Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1172/15.5T8LOU-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: JUNÇÃO DE DOCUMENTO COM ALEGAÇÕES
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRINCÍPIO DA PRECLUSÃO
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RP201811151172/15.5T8LOU-A.P1
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 153, FLS 34-38
Área Temática: .
Sumário: I – As partes apenas podem apresentar com as alegações documentos, quando provem que não foi possível apresentar os mesmos até ao encerramento da audiência de julgamento em 1.ª instância ou quando a sua junção se tiver tornado necessária em virtude da decisão proferida em 1.ª instância.
II – O meio próprio que os executados têm para apresentarem os fundamentos que têm para se opor à execução contra eles intentada é a oposição à execução, mediante embargos de executado.
III – Não tendo deduzido oposição à execução ou não tendo alegado esses fundamentos, atentos os princípios da concentração da defesa e da preclusão, não é admissível que, decorrido o prazo de oposição, venham em requerimento autónomo, mesmo em 1.ª instância, suscitar tais questões.
IV – O facto de os Bancos adquirirem, em venda judicial, imóveis por valores inferiores às avaliações por eles apresentadas nos autos, não constitui, sem mais, uma situação de abuso de direito.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 1172/15.5T8LOU-A.P1
Relator – Leonel Serôdio (706)
Adjuntos – Amaral Ferreira
- Deolinda Varão

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

No presente processo de execução com processo sumário que corre termos sob o n.º 1172/15.5T8LOU, na Comarca de Aveiro, Juízo de Execução de Oliveira de Azeméis, intentado pelo B..., S. A., vieram os executados C... e D..., interpor recurso do despacho que indeferiu a oposição que deduziram à adjudicação do imóvel penhorado ao exequente pelo montante de € 86.500,00.

Os Executados terminaram as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:
“1.Os Recorrentes vieram opor-se à adjudicação do imóvel pelo exequente no valor de 86.500,00 €;
2. A dedução da oposição à adjudicação do imóvel em causa foi feita pelos Executados por não concordarem com o valor da mesma;
3. No seu entendimento o valor da adjudicação deveria ser, pelo menos, 101.764,71 €.
4. Valor esse correspondente à avaliação que o próprio Exequente fez no decurso do processo e que juntou aos autos;
5. Deste modo, diz-nos o Prof. Menezes Cordeiro que uma das manifestações típicas do instituto da boa fé, o venire contra factum proprium “traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anteriormente assumido anteriormente pelo exercente,”
6. Postula, pois, dois comportamentos na mesma pessoa (neste caso o Exequente) diferidos no tempo em que o primeiro é contrariado pelo segundo;
7. Assim, foi feita uma avaliação por parte do Banco ao imóvel em apreço e que está na base da conclusão e, consequente, concessão de crédito ora judicialmente exigido;
8.Crédito este, aliás, garantido por uma hipoteca;
9. Ora, em face do incumprimento definitivo por banda dos Executados, o Exequente age em abuso de direito quando sustenta processualmente um valor de referência para a venda judicial muito abaixo do valor de mercado;
10. O que lhe vai permitir, aliás, como fez, adjudicar o bem também por um valor muito mais baixo e que corresponde, de todo, a um valor justo e equitativo;
11. Desconforme com a avaliação inicialmente feita e que, de forma hábil, se mostra apta à concessão do crédito;
12. Mas já não para o próprio Exequente adjudicar por esse valor!
13. E, portanto, com essa avaliação feita por defeito, pretende o Exequente enriquecer infundadamente o seu património.
14. Indiciando assim o venire contra factum proprium
15. Já que pretende inclusivamente manter a responsabilidade dos Executados pelo remanescente!
16. Mais, conforme decorre do documento n.º 1, que se junta neste recuso, no momento em que o Exequente deu entrada da execução contra os Executados, o montante em divida era de 85 745, 54€
17. Pelo que o Banco Exequente poderia ter aceitado assim a dação em pagamento nos termos dos artigos 837º e ss do Código Civil.
18. E ver dessa forma ressarcido equitativamente e o seu crédito!
19. Contudo, o Banco não aceitou esta forma de cumprimento da obrigação, enveredando pela execução de uma livrança;
20. O que originou, por conseguinte, encargos, despesas e honorários que eram evitáveis e vieram onerar consideravelmente os Executados;
21. Ora, em 2015 a divida dos Executados era de cerca de 85.000,00€
22. Neste preciso momento a divida segundo o Exequente, cifra-se em 92.780,83€, sem esquecer os encargos com custas judiciais e honorários da senhora Agente de Execução que vão acrescer em muito este valor;
23. Temos assim um valor de custas prováveis, que conjuntamente com o valor em dívida, deverá passar os 100.000,00€;
24. Ironicamente, no ano em curso e portanto, dois anos depois da entrada da execução, o Banco Exequente na venda do imóvel adjudica o mesmo pelo montante de 86.500,00€;
25. Isto é, o Banco ao valor em dívida aquando da entrada da execução da livrança (conforme consta do extracto bancário de 85.745,54€), acresce na proposta de adjudicação a quantia de 754,46€;
26. Aqui chegados é oportuno questionar: Porque é que o Banco Exequente não aceitou dois anos antes a dação em cumprimento acima referida?
27. De relevar, conforme consta do processo e alteração promovida pelo próprio Banco Exequente quanto ao valor da execução;
28. Ou seja, por requerimento de 15.02.2017, o Exequente veio pedir aos valores peticionados nos pontos 5 e 8 do seu requerimento, a redução da dívida exequenda de 127.740,36€ para 92.780,83€
29. Se é certo que os Executados concordaram com essa redução, não entendem tal disparidade;
30. Já que essa redução do capital deveria ter sido efectuada até ao valor já referido de 85 745, 54€.
31. Acresce que o imóvel em causa até à entrada da presente execução foi a habitação e morada de família dos Executados;
32. Que apenas abandonaram a habitação no momento em que o credor Exequente intentou a presente ação executiva;
33. Desenvolvendo-.se assim todo o processo em clara violação do regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação, nos termos da Lei 58/2012, de 9 de novembro;
34. Sendo este um regime imperativo para as instituições financeiras e de crédito que, in casu, foi simplesmente ignorado;
35. Já que, apesar da solicitação por parte dos Executados, o Exequente não deu qualquer resposta;
36. Sendo que o objetivo dos mesmos sempre passou pela restruturação e negociação da divida;
37. Por tudo isto, e verificados os requisitos da sua aplicação, sendo um regime imperativo, os efeitos seriam os previstos no artigo 9º da referida Lei;
38. Nomeadamente, o impedimento de promover a execução da hipoteca ou quando a mesma estiver pendente, a sua suspensão e ainda a obrigação de apresentar aos aqui Executados uma proposta de plano de restruturação;
39. Pese embora, o tenham requerido até hoje os Executados não têm qualquer resposta;
40. Além disso, apesar de haver Mandatária constituída desde o início, e que antecedeu as atuais, a mesma nunca foi notificada de nenhum despacho, requerimento ou decisão da senhora Agente de Execução;
41. O que não era dela desconhecido, conforme comunicação que juntou ao processo e que ora se junta sob a forma de doc. n.º2;
42. Tendo aliás como Mandatária sido responsável pela visita e acesso ao imóvel em discussão nos autos, conforme doc n.º 3
43. O certo é que nunca foi notificada de nada!
44. Omissão que constitui, nos termos dos artigos 839º e 195º e ss do Código Processo Civil, uma nulidade;
45. Nulidade esta, que se argui e que deverá originar a repetição de todo o processado;
46. Uma vez que por não ter sido observada, não puderam os Executados exercer o pleno contraditório como era seu direito;
47. E que, por isso, influi directamente na decisão da causa.”

A final pedem que se revogue o despacho que indeferiu a oposição à adjudicação e se declare a nulidade do processo executivo ou subsidiariamente da venda.


O Banco Exequente contra-alegou, defendendo a inadmissibilidade da junção dos documentos apresentados pelos Executados com as alegações de recurso e a rejeição do próprio recurso, por incumprimento dos ónus impostos pelo n.º 2 do art. 637º e 639º do CPC e a improcedência do recurso.

Factos julgados provados no despacho recorrido:

“1 - Os executados residem na Rua ..., n.º .., ....-... ... , morada na qual foram citados;
2 - As notificações remetidas pela sr. agente de execução aos executados foram-no para aquela morada mediante carta registada, não tendo ocorrido a devolução de correspondência.
3 - Em 07/03/2016, os executados foram notificados por via postal para, no prazo de dez dias e nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 812.º do Código de Processo Civil (CPC), se pronunciarem quanto à modalidade de venda pretendida, bem como o valor a atribuir ao bem. (cfr. referências citius 3448414 e 3448415).
4- Decorrido aquele prazo, nada foi dito pelos executados.
5- Decidiu a sr. AE pela venda do bem através de leilão eletrónico na plataforma www.eleiloes.pt.
6 - Quanto ao valor, decidiu a sr. AE que “o valor base corresponde ao maior dos seguintes valores: a) valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há mais de 6 anos - in casu, 51.220,00 euros, determinado no ano de 2015; b) valor de mercado, in casu 101.764,71 euros, cfr. avaliação promovida pelo exequente. Sendo assim, fixou como valor base 101.764,71 euros, sendo aceites propostas de valor igual ou superior a 85%, ou seja 86.500,00 euros.”
7- Desta decisão foram os executados notificados via postal em 10/10/2016.
8- O executado C..., enquanto fiel depositário, foi, ainda na mesma notificação, notificado para facultar o acesso ao imóvel para verificação do seu estado de conservação.
9 - Decorrido o prazo legal, os executados não se opuseram à decisão de venda, nomeadamente quanto à modalidade e valor base fixado.
10 - Informou ainda a sr. AE que os executados contactaram a agente de execução, através da Dra. E..., solicitadora portadora da cédula profissional n.º ...., para alteração do dia e hora designados para verificação do imóvel.
11- Informou ainda a sr. AE que, na data posteriormente designada – 10/11/2016, pelas 15:00 horas, a Dra. E... facultou o acesso e foi efetuado o registo fotográfico do bem, por forma a viabilizar-se o leilão.
12 - Informou ainda a AE que os executados, tiveram conhecimento da publicitação do leilão e data de termo, atento o contacto da Dra. E... a informar que tinha conhecimento de um interessado na aquisição do bem e, antes de apresentar proposta, pretendia saber o valor em dívida para liquidação integral destes autos.
13- Finalizado o leilão eletrónico, foram os executados notificados da certidão de venda/adjudicação em 11/04/2017.
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Fundamentação

Questões de decidir

Se há fundamento para rejeitar o recurso;
Admissibilidade dos documentos juntos com as alegações;
Se podem ser conhecidas questões não suscitadas tempestivamente na 1ª instância;
Se o Exequente está a agir em abuso de direito.

I- Os Apelantes apresentaram conclusões e nelas foram indicando normas jurídicas que defendem estar a ser violadas. Por outro lado, sustentam estar o Exequente a agir em abuso de direito, exceção que como é entendimento pacífico é de conhecimento oficioso, sendo irrelevante que os Apelantes não tenham invocado o art. 334º do CC, até porque, mesmo na fase de recurso, o tribunal continua a ser livre na aplicação das regras de direito.
Não há, pois, fundamento para rejeitar o recurso.

II – Admissibilidade dos documentos

Em sede de recurso, atento o disposto no art. 651º n.º1 do CPC e art. 425º do mesmo diploma para que aquele remete, as partes apenas podem com as alegações apresentar documentos, quando provem que não foi possível apresentar até ao encerramento da audiência ao julgamento de 1ª instância (art. 425º) ou quando a sua junção se revele necessária por virtude do julgamento proferido (art. 651º n.º1).
No caso, os Apelantes não invocam qualquer justificação para não lhe ter sido possível apresentar os documentos, no requerimento em que vieram deduzir oposição à adjudicação do imóvel ao Exequente e ainda no requerimento de resposta que apesentaram ao articulado apresentado pelo Banco, de forma a que os mesmos fossem apreciados no despacho recorrido.
Note-se que os documentos apresentados pelos Apelantes com aa alegações de recurso, não são supervenientes, sendo todos anteriores ao requerimento de oposição à adjudicação apresentado em 28.04.2017.
Assim, o doc. n.º 1 (fls. 6) é um extrato bancário da conta do executado/Apelante no Banco Apelado, com data de 31.12..2014. O segundo é uma cópia ( em parte ilegível) de uma carta dirigida ao Exequente B... a informá-lo de uma proposta de aquisição do imóvel em causa, datada de 13.01.2017 e o terceiro é o anúncio a publicitar a venda judicial do prédio em causa.
Assim, a admissibilidade da junção só seria possível, se se tivesse tornado necessária em virtude da decisão proferida na 1ª instância.
A propósito da disposição equivalente no anterior CPC escrevem, Antunes Varela, Miguel Beleza e Sampaio e Nora, em Manual de Processo Civil, 1ª edição, pág. 517: “É, evidente que (…), a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1º instância.
O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes da decisão ser proferida”.
Assim, a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão de 1ª instância criar pela primeira vez a necessidade de junção de determinado documento quer quando se baseie em meio probatório não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes não contavam. (cf. Antunes Varela, R.L.J., ano 115º, pág. 95, citado pelo acórdão do S.T.J. de 12/1/94, B.M.J. n.º 433, pág. 471 e 472.)
Por outro lado, como decidiu o Ac. do STJ de 27.06.2000, em CJ (STJ), tomo II, pág. 130 “a junção de documentos em recurso só pode destinar-se a provar factos cuja relevância surge apenas com a decisão proferida e não para provar factos que já antes dessa decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova.”
No caso os Executados no requerimento de 28.04.2017 apresentaram como fundamentos para a sua oposição: Ter a adjudicação do imóvel sido realizada pelo valor de €. 86.500,00, muito abaixo do valor de mercado; Não terem sido foram notificados da modalidade da venda e, caso o fossem, ter-se-iam oposto, uma vez que a modalidade a seguir deveria ter sido a da apresentação em propostas em carta fechada.
Assim, dos documentos apresentados, o primeiro respeita a questão que não foi objeto do recurso; o segundo e terceiros estão relacionados com a questão da alegada falta de notificação da venda judicial, mas como se referiu os Apelantes não invocam qualquer fundamento para não ter apresentado o segundo antes da decisão recorrida e não terem invocado o terceiro (anúncio da venda) no requerimento de oposição, sendo desnecessária a sua junção.
Não é, pois, admissível a junção dos documentos apresentados pelos Apelantes com as suas alegações que, por isso, não podem ser considerados, para qualquer efeito.

III - Questões novas

Os Apelantes nas suas conclusões, sustentam que a divida deles era inferior à indicada pelo Exequente, que este devia ter aceite a dação em pagamento do prédio hipotecado, nos termos dos artigos 837º e ss do Código Civil; a violação do regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação, nos termos da Lei 58/2012, de 9 de novembro e ainda a falta de notificação da sua advogada.
No entanto, como é entendimento unânime na jurisprudência e doutrina, o objeto do recurso é a decisão, ou seja, os recursos visam modificar decisões e não criar soluções sobre matéria nova.
Neste sentido pode ler-se no acórdão do S.T.J. de 6.2.87, B.M.J. n.º 364, pág. 719: “vem este Supremo Tribunal decidindo de há muito, constituindo jurisprudência assente e indiscutida, que os recursos visam modificar decisões e não criar decisões sobre matéria nova, não sendo lícito invocar nos mesmos questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal recorrido. (cf. entre outros, acórdãos de 16.05.1972, 13.03.1973, 5.02.1974, 29.10.1974, 7.01.1975, 25.11.1975 e de 12.6.91, publicados no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 217, pág. 103; 225, pág. 202; 234, pág.267; 240, pág. 223; 243, pág. 194; 251, pág. 122 e 408, pág.521)
Na doutrina é também este o entendimento, conforme se constata da lição de Castro Mendes, “Recursos”, 1980, pág. 27, Armindo Ribeiro Mendes, “Recursos em Processo Civil”, 1992, págs.140 e 175 e Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Processo Civil”, pág. 93 (cf. ainda os acórdãos citados nas notas de rodapé).
Assim sendo, a questão da alegada violação do regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação, nos termos da Lei 58/2012, de 9 de novembro; serem quantias em divida pelos executados, alegadamente inferiores às que constam do requerimento executivo e não ter o exequente aceite o prédio em dação em pagamento por serem questões novas não podem ser objeto de apreciação pela Relação.

De resto, essas questões tinham obrigatoriamente se de ser suscitadas pelos executados, na oposição à execução, meio próprio que o executado tem para se opor à execução, nos termos do art. 728º e segs. do CPC.
É este o meio próprio que os executados têm ao seu dispor para apresentaram os fundamentos de oposição à execução contra eles intentada.
Ora, como decorre dos autos, os Executados foram regularmente citados e não deduziram oposição à execução mediante embargos.
Assim e atentos os princípios da concentração da defesa e da preclusão, os Executados ora Apelantes que não suscitaram essas questões através de oposição à execução, nunca poderiam, decorrido o prazo para a oposição, em requerimento posterior mesmo na 1ª instância suscitar as questões que devia ter suscitado na oposição à execução.
Como ensinava Manuel de Andrade, em Noções Elementares do Processo Civil, pág. 382, “há ciclos rígidos, cada um com a sua finalidade própria formando compartimentos estanques. Por isso, os actos (maxime as alegações de factos e meios de prova) que não tenham lugar no ciclo próprio ficam precludidas.”
Note-se que não consta dos autos, nem os Apelantes alegam sequer que tenham apresentado requerimento junto da entidade bancária exequente, requerendo, a aplicação do regime da Lei nº 58/2012.
Por isso, as questões da quantia em divida pelos executados, se houve proposta de pagamento apresentadas pelos executados injustificamente rejeitada e ainda a questão da alegada violação do regime extraordinário de proteção de devedores de crédito à habitação, nos termos da Lei 58/2012, de 9 de novembro, tinham necessariamente de ser arguidas na oposição à execução e não o tendo sido, estão precludidas.

A questão da mandatária dos Apelantes não ter sido notificada, de nenhum despacho, requerimento ou decisão da senhora Agente de Execução (conclusões 41ª a 47ª).
Também esta questão pode ser considerada uma questão nova, dado que no requerimento de 28.04.2017 que foi indeferido pelo despacho recorrido, se limitaram a arguir que não tinham sido notificados da modalidade da venda.
Ora, sobre essa alegada falta de notificação, o tribunal recorrido deu como provado o seguinte:
“1.Os executados residem na Rua ..., n.º .., ....-... ..., morada na qual foram citados;
2 - As notificações remetidas pela sr. agente de execução aos executados foram-no para aquela morada mediante carta registada, não tendo ocorrido a devolução de correspondência.
3 - Em 07/03/2016, os executados foram notificados por via postal para, no prazo de dez dias e nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 812.º do Código de Processo Civil (CPC), se pronunciarem quanto à modalidade de venda pretendida, bem como o valor a atribuir ao bem. (cfr. referências citius 3448414 e 3448415).
4- Decorrido aquele prazo, nada foi dito pelos executados.
5- Decidiu a sr. AE pela venda do bem através de leilão eletrónico na plataforma www.eleiloes.pt.
6 - Quanto ao valor, decidiu a sr. AE que “o valor base corresponde ao maior dos seguintes valores: a) valor patrimonial tributário, nos termos de avaliação efetuada há mais de 6 anos - in casu, 51.220,00 euros, determinado no ano de 2015; b) valor de mercado, in casu 101.764,71 euros, cfr. avaliação promovida pelo exequente. Sendo assim, fixou como valor base 101.764,71 euros, sendo aceites propostas de valor igual ou superior a 85%, ou seja 86.500,00 euros.”
7- Desta decisão foram os executados notificados via postal em 10/10/2016.
8 - O executado C..., enquanto fiel depositário, foi, ainda na mesma notificação, notificado para facultar o acesso ao imóvel para verificação do seu estado de conservação.
9 - Decorrido o prazo legal, os executados não se opuseram à decisão de venda, nomeadamente quanto à modalidade e valor base fixado.
10 - Informou ainda a sr. AE que os executados contactaram a agente de execução, através da Dra. E..., solicitadora portadora da cédula profissional n.º ...., para alteração do dia e hora designados para verificação do imóvel.
11- Informou ainda a sr. AE que, na data posteriormente designada – 10/11/2016, pelas 15:00 horas, a Dra. E... facultou o acesso e foi efetuado o registo fotográfico do bem, por forma a viabilizar-se o leilão.
12 - Informou ainda a AE que os executados, tiveram conhecimento da publicitação do leilão e data de termo, atento o contacto da Dra. E... a informar que tinha conhecimento de um interessado na aquisição do bem e, antes de apresentar proposta, pretendia saber o valor em dívida para liquidação integral destes autos.”

Ora, os Apelantes nem nas conclusões atrás transcritas nem no corpo das alegações impugnam a factualidade julgada provada no despacho recorrido, não tendo cumprido qualquer dos ónus impostos pelo art. 640º do CPC.
Por isso, não podem agora na fase de recurso defender que na altura já tinham advogada constituída que não foi notificada.
De resto, não consta do processo que os Executados tivessem advogada constituída, antes do início da fase da venda judicial.
De qualquer forma, a existir essa irregularidade da falta de notificação de advogada ou mesmo solicitadora constituída pelos Executados, estávamos perante uma nulidade meramente secundária que tinha de ser arguida no requerimento que apresentaram em 28.04.2017 (por aplicação do art. 189º do CPC) ou no prazo de 10 dias a contar dessa data, em que indiscutivelmente intervieram no processo (art. 199 n.º1 do CPC).
Assim, a existir qualquer irregularidade por falta de notificação de mandatária dos Executados estava sanada, quando apresentaram as alegações de recurso em 10.11.2017.

IV - Se o Exequente está a agir em abuso de direito, por lhe ter sido adjudicado o imóvel penhorado e hipotecado, pelo valor de 86.500,00 €, quando tinha sido avaliado por ele em 101.764,71€.
Segundo o art. 334º do Código Civil há abuso de direito quando o titular deste exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 9ª edição, pág. 564, refere que “para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.”
Coutinho de Abreu, “Do Abuso de Direito”, pág. 43, entende que “há abuso de direito quando um comportamento aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização de interesses pessoais de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem.”
No entanto, como expressamente refere o citado artigo 334º, para se estar perante abuso de direito é necessário que o titular o exerça com manifesto excesso.
Assim, Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, vol. I, 3ª edição, pág. 296, escreve: “Os tribunais só podem, pois, fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso”.
No mesmo sentido vem alinhando a jurisprudência do S.T.J, conforme acórdãos de 8.5.91, B.M.J. n.º 407, pág. 273 e de 11.3.99, B.M.J. n.º 485 onde, a pág. 375, se escreveu “o abuso de direito existe, quando o direito se exerce em termos clamorosamente ofensivos do sentimento jurídico dominante”. e mais recentemente de 24.09.09 e de 29.11.05 proferidos nos processos. n.ºs 09B0659 e 05B3179, do sitio do ITIJ onde se decidiu que o exercício, para ser abusivo tem de ser ostensivamente contrário aos referidos princípios.
O abuso de direito abrange várias modalidades. Menezes Cordeiro, “Da Boa Fé no Direito Civil” pag. 711 e segs. e mais sinteticamente no Tratado de Direito Civil, Parte Geral, tomo I, p. 198 e segs, faz o elenco das situações que integram o instituto, a saber: a «excpetio doli»; o «venire contra factum proprium»; a inalegabilidade de nulidades formais; a «suppressio»; o «tu quoque» contratual e o desequilíbrio no exercício jurídico
Os Apelantes defendem que a conduta do Exequente integra abuso de direito na modalidade de “venire contra factum proprium” que, indiscutivelmente, cabe no âmbito do citado artigo 334º.
O “venire contra factum proprium” traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente.
No entanto, não é qualquer comportamento contraditório que viola os princípios da boa fé e da confiança e justifica a paralisação do exercício do direito por abusivo, nos termos do art. 334º.
Como é exemplo o acórdão do STJ de 5.2.98, B.M.J. nº 474, pág. 434, os pressupostos para se considerar existir uma situação de venire, são:
“a) uma situação de confiança, justificada pela boa fé, que levam uma pessoa a acreditar, estavelmente, em conduta alheia – no factum proprium –determinante da aquisição de posição jurídica;
b) Investimento nessa confiança, com orientação de vida, desenvolvendo actividade na crença no factum proprium , actividade que é destruída pelo venire, de tal modo que essa destruição e o regresso à situação anterior se traduzam numa injustiça clara;
c) Imputação da situação criada à outra parte, designadamente pela passividade.” (cf. no mesmo sentido Menezes Cordeiro num parecer publicado na revista “O Direito” ano 126º, pág. 701).
Ora, no caso, não há qualquer elemento que permita sustentar que o Exequente criou justificadamente uma situação de confiança de que ia adquirir o imóvel pelo preço que foi avaliado e que esteja a ofender gravemente os princípios da confiança e da boa fé.

A avaliação realizada por iniciativa do Exequente, que tem interesse que o imóvel seja vendido pelo melhor preço, foi tida em consideração para a fixação do valor base do imóvel a vender, nos termos do art. 812 º n.º 1 do CPC, como consta da factualidade julgada provada sob o n.º 6 ( valor base foi fixado legalmente em 86 500€ - 101.764,71€ x 85%).
Ora, sendo o valor base fixado em 86 500€ e exercendo o Exequente uma ativdade que visa o lucro, sendo um dos meios para essa finalidade a concessão de crédito e a consequente cobrança das quantias mutuadas em divida, não há elementos que nos permitam concluir estar a agir manifestamente contra os limites impostos pelo fim social ou económico do seu direito ou pela boa fé, por adquirir o imóvel pelo preço que lhe seja mais favorável, respeitando o valor base e na ausência de melhor proposta.
Como é indiscutível, o Exequente está a exercer o legítimo direito de obter a satisfação do seu crédito, adquirindo o bem penhorado.
De resto, o valor de mercado dum concreto prédio, não é o que resulta da avaliação, nem sequer o que resulta do custo de construção do mesmo, acrescido do valor do terreno em que está implantado, mas antes o melhor preço que o vendedor (no caso substituído pelo tribunal por se estar perante venda judicial) consegue obter dos potenciais interessados.
Ora, sendo o Exequente (entidade financeira), numa sociedade de livre concorrência, o exemplo típico da empresa que visa o lucro, não é expectável que atue de forma a privar-se de parte desse lucro, para acautelar o interesse do seu devedor.
Por isso, não há qualquer fundamento nem legal, nem social, para os Executados confiarem que o Exequente ia adquirir o prédio pelo preço fixado na avaliação por ele mandada realizar, se tivesse a possibilidade de o adquirir por valor inferior.
Apesar do instituto em causa funcionar como “válvula de segurança” para obviar a situações de manifesta injustiça, também, por isso, apenas pode ser utilizado quando o direito está a ser exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, o que, no caso, não se verifica.
De referir, por fim, que a jurisprudência publicada encontrada sobre a questão dos Bancos adquirirem em venda judicial imóveis por valores inferiores às avaliações por eles apresentadas, é unânime no sentido que não atuam em abuso de direito.
Neste sentido, o acórdão da Relação de Lisboa, de 14.03.2013, processo 7397/11.5TBSXL-A.L1, relatora Maria José Mouro Marques da Silva, publicado no sitio da Colectânea de Jurisprudência e na revista em papel, Tomo II/2013, com o sumário (na parte relevante): “III - Não age com abuso de direito o credor mutuante hipotecário que, tendo-lhe sido adjudicado, em processo executivo em que interveio na qualidade de credor reclamante, o imóvel hipotecado, por preço inferior ao valor do seu crédito, preço que fora por si proposto e que era inferior àquele a que, sem a sua oposição, o prédio fora anunciado para venda, instaura processo executivo para obter do mutuário e do seu fiador o pagamento do remanescente do seu crédito, quando se ignora qual é o valor real do dito prédio e o preço da adjudicação não se afastou significativamente do valor por que o executado mutuário o adquirira, anos antes da adjudicação. IV - Também não ocorre, na situação supra referida, enriquecimento injustificado por parte do exequente, nas modalidades de desaparecimento da causa da prestação e de não verificação do efeito pretendido, uma vez que, por um lado, o contrato de mútuo não foi obliterado da ordem jurídica e é nele que o exequente se funda, e por outro lado a venda executiva não frustra o fim pretendido com o mútuo hipotecário, que foi a entrega ao mutuário de uma quantia para aquisição de um imóvel, acompanhada da constituição de uma garantia real do pagamento da dívida.”
O acórdão da Relação de Coimbra de 01.03.2016, processo n.º 133/14.6TBPCV.C1, relator Falcão de Magalhães, com o sumário (na parte relevante): “VII – Não há abuso de direito do credor hipotecário mutuante, enquanto exequente, que apresente proposta de aquisição executiva por valor igual a 70% do valor base do imóvel, apesar de aquando da constituição da hipoteca ter sido atribuído valor superior ao bem.” Ainda da mesma Relação de Coimbra de 22.05.2018, processo 158/07.8TBPNI-A.C1, relator Carlos Moreira, ambos publicados no sítio dgsi.pt, com o sumário: “3 - Realizada a venda ou adjudicação do imóvel hipotecado por valor inferior ao atribuído pelas partes em contrato de mútuo com hipoteca e, mesmo, por valor inferior ao valor base fixado por decisão, - mas dentro do valor mínimo legalmente admissível -, o exequente pode prosseguir a execução com penhora de bens, vg. dos demais co-obrigados para pagamento do remanescente do seu crédito não satisfeito.” (Este cita no mesmo sentido, os acórdãos da RL de 12/12/2013 e de 11/10/2012 e ainda da RE de 11/06/2015, também disponível em www.dgsi.pt, “O facto de, numa escritura de hipoteca, se atribuir um dado valor ao prédio não significa que ele tenha esse valor e que só possa ser vendido, em posterior execução movida pelo credor hipotecário, por esse valor. A adjudicação ao exequente do imóvel hipotecado, por um valor inferior ao indicado na referida escritura, não impede a penhora em outros bens, nos termos do art.º 875.º, n.º 1, Cód. Proc. Civil)”.
Improcedem, pois, ou são irrelevantes todas as conclusões dos Apelantes.

Decisão
Julga-se a apelação improcedente e confirma-se o despacho recorrido.
Custas pelos Apelantes.

Porto, 15-11-2018
Leonel Serôdio
Amaral Ferreira
Deolinda Varão