar o cheque de sinal de 16.900,00€ como indemnização pelo incumprimento doloso da sua parte conforme previsto na clausula 10ª.
De facto, o contrato promessa previa que V/Exa. iria recorrer a financiamento bancário no valor de 152.000,00€ e que teria 8 dias para entregar-nos todos os documentos indispensáveis para aprovação bancária, no entanto, V/Exa. Foi protelando o envio da respetiva documentação e acabou por não submeter o pedido de financiamento bancário em nenhuma Instituição bancária, faltando aos compromissos e obrigações assumidas, constantes nas clausulas 4ª e 5ª do contrato promessa celebrado. Mais informamos que irá receber uma carta do proprietário a comunicar a mesma decisão.
Em caso de dúvidas ou esclarecimento adicional não hesite em contactar-nos, estamos ao seu dispor.
Subscrevo-me com os melhores cumprimentos,
Drª EE “
Tudo conforme se alcança do doc. Nº8
42º.
No entretanto os AA. Receberam carta assinada pela mesma EE de conteúdo exactamente igual conforme doc. Nº9 que se junta a que se dá por reproduzido, porem não junta procuração com poderes especiais para tal.
43º.
Os AA. Desconhecem se a referida D. EE, funcionaria do “ L... “ tem poderes para a resolução do contrato promessa de compra e venda, uma vez que que nunca foi exibida qualquer procuração com poderes especiais para tal efeito, nem tão pouco é referido nem no email que enviou para a Autora, nem da carta que enviou.
44º.
A D. EE… em representação dos promitentes vendedores, não cumpriu o clausulado do contrato nomeadamente o vertido na clausula quinta e ao ser questionada sobre a falta dos documentos que eram indispensáveis para a viabilidade de qualquer empréstimo , resolveu unilateralmente o contrato.
Com efeito,
45º.
A D. EE ao enviar o email referido no item 39 aos promitentes compradores e a carta registada referida no item 40 – doc. nº9 ( apesar de assinada apenas e só pela D. EE) já junta aos autos, resolveu o contrato promessa, de forma unilateral, e de forma dolosa.
46º.
A comunicação do promitente-vendedor ao promitente-comprador de que não irá cumprir o contrato celebrado, integra por si só, uma situação de incumprimento definitivo, que se presume culposo.
47º.
Acresce ainda que os RR. representados pela D. EE celebraram o presente contrato promessa em 27 de Novembro de 2018, e recebeu o cheque do sinal , sabendo que não tinha autorização para tal, já que em Dezembro informou por email a A. mulher que o R. ainda não sabia se queria vender.
E,
48º.
Só dias mais tarde informou pela mesma via (email) que os promitentes vendedores tinham aceitado vender – doc. Nº 5 ou seja a D. EE recebeu um sinal, que manteve seu e que, ao comunicar a resolução do contrato afirmou ir proceder ao deposito do cheque por incumprimento por parte dos compradores.
Ora,
49º.
No caso do promitente-comprador ter entregue sinal a favor do promitente-vendedor, e, verificando-se a mora no cumprimento por parte do último, pode o primeiro requerer a execução específica do contrato, se esta for possível, ou exigir a restituição do sinal em dobro.
50º.
Uma vez que se trata de incumprimento definitivo do contrato-promessa.
51º.
Pois, conforme já referido nos itens 41 e 42 a comunicação enviada por SMS pela D. EE… em representação dos Primeiros RR. aqui promitente-vendedor á promitente-comprador de que não irá cumprir o contrato celebrado, e posteriormente por carta registada integra já, e por si só, uma situação de incumprimento definitivo, que se presume culposo.
52º.
Existirá culpa sempre que o promitente-vendedor não proceda como procederia, no caso concreto, uma pessoa que usa deveres de diligência exigíveis do homem comum, enquanto pessoa normalmente cautelosa e precavida.
53º.
E no caso do promitente-comprador haver constituído sinal a favor do promitente-vendedor, verificando-se a mora no cumprimento por parte do último, pode o primeiro, em alternativa, requerer a execução específica do contrato, se esta for possível, ou exigir a restituição do sinal em dobro (art. 442ºnºs.2 e 3 do CC.
54º.
Pelo que deverá o contrato promessa ser resolvido e os 1ºs RR. condenados a devolver aos AA. A quantia de 33.800,00 euros, acrescida de juros de mora nos termos do artº 442 nº2 do CC. desde a citação até integral pagamento.
Ou, caso se entenda que não houve culpa dos RR., que esta seja condenada a pagar ao autor a quantia de € 16.900,00 euros acrescida de juros contados desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
(…)
57º.
Por isso, “se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso se não oponha a natureza da obrigação assumida nos termos do art. 830ºnº.1 do CC.
58º.
A comunicação dos RR. transmitida pela D. EE funcionaria da 2ª Ré á Autora mulher de que não iria cumprir o contrato celebrado, integra já, e por si só, uma situação de incumprimento definitivo. Isto porque, o comportamento do promitente-vendedor que exprima a vontade de não querer cumprir, reconduz-se ao conceito de recusa de cumprimento, o que permite considerá-lo inadimplente de forma definitiva .
59º.
E integra uma situação de incumprimento culposo imputável aos RR., uma vez que o contrato-promessa está submetido ao regime legal aplicável à generalidade dos contratos, regime em que o devedor que não cumpre uma obrigação incorre numa presunção de culpa.
60º.
Por outro lado, ao prometer vender coisa para a qual não tinha autorização dos vendedores e ao não demonstrar que tudo tivesse feito para cumprir com o prometido, tornando em definitivo o seu incumprimento, actuou sem a diligência exigível ao homem médio, isto é, actuou culposamente e constituiu-se responsável pela restituição do sinal em dobro.
Danos não patrimoniais
61º.
Os AA. na expectativa de celebração do negocio que teria de ser feito impreterivelmente até ao dia 27/2/2019, deixaram de procurar casa, para habitação sua e da respectiva família, fruto da adopção por parte dos RR. de um comportamento que criou nos AA., uma situação de pelo menos aparente confiança quanto á outorga do contrato prometido.
62º.
Se os AA. não estivesse convencido de o contrato seria cumprido, teriam aceite outro negocio de um outro prédio, que só não aceitaram por motivo de já terem entregue o sinal.
63º.
O certo é que o tempo passou e os AA. tiveram de se remediar no mesmo prédio onde antes residiam, com os constrangimentos que levaram os AA. a procurar casa para passarem a residir.
64º.
Todo o comportamentos dos RR. ao longo do tempo que medeia a assinatura do contrato e a recepção da carta a comunicar que a resolução do contrato iria ter lugar por incumprimentos dos AA. é abusivo, excedendo os limites que a tutela da confiança impunha, o que dá aos AA. o direito de ser indemnizado, nos termos gerais,
65º.
Pelo que devem ser ressarcidos em valor nunca inferior a 10.000,00.
(…)».

Vejamos o que foi decidido na sentença recorrida relativamente à 2ª R., sociedade de mediação imobiliária:
«No presente caso a coisa prometida vender já foi alienada. O R. CC
não tem mais na sua esfera jurídica o direito de propriedade cujo objecto mediato era a casa do ..., na Rua da ....
Claramente, o incumprimento é definitivo por impossibilidade absoluta de se realizar o contrato prometido.
Consequência do supra seria de concluir que os AA. têm direito a receber o sinal prestado, em dobro.
Na responsabilidade contratual ao credor basta tão só provar a existência dos danos e do nexo de causalidade, uma vez que a acção ilícita é consubstanciada no incumprimento e a culpa presume-se nos termos do art.º 799.º do C.Civil.
É precisamente nesta sede que, a nossa ver, os presentes autos apresentam a sua particularidade.
Da prova produzida resulta, à saciedade, que foi a conduta da R. imobiliária que provocou toda esta situação: pura e simplesmente não permitiu que se formalizasse o acordo de revogação do contrato-promessa, aliás, como era vontade dos seus intervenientes.
Não pode ser assacado ao R. CC qualquer juízo de censura, no sentido de que podia e deveria ter procedido à celebração do contrato definitivo.
Bem pelo contrário. O R. CC ficou convencido que a A. mulher queria “anular” o contrato – o que lhe foi comunicado pela funcionária da R. imobiliária - e como tal deu instruções à R. imobiliária para encontrar outro comprador.
Nenhuma noção tinha o R. CC do vazio de informação e a desinformação em que a R. imobiliária tinha a A. mulher.
Tanto quanto foi possível apurar, para o R. CC, as pretensões dos AA. deixaram de existir.
E mais, estava convencido de que se alguém poderia acionar responsabilidades contratuais era ele, CC, o que optou por não fazer.
Em suma, a factualidade apurada permite, quanto a nós, arredar a presunção de culpa que impendia sobre o R. CC.
Como tal, fica afastada a pretensão dos AA. em verem repetido, em dobro, o sinal prestado.
Queda por apurar a pretensão indemnizatória dos AA. a título de danos não patrimoniais.»
Numa extensa locução genérica sobre os deveres acessórios e laterais de conduta, abrangidos pelo princípio da boa fé, tutelado pelo art.º 762º do Código Civil, destacamos da sentença os seguintes excertos:
«(…)
Num contrato as partes não assumem apenas obrigações principais, as obrigações que caracterizam essencialmente o tipo contratual e lhe correspondem.
Assumem ainda frequentemente obrigações secundárias ou acessórias que têm por finalidade criar condições para o cumprimento daquelas ou assegurar a integral satisfação do interesse visado por aquelas. Só o conjunto de todas as obrigações, principais, secundárias e acessórias permitirá cumprir o plano contratual e alcançar a composição de interesses que a partes tiveram presentes na negociação e em vista com a celebração do contrato.
(…)
Nos casos de contratos cujo cumprimento é relegado para futuro e cujas obrigações dependem de uma série de procedimentos instrumentais, paralelos ao contrato, mas indispensáveis para a criação de condições para o seu cumprimento, esses deveres secundários ou acessórios assumem especial relevância.
Finalmente pode ainda argumentar-se que a relação especial constituída pelo contrato gera deveres específicos de protecção dos interesses da outra parte ancorados nas exigências da boa fé.
(…)
Esses deveres são conformados de forma diversa consoantes as circunstâncias do caso, mas têm conteúdos mínimos como o dever de informação sobre a evolução do contrato ou das circunstâncias que têm a ver com ele, o dever de esclarecimento da parte contrária por forma a que ela possa tomar decisões conscientes e isentas de erros factuais ou o dever de protecção de modo a evitar que sobrevenham circunstâncias que possam redundar em prejuízos para a parte contrária.
(…)
Volvendo ao caso em apreço a situação que se coloca é, para o que ora releva, que a actuação da R. imobiliária sobrepôs, de forma absoluta, o seu interesse em que a A. mulher comprasse através daquela uma casa.
De tal maneira que não só não actuou de acordo com a vontade dos AA. e do R. CC, como ainda agiu sobre a A. mulher ameaçando-a, formalmente, com a perda do valor do sinal, ao arrepio daquilo que era a vontade da única pessoa que podia dispor de tal: o R. CC.
Ademais, a R. imobiliária, mesmo depois do imóvel em causa ser vendido, não entregou o cheque, titulativo do valor do sinal e princípio de pagamento, aos AA. E tudo apesar da A. mulher o ter pedido em 12.1.2019 (fls. 130).
Os AA. são, na economia da mediação imobiliária, considerados destinatários dos serviços - cfr. art.º 2.º, n.º 5 da Lei n.º 15/2013 de 8 de Fevereiro.
Nos termos do art.º 18.º, n.º 1 do referido diploma legal as quantias prestadas pelos destinatários consideram-se depositadas à guarda da empresa de mediação quaisquer quantias recebidas dos destinatários de negócio por si mediado, mesmo que a título de preço, que lhe sejam confiadas antes da celebração do mesmo ou do respetivo contrato-promessa, devendo restituí-las imediatamente a quem as prestou, logo que para tal solicitada.
(…).
Daqui decorre que, para o que releva, entre A. e R. imobiliária havia uma relação contratual no âmbito de um contrato de depósito – aliás como a própria R. imobiliária coloca a negrito o acordo (contrato) de reserva de imóvel, entrega de pré-sinal e princípio de pagamento.(…)
Mercê do disposto no art.º 18.º, n.º 1, in fine, da referida Lei e do estabelecido nos artigos 1185.º, in fine, 1187.º, al. c) e 1194.º ab initio (cfr. art.º 18.º, n.º 3 da Lei supra) não restam dúvidas que a R. imobiliária tinha o dever contratual de, logo que foi interpelada pela A., lhe devolver o cheque.
E não se diga que competia à A. ir buscar o cheque às instalações da imobiliária - cfr. art.º 1195.º do CC – pois que, por um lado, esta comunicou – inveridicamente - àquela que o R. CC o iria fazer seu, depositando-o.
Por outro lado, sempre a R. imobiliária andou a empatar a A. com promessas de cumprimento do contrato, que bem sabia que nunca ia ser celebrado, porque o R. CC de tal havia, expressamente, dado conhecimento à R. imobiliária.
Uma vez que se trata de relação contratual, analisar-se-á a questão sob a perspectiva da responsabilidade civil.
A ilicitude da acção da R. imobiliária resulta não só da violação da obrigação de restituição do cheque, como igualmente resulta da adopção de uma prática comercial agressiva, proibida nos termos do disposto no art.º 11.º, n.º 1 do DL n.º 57/2008 de 26 de Março.
A culpa, como supra se referiu, presume-se – cfr. art.º 799.º do CC.
No entanto, a matéria factual demonstrada, é mais do que abundante no sentido de autorizar a conclusão que a R. imobiliária agiu em desconformidade com o dever legalmente imposto, quando podia e deveria ter agido de forma distinta.
Desde logo entregar o cheque e bem assim permitir a formalização da revogação do contrato promessa.
(…)
Apreciando a matéria dada como provada e não olvidando aquilo que veio já de se dizer verifica-se que os danos ocorridos foram causados pela actuação culposa da R. imobiliária, situação a qual é em abstracto, tal como foi em concreto, apta a provocar o evento.
(…)».
Vejamos.
Quer os deveres principais, quer os deveres acessórios e laterias de conduta, são deveres contratuais e, como tal, vinculam as partes contratantes.
O princípio da autonomia privada se, nos domínios onde a lei não dispõe de modo imperativo, confere às partes o direito de definirem as relações jurídicas entre elas, também exige a sua livre participação nessa definição, não admitindo que ela resulte de atos de terceiro ou de acordos a que elas são alheias. Na dimensão do princípio da relatividade dos contratos, estes são res inter alios acta, não sendo idóneos a prejudicar a posição de terceiros. Apenas produzem efeitos entre as partes. Em relação a terceiros, o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei (art.º 406º, nº 2, do Código Civil).
À luz da petição inicial, a causa de pedir na ação é o incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda de um determinado bem imóvel, contrato esse supostamente celebrado entre a A. mulher e o 1º R. marido, não cumprido por este, assistindo, por isso, aos AA. o direito à restituição do sinal em dobro, nos termos do art.º 442º, nº 2, do Código Civil.
O pedido da ação está orientado para os efeitos daquele incumprimento, mesmo no que respeita à 2ª R. mediadora imobiliária relativamente aos danos não patrimoniais.
Mesmo quando, no artigo 60º da petição inicial, os AA. parece quererem referir-se à 2ª R., quando alegam que prometeu vender coisa para a qual não tinha autorização dos vendedores, consideram que foi essa mesma pessoa que tornou definitivo o incumprimento do contrato, constituindo-se responsável pela restituição do sinal em dobro; ou seja, pretendem que seja extraído da sua conduta o efeito próprio do incumprimento definitivo e da resolução do contrato.
Da leitura dos art.ºs 61º e seg.s da petição inicial, também os prejuízos invocados --- na falta de outra causa --- devem ser entendidos como correspondentes ao referido incumprimento definitivo do contrato, estando a respetiva indemnização associada ao pedido de restituição do sinal em dobro. Foi por se ter frustrado a expetativa e confiança em que o contrato-promessa iria ser cumprido, tendo entregado o valor do sinal, que os AA. deixaram de procurar outros imóveis para habitar, remediando-se no mesmo prédio onde antes residiam.
Ora, a 2ª R. não é parte no contrato-promessa, como não o seria na celebração do contrato definitivo ou prometido de compra e venda. A nada se obrigou nos termos daquele contrato.
A 2ª R., no exercício da sua atividade mediadora, foi contratada pelos 1.ºs RR. para diligenciar pela angariação de cliente com vista à aquisição do imóvel. Mas, relativamente ao contrato-promessa, é um terceiro, não é parte. Não é a 2ª R. que se obriga ao seu cumprimento e que sofre as consequências do respetivo incumprimento definitivo. Qualquer conduta sua suscetível de gerar responsabilidade contratual ou extracontratual tem que ser encontrada fora do quadro dos direitos e das obrigações inerentes ao contrato-promessa.
Por conseguinte, a 2ª R. não pode ser responsabilizada por danos não patrimoniais (os únicos que contra ela foram invocados) relativos ao incumprimento daquele contrato, como se do promitente vendedor se tratasse.
Como vimos, para justificar a indemnização daqueles danos, o tribunal a quo apela à existência de um contrato de depósito entre a 2ª R. e a A. promitente-compradora.
A A. mulher entregou à 2ª R. uma quantia de reserva e também com valor de sinal e princípio de pagamento que, oportunamente, aquela empresa imobiliária deveria entregar ao promitente-vendedor no âmbito do contrato de mediação que com ele estabeleceu.
Embora a lei classifique os atos de entrega de quantias pecuniárias à mediadora de depósito (art.º 18º, nº 1, da Lei nº 15/2013, de 8 de fevereiro) e mande aplicar, com as necessárias adaptações, as disposições previstos no Código Civil para o contrato de depósito, não se trata de um verdadeiro contrato mas de um depósito legalmente tutelado em função das relações próprias do contrato intermediado, designadamente o contrato-promessa e em função da necessidade das negociações preliminares e do seu cumprimento. No caso, a promitente-compradora sujeitou-se ao relacionamento com a empresa mediadora imobiliária escolhida e contratada pelo cliente dela, o promitente vendedor.
Os AA. são, na economia da mediação imobiliária, destinatários dos serviços que esta se obrigou a prestar perante os 1ºs RR., os seus clientes, a través do contrato de mediação imobiliária (art.ºs 2º, nºs 5 e 6, e 17º da Lei nº 15/2013, de 8 de fevereiro).
Diz a sentença que a ilicitude da ação da R. imobiliária resulta não só da violação da obrigação de restituição do cheque, como igualmente resulta da adoção de uma prática comercial agressiva, proibida nos termos do disposto no art.º 11.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 57/2008 de 26 de março. Podia e devia ter agido de outro modo, entregando o cheque e permitindo a formalização da revogação do contrato-promessa.
Acontece que os fundamentos da ação não assentam na existência de qualquer contrato de depósito e na obrigação de restituição aos AA., pela 2ª R., da quantia recebida a título de sinal. E, embora a petição inicial se refira à ação perturbadora da 2ª R. no cumprimento do contrato-promessa e à não viabilização da sua revogação, desejada por ambas a partes, a verdade é que o pedido de reparação de danos morais foi deduzidos contra todos os RR. pelo incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa. Foi esta a causa de pedir da indemnização, sem distinção de causas e de responsabilidades dos 1ºs RR e 2ª R.
O fundamento encontrado na sentença para a atribuição da indemnização pelos danos não patrimoniais é novo relativamente à causa de pedir da ação e do respetivo pedido. Este estava orientado exclusivamente para as consequências danosas do incumprimento contratual, que os AA. imputam a todos os RR., enquanto a sentença faz radicar o dever de reparar os danos não patrimoniais na conduta negligente da 2ª R. na prestação dos seus serviços e na violação de um suposto contrato de depósito que nem sequer foi alegado na petição inicial e relativamente ao qual as partes não tinham que contar face ao pedido da ação, estando este exclusivamente direcionado para o incumprimento do contrato-promessa e suas consequências, à luz do art.º 442º do Código Civil.

A decisão de condenação da 2ª R. em indemnização pelo dano moral não tem base de sustentação na causa de pedir da ação --- incumprimento definitivo do contrato-promessa por ela e pelos promitentes-vendedores --- não correspondendo, com efeito, ao próprio pedido.
Além de corresponder a uma situação de excesso de pronúncia por assentar numa causa de pedir não devidamente alegada pelos AA., atribui uma indemnização diferente, com causa justificativa qualitativamente diferente, daquela que era pretendida, pelo que a sentença é nula nos termos das al.s d) e e) do nº 1 do art.º 615º do Código de Processo Civil, relativamente à condenação na indemnização a favor da 2ª R.
Esta invalidade não inquina a sentença na parte em que conhece e decide a matéria não impugnada no recurso.
*
3. Erro de julgamento na decisão proferida em matéria de facto
Haveríamos agora de tratar da matéria da dissidência da recorrente relativamente à decisão proferida em matéria de facto, revendo determinados factos dados como provados e não provados pelo tribunal recorrido e alterando, caso se justificasse em função da sua relevância e da prova produzida, a matéria de facto fixada na sentença, contanto que cumprido o ónus de impugnação recursiva imposto à recorrente (art.ºs 640º e 662º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Acontece que, pelas razões que passamos a explicar, a apreciação do objeto desta questão do recurso se nos afigura manifestamente inútil, face à solução jurídica que o caso granjeia; a mesma, com ou sem a pretendida alteração, como veremos.
Não é lícito realizar no processo atos inúteis (art.º 130º do Código de Processo Civil).[18]
Por tudo, sobrestamos na reapreciação da decisão proferida em matéria de facto para passar a conhecer do Direito aplicável relativamente ao mérito.

É apenas a indemnização por danos não patrimoniais em que a 2ª R. imobiliária foi condenada que aqui se discute (além da litigância de má fé).
Já concluímos pela nulidade da sentença por não ter observado a respetiva causa de pedir e o inerente pedido indemnizatório deduzido pelos AA.
Já observámos ali que a recorrente não é parte no contrato-promessa e, como tal, não pode ser condenada pelas consequências danosos do seu incumprimento, a causa de pedir da indemnização pretendida.
Sempre se dirá ainda que, no incumprimento do contrato-promessa, em regra, não há indemnizações para além da restituição do sinal em dobro. Existirá, no entanto, esse direito a indemnização se as partes contratantes o tiverem estipulado (art.º 442º, nº 4, do Código Civil).
Como afirma Manuel Januário Costa Gomes[19], “a primeira parte do n.º 4 do art.º 442.º tem aplicação sempre que, em qualquer contrato – incluindo os contratos-promessa – o contraente fiel, seja ele o accipiens ou o tradens, faça funcionar o mecanismo do sinal. Em tal caso, inexistindo convenção em contrário, não pode ele exigir indemnização suplementar, ainda que alegue e prove que os prejuízos sofridos excedem em valor a indemnização ditada “a forfait” pelo mecanismo do sinal. (…) Na verdade, inexistindo convenção em sentido contrário, é de entender que a indemnização correspondente ao sinal (…) cobre todos os danos sofridos pelo contraente fiel, ainda que deixe “descobertos” os danos excedentes sofridos pelo mesmo (…)
Mas tem-se entendido também que o sinal também não impede o credor de exigir indemnização nos termos gerais, quando o incumprimento culposo se refira a uma obrigação secundária e autónoma da obrigação principal, sempre que tal incumprimento, não se refletindo no cumprimento da obrigação principal, seja produtor de danos.[20]
Ainda que fosse de admitir a responsabilidade da 2ª R. por incumprimento definitivo do contrato-promessa (no que não assentimos), sempre se diria que, na falta de estipulação em contrário, não há lugar, pelo não cumprimento do contrato, a qualquer outra indemnização, nos casos de perda do sinal ou de pagamento do dobro deste (art.º 442º, nº 4, do Código Civil). Por isso, os AA. não podiam ter pedido contra os RR., como pediram, a indemnização pelos danos morais resultantes do incumprimento definitivo do contrato.
Correndo também o risco de lavrar fora da causa de pedir da indemnização por danos não patrimoniais, poderia ainda argumentar-se que, dada a conduta da 2ª R., com intervenção nos factos para além dos poderes próprios da mediação imobiliária, agiu ilicitamente quando, no dia 29 de janeiro de 2019, através da sua funcionária EE, enviou uma carta aos AA. considerando existir incumprimento definitivo do contrato, por culpa da A. Teria então a 2ª R., ilicitamente, perturbado o relacionamento das partes no contrato-promessa de compra e venda, excedendo a margem de liberdade que o acordo de mediação lhe concedia no desenvolvimento daquela relação contratual.
Em princípio, só as partes no contrato estão vinculadas ao cumprimento dos deveres que lhe são inerentes, sejam eles principais ou secundários, acessórios ou laterais de conduta, dando guarida ao princípio da boa fé contratual.
Poderíamos, no entanto, discutir uma eventual situação de responsabilidade da 2ª R. na qualidade de terceiro cúmplice, figura que a jurisprudência mais moderna tem vindo a colher, ainda que excecionalmente, com base no abuso de direito, afastando-se de posição menos recente que não a admite no nosso direito civil com o argumento de que a lei portuguesa não reconhece uma eficácia externa das obrigações por forma a corresponsabilizar o terceiro cúmplice pela indemnização devida pela sua violação ilícita, pelo que, para estes, só ao devedor pode ser exigida tal indemnização.[21]
Diferentemente, aquela moderna doutrina do efeito externo das obrigações defende que, além do efeito interno das obrigações, dirigido contra o devedor e em todo o caso primacial, há um efeito externo, traduzido no dever imposto às restantes pessoas de respeitar o direito do credor, ou seja, de não obstar nem dificultar o cumprimento da obrigação. Agindo o terceiro neste sentido, pode ser chamado a responder diretamente para com o credor por ter lesado o direito de crédito.
O problema surge normalmente relativamente aos contratos de que resulta uma obrigação de contratar no futuro, designadamente, a propósito do contrato-promessa e também do pacto de preferência.
Exceção feita para as situações em que a lei prevê expressamente o efeito externo das obrigações de que Almeida Costa dá exemplo a obrigação de alimentos em função do que dispõe o art.º 495º, nº 3, do Código Civil[22], é comummente aceite a posição de que o efeito externo das obrigações só é admissível nas situações em que o terceiro impediu o cumprimento da obrigação agindo com abuso de direito; são situações em que a conduta de terceiros se mostre particularmente chocante e censurável por dar origem a uma situação e injustiça gritante. Neste caso pode responder perante o credor em sede de responsabilidade extracontratual.
O direito do credor seria assim oponível não apenas ao devedor, mas também a qualquer terceiro, cúmplice no incumprimento, se a sua atitude puder ser qualificada como abuso do direito. O terceiro poderá então ser responsabilizado pelo credor, ao abrigo dos art.ºs 334º e 483º e seg.s do Código Civil, se exercer um qualquer direito seu em desconformidade com o respetivo fim económico e social, e violar as regras da boa fé ou dos bons costumes.
Apesar da alusão ao abuso na ação da 2ª R. mediadora, a causa do pedido de indemnização assentou no incumprimento definitivo e culposo do contrato, que a sentença negou ter existido por culpa dos RR. (a culpa que cumpria apreciar), não propriamente na teoria do terceiro cúmplice.
Mas ainda que se entendesse que o pedido de indemnização poderia e deveria ser enquadrado no âmbito daquela excecional eficácia externa das obrigações e se devesse concluir --- com ou sem o reexame da decisão em matéria de facto --- que a 2ª R. poderia ser responsabilizada nessa base factual, sempre seria necessário a reunião de todos os pressupostos da responsabilidade civil, para que pudesse ser condenada no pagamento da indemnização pretendida.
Não há indemnização sem dano, um dos pressupostos da responsabilidade civil por atos ilícitos e também da responsabilidade contratual.
O dano não patrimonial grave (o único dano aqui discutível), merecedor da tutela do Direito, nos termos do art. 496º, nº 1, do Código Civil, tem sido entendido como aquele que ultrapassa as fronteiras da banalidade, que, segundo as máximas da experiência, do bom senso, e das regras do homem médio, torne inexigível a sua aceitação. Um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade de uma dor, de uma angústia, de um desgosto, de um sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torne inexigível em termos de resignação[23].
A inserção sistemática daquele preceito (na subsecção referente à responsabilidade civil por factos ilícitos) e a inexistência de qualquer disposição legal que, de forma expressa, determine a sua aplicabilidade à responsabilidade contratual, gerou controvérsia, na doutrina e na jurisprudência, no que respeita à possibilidade de esse tipo de dano ser indemnizado quando tem a sua origem no incumprimento ou cumprimento defeituoso de um contrato.
Invocando que a ressarcibilidade desse tipo de dano introduziria no capítulo da responsabilidade contratual um fator de séria perturbação da certeza e segurança do comércio jurídico, considerava o Prof. Antunes Varela que os danos não patrimoniais não são suscetíveis de indemnização no âmbito da responsabilidade contratual[24].
Em sentido contrário, opinava o Prof. Galvão Telles[25], referindo que, entre a responsabilidade extraobrigacional e a responsabilidade obrigacional não existia uma diferença que justificasse estender a primeira e não a segunda aos prejuízos não patrimoniais.
Certo é, porém, que a nossa jurisprudência mais recente tem aceitado de modo praticamente uniforme a indemnização daqueles danos, no âmbito da responsabilidade contratual[26] e, na verdade, não vislumbramos razões válidas para considerar que os danos morais com gravidade e relevância suficiente para merecer a tutela do direito apenas devam ser considerados quando esteja em causa uma responsabilidade por factos ilícitos e pelo risco, quando é certo que a responsabilidade contratual, emergente do incumprimento (culposo) ou cumprimento defeituoso de um contrato, pode igualmente causar danos daquela natureza com idêntica ou superior gravidade.
Todavia, como se refere no acórdão da Relação do Porto de 07.07.2005[27], a admissão da ressarcibilidade desses danos não dispensa a que se atente na realidade contratual para efeitos de considerar o mínimo geral do merecimento da tutela do Direito aferida a partir da gravidade do dano.
Afigura-se-nos que, caso se verifiquem os pressupostos de que depende a obrigação de indemnizar, essa obrigação inclui os danos patrimoniais e não patrimoniais, desde que estes assumam relevância e gravidade bastante para merecer a tutela do Direito.
Os danos não patrimoniais associados ao incumprimento de um contrato reconduzem-se, em regra, a meros incómodos, aborrecimentos e frustrações que, como se mencionou, não assumem a relevância e gravidade que seria necessária para conferir ao lesado o direito à respetiva indemnização. Mas, como é óbvio, nem sempre será assim, já que, por vezes e por variadas razões, os danos morais sofridos em consequência desse facto ultrapassam aquilo que devemos ter como razoável e suportável para quem vê desrespeitado o seu direito a obter o integral cumprimento de um contrato que celebrou com outrem.
Nesta matéria, provou-se apenas que os AA. tiveram de se remediar no mesmo prédio onde antes residiam, com os constrangimentos que levaram os AA. a procurar casa para passarem a residir.
O tribunal não julga com a matéria alegada, mas com a matéria provada.
Não sabemos quais foram os constrangimentos e qual foi a sua relevância na vida dos AA. Não se conhece nenhum dano moral concreto, mesmo que apenas tristeza ou desgosto significativo que se revele, por exemplo, no ter que suportar a habitação numa casa antiga, fria ou muito húmida, ou onde se propagasse muito ruído perturbador do sono dos residentes, ou qualquer outro motivo pelo qual os AA. confiavam mudar-se para o imóvel objeto do contrato-promessa, com melhores condições de habitabilidade e conforto, dentro do prazo previsto para a celebração do contrato de compra e venda prometido.
Em suma, não só não se verifica a gravidade do dano que justifica a tutela do Direito, como nem sequer o próprio dano concreto, elemento essencial à responsabilidade e à obrigação de indemnizar.
Com efeito, jamais o pedido em causa poderia ser julgado procedente e, como tal, o recurso procede, com absolvição da 2ª R. do pedido da ação deduzido também contra ela.
O problema da decisão surpresa e da necessidade de cumprir o contraditório relativamente à decisão proferida pelo tribunal recorrido (art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil), defendido pela recorrente, só poderia ter expressão relevante se ação devesse prosseguir com o fundamento (novo) de que o tribunal se serviu para decidir a condenação da 2ª R. (no pagamento da indemnização por danos não patrimoniais). Não assim na improcedência daquele pedido.
Fica prejudicado o conhecimento das questões da nulidade do contrato-promessa de compra e venda e do abuso de direito da A. suscitadas pela recorrente (questões nºs 4 e 5).
*
6. Litigância de má fé
Resulta da sentença:
«(…)
Na verdade a R. imobiliária distorce a realidade dos factos, manipulando-os, tendo, desde logo, alegado uma realidade que sabia não ser verdade, qual seja, a da ordem cronológica da celebração dos contratos promessa, querendo com isso dar a ideia que foi a A. mulher que deu o dito por não dito, quando a R. imobiliária sabia que tal não era, nem foi, um facto verdadeiro.
Com tal descrição e alegação queria imputar o incumprimento do contrato promessa à A. mulher.
Porém a actuação da R. imobiliária não se queda por aqui.
A R. imobiliária quis imputar a retenção do cheque dos € 16.900,00 à putativa actuação do R. CC, ou seja, escudou-se num comportamento deste que nunca, sequer, pelo mesmo foi equacionado, qual seja, fazer seu o valor do sinal.
Sendo certo que era do conhecimento da R. imobiliária, na pessoa do seu legal representante da funcionária EE, que não só o R. CC não queria “accionar” o sinal, nem tão pouco lhes deu qualquer tipo de instruções para agirem da forma que agiram com a R. mulher, enviando o email de fls. 31 e a carta de fls. 32.
Também deste prisma se assiste a uma conduta processual absolutamente reprovável e censurável.
Numa palavra: a R. imobiliária foi a responsável por toda a confusão e, processualmente adoptou uma postura de desresponsabilização e manipulação de factos.
Foi além, muito além, do temerário.
Não foi a prova que não aderiu à sua alegação; foi a sua alegação construída que, comprovadamente, resultou de uma vontade pré-ordenada de se desresponsabilizar…atribuindo, de forma que sabia não corresponder à verdade, a responsabilidade a quem nenhuma culpa teve no resultado de tudo.
Agiu, representando que o que alegou não correspondia à verdade e querendo com isso influenciar a decisão do Tribunal.
Actuou, pois, com má fé.
Decorrência de tal e tendo em conta a factualidade dos autos, nomeadamente o grau de censura dirigido à R. S..., LDA, considerando que a multa é fixada entre 2 UC e 100UC, fixa-se a mesma em 10 unidades de conta – cfr. 27.º, n.º 3 do RCProcessuais.
Em relação ao conteúdo da indemnização, determina-se a notificação dos AA. para os efeitos do disposto no art.º 543.º, n.º 3 do C.P.Civil.
(…)».

Na apelação, alega a recorrente que o incumprimento é imputável à A. mulher, por ter sido ela que pediu a anulação do negócio.
Consta também das alegações da recorrente:
«O email e a carta que a Ré S..., LDA envia à Autora mulher pretende advertir a Autora das consequências do seu incumprimento e instá-la a cumprir.
Tais documentos, de fls. 30 verso, 31 e 32, referem que essa decisão será confirmada pelo proprietário:
“Mais informamos que irá receber uma carta do proprietário a comunicar a mesma decisão”.
Tal atuação da Ré S..., LDA integra-se no âmbito das diligências que promoveu para a venda do imóvel, e cujo esforço estava a ser gorado pela atuação da Autora mulher que, com fundamento na essencialidade do prazo de 27 de fevereiro de 2019 (que não ficou provada) pretendia a anulação do negócio.
De forma alguma tal atuação da Ré S..., LDA pode ser interpretada como litigância de má-fé, até porque a Ré S..., Lda.. não verteu na sua peça de contestação que foi o co-Réu CC que lhe deu instruções para escrever tais comunicações (única situação em que a verdade poderia eventualmente ter sido desvirtuada pela Ré S..., Lda..).
Veja-se, a tal propósito, o artigo 45.º da Contestação da Ré S..., Lda.:
“A ré Contestante enviou cartas de interpelação á Autora para que esta cumprisse o contrato que havia proposto e aceite, e que a Ré contestante a muito custo, com o seu próprio prejuízo, havia prosseguido e concretizado, mas esta não mais respondeu.”
A condenação da parte por litigância de má fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição arredada de qualquer fundamento, exigindo-se que tenha a mesma atuado com dolo ou com negligência grave, ou seja, sabendo de antemão da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, ou encontrando-se em situação/posição que lhe permitia saber sem dificuldade que a oposição deduzida estava votada ao fracasso.
Salvo o devido respeito, e conforme resulta da reapreciação da prova que se requer, e dos articulados da Ré, não se verifica qualquer má-fé material ou processual da parte da Ré S..., LDA.
Pelo que, também nessa parte, mal andou o Mmo. Juiz do Tribunal recorrido.
Quisessem os Autores ter celebrado o contrato definitivo (que recusaram com fundamento na essencialidade de o fazerem até ao dia 27 de fevereiro) e tê-lo-iam feito.
É notório e ostensivo, de toda a prova carreada para os autos, que foi a Autora mulher que não quis cumprir com o contrato.
Nenhum interesse detinha a Ré S..., LDA (bem antes pelo contrário) em que o contrato não fosse cumprido.
Não há, por isso, qualquer distorção da verdade pela Ré S..., Lda.»
Vejamos!
Esta última questão é saber se a conduta da 2ª R. é ou não merecedora de censura na litigância, à luz do art.º 542º do Código de Processo Civil de cujo nº 2 resulta que litiga de má fé quem, “com dolo ou negligência grave”:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
As al.s a) e b) respeitam a aspetos relativos à relação jurídica material e as al.s c) e d) apontam para infrações de natureza instrumental.
Na litigância de má fé haverá sempre que ponderar o princípio da culpa na ação dos litigantes, sob pena de fazer recear a qualquer interessado o direito de recorrer livremente aos tribunais para fazer valer os seus direitos; ou melhor, os direitos de que se julga titular e dos quais pretende ser convencido ou convencer terceiros, justamente através destes órgãos de soberania.
Atualmente e desde a reforma processual introduzida no anterior Código de Processo Civil pelo Decreto-lei nº 329-A/95, de 12 de dezembro, que a lei sanciona, além do dolo malicioso do litigante, a sua negligência grave. Escreveu-se no preâmbulo daquele decreto-lei: “Como reflexo e corolário do princípio da cooperação, consagra-se expressamente o dever de boa fé processual, sancionando-se como litigante de má fé a parte que, não apenas com dolo, mas com negligência grave, deduza pretensão ou oposição manifestamente infundadas, altere, por acção ou omissão, a verdade dos factos relevantes, pratique omissão indesculpável do dever de cooperação ou faça uso reprovável dos instrumentos adjectivos”.
Incorre em culpa grave ou erro grosseiro a parte que vai para Juízo sem tomar em consideração as razões ponderosas que comprometiam a sua pretensão. É a lide gravemente temerária[28]. Ocorre negligência grave nas situações resultantes da falta de precauções exigidas pela mais elementar prudência ou desaconselhadas pelas previsões mais elementares que devem ser observadas nos usos correntes da vida[29]. Haverá uma negligência em grau tão elevado e reprovável que se aproxima da atuação dolosa e justifica idêntica reação punitiva.
A incerteza da lei, a dificuldade de apurar os factos e de os interpretar, podem levar consciências honestas a afirmarem um direito de que não são titulares ou a impugnar uma obrigação que devessem cumprir.[30]
Não basta, para o efeito, a mera circunstância de a parte litigar “sem razão” e sem fundamentos legais para a pretensão que apresenta. A litigância de má fé não se confunde com a improcedência da pretensão deduzida, já que aquilo que está em causa neste instituto jurídico não é o facto de a parte ter ou não direito à pretensão que deduz, mas sim um determinado comportamento processual que, correspondendo a um incumprimento doloso ou gravemente negligente dos deveres de cooperação e de boa fé processual, a que as partes estão submetidas por força dos art.ºs 7º, 8º e 9º do Código de Processo Civil, é censurável, reprovável, por atentar contra o respeito pelos Tribunais e poder prejudicar a ação e a realização da justiça. No art.º 8º do Código de Processo Civil consagra-se o chamado dever de boa fé ou de probidade processual. Ao litigarem, as partes têm o dever de agir de boa fé, segundo a regra de honeste procedere.
A parte há de deixar de observar, de forma grave, dolosa ou grosseira, os deveres que, em cada situação, lhe sejam exigíveis e que seriam adotados por uma pessoa normal e medianamente formada e cuidadosa, colocada nas mesmas circunstâncias.
A litigância de má fé não é manifestação de responsabilidade civil, que pretenda suprimir danos, ilícita e culposamente causados a outrem, através de atuações processuais; antes corresponde a um subsistema sancionatório próprio, de âmbito limitado e com objetivos muito práticos e restritos.
No essencial, não relevam todas e quaisquer violações de normas jurídicas, mas apenas as atuações tipificadas nas diversas alíneas do citado art.º 542º, nº 2; não é requerido dano: a conduta é punida em si, independentemente do resultado; as consequências são apenas multa e, nalguns casos, indemnização calculada em moldes especiais (art.ºs 542º, nº 1 e 543º).
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra de 9.4.2013[31], o “fundamento ético do instituto, a dignidade da pessoa humana e o carácter gravoso e estigmatizante de uma condenação como litigante de má-fé exigem que se conclua por um desrespeito pelo tribunal, pelo processo e pela justiça, imputável subjectivamente ao litigante a título de dolo ou de negligência grave, ou seja, que tenha havido uma alteração consciente e voluntária da verdade dos factos (dolo) ou uma culpa grave (culpa lata), que não se basta com qualquer espécie de negligência, antes se exigindo a negligência grave, grosseira (a faute lourde do direito francês ou a Leichtfertigkeit do direito alemão).
A previsão legal da responsabilidade processual subjetiva está, assim, reservada, para “situações mais graves em que a litigação seja caracterizada por comportamentos dolosos ou gravemente culposos, materializadas através da dedução de pretensões ou de oposições manifestamente infundadas, assentes na alteração censurável da verdade dos factos, corporizadas na grave violação do dever de cooperação ou exteriorizadas através de uso ilegítimo dos instrumentos do direito adjectivo, com vista à obtenção de objectivos ilegais, à ocultação da verdade ou ao entorpecimento ou retardamento da actividade dos tribunais”[32].
Numa síntese feliz, Pedro Albuquerque[33] refere que “a proibição de litigância de má fé apresenta-se, assim, como um instituto destinado a assegurar a moralidade e eficácia processual, porquanto com ela se reforça a soberania dos tribunais, o respeito pelas suas decisões e o prestígio da justiça. O dolo ou má fé processual não vicia vontades privadas nem ofende meramente interesses particulares das partes envolvidas. Também não se circunscreve a uma violação sem mais do dever geral de actuar de boa fé. A virtualidade específica da má fé processual é outra diversa e mais grave: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial”.
A condenação da 2ª R assentou nos seguintes fundamentos essenciais:
- Distorção da realidade dos factos, pela alteração da ordem cronológica da celebração dos contratos-promessa, para dar a ideia de que foi a A. mulher que deu o dito por não dito para, assim, lhe imputar o incumprimento contratual, sabendo a 2ª R. que isso não era verdade;
- Quis imputar a retenção do cheque de € 16.900,00 à atuação do 1º R. (CC), sem que este o tivesse feito ou alguma vez tivesse sequer pensado em fazê-lo.
- A 2ª R. sabia que que o R. CC não queria acionar o sinal, nem lhe deu instruções para agir com o envio do e.mail de fl.s 31 e da carta de fl.s 32.
Esta fundamentação insere-se na al. b) do nº 2 do art.º 542º do Código de Processo Civil, como má fé de natureza material ou substantiva, caraterizada como alteração da verdade dos factos (para obter ganho de causa).
Tal como a procedência ou a improcedência da ação, também a questão da litigância de má fé substantiva pressupõe um julgamento, uma análise jurídica segundo factos provados e não provados, e a confrontação desta matéria com os fundamentos de que a parte se serviu para justificar a ação ou a defesa. Não esqueçamos que a litigância de má fé conduz a uma penalização.
Percorrendo os factos dados como provados, deles não resulta que a 2ª R. tenha alterado a verdade dos factos com a relevância expressa na sentença. Não consta designadamente que o R. CC não queria acionar o sinal, nem deu instruções à 2ª R. para o efeito, como também não consta qualquer referência a mais do que um contrato-promessa ou de uma minuta de contrato-promessa relativamente ao imóvel identificado no ponto 4 dos factos provados e suas eventuais vicissitudes.
O e.mail enviado pela 2ª R. à A. mulher no dia 29.1.2019, pelo qual aquela imputa a esta o incumprimento do contrato (ponto 22 dos factos provados) --- com ou sem fundamento aceitável (não interessa para o efeito) --- não foi negado pela 2ª R. na sua contestação e não está demonstrado que não tivesse partido de uma posição comunicada pelos 1ªs RR. à 2ª R.; tanto assim que, nessa mesma missiva, a funcionária que o subscreveu (EE) informou a destinatária A. mulher de que aquela posição iria ser confirmada por uma carta do proprietário (promitente-vendedor).
Dos factos provados também não resulta que os 1ºs RR.. nunca quiseram acionar o sinal depois do contrato-promessa ter sido assinado pelo 1º R. marido em 27.11.2018. A tal não obstaria o facto de o cheque no valor de € 16.900,00 se ter mantido na posse da R. S..., LDA, como a própria reconhece.
Sob o artigo 40º da petição inicial, os AA. reconhecem que “a A. questionou verbalmente a referida EE sobre a hipótese de desistirem do contrato, devolvendo-lhe o sinal, ao que aquela lhe disse que o contrato teria de ser anulado e que dependeria do vendedor”.
Foi na sequência dessa posição que a 2ª R., através da sua funcionária EE, enviou à A. o e.mail de 29.1.2019, não tendo colocado em causa o seu envio.
Da falta de prova de parte da versão dos factos trazida pela 2ª R. aos autos não decorre necessariamente a sua inveracidade; não conduz imediatamente à prova de realidade contrária, maxime quando se trata, como na litigância de má fé, da aplicação de uma sanção de natureza penal.
A defesa da 2ª R. situa-se no âmbito da defesa aceitável. Ainda que se possa concluir pelo contributo da recorrente para a confusão que se instalou no relacionamento entre as partes na negociação do contrato-promessa e na prestação de serviços de mediação --- a que não terá sido alheia a ausência dos 1ºs RR. no estrangeiro --- nem por isso os factos provados e não provados refletem, por si, ou mesmo em conjugação com os fundamentos da contestação da R. S..., LDA, uma alegação imoral de factos, gravemente contrária à realidade essencial que a R. conhecia, para confundir o conhecimento da realidade e levar o tribunal a produzir uma decisão contrária à realização da justiça.
Da revisão da decisão em matéria de facto não resultaria agravamento dos factos desfavoráveis à 2ª R., dada a matéria impugnada e a alteração pretendida pela recorrente. Só matéria impugnada poderia vir a ser objeto de alteração, e sempre em sentido favorável à R. recorrente (art.ºs 633º, nº 1 e 635º, nº 5, do Código de Processo Civil), pelo que, também para efeito da litigância de má fé, a reapreciação da decisão em matéria de facto constituía um ato inútil, do qual se nos impunha prescindir.
Com efeito, deve ser revogada a decisão em matéria de litigância de má fé.
A apelação deve proceder.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que foi impugnada e, em consequência, absolve-se a 2ª R., S..., , LDA. do pedido da ação que contra ela foi deduzido na petição inicial e ainda da condenação que contra ela foi proferida com base na litigância de má fé.
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Custas da apelação pelos AA. recorridos, por terem defendido na ação a posição contrária à que agora obteve vencimento, sem prejuízo da taxa de justiça que pagaram pela interposição do recurso (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Na ação, as custas serão suportadas também pelos AA., dado o seu total decaimento.
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Porto, 27 de janeiro de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Por transcrição.
[2] Por transcrição.
[3] A recorrente também impugnou a decisão em matéria de facto, pedindo que tais factos sejam declarados provados pela Relação, ao abrigo dos art.ºs 640º e 662º, nº 1, do Código de Processo Civil.
[4] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 58
[5] Acórdão da Relação de Coimbra de 21.3.2006, proc. 4294/05, in www.dgsi.pt.
[6] Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, pág.142.
[7] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 145.
[8] Atualmente, sem prejuízo do disposto no art.º 5º, nº 2.
[9] Sem prejuízo da dedução d pedidos genéricos ou ilíquidos e ainda da sua alteração, ao abrigo dos art.ºs 467º, nº 1, al. e), 471º, 378º, 272 e 273º.
[10] O assento nº 4/95, DR de 17.5.1995 (atualmente convertido em acórdão uniformizador de jurisprudência) prevê, no entanto que, quando a pretensão se basear em contrato cuja nulidade seja oficiosamente decretada, deve o tribunal condenar na restituição do recebido, por aplicação do art.º 289º do Código Civil, se do processo constarem os factos suficientes.
[11] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 51.
[12] É sabido que hoje o juiz pode considerar factos não alegados pelas partes, mas nos limites do art.º 5º, nºs 2 e 3, do Código de Processo Civil.
[13] Código de Processo Civil anotado, vol. V, pág. 51.
[14] Ob., vol. V, pág. 68.
[15] Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, pág. 381.
[16] Direito Processual Civil Declaratório, vol. I, Almedina, 1981, pág. 204.
[17] Funcionária da 2ª R. recorrente.
[18] Cf., nomeadamente, o acórdão da Relação de Coimbra de 24.4.2012, proc. 219/10.6T2VGS.C1, in www.dgsi.pt e os acórdãos da Relação de Guimarães de 4.3.2013, 5389/11.3TBBRG.G1, de 26.11.2013, proc. 1430/08.4TBGMR.G1, e de 16.1.2014 (nestes últimos, onde o aqui relator interveio como adjunto).
[19] (Tema de Contrato-Promessa, Lisboa, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1990, pág. 37-38).
[20] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.6.2008, proc. 08B619, e da Relação de Lisboa de 30.4.2009, proc. 118/2001.L1-6, ambos in www.dgsi.pt.
[21] Cf., em sentido favorável, os acórdãos da Relação de Lisboa de 9.3.2006, proc. 659/2006-6, acórdão da Relação de Coimbra de 13.3.2007, proc. 1795/05.0TBPMS-C1 e, em sentido desfavorável, o acórdão da Relação de Lisboa de 26.6.1997, proc. 009822, todos in www.dgsi.pt.
[22] Ob. cit., pág. 69.
[23] Acórdão. Do Supremo Tribunal de Justiça de 24.5.2007, proc. 07A1187, in www.dgsi.pt.
[24] Cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., pág. 106. No mesmo sentido, Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. I, 1974, págs. 170/171,
[25] Cfr. Direito das Obrigações, 3ª ed., pág. 340, mas também Cunha Gonçalves, Tratado de Direito Civil, Vol. XII, pág. 432, Pinto Monteiro, Sobre a reparação dos danos morais, in Revista Portuguesa do Dano Corporal, Setembro de 1992, nº 1, 1º Ano, pág.s 21 seg.s, Maya de Lucena, Danos não Patrimoniais, O Dano da morte, págs 19 seg.s.
[26] Vejam-se nesse sentido, os acórdãos do STJ de 04.05.2001, proc. 1194/07.0TBBNV.L1.S1, de 24.06.2010, proc. 535/07.4TVLSB.L1.S1 e de 25.03.2010, proc. 2688/07.2TBVCT.G1.S1 e os acórdãos da Relação do Porto de 28.02.2008 e 07.07.2005, com os nºs convencionais JTRP00041158 e JTRP00038283, respetivamente, todos in www.dgsi.pt.
[27] Nº convencional JTRP00038283, in www.dgsi.pt.
[28] Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anot., volume II, pág. 262, pese embora no seu tempo e até à reforma de 1995 não houvesse litigância de má fé sem a existência de dolo na ação das partes.
[29] Maia Gonçalves, “Código Penal Português”, 4ª ed., pág. 48.
[30] Idem, ob. e vol. cit., pág. 263.
[31] Proc. nº 1210/10.8TBVNO.C1, in www.dgsi.pt.
[32] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.1.2017, proc. 59970/12.8YIPRT.E1.S1, in www.dgsi.pt.
[33] Responsabilidade Processual por Litigância de Má Fé, Abuso de Direito e Responsabilidade Civil em Virtude de Actos Praticados no Processo, Almedina, pág. 56.