Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2060/12.2JAPRT.S1.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
REITERAÇÃO DE CONDUTAS
PLURALIDADE DE RESOLUÇÕES
Nº do Documento: RP201407092060/12.2JAPRT.S1.P1
Data do Acordão: 07/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – O número de crimes determina-se pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
II - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente, embora não abranja os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
III - A realização plúrima de do mesmo tipo legal pode constituir num só crime, persistindo o dolo ao longo de toda a realização da conduta; num só crime, na forma continuada se, pese embora não obedecendo a uma só motivação dolosa, a conduta for executada num quadro externo que estimule ao agente a sua repetição e assim diminua consideravelmente a sua culpa; ou, fora desses casos, num concurso efectivo de crimes.
IV – A reiteração de condutas abusivas da sexualidade de crianças ditadas por razões endógenas, concernentes com a personalidade do arguido, não podem ser reconduzidos a uma única resolução criminosa quando é o próprio arguido a criar as condições para a presença da menor nas diversas situações ocorridas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2060/12.2JAPRT.S1.P1
Tribunal Judicial de Bragança
2.º Juízo

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

I - Relatório.
B… recorreu[1] do acórdão proferido no processo em epígrafe[2] que o condenou,[3] como autor material, na forma consumada e em concurso real, de 70 crimes de abuso sexual de criança, previsto e punido pelos art.os 26.º e 171.º, n.º 2, do Código Penal,[4] na pena parcelar de 5 anos de prisão e, pelo concurso de crimes, na pena única de 14 anos de prisão, concluindo a motivação com as seguintes conclusões:
i. Inexistem quaisquer pormenores reveladores de que alguns dos factos imputados ao arguido tivessem sequer ocorrido pois que, na verdade se fazem, apenas e tão-somente imputações genéricas.
II. Com efeito, não se sabe ao certo em que dias o arguido e a ofendida tiveram relações, apenas se aponta o dia em concreto da semana mas não do mês e se adivinha que não todos, só alguns, mas sem precisar quais.
Mais,
III. Não se sabe com exactidão, quais ou quantos os actos sexuais efectivamente praticados, se praticados, em todas as presumíveis sextas-feiras que o Tribunal a quo aponta como prováveis.
De igual modo,
IV. Ainda que se possa inferir que, todas as sextas-feiras indicadas no douto acórdão a ofendida tivesse ido dormir com o arguido, não se consegue determinar, com plena certeza, que em cada um desses dias da semana, tenham sido praticados actos sexuais com a menor, ofendida.
Com efeito,
V. Para além da confissão do arguido, inexiste qualquer outra imputação concreta, isto é, não existe qualquer facto com "princípio, meio e fim", ou que contenha um momento em que o arguido efectivamente, praticou tais actos.
VI. Tais suposições, dadas como provadas, jamais podem ser susceptíveis de sustentar uma condenação penal em sede de concurso real de infracções, dado que tais afirmações genéricas inviabilizam a determinação do número concreto de crimes efectivamente cometidos ou a determinação do número de vezes que o mesmo tipo de crime foi efectivamente preenchido pela conduta do arguido.
VII. Não se pode afirmar, contrariamente ao sufragado pelo douto acórdão, que foi possível determinar, “circunstanciando com pormenor e descrição o tempo, lugar e modo em que e como os factos aconteceram”, nomeadamente o número exacto de vezes que o recorrente praticou as condutas delituosas apuradas sendo pois certo que se apurou que elas terão ocorrido a partir de data incerta, mas supostamente em Janeiro de 2010 e duraram até inícios de 2012, ocorrendo com uma frequência semanal, às sextas-feiras mas não todas.
VIII. Fica ainda por determinar, reitera-se, em quantas dessas sextas-feiras o recorrente praticou actos sexuais de relevo ou praticou relações sexuais de cópula com a menor ofendida, sendo apenas possível dar como certo, por confissão, que praticou relações sexuais com a menor três vezes.
IX. Não pode o recorrente concordar com a solução jurídica a que chegou o Tribunal a quo, apenas se admitindo esta solução como a possível na justa medida em que, salvo o devido respeito, não conseguiu o Tribunal imputar ao arguido qualquer facto com "principio, meio e fim".
X. Chega o Tribunal a quo, à conclusão – em nosso humilde entendimento, totalmente arbitrária e rebuscada –, que terá o recorrente praticado pelo menos 70 actos da natureza dos que vêm descritos nos factos provados do acórdão proferido em primeira instância, não logrando todavia demonstrar a sua individualização quanto a um momento específico, assim optando por esta solução jurídica por forma a enquadrar a prática de um crime, a cada sexta-feira, pese embora com as ressalvas que faz – também elas supostas – quanto àquelas em que a ofendida não terá estado com o arguido situação em que, faz operar o princípio do in dubio pro reo – também em suposição.
XI. Impunha-se pois que, no âmbito da solução jurídica encontrada pelo Tribunal a quo e, exceptuando a confissão do recorrente - ao nível do Direito, estivessem devidamente concretizadas e motivadas quais as circunstâncias concretas de tempo, modo e lugar que qualificam os crimes de abuso sexual de criança, existindo por isso insuficiência para a decisão da matéria de facto dada como provada, nos termos em que o foi.
XII. Ora, considerando que tal não foi feito, pelo que, deverá o recorrente ser absolvido dos sessenta e sete crimes de abuso sexual de criança que lhe são imputados ou, considerando que deva prevalecer a condenação do arguido pela prática dos aludidos crimes, deverá ser dado como não provado o seu exacto número.
Mais se diga que,
XIII. Salvo o devido respeito por opinião diversa, andou mal douto acórdão recorrido, fazendo incorrecta apreciação do Direito ao considerar que o arguido praticou setenta crimes de abuso sexual de criança, em concurso efectivo (ideal).
XIV. Na verdade, à semelhança do que acontecera já com a figura do crime continuado - outrora também sem consagração explícita no texto da lei e cuja inserção doutrinária teve por base, justamente, a dificuldade de contagem do número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo - também a doutrina e jurisprudência actuais concebem a figura do crime prolongado, protelado, protraído, exaurido ou de trato sucessivo, convencionando que há um e um só crime, que se desdobra em várias condutas que, isoladamente, constituiriam um crime, tanto mais grave quanto mais repetido.
XV. Note-se aliás a grande diferença entre as duas figuras jurídicas: no primeiro caso (crime continuado) assistimos a uma diminuição considerável da culpa; ao invés, no crime trato sucessivo, assistimos a um agravamento da culpa à medida que se reitera a conduta.
XVI. Com efeito, para que se possa considerar, in caso, a prática de um crime prolongado ou de trato sucessivo acha-se necessária a verificação de dois factores: a exigência de uma “unidade resolutiva” – nas palavras do Prof. Dr. Eduardo Correia (de resto doutrina autorizada o bastante, para defesa de tal posição) - e de uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo em que os tipos de ilícito, individualmente considerados, são os mesmos – o que se verifica – ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, tendo a vítima de ser a mesma – o que também sucede.
XVII. Existe pois, no concreto caso - sejam três, dez, vinte ou setenta crimes de abuso sexual de criança - uma repetição de condutas essencialmente homogéneas, unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer uma das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime.
XVIII. O que equivale a dizer que, no concreto caso, foi cometido um e um só crime prolongado ou de trato sucessivo, de abuso sexual de menor, ao invés dos setenta crimes que o douto acórdão do Tribunal a quo considera cometidos e pelos quais puniu o aqui recorrente.
Por último, no que tange à medida da pena e de forma isolada, seguindo a declaração de vencimento nos presentes autos,
XIX. Nos termos do n.º 1 artigo 171.º do Código Penal, “Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.” e, nos termos do seu n.º 2: “Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral (..) o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.”
XX. Concluindo pela verificação de um tipo de crime prolongado ou de trato sucessivo entende-se que, mesmo perante o agravamento da ilicitude decorrente da sua verificação e considerando as atenuante plasmadas no douto acórdão a saber
I) a inexistência de antecedentes criminais e
II) a sua integração social e familiar,
Considerada assim a moldura penal abstractamente aplicável, deve a pena concretamente aplicável ao recorrente deve ser inferior a cinco anos e suspensa na sua execução

O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando para que se negue provimento e se mantenha a douta sentença recorrida, para tanto alinhando as seguintes razões:
I Questão-de-direito.
A) - Crime “prolongado” ou de “trato sucessivo”.

Como intróito, tenha-se presente que – aliás, no seguimento do que o Ilustre Defensor deixou bem vincado na definição do seu objecto e no seu endereço ao Supremo Tribunal de Justiça – o recurso em análise versa, tão-só, sobre matéria de direito, e sobre questões bem específicas.
2.1 Nesta medida, não colhe, com todo o respeito, que o recorrente pretenda agora ver modificada a decisão-de-facto, mormente quanto ao início e ao fim do relacionamento sexual do arguido com a menor (cfr, n.º 19- das doutas alegações.
Resulta, pois, muito claramente que tal relacionamento durou entre o Janeiro de 2010 (tinha a menor 10 anos!) e 09.11.2012, em, pelo menos – é este o sentido lógico da decisão “sub judice” – setenta ocasiões (cfr, factos-provados n.º 7., 8. e 10.).
2.2 E a demonstração que não foi um critério aritmético – mas jurídico, normativo, assente num processo intelectual de cognição – resulta nos juízos de razoabilidade, ponderabilidade e objectividade formulados pelo Colectivo, sempre em vista, aliás, do respeito do in dubio pro reo.
Terão sido, eventualmente, bem mais de setenta vezes...
3 Quanto ao objecto do recurso, dizemos nós:
É naqueles quadros Doutrinais e Jurisprudenciais que o Ilustre Defensor faz, no caso, apologia do instituto do “crime de trato sucessivo”.
Não desconhecemos, na senda do Colectivo, o melindre da questão suscitada, do ponto-de-vista técnico-jurídico, que, por atinente à teoria do crime, concerne, porventura, com uma das mais profundas e densificadas matérias do Direito Penal.
4 Efectivamente, classificar um tipo-de-crime (e, daí, decidir sobre a unidade ou pluralidade de infracções) envolve:
- Em primeira linha, a discussão sobre a dicotomia unidade de acção/pluralidade de acção;
- Depois, o recurso a valorações sobre o “concreto sentido de ilicitude” vertido no tipo.
4.1 Quanto à unidade/pluralidade da acção, em tal discussão, de natureza normativa e não atinente apenas à realidade, empírica, naturalística, deve ter-se presente que o agir humano penalmente relevante (como cadeia de actos físicos) se revela em “unidades sociais de sentido”, sendo que é este nexo jurídico-social de sentido que decide acerca de quais os distintos actos separáveis externamente de um acontecimento devem considerar-se como unidade ou pluralidade de facto (cfr, Wessels, Derecho Penal, Ediciones Depalma, Buenos-Aires, 1980, págs. 229 e 230).
4.2 Mas sendo aquele o ponto de partida, a distinção deve passar, depois, unicamente, pelo recurso ao sentido dos tipos legais em cada caso violados, que se impõe deduzir mediante a interpretação jurídica (cfr, Yescheck, Derecho Penal, II, 997).
5 Então, uma vez identificado e densificado tal específico “concreto sentido de ilicitude”, pela correcta interpretação do preceito penal pertinente, resulta assimilado o bem jurídico tutelado (na sua relação necessária com o concreto objecto da acção protegido), assim como a exacta formulação do hipotético processo causal e respectivo resultado danoso, tudo isto tendo também em vista o necessário cotejo dialéctico entre o tipo de ilícito assim definido com as normas de natureza penal atinentes, por exemplo, à unidade ou pluralidade de infracções.

6 Donde:
Não são, com todo o respeito por superior opinião, praticáveis, porque aleatórios, critérios assentes essencialmente em considerações abstracto formais e espácio temporais que poderão definir e integrar materialmente o conceito de “crime de trato sucessivo” (ou exaurido) e, a partir daí, classificar um concreto facto crime como tal.
7 Só, pois, pelo recurso ao bem jurídico tutelado (na sua relação necessária com o concreto objecto da acção protegido) é que pode decidir-se, como o acerto que se exige, sobre a integração de um facto-crime em tal categoria conceitua penal.
7.1 E segundo nos parece, a relevância do “trato sucessivo” pressupõe, em geral, a referência aos “crimes sem vítima”, nomeadamente “tráfico de estupefacientes”, “detenção de arma proibida”, “lenocínio” (não agravado), “auxílio à emigração ilegal”, “tráfico de armas”, etc., casos em que ao bem jurídico-penal tutelado não acresce um concreto objecto da acção protegido.
(Os casos de “violência doméstica” ou de “maus tratos” são situações de configuração típico normativa específica, em que o próprio legislador penal estabelece, como pressuposto da sua punição autónoma adentro dos vários crimes contra a integridade física, contra a liberdade pessoal ou contra a honra, a prática, por regra, de actos reiterados).
7.2 Sem qualquer tentação de subjectivização das normas penais, de Direito Público – mas também com a firme convicção de que o primado na definição do arranjo legal deve passar pelo imperativo de defesa eficaz do interesse individual do ofendido – pensamos que a categoria conceitual em análise em nada se adequa, no plano da realização da justiça material, ao crime de “abuso sexual de criança”.
7.2.1 Para além da mais ou menos abstracta violação do bem jurídico “autodeterminação sexual”, impõe-se, no caso, de forma flagrante, concreta e real, um grave e renovado atentado à saudável, espontâneo, equilibrado e atempado desenvolvimento e formação da sexualidade da menor.
7.3 Cada acto sexual cometido com a menor representou para ela, inexoravelmente, um novo e diverso atentado à sua sexualidade, uma nova lesão no seu estado somático psíquico emocional, que reiteradamente a colocou mais longe de poder vir a gozar, na idade certa, de uma sexualidade sem complexos, sem traumas e de satisfação plena:
Uma nova vitimização, com autonomia ético-penal.
7.3.1 E, reversamente, cada acto de sexo cometido pelo arguido sobre a menor, deu a este a oportunidade de, repetida, resoluta e pensadamente, satisfazer os seus instintos lascivos mais ímpios e obscenos, em vez de lhe servir como alerta para a sua consciência ética mal-formada, para lhe despertar os factores de inibição que desde o início não teve.
7.4.1 Bem diversa, no plano ético-social e penal, é a situação de quem, por exemplo, um, dois, três ou mais meses vem fornecendo estupefacientes ou armas a terceiros, vem auxiliando ou angariando emigrantes ilegais, em execução de uma mesma manifestação de vontade:
Um mero executar de uma mesma “unidade social de sentido”, em que cada acto isolado apenas acrescenta ao anterior uma nova e sucessiva dimensão quantitativa.
8 Neste esforço de interpretação, cotejando a discursividade jurídica com a realidade dos factos, cumpre-nos citar o Colectivo.
…A menor ir dormir com ele não constitui qualquer circunstância exógena que o arraste para o crime, já que sobre tal circunstância teve sempre o domínio do facto (bastava-lhe ter proibido à menor que fossem para a casa dele) – não se trata, portanto, de uma situação que se impunha ao arguido, mas, ao invés, de uma situação que ele controlava e, destarte, fomentava. Fomento que, de resto, era acompanhado por outros factores que dependiam também exclusivamente da vontade do arguido – pensamos nas prendas, para manter a menor na ilusão de que a relação que mantinha com o arguido era filial e de afecto paterno; pensamos na ameaça, repetida, de “haver problemas” se a menor contasse a alguém, quando a menor começou a perceber o significado da conduta do arguido; pensamos no crescendo de gravidade (na perspectiva do sujeito passivo, no caso, da criança) da ameaça, fazendo-lhe crer o arguido que se iria embora, e assim abandonaria o irmão da menor, caso ela não “fosse com ele” e pressionando-a para desistir do namoro – e que revelam um comportamento activo e repetido do arguido na reiteração das relações sexuais (o que, evidentemente, afasta ainda mais, se necessário fosse, a consideração de qualquer circunstâncias exógena; vide, sobre o ponto, a título exemplificativo, os Acórdão da Relação do Porto de 14.10.2009, proc. n.º 125/05.6FAVNG.P1, de 14.05.2009, proc. n.º 07P0035, ambos consultáveis em www.dgsi.pt (cfr, pág. 21).
… …
O que explica que, neste tipo de crimes, a unicidade da resolução criminosa é afirmada porque a própria tipicidade, ao pressupor a reiteração dos actos semelhantes, afasta a pluralidade de resoluções ou, pelo menos, não lhe dá relevo, justamente porque a resolução de cometer este tipo de crimes pressupõe ou pelo menos acolhe (ver o caso da violência doméstica), face à valoração feita pelo legislador na construção da estrutura do ilícito, a reiteração de actos semelhantes. Por isso, temos para nós que a reiteração de actos homogéneos não assume natureza de crime habitual em função de uma hipotética (e por vezes ficcionada) unidade de resolução, mas sim, somente, em função da estrutura do tipo incriminador, que há-de pressupor ou ao menos acolher a reiteração.
Obviamente que nada disso se passa com o crime de abuso sexual de crianças: nem a estrutura do tipo pressupõe ou acolhe sequer a reiteração de actos semelhantes, nem o cometimento do crime implica um comportamento reiterado (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 15.05.2013, proc. n.º 1209/10.4JAPRT.P1, in www.dgsi.pt (cfr, pág. 23).

Por ser tão clarividente, limitámo-nos a citar o Exm.º Juiz Conselheiro Manuel Braz, que votou vencido no Acórdão do S.T.J. de 29.11.2012, proc. n.º 862/11.6TAPFR.S1, in www.dgsi.pt, nos seguintes termos: «Parece claro que tanto os tipos de crime de abuso sexual de crianças e de abuso sexual de menores dependentes como o de violação não contemplam aquela “multiplicidade de actos semelhantes” que está implicada no crime habitual nem, por isso, a sua realização supõe um comportamento reiterado. //Cada um dos vários actos do arguido foi levado a cabo num diverso contexto situacional, necessariamente comandado por uma diversa resolução e traduziu-se numa autónoma lesão do bem jurídico protegido. Cada um desses actos não constituiu um momento ou parcela de um todo projectado nem um acto em que se tenha desdobrado uma actividade suposta no tipo, mas um “todo”, em si mesmo, um autónomo facto punível. Deve por isso entender-se que, referentemente a cada grupo de actos, existe, usando palavras de FIGUEIREDO DIAS, “pluralidade de sentidos de ilicitude típica” e, portanto, de crimes (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª edição, p. 989)» (cfr, pág. 24).
9 Tenha-se ainda presente que durante algum tempo, quando a família da menor morava já na zona de … (limites de Bragança, junto ao antigo …), e o arguido ainda morava nas “…” (centro histórico da cidade), era este que, de carro, à noite, ia buscar a ofendida onde residia para a levar a dormir com ele (ele próprio foi depois também a morar para o mesmo prédio), o que revela a intensidade do dolo, mas, mais do que isso, a necessária renovação da vontade.
É o que resulta, por exemplo, das declarações da arguida (cfr, 21031112150 247_83904_64228, 30.32-31.16).
Não violou a douta decisão recorrida o disposto no art. 30º do Código Penal.

B) - Medida da pena.

Na hipótese de os Senhores Juízes … entenderem modificar a decisão recorrida no sentido sufragado pelo recorrente, cremos, com todo o respeito, que, na moldura penal abstracta de 03 a 10 anos de prisão, o arguido deverá ser condenado em pena não inferior a 08 anos de prisão.
3 Efectivamente:
As concretas circunstâncias da prática do crime, com relevância ao nível da formulação dos juízos de ilicitude e de culpa – valoradas, pois, à luz dos critérios tipológicos previstos na disposição do art.º 71.º do Código Penal para a determinação da pena –, permitirão a convicção de que tal pena se mostrará justa e criteriosa e necessária, dando expressão acertada às exigências da prevenção especial e geral, integrada esta pela ideia da culpa.
3.1 Concretizando.
- O arguido praticou actos de sexo com a menor, mormente de penetração vaginal, pelo menos, setenta vezes, durante cerca de 03 anos;
- A menor tinha apenas 10 anos de idade quando foi por ele desflorada;
- Não confessou os factos;
- Não mostrou actos de arrependimento (veja-se, aliás, a forma cruenta, despiedada, insultuosa e indiferente como se refere à menor (“a quem via como uma filha”), como resulta do relatório das escutas telefónicas de fls. 236-239);
3.1 Por outro lado, quanto à legada ausência de antecedentes criminais e integração social e familiar:
Sendo o factum a matriz lógica e ontológica (genética) do Direito Penal, apenas de forma acessória considerações que lhe sejam exteriores poderão ser erigidas em critérios essenciais na valoração atinente à determinação da pena concreta, sem nunca, porém, poder conduzir à absoluta substituição do agir pelo ser como objecto da censura jurídico-criminal.
3.1.1 A alegada integração social e laboral do arguido não decorre apenas da sua (inevitável) pertença a uma comunidade humana organizada, mera expressão de um instinto gregário que está ainda mais presente noutros exemplos da biologia animal:
Tal integração pressupõe um comportamento de acordo e no respeito pelas regras mínimas da sociabilidade, numa complexa e entrecruzada relação dialéctica entre o eu e o outro, donde se afirma o todo social;
Na verdade, sendo o factum a matriz lógica e ontológica (genética) do Direito Penal, apenas de forma acessória considerações que lhe sejam exteriores poderão ser erigidas em critérios essenciais na valoração atinente à determinação da pena concreta, sem nunca, porém, poder conduzir à absoluta substituição do agir pelo ser como objecto da censura jurídico-criminal.
Não violou a decisão sub judice o disposto no art.º 71.º do Código Penal.

B) - Suspensão da execução da pena de prisão.
1 Não fundamenta, de todo, o Ilustre Defensor a pretensão da aplicação da medida de substituição em causa, que, assim, coloca como uma falsa questão, vazia de argumentos.
E, com todo o respeito, julgamos descontextualizado o pedido de aplicação de uma pena de prisão não superior a 05 anos.
2 Resta-nos, contudo, acentuar que:
É certo que demonstra a estatística criminológica que os agentes de crimes sexuais cometidos no recato do lar, contra familiares ou pessoas próximas, não cometem normalmente outros crimes da mesma natureza fora da “segurança” o seu meio de origem, por normalmente se “acovardarem” na confrontação face a potenciais vítimas de um meio que não é o seu.
3 Mas – agora no plano da prevenção geral, integrada pela ideia da culpa (se assim não se entendesse, ou seja, se o Tribunal “ad quem” decidisse aplicar ao arguido pena de prisão não superior a 05 anos, julgamos) –cremos, com todo o respeito, que só a execução da pena de prisão oferece, no caso, a garantia da prevalência dos bens jurídico-penais (que na sua génese se pretendem preservados), através da íntima assunção, pela comunidade, de que foi aplicada a pena justa e merecida.
São, pois, no caso, muito elevadas e prementes as exigências de defesa do ordenamento jurídico, postulado capital da aplicação de qualquer pena;
Há limites mínimos que não devem ser ultrapassados na aplicação da Justiça Penal.

II Em conclusão:
Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, mantendo-se, em conformidade com o exposto, os termos da decisão recorrida.

Nesta Relação, o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da não procedência do recurso, para tanto louvando-se no seguinte:
(…)
7. Ou seja, não se detecta tal vicio [cm outro que cumpra conhecer oficiosamente], conquanto a decisão de facto suporta amplamente a decisão de direito [ou qualquer outra possível, em face das varias soluções de direito - a titulo de exemplo, cfr. voto de vencido de fls. 625/630], nomeadamente, no que concerne a decisão de considerar que o recorrente e autor dos 70 crimes de abuso sexual de criança como resulta dos pontos 7 e 8, conjugados com os pontos 13 e 14 da decisão de facto que não foram impugnados por via do preceituado no n.º 3 do art.º 412.º do CPP.
8. Assim, não se detectando aquele vício ou qualquer outro dos nomeados no art.º 410.º, n.º 2 do CPP, na ausência da impugnação ampla da decisão de facto, tem a mesma que se manter, sendo certo que a solução de direito defendida no acórdão e que se coaduna com os princípios sobre a unidade/pluralidade de crimes consagrado no art.º 30.º, n.º 1 do C. Penal.
9. Em suma, o recurso não merece provimento, devendo manter-se a decisão recorrida em toda a sua extensão.

Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte da recorrente.

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
***
II - Fundamentação.
1. Da decisão recorrida.
1.1. Factos julgados provados:
1. A arguida C… é mãe da D…, nascida a 3 de Agosto de 1999.
2. O arguido B…, não sendo o progenitor da menor D…, manteve com a arguida, mãe dela, pelo menos entre 1997 e 2008, uma relação de namoro, não assumido de forma directa em público, relacionamento esse do qual resultou o nascimento do irmão menor, de 4 anos de idade, da ofendida E….
3. Desde tenra idade que a menor D… se habituou a ver no arguido a figura paterna, tanto mais que não chegou a conhecer o seu progenitor.
4. Pelo facto de sempre ter convivido muito de perto com a menor, desde os seus dois anos de idade, ao ponto de esta, por vezes, o tratar por “pai”, o arguido foi criando com ela um relacionamento muito próximo, relacionamento este que, para a menor, funcionava como a relação de pai e filha que nunca tivera com o seu pai biológico e que sempre quis ter.
5. Mesmo após ter terminado a relação amorosa com a arguida C…, o arguido viveu sempre junto delas, nos últimos tempos na Rua … e, anteriormente, na zona das “…”, nesta mesma cidade.
6. A confiança que a menor tinha no arguido era de tal ordem que esta, que por vezes o tratava por “pai”, quando já andava na escola e por ouvir as colegas falar dos progenitores, começou por pedir à mãe que, aos fins-de-semana, a deixasse ir pernoitar a casa do arguido, o que passou a ocorrer, com autorização da arguida, quando a D… tinha cerca de 9 anos de idade, nas noites de 6.ª feira para sábado.
7. Sucede, porém, que, após a ter, em várias ocasiões, acariciado nas zonas erógenas, a saber seios e região vaginal, e beijado na boca, tudo para lhe despertar sensações eróticas e estimular o desejo sexual, o arguido, numa certa sexta-feira de Janeiro de 2010, à noite, estando deitado com a menor na cama, e após a ter acariciado e beijado nos termos acima referidos, introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor, com ela mantendo relações de cópula completa, vindo a ejacular, embora fora do corpo da menor.
8. Pelo menos em mais uma sexta-feira do mês de Janeiro e em, pelo menos, duas sextas-feiras dos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Setembro, Novembro e Dezembro de 2010 e dos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Outubro, Novembro e Dezembro de 2011 e dos meses de Janeiro, Fevereiro, Abril, Maio, Julho, Setembro e Outubro de 2012 e em, pelo menos, três sextas-feiras dos meses de Julho e Outubro de 2010, dos meses de Julho e Setembro de 2011 e dos meses de Março e Junho de 2012, e ainda nos dias 2 e 9 de Novembro de 2012 (sextas-feiras), o arguido manteve de cada vez relações sexuais de cópula completa com a menor, introduzindo o seu pénis erecto na vagina daquela e ejaculando sempre fora do corpo da mesma, num total (contando com a descrita em 7.) de setenta vezes.
9. O arguido, para começar a manter relações sexuais com a menor, aproveitou-se da fragilidade emocional desta, fruto da sua idade, que não via mal no seu comportamento, antes vendo-o como próprio de uma relação entre pai e filha, o que o arguido reforçava, passando a oferecer-lhe mais prendas do que antes alguma vez fizera.
10. Porém, com as aulas de educação sexual, ministradas na escola, no ano lectivo de 2010/2011, e, concretamente, ao ser abordada a sexualidade propriamente dita, o que ocorreu, o mais tardar, no início do 2.º período (Janeiro de 2011), a D… percebeu que o comportamento assumido pelo arguido, até à data, não era normal.
11. Todavia, porque o arguido, em tom colérico, lhe passasse a dizer, então que, se contasse a alguém, iria haver problemas, e para os dois lados, a D… ficou receosa, até porque era ele quem garantia a maior parte do sustento alimentar da menor e família, fazendo grande parte das compras de alimentos, o que, aliado à afeição que nutria pelo arguido, que, apesar de tudo, continuava a ver como pai, a levou a não contar nada a ninguém, designadamente, à mãe, co-arguida C…, e, assim, a continuar a dormir com ele.
12. Porque a D… iniciou uma relação de namoro com um colega da escola, o que ocorreu em Abril de 2012 (dia 25), o arguido, quando disso soube, passou a referir à menor, em tom ameaçador, que se ela não estivesse com ele, se iria embora, com o propósito, conseguido, de a manter “presa” a si, pois a menor não queria que o irmão mais pequeno também ficasse sem pai, conforme ela tinha ficado desde pequenina; além disso, com o mesmo propósito, passou e enviar-lhe mensagens no Facebook.
13. O arguido tinha perfeito conhecimento da idade da menor D….
14. Ao actuar da forma descrita, fê-lo, de cada vez, de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, concretizado, de manter com ela as referidas relações de cópula completa e de, assim, satisfazer os seus intentos libidinosos, para o que actuou, também, da forma descrita em 9., 11. e 12..
15. Bem sabia que não lhe era permitido manter relações sexuais com crianças, como a D…, e que por isso a sua conduta era proibida e criminalmente punida.
16. A arguida C… nunca se opôs a que a menor D… acompanhasse com o arguido, nem nunca impediu ou proibiu que a mesma fosse dormir a casa dele, não obstante saber que dormiam juntos.
17. Não chegou a representar a possibilidade de o arguido manter relações sexuais com a menor, nem a de o arguido a acariciar da forma descrita.

Mais se provou que:
18. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
19. O arguido B… concluiu o 3.º ano do 1.º ciclo.
20. Ao longo da sua vida activa, sempre teve hábitos de trabalho, tendo desenvolvido actividade profissional na E… durante 30 anos e, durante o tempo em que esteve com licença sem vencimento e depois de ter sido dali despedido por faltas injustificadas, noutras áreas.
21. Ultimamente, e até ao dia em que foi detido, trabalhava na empresa “F…”, exercendo as funções de motorista e funcionário de armazém, sendo referenciado como um colaborador assíduo e cumpridor.
22. Sempre manteve contacto assíduo com os seus três filhos, fruto do seu casamento, com quem mantém uma boa relação.
23. Ultimamente, mantinha uma relação de namoro com G….
24. No Estabelecimento Prisional tem mantido um comportamento globalmente ajustado, não se envolvendo em problemas, apesar de não frequentar qualquer actividade ocupacional; no exterior tem sido apoiado pelos seus filhos e por G…, que o visitam com regularidade.
25. O arguido está integrado no meio social onde vivia antes de ter sido preso preventivamente, sendo bem visto e considerado por algumas pessoas que consigo convivem.
26. A entidade patronal do arguido não perspectiva qualquer nova contratação no momento em que aquele regresse ao meio livre dado o impacto no meio dos factos supra descritos.
27. O arguido não demonstrou arrependimento dos factos, nem revelou qualquer crítica para a sua conduta, antes demonstrou desprezo para com a menor, que trata de “gaja furada” e que a coloca na posição de provocadora.
28. A arguida C… encontra-se reformada por invalidez, auferindo uma parca pensão de reforma.

1.2. Factos julgados não provados:
- o arguido iniciou o relacionamento sexual com a menor no mês de Agosto de 2010;
- o arguido viveu sempre junto da arguida C… e da menor só para fomentar ainda mais o relacionamento que mantinha com a menor e estar perto do filho era apenas um pretexto;
- era o arguido quem fazia todas as compras para a casa;
- convinha à arguida C… mantê-lo por perto, nem que para tal colocasse em perigo a própria filha;
- a arguida via os contactos íntimos entre o arguido e a filha;
- sabendo que se tal não fizesse podia colocar em risco a subsistência da família, a arguida foi conivente com os comportamentos que presenciava do arguido em relação à menor D…;
- a arguida apercebeu-se de outros comportamentos que já não eram “normais”, como por exemplo o facto de o arguido ter começado a ter algumas discussões com a menor e de certos olhares que ele lhe dirigia, após os quais a menor saía de imediato atrás dele;
- não existia mais nenhuma outra cama em casa do arguido;
- a arguida sabia do relacionamento sexual que o arguido tinha com a sua filha D…;
- a arguida nada fez para impedir que o relacionamento sexual do arguido com a sua filha continuasse e chegou mesmo a fomentá-lo;
- a arguida agiu de forma deliberada e consciente;
- a arguida sabia ainda que, sendo conivente com tal relacionamento sexual do arguido com a menor, essa sua conduta era também ela proibida e punida criminalmente.

1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto:
O Tribunal formou a sua convicção relativamente à factualidade ínsita nos factos provados com base na análise, crítica e global, de toda a prova produzida em audiência, documentação e exames periciais que se encontram juntos aos autos, com recurso a juízos de experiência comum, nos termos do artigo 127.º do CPP.
Os factos da acusação pública considerados provados resultaram, assim, da análise cuidada e articulada das declarações prestadas pelos arguidos, dos depoimentos prestados pelas testemunhas H…, I… e G…, das declarações para memória futura da menor D… ouvidas em audiência de julgamento e de toda a prova documental junta aos autos, a saber o auto de denúncia de fls. 2/3, a informação de serviço de fls. 4, conteúdo das mensagens do Facebook de fls. 8-16, o print de identificação civil de fls. 18, a certidão de assento de nascimento de fls. 25-26v, o auto de busca e apreensão de fls. 37/38, os registos fotográficos de fls. 39-44 e 323-337, a informação médica de fls. 52, o relatório médico-legal de fls. 135-137v, os autos intercalares de intercepção e gravação de conversações ou comunicações de fls. 233/234, 268/269 e 341/342, os relatórios de intercepções e gravações telefónicas de fls. 235-239, 270-273, 343-345 e 371/372, o relatório pericial psicológico de fls. 405-409, o auto de declarações para memória futura de fls. 427-429 e os autos de transcrição de conversações ou comunicações constantes do anexo I que se encontra apenso aos presentes autos.
O Tribunal atendeu, fundamentalmente, às declarações (para memória futura) prestadas pela ofendida D… que se revelaram absolutamente espontâneas, seguras, objectivas e coerentes, circunstanciando com pormenor e descrição o tempo, lugar e modo em que e como os factos aconteceram (tanto quanto a sua memória, idade e sequelas traumáticas permitiram), declarações cuja credibilidade e isenção são inquestionáveis não só quando individualmente consideradas mas também quando conjugadas com a demais prova documental, testemunhal e pericial, que as confirma. Com efeito, a ofendida D…, com a emoção e sofrimento inerentes à sua condição de vítima do abuso sexual do arguido, depôs com tal clareza, expressividade e espontaneidade sobre os factos passados e os momentos temporais e espaciais em que aqueles ocorreram que nenhuma dúvida assombrou o espírito do Tribunal quanto à credibilidade do testemunho, atentos os pormenores descritos e a sequência lógica feita dos factos mais relevantes para a vítima, sendo altamente demonstrativo dessa credibilidade a forma emocionada com que descreveu alguns dos factos (foram vários os momentos ao longo do seu depoimento em que a menor se emocionou, coincidente com aqueles factos para si mais marcantes e traumatizantes, como quando fala que sempre viu o arguido como um pai, quando refere que se apercebeu que afinal o arguido mantinha relações sexuais consigo, quando fala da mãe) e a coerência dessa descrição, aliada a um discurso seguro, sério e muito lúcido. Note-se que no relatório médico-legal de fls. 135-137v consta que a menor contou à médica que iniciou a sua actividade sexual com o arguido no ano de 2010, quando tinha 10 anos de idade. E o relatório pericial psicológico de fls. 405-409 também nos confirmam a seriedade e credibilidade do testemunho da D…, quando refere “uma maturidade emocional ajustada”, “sinais de uma personalidade já bem estruturada”, “uma maturidade real do ego que poderá reafirmar a credibilidade da sua subjectividade”, “uma estrutura emocional adequada e condicionada ao funcionamento intelectual e psicológico, limitado ao contexto social e cultural onde está inserida”, indiciando quanto ao Stress Pós Traumático uma “perturbação de Grau Moderado” - neste contexto a menor expressa um sentimento de culpa, muitas associado à vivência traumática - e revelando na Escala da Mentira “inexistência de orientação ou tendência para testemunhos ou afirmações falseadas”; conclui mesmo que “nada evidencia ou traduz orientação para deturpação de factos, inexistência de discernimento ou confabulação”.
Ora, as declarações da ofendida, que, de per si, como vimos, são inabaláveis, são parcialmente confirmadas pelas declarações do arguido, que admite ter mantido relações sexuais com a menor, nas vezes em que a mesma foi dormir consigo a sua casa, na sua cama, embora refira que tal sucedeu apenas entre os meses de Setembro e Novembro de 2012 e apenas por três vezes e se justifique com o facto de a menor sempre se ter insinuado perante si, despindo-se à sua frente, beijando-o na boca e acariciando-lhe as zonas genitais, de forma reiterada e à frente da arguida C…, que jamais a repreendeu e nada fez para que a menor parasse com tais comportamentos provocatórios. Que as vezes em que manteve relações sexuais com a menor foram apenas três é totalmente infirmado não só pelas declarações credíveis da ofendida (que até baliza temporalmente o início do relacionamento sexual, o período de tempo em que esse relacionamento se manteve com o desconhecimento por parte da menor do carácter “anormal” do comportamento do arguido e a alteração de comportamento quando a menor começou a namorar com um colega da escola) mas também pelo conteúdo de algumas conversações telefónicas mantidas pelo arguido com o seu filho J… e pelo conteúdo das mensagens enviadas pelo arguido para o Facebook da menor (vide fls. 8-16 e anexo I).
Por seu lado, as declarações da menor são bastante coincidentes com as declarações prestadas pela arguida C…, seja na localização temporal e espacial de alguns factos relevantes (v.g. momento em que a menor passa a dormir com o arguido e razões que a isso levaram) seja no modo de actuação do arguido para com a ofendida, para com a arguida e os restantes membros do agregado familiar (v.g. contributo financeiro do arguido para algumas necessidades básicas do agregado familiar, dádiva de presentes à menor). Também o depoimento da testemunha I…, que se mostrou absolutamente credível, seguro, consistente, circunstanciado, pormenorizado e expressivo, permitiu confirmar, nalguns pontos, as declarações da menor e da arguida C… e colmatar, noutros pontos, sobretudo ao nível espácio-temporal, algumas falhas (compreensíveis, pela idade e trauma da situação) na descrição feita pela menor.
Com efeito, foi pela análise articulada das declarações da ofendida e da arguida C… e do depoimento prestado pela testemunha I…, em conjugação com as regras da experiência e do senso comum em face da idade da menor e da vivência familiar da mesma e o princípio do in dubio pro reo, que o Tribunal alcançou o número de vezes em que o arguido manteve relações sexuais com a menor: setenta. Se não vejamos. A menor explicou que as coisas começaram a acontecer -“avançar” (sic) - quando ela tinha 10/11 anos de idade (no seu 5.º/6.º ano de escolaridade, se bem que à perita contou que foi no ano de 2010, quando tinha 10 anos de idade), tendo ela tomado a iniciativa de ir dormir com o arguido “desde que foram viver para cima dele” (sic), no mesmo prédio; inicialmente não reparou bem o que era aquilo, não tinha conhecimento, “como nunca tive um pai achei que era normal” (sic); passado cerca de um ano/ano e meio, quando começou a ser abordada a Sexualidade na escola, é que se apercebeu que tinha relações sexuais com aquele que sempre viu como um pai; as coisas começaram a mudar quando o arguido soube que a menor começou a namorar com um colega da escola (a relação de namoro, segundo a D…, iniciou em 25 de Abril de 2012), perseguindo-a, ameaçando-a e ao namorado, obrigando-a a acabar com a relação, mandando-lhe inúmeras mensagens para o Facebook, gritando consigo, o que sucedeu até ao dia 14 de Novembro de 2012, dia em que tudo se descobriu, pese embora o relacionamento sexual também tenha existido até à última 6.ª feira. Quer a testemunha I… quer a arguida C… referiram que a D… começou a ir dormir a casa do arguido quando ainda residiam na Rua …, concretizando aquele que foi “mais para o fim da altura em que se mudaram para a Rua …” (de acordo com a análise conjugada dos relatos feitos pela arguida e pela testemunha I…, entre o primeiro e segundo trimestre de 2009), situação que se manteve até quando foram viver para a Rua … (primeiro mudou-se a arguida com o seu agregado familiar e, passado algum tempo, mudou-se o arguido para o andar de baixo). Ora, consultando a legislação que implementou a educação sexual no meio escolar (Lei n.º 60/2009, de 06.08, e Portaria n.º 196-A/2010, de 09.04), conclui-se que essa disciplina foi incluída nos programas escolares apenas no ano lectivo de 2010/2011; tendo a D… referido que só passado um ano/ano e meio de ter o relacionamento íntimo com o arguido, quando começou a dar a Sexualidade na escola, é que tomou conhecimento de que mantinha relações sexuais com ele, e sabendo, pela consulta do quadro anexo à Portaria n.º 196-A/2010, de 09.04, que para o 2.º ciclo (5.º e 6.º anos) estão previstos os seguintes conteúdos: “puberdade - aspectos biológicos e emocionais; o corpo em transformação; caracteres sexuais secundários; normalidade, importância e frequência das suas variantes biopsicológicas; diversidade e respeito; sexualidade e género; reprodução humana e crescimento; contracepção e planeamento familiar; compreensão do ciclo menstrual e ovulatório; prevenção dos maus tratos e das aproximações abusivas; dimensão ética da sexualidade humana”, podemos concluir com certeza que foi no 5.º ano de escolaridade da menor que as relações sexuais começaram e, perante a dificuldade em precisar o momento em que esse começo ocorreu (quando aquela tinha 10 anos de idade, perfeitos em 3 de Agosto de 2009), sabendo que na dúvida deverá sempre beneficiar-se o arguido - pese embora a menor tenha dito que tinha 10/11 anos de idade, e cerca de um ano/ano e meio após é que descobriu que aquele não era um comportamento normal de pai para filha -, que o início do relacionamento sexual ocorreu, pelo menos, em Janeiro de 2010 -início do 2.º período escolar, considerando, à cautela, que deve ter sido no início do 2.º período do ano lectivo seguinte (de 2011) que a menor começou a abordar a temática da sexualidade (vide a ordem lógica de abordagem dos conteúdos supra referidos e a entrada em vigor do diploma que regulamentou a Lei n.º 60/2009), sendo esta a conclusão que mais beneficia o arguido, pois que a implementação da educação sexual no meio escolar terá tido início em Setembro de 2010, logo, início do ano lectivo de 2010/2011 (pese embora estejamos crentes, de acordo com a normalidade das coisas, de que foi logo no início do ano lectivo, Setembro, portanto, que muito provavelmente a menor começou a ter alguma noção das coisas, tendo em conta a reacção dos miúdos quando certas matérias da educação sexual são abordadas nas aulas, comentando e brincando com as palavras nos intervalos). E uma vez que a menor disse genericamente que as relações sexuais ocorreram todas as semanas (transmitindo, pois, a ideia inequívoca -dada a experiência traumática que vivenciou, é perfeitamente compreensível que no espírito da menor tenha ficado bem marcada a ideia de uma maior periodicidade; note-se que a menor até referiu que não tem muita memória dos primeiros tempos, “talvez devido ao choque” (sic) -, de que foram mais as vezes em que aconteceram do que as que não aconteceram), sabendo pelas declarações da arguida e pelo depoimento da testemunha I… que não seriam todas as sextas-feiras, já que nas férias grandes do Verão a menor foi para fora (… ou …), já que quando havia visitas do irmão em casa a menor ficava em casa e, diremos nós também, nas férias da Páscoa e do Natal não ocorreriam devido às festas familiares (aqui, na dúvida, temos de as retirar também, em benefício do arguido), verificando que os meses de Abril, Julho, Outubro e Dezembro de 2010, de Abril, Julho, Setembro e Dezembro de 2011 e de Março e Junho de 2012 tiveram cinco sextas-feiras, tendo sido mais as vezes em que as relações sexuais ocorreram do que as que não ocorreram, concluímos que de Janeiro de 2010 a 9 de Novembro de 2012 as relações sexuais ocorreram pelo menos duas vezes em cada mês (lá está, na dúvida, o Tribunal considera que, nos meses com apenas quatro sextas-feiras, ocorreram apenas metade, em benefício do arguido), exceptuando os meses de Julho e Outubro de 2010, de Julho e Setembro de 2011 e de Março e Junho de 2012 nos quais, por terem cinco sextas-feiras, consideramos três vezes (nos meses de Abril de Dezembro de 2010 e 2011 consideramos apenas duas vezes precisamente por causa das férias escolares), o que dá um total de setenta ocasiões. Também pelo facto de a menor ter referido que, após Abril de 2012, houve um mês inteiro que não foi dormir com o arguido devido ao facto de estar presente uma prima, na impossibilidade de se saber que mês foi esse, descontamos duas semanas no mês da Páscoa dos anos de 2010, 2011 e 2012, que jamais foi referenciado por quem quer que seja, mais uma vez em benefício do arguido dada a dúvida.
Pelo acabado de expor, e porque nessa parte há uma contradição da acusação, jamais o início do relacionamento sexual do arguido com a menor poderia ter lugar no mês de Agosto de 2010. Se, conforme se alega no libelo acusatório, o arguido começou a ter relações sexuais com a menor quando esta já andava no 5.º ano de escolaridade (como vimos, o ano lectivo de 2009/2010, sendo que a menor faz anos a 3 de Agosto), não faz sentido a alegação de que o arguido, durante uma das noites dos fins-de-semana, habitualmente de sexta-feira para sábado, entre Agosto de 2010 e até à última sexta-feira anterior à sua detenção, manteve com a menor relações sexuais. Portanto, a alegação, aliás provada, de que a menor começou a ter relações sexuais quando andava no 5.º ano de escolaridade infirma a alegação, decorrentemente não demonstrada, de que o arguido manteve relações sexuais com a menor entre Agosto de 2010 e o dia 9 de Novembro de 2012 (última vez que mantiveram relações sexuais, antes da detenção do arguido, ocorrida a 17 de Novembro). Note-se, Agosto de 2010 é pleno período de férias escolares da menor, iniciando em Setembro seguinte o 6.º ano de escolaridade que aquela ingressou. Se não é um lapso de escrita da acusação pública, é uma contradição face ao que alegou anteriormente, tendo-se provado precisamente que as relações sexuais iniciaram no ano de 2010 (pelo menos em Janeiro), quando a menor tinha 10 anos de idade e frequentava o 5.º ano de escolaridade.
Especificamente para prova dos factos insertos nos pontos 13., 14. e 15. (elemento cognitivo e volitivo do arguido), foram também tidas em consideração as regras da experiência e do senso comum, visto que é manifesto que, actuando da forma descrita, o arguido fê-lo livre, voluntária e conscientemente, com perfeito conhecimento do carácter proibido da conduta por si praticada. Na verdade, importa não esquecer que, como ensina CAVALEIRO FERREIRA (Curso de Processo Penal, v. II, 1981, p. 292) «existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica», o que é corroborado por MALATESTA quando refere que «exceptuando o caso da confissão, não é possível chegar-se à verificação do elemento intencional, senão por meio de provas indirectas: percebem-se coisas diversas da intenção propriamente dita, e dessas coisas se a concluir pela sua existência... afirma-se muitas vezes sem mais nada o elemento intencional mediante a simples prova do elemento material... o homem, ser racional, não obra sem dirigir as suas acções a um fim. Ora quando um meio só corresponde a um dado fim criminoso, o agente não pode tê-lo empregado senão para alcançar aquele fim» (A Lógica das provas em matéria Criminal, p. 172 ss). No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.02.1993, quando afirma «(...) dado que o dolo pertence à vida interior de cada um é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência (...)» (in BMJ n.º 324.º, p. 620). Assim, o comportamento assumido pelo arguido ao longo do tempo em que se relacionou sexualmente com a menor revela nitidamente que ele, em cada sexta-feira que a menor foi dormir consigo, resolveu ex novum manter relações sexuais com a mesma, sendo por isso tantas as resoluções criminosas quantas as vezes em que tais relações tiveram lugar, sendo impossível do ponto de vista naturalístico manter interiormente a mesma resolução criminosa durante cerca de três anos, sobretudo quando estamos a falar de condutas ocorridas com intervalos temporais de pelo menos uma semana, e não com uma periodicidade sempre semanal, para além de que ocorreu uma mudança de comportamento da menor, quer quando soube que “as coisas não estavam certas” quer quando começou a namorar, que implicou necessariamente uma alteração na determinação do arguido, que começou a alertar a menor para o facto de que não poderia contar nada a ninguém se não quisesse sofrer consequências disso, pressioná-la a deixar o namorado, obrigá-la a ir consigo às compras, a discutir, gritar e ameaçar. É, portanto, inequívoco que o arguido actuou da forma descrita nos pontos 7. e 8. com a intenção de “usar” a menor para alcançar os seus instintos sexuais, renovando esse propósito em cada sexta-feira que teve aquela na sua cama, sujeito à vontade da menor, à autorização da mãe, à ausência de familiares na casa da menor, no fundo à criação de condições propícias à ocorrência dos actos que, apenas nesse ponto (porque era evidente a sua vontade em que a menor fosse dormir consigo para aí manter com ela relações sexuais), estavam fora do seu domínio, sendo inequívoco, reafirmamos, que o arguido teve tantas resoluções criminosas quantas as relações sexuais que manteve com a menor. Salvo respeito por opinião diversa, não tem qualquer cabimento concluir que o arguido, em data não concretamente apurada mas antes de Janeiro de 2010 e depois de 3 de Agosto de 2009, tomou a resolução única de, sempre que tivesse oportunidade, manter relações sexuais com a menor D…: não tem porque vai contra a natureza e normalidade das coisas -é impossível uma pessoa autodeterminar-se a manter uma conduta deste jaez durante um período de tempo tão alargado, não só por isso mas também por estar em causa uma menor, que não vive com o arguido, que foi alterando o sem comportamento, assim como o próprio arguido, alterações que são obviamente consequentes no elemento intencional do agente - e, aliás, contra as declarações do arguido em sede de audiência de julgamento (nem o arguido o diz! – basta ver que este, admitindo que manteve relações sexuais com a menor por apenas três vezes, realça que a menor se insinuava, o provocava, apalpando-lhe as zonas genitais e beijando-o na boca, o que, desde logo, afasta qualquer hipótese de consideração da unicidade de resolução criminosa).
Acresce que, consultando todas as conversações havidas entre o arguido e o filho J…, constantes do anexo I, jamais o arguido negou as imputações que lhe são feitas, o que seria normal que fizesse se estivesse a ser acusado injustamente. Aliás, todas as conversas partem do pressuposto inquestionável que o arguido praticou os actos que lhe estão imputados (eles jamais põem causa isso) e são direccionadas para o facto de ser um ou mais crimes, qual o tipo de crime e para a pena que lhe poderá ser aplicada. Veja-se, a título exemplificativo, mas altamente sugestivo, a fls. 41 do anexo I algumas passagens da conversação havida entre o arguido e o filho J… no dia 29 de Janeiro de 2013 onde o arguido demonstra preocupação pelo facto de se poder provar “que aquilo vem muito atrasado”, “não vês que eles me acusam de 2009”; refere ao filho que “é só um crime”, sendo que o filho lhe diz que “uma advogada que havia de te ter dito para que não dissesses nada fez-te confessar”; o arguido diz a seguir que “as merdas têm causas”, “eles até podem considerar assédio uma coisa, outra coisa abuso”, “o gajo [advogado] disse que aquilo era tudo uma coisa” e o filho responde “ele disse que não te preocupasses […] não tens antecedentes criminais nenhuns, não vais apanhar mais de quatro ou cinco anos”. Portanto, também pelo conteúdo dessas conversações o Tribunal teve a confirmação das declarações da D… que, repita-se, são de per si inabaláveis.
Quanto à demais factualidade imputada ao arguido, o Tribunal já foi explicando a motivação da sua convicção. Resultou por demais demonstrado, não só pelas declarações da D…, que também nessa parte são indestrutíveis, mas também pelo conteúdo das mensagens do correio electrónico juntas aos autos, todo o “cerco” que o arguido foi fazendo à menor através do apoio financeiro que aquele dava à arguida e seu agregado familiar e de que a menor era bem ciente, através dos presentes que dava a esta, em quantidade e qualidade superior aos que dava ao próprio filho e irmão da D…, através das ameaças sobre as consequências que poderiam advir para a menor e para a mãe do facto de aquela vir a contar a alguém o que se passava entre eles, através das promessas de se ir embora, aproveitando-se da fragilidade emocional da menor e da importância que esta dava à figura paterna por si e pelo seu irmão, através da coacção que fazia no sentido de que a menor deixasse o namorado, através da perseguição regular que lhe fazia quando estava na escola, espiando-a e controlando todos os seus movimentos, através do envio persistente de mensagens seja de forma declarada seja de forma velada fazendo-se passar por outra pessoa.
De resto, também a arguida e as testemunhas H… e I… foram coincidentes, entre si e com o relato da menor, na forma como o arguido era visto no seio do agregado familiar e da sua vivência na casa da arguida (fazia lá todas as refeições, convivia com os filhos da arguida, oferecia prendas, pagava uma parte substancial da alimentação de todos), tendo ficado inequívoco que todos viam nele uma figura paterna que quer a filha menor da arguida quer os seus filhos maiores jamais tiveram.
Vejamos agora a factualidade imputada à arguida que o Tribunal considerou provada e não provada.
Resultou demonstrado, pelo vindo de dizer, e até por confissão da arguida, que esta nunca se opôs a que a D… fosse dormir para casa do arguido e sabia que a menor e o arguido dormiam juntos na mesma cama. Explicou a arguida que, não obstante o fim do relacionamento amoroso (note-se que a arguida nem admite que foi um namoro, referindo apenas que se encontravam de vez em quando) que teve com o arguido até o filho de ambos nascer, hoje com 4 anos de idade, sempre ficou uma relação de amizade muito grande entre ambos, tanto mais que o arguido sempre contribui para o sustento da casa, desde logo porque um dos seus elementos era o próprio filho, não se olvidando a situação precária em que a arguida sempre viveu (dada a sua condição de reformada por invalidez e a sua pensão de reforma muito baixa); por essa razão, e devido ao grande convívio que existia com o arguido, que levou a que todos vissem nele a figura paterna da casa (pessoa do sexo masculino mais velha que está sempre presente, que faz todas as refeições, que contribui para o sustento da casa, que partilha todos os momentos em família), quando nenhum dos filhos da arguida (a D…, o I… e as gémeas) tiveram qualquer contacto com os respectivos progenitores, referiu a arguida que sempre depositou no arguido grande confiança, ao ponto de autorizar que a menor, a pedido desta, passasse a dormir com ele durante todo o tempo que se demonstrou nos autos e nada fez para que a situação se alterasse mesmo quando a menor começou a desenvolver-se fisicamente e até a namorar ou quando viu que o arguido passou a interferir na relação de namoro da menor, sabendo dos seus passos na escola. Embora se veja com alguma estranheza o comportamento permissivo da arguida, que enquanto mãe deveria ter entendido, a seu devido tempo, dizer à menor para não mais ir dormir com o arguido e que o deveria ter questionado quando este começou a interferir com a relação de namoro da menor, embora se questione o desconhecimento da testemunha G… (a filha adulta mais chegada à arguida, a quem confidenciava tudo) do facto de a D… dormir com o arguido e a coincidência de sempre que esta estava em Bragança ou sempre que havia visitas do irmão a menor dormia em casa, embora se pense no tratamento diferenciado que o arguido dava à D… relativamente ao próprio filho, dando-lhe prendas em quantidade e qualidade superior, o que a arguida C… bem sabia, embora se pergunte por que razão o arguido contribuía para o sustento de um agregado familiar composto por quatro pessoas (que chegaram a ser seis, antes de o irmão mais velho da menor e a companheira deste saírem daquela casa), quando só ao filho é que devia alimentos, o certo é que, para além disso, nenhuma prova segura existe que nos leve a concluir pela actuação cúmplice da arguida. Note-se que, considerando que a D… o via como um pai, tendo sido a própria que pediu à mãe para começar a dormir com o arguido, tendo resultado evidente a importância que a menor dava, e ainda dá, à figura paternal, já que nunca conheceu o pai e sempre quis ter um, como as colegas da escola tinham e de quem falavam, é compreensível que a arguida tenha autorizado e, na falta de prova segura, directa ou indirecta, de que aquela soubesse do que se passava dentro das quatro paredes do quarto do arguido, onde também dormia a menor, facto este que aquela já conhecia, aceita-se minimamente que a mesma tenha permitido a manutenção de uma situação que, a partir de certa altura, deixou de fazer sentido; não há dúvidas que era enorme o grau de confiança e amizade que a mesma tinha pelo arguido, o qual era visto por todos, inclusivamente por ela própria, como o Pai da família. Todo o comportamento da arguida leva-nos a tal conclusão: quando soube das duas mensagens que o arguido enviou para a menor, através da sua nora, a arguida contou logo à sua filha G…, que de imediato se deslocou de … a … para confrontar a D… com aquela descoberta, o que sucedeu, tendo só após a confirmação da menor, que primeiramente negou à irmã, que tomou a resolução de apresentar queixa. Acresce que a arguida afirmou que via a menor a dar beijos na face ao arguido e a sentar-se no colo dele, designadamente por altura em que as refeições tinham lugar; a testemunha I… também o confirmou.
Nem do conteúdo das conversações havidas entre a arguida e a filha G…, onde ambas trocam impressões sobre o que a primeira disse à Polícia Judiciária quanto ao modo como teve conhecimento dos factos e o que a segunda iria dizer quando fosse ouvida, podemos extrair o que quer que seja (vide fls. 46 do anexo I); de resto, a arguida explicou que soube de duas mensagens através da nora, que viu o Messenger da D…, em consequência do que pediu o auxílio da filha G…, que veio logo a Bragança e conversou com a menor; portanto, todo o comportamento da arguida aponta no sentido de que não sabia o que acontecia nas noites em que a menor dormia com o arguido (veja-se que a menor contou que o arguido chegou a enviar-lhe mensagens fazendo-se passar por uma outra pessoa, acusando-a de ser mentirosa por mentir à mãe, o que se infere que a D… escondia alguma coisa da arguida). E muito menos do conteúdo das conversações havidas entre o arguido e o filho J… podemos concluir a imputada conivência da arguida; a versão ali aventada de que a menor se insinuava ao arguido, o apalpava, o beijava, despia-se à frente dele, tudo na presença da mãe, que nada fez para impedir, também apresentada em audiência de julgamento (como não poderia deixar de ser!), não tem qualquer sustentação noutra qualquer prova produzida, nem sequer tem correspondência com a descrição feita pela D… nem com o relato feito pela testemunha I…; não se olvide a forma rude e leviana como o arguido fala da menor e da arguida naquelas conversações com o filho -“não basta a gaja estar furada” (sic)-, a extrema preocupação em que se considere que praticou um só crime (de abuso? de violação? continuado? que sabe o arguido disso?), que até o código (penal) pediu para ler. A fls. 11/12 do anexo I o arguido diz o seguinte: “vamos lá ver se vão desmentir ou não vão desmentir”, “até aí [que, segundo palavras do filho, vão desmentir porque ela não quer ir para a cadeia e a filha não quer que a mãe vá para a cadeia] sei-o eu, não é”, “a advogada disse-me para contar aquilo que a gaja via, não é […] disse-lhe que a gaja via a apalpar-me os tomates, a dar-me beijos na boca, não é […] e que a mandava para baixo, não achas? […] tive de dizer aquelas merdas, não é” – daqui não pode retirar-se qualquer conclusão com o mínimo de segurança, certeza; que a arguida sabia do relacionamento sexual não resulta; quanto à menção de que a arguida “mandava” a filha “para baixo”, sabemos apenas que a menor foi sempre porque quis (ou pelo menos, a partir de certa altura, não teve justificação plausível para deixar de ir); que a arguida tivesse visto a menor a apalpar as partes genitais do arguido ou a beijá-lo também não resulta de parte nenhuma (aliás, o arguido, quer em sede de audiência de julgamento quer em conversação com o filho, sempre quis responsabilizar a arguida C… pelo sucedido, insinuando apenas que a mesma nada fez para impedir).
Assim, não resultou provado que era o arguido quem fazia todas as compras para a casa, pois que, como já havíamos visto, a arguida e o irmão desta também suportavam despesas da casa. Mas não ficou demonstrado sobretudo que: convinha à arguida C… manter o arguido por perto, nem que para tal colocasse em perigo a própria filha; a arguida via os contactos íntimos entre o arguido e a filha; sabendo que se tal não fizesse podia colocar em risco a subsistência da família, a arguida foi conivente com os comportamentos que presenciava do arguido em relação à menor D…; a arguida apercebeu-se de outros comportamentos que já não eram “normais”, como por exemplo o facto de o arguido ter começado a ter algumas discussões com a menor e de certos olhares que ele lhe dirigia, após os quais a menor saía de imediato atrás dele; a arguida sabia do relacionamento sexual que o arguido tinha com a sua filha D…; a arguida nada fez para impedir que o relacionamento sexual do arguido com a sua filha continuasse e chegou mesmo a fomentá-lo. Por consequência, também não resultou provado que a arguida agiu de forma deliberada e consciente, sabendo que não era isso que lhe era exigível enquanto mãe e que, nessa qualidade, tinha o dever de ser mais diligente e atenta relativamente a tudo quanto fizesse perigar o normal desenvolvimento da menor D…, sua filha, e que a arguida sabia ainda que, sendo conivente com tal relacionamento sexual do arguido com a menor, essa sua conduta era também ela proibida e punida criminalmente. Inquestionavelmente, não se provou que a arguida soubesse do relacionamento sexual entre o arguido e a D… ou que o tivesse fomentado. Nem sequer podemos falar em dúvida que imponha o accionamento do princípio in dubio pro reo. Simplesmente não há prova.
O testemunho de G…, namorada do arguido, não obstante ter sido sereno e sério, em nada abalou a convicção do Tribunal pois que, pretendendo servir de álibi do arguido para algumas das fatídicas sextas-feiras, explicou que, dada a sua actividade profissional, folga apenas um fim-de-semana por mês, sendo que nesse ia jantar com o arguido mais ao sábado do que à sexta-feira, no máximo até à meia noite e nunca dormia em casa dele.
Considerou-se também o teor do relatório social junto a fls. 552-554, em conjugação com o depoimento das testemunhas abonatórias do arguido, K... e L…, que, de forma séria mas pouco expansiva, afirmaram que aquele é boa pessoa, estimada e trabalhadora.
Por fim, atendeu-se ao teor dos certificados de registo criminal que se encontram juntos a fls. 548 e 549.
***
2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. O âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[5] Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios ou nulidades da sentença a que se reporta o art.º 410.º, n.os 2, alíneas a), b) e c) e 3 do Código de Processo Penal.[6] Tendo isso em conta e uma vez que se não detecta qualquer vício ou nulidade na douta sentença recorrida de entre os que se devesse conhecer ex officio, para além invocado no recurso, diremos que as questões a apreciar neste recurso são as seguintes:
1.ª O acórdão recorrido padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada?
2.ª Nesse caso, quais as consequências daí decorrentes?
3.ª Na hipótese contrária, a conduta do recorrente integra a prática de um crime de abuso sexual de criança prolongado, protelado, protraído, exaurido ou de trato sucessivo e não de setenta crimes de abuso sexual de criança?
4.ª Devendo então ser condenado em pena de prisão inferior a cinco anos, suspensa na sua execução, considerando a inexistência de antecedentes criminais e a sua integração social e familiar?
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2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas, começando, naturalmente, pela primeira delas.
Desde logo pretende o recorrente nas conclusões do recurso que a sentença recorrida padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, o qual, como bem sabemos, é vício do acórdão previsto no art.º 410.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal. Sendo certo que desse e dos demais vícios da sentença pode a Relação conhecer, inclusivamente ex officio,[7] no âmbito da chamada revista alargada,[8] na qual não importam os meios de prova produzidos na audiência de julgamento e que foram considerados e valorados no acórdão mas apenas o texto deste.[9] Mas isso nada tem que ver com o erro de julgamento da matéria de facto a que se refere o art.º 412.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, caso em que se impõe reapreciar as provas produzidas na audiência de julgamento para concluir se a decisão proferida foi a que deveria ter sido em face dessas provas.[10]
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada significa que a matéria de facto julgada provada pelo tribunal não é suficiente para fundamentar a decisão de direito proferida, necessitando, por isso, de ser completada.[11] E como dissemos atrás, isso terá que resultar apenas do texto da sentença, pois que «a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.»[12] Na certeza de que esta insuficiência da prova para a decisão de facto proferida se situa já no domínio do erro de julgamento da matéria de facto e, portanto, do art.º 412.º (não do art.º 410.º, n.º 2) do Código de Processo Penal.[13]

Baixando ao caso concreto e sintetizando diremos que nas conclusões do recurso referentes a este vício o recorrente pretende que o acórdão não concretiza as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que ele teria abusado da menor.
Olhando ao acórdão recorrido, vemos que o acórdão recorrido julgou provado o facto enumerado em 1. que «a arguida C… é mãe da D…, nascida a 3 de Agosto de 1999». E no facto que enumerou em 6. que «… a menor …. começou por pedir à mãe que, aos fins-de-semana, a deixasse ir pernoitar a casa do arguido, o que passou a ocorrer, com autorização da arguida, quando a D… tinha cerca de 9 anos de idade, nas noites de 6.ª feira para sábado». Deste modo, desde logo ficamos a saber que tudo o posteriormente relatado no acórdão ocorreu na «casa do arguido».
Por outro lado, diz-se ali que tal passou a ocorrer quando «a D… tinha cerca de 9 anos de idade, nas noites de 6.ª feira para sábado». Depois, o Tribunal a quo julgou provado o facto que enumerou em 7. referindo que «… numa certa sexta-feira de Janeiro de 2010, à noite …» e no que enumerou em 8. que «pelo menos em mais uma sexta-feira do mês de Janeiro e em, pelo menos, duas sextas-feiras dos meses de Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Setembro, Novembro e Dezembro de 2010 e dos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Outubro, Novembro e Dezembro de 2011 e dos meses de Janeiro, Fevereiro, Abril, Maio, Julho, Setembro e Outubro de 2012 e em, pelo menos, três sextas-feiras dos meses de Julho e Outubro de 2010, dos meses de Julho e Setembro de 2011 e dos meses de Março e Junho de 2012, e ainda nos dias 2 e 9 de Novembro de 2012 (sextas-feiras) … num total (contando com a descrita em 7.) de setenta vezes». Destarte, sabemos quando vezes os factos ocorreram e o número de vezes em que tal aconteceu.
Mais decidiu o acórdão recorrido no facto enumerado em 7. que, naquela primeira vez, o arguido «… estando deitado com a menor na cama, e após a ter acariciado e beijado … introduziu o seu pénis erecto na vagina da menor, com ela mantendo relações de cópula completa, vindo a ejacular, embora fora do corpo da menor» e no que enumerou em 8. que nas 69 vezes subsequentes «… o arguido manteve de cada vez relações sexuais de cópula completa com a menor, introduzindo o seu pénis erecto na vagina daquela e ejaculando sempre fora do corpo da mesma». O que nos diz em que consistiu a conduta que ele desenvolveu.
Finalmente, o acórdão deu ainda como provado que:
13. O arguido tinha perfeito conhecimento da idade da menor D….
14. Ao actuar da forma descrita, fê-lo, de cada vez, de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, concretizado, de manter com ela as referidas relações de cópula completa e de, assim, satisfazer os seus intentos libidinosos, para o que actuou, também, da forma descrita em 9., 11. e 12..
15. Bem sabia que não lhe era permitido manter relações sexuais com crianças, como a D…, e que por isso a sua conduta era proibida e criminalmente punida.

Ora, o art.º 171.º, n.º 2 do Código Penal estabelece o seguinte:
1. Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa…
2. Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.

O art.º 13.º do Código Penal que:
Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.

E o art.º 14.º que:
1. Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar com intenção de o realizar.

Assim sendo, parece claro que a decisão não padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada pois que esta é a necessária e suficiente para decidir o pleito pois que enuncia todos os elementos objectivos e subjectivos do topo de crime previsto e punível naqueles normativos, na medida em que por assente que desde uma sexta-feira de Janeiro de 2010, à noite, até 9 de Novembro de 2012, também uma sexta-feira, o recorrente voluntária e de forma intencional nessas e em mais 68 dias, que sempre foram sexta-feira, copulou com a ofendida, que naquela última data tinha 12 anos de idade, o que ele sabia assim como que tal era proibido e criminalmente punido. Portanto, não é verdade que, como sustenta o recorrente, se não saiba com exactidão quais e quantos actos sexuais foram praticados. Bem, poder-se-á dizer que se não sabe que nesta ou naquela sexta-feira o recorrente copulou uma, duas ou mais vezes com a ofendida mas naturalmente não é isso que releva para efeitos de se considerar preenchido o tipo de crime nesse dia. O que interessa saber é, outrossim, que nesse dia ele copulou com ela. E não se diga, como o recorrente, que estamos perante imputações genéricas. Não é assim mas antes o contrário, pois o que o acórdão julgou por provado foi que em todos esses dias ele manteve relações de «cópula completa com a menor, introduzindo o seu pénis erecto na vagina daquela e ejaculando sempre fora do corpo da mesma» e isso corresponde a imputações indubitavelmente concretas. Nem diga o recorrente que para além da sua confissão inexiste qualquer outra imputação concreta pois que isso nada tem que ver com a suficiência ou insuficiência para a decisão da matéria de facto provada pois que isso prende-se com a suficiência ou insuficiência da prova para a decisão. Mas ainda assim diremos que nesse domínio também parece claro que o recorrente tresleu o acórdão recorrido, pois que o Tribunal a quo não foi nada parcimonioso sobre a indicação das provas em que estribou a sua decisão, como se pode ver deste segmento dele colhido: «Os factos da acusação pública considerados provados resultaram, assim, da análise cuidada e articulada das declarações prestadas pelos arguidos, dos depoimentos prestados pelas testemunhas H…, I… e G…, das declarações para memória futura da menor D… ouvidas em audiência de julgamento e de toda a prova documental junta aos autos, a saber o auto de denúncia de fls. 2/3, a informação de serviço de fls. 4, conteúdo das mensagens do Facebook de fls. 8-16, o print de identificação civil de fls. 18, a certidão de assento de nascimento de fls. 25-26v, o auto de busca e apreensão de fls. 37/38, os registos fotográficos de fls. 39-44 e 323-337, a informação médica de fls. 52, o relatório médico-legal de fls. 135-137v, os autos intercalares de intercepção e gravação de conversações ou comunicações de fls. 233/234, 268/269 e 341/342, os relatórios de intercepções e gravações telefónicas de fls. 235-239, 270-273, 343-345 e 371/372, o relatório pericial psicológico de fls. 405-409, o auto de declarações para memória futura de fls. 427-429 e os autos de transcrição de conversações ou comunicações constantes do anexo I que se encontra apenso aos presentes autos». E depois analisa criticamente cada uma dessas provas, concatenando umas com outras para explicitar como chegou à decisão, mas isso já nos coibimos de aqui aprofundar por extravasar o âmbito necessário da apreciação do recurso. É que objecto da prova são todos os factos relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido[14] e a determinação da pena e para tal são admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei,[15] as quais, por regra, são apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do juiz.[16] Mal seria, portanto, que tendo o recorrente confessado parte dos factos da acusação o julgamento do Tribunal tivesse que se conformar com os limites dessa confissão, desconsiderando outras provas acrescentando outros factos aos confessados!
Destarte e em conclusão diremos que não resulta do texto do acórdão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, nenhuma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

2.3. Cabe agora apurar se a conduta do recorrente integra a prática de um crime de abuso sexual de criança prolongado, protelado, protraído, exaurido ou de trato sucessivo e não de setenta crimes de abuso sexual de criança.
É sabido que esta questão tem vindo a ser abordada pela jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, designadamente do Supremo Tribunal de Justiça que, no entanto, não tem logrado chegar a uma resposta unívoca para a mesma: umas vezes aponta no sentido da tese sufragada pelo recorrente[17] e outras no propugnado pelo acórdão em recurso.[18]
Ora, é sabido que «o úmero de crimes determina-se … pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».[19] Porém, «constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente».[20] No entanto, isso «… não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais».[21]
Sendo assim, a realização plúrima de do mesmo tipo legal pode constituir, num só crime, persistindo o dolo ao longo de toda a realização da conduta, um só crime, na forma continuada se, pese embora não obedecendo a uma só motivação dolosa, a conduta for executada num quadro externo que estimule ao agente a sua repetição e assim diminua consideravelmente a sua culpa, ou, fora desses casos, um concurso efectivo de crimes. Mas nos casos, como é o crime de abuso sexual de crianças, em que a conduta criminosa ofenda bens eminentemente pessoais, já não faz sentido[22] pretender-se que a sua homogeneidade e proximidade temporal evidencia a existência de uma unidade de resolução abrangendo todas elas, cobrindo-as pela mesma motivação criminosa ou, vale dizer, pelo mesmo dolo, pois que actualmente o n.º 3 do art.º 30.º do Código Penal impõe que essas situações sejam tratadas no quadro do concurso efectivo de crimes e não da continuação criminosa.[23]
Destarte, mal se compreenderia que num quadro de considerável diminuição da culpa do agente, suposta no crime continuado,[24] este instituto não fosse admitido nos casos de na pluralidade de condutas integrantes de crimes eminentemente pessoais mas já o fosse num cenário de agravação da culpa do agente, como de resto é suposto por aqueles que defendem a possibilidade da sua subsunção como crime prolongado ou de trato sucessivo.[25] Tanto mais incompreensível seria quando a impossibilidade de configurar a realização plúrima de condutas de abuso sexual de criança como crime continuado é agora fruto de expressa imposição da lei,[26] mas a pretendida configuração como crime prolongado ou de trato sucessivo seria resultado de leitura jurisprudencial dela.[27]
Em suma, nos casos, como o presente, de reiteração de condutas abusivas da sexualidade de crianças ditadas por razões endógenas, concernentes com a personalidade do arguido, não podem ser reconduzidos a uma única resolução criminosa quando é o próprio arguido a criar as condições para a presença da menor nas diversas situações ocorridas.[28]
No caso, o arguido determinou-se em função da medida da verificação ou não «à vez» de circunstâncias endógenas como se compreende do teor da seguinte secção da motivação da decisão da matéria de facto: Assim, o comportamento assumido pelo arguido ao longo do tempo em que se relacionou sexualmente com a menor revela nitidamente que ele, em cada sexta-feira que a menor foi dormir consigo, resolveu ex novum manter relações sexuais com a mesma, sendo por isso tantas as resoluções criminosas quantas as vezes em que tais relações tiveram lugar, sendo impossível do ponto de vista naturalístico manter interiormente a mesma resolução criminosa durante cerca de três anos, sobretudo quando estamos a falar de condutas ocorridas com intervalos temporais de pelo menos uma semana, e não com uma periodicidade sempre semanal, para além de que ocorreu uma mudança de comportamento da menor, quer quando soube que “as coisas não estavam certas” quer quando começou a namorar, que implicou necessariamente uma alteração na determinação do arguido, que começou a alertar a menor para o facto de que não poderia contar nada a ninguém se não quisesse sofrer consequências disso, pressioná-la a deixar o namorado, obrigá-la a ir consigo às compras, a discutir, gritar e ameaçar. É, portanto, inequívoco que o arguido actuou da forma descrita nos pontos 7. e 8. com a intenção de “usar” a menor para alcançar os seus instintos sexuais, renovando esse propósito em cada sexta-feira que teve aquela na sua cama, sujeito à vontade da menor, à autorização da mãe, à ausência de familiares na casa da menor, no fundo à criação de condições propícias à ocorrência dos actos que, apenas nesse ponto (porque era evidente a sua vontade em que a menor fosse dormir consigo para aí manter com ela relações sexuais), estavam fora do seu domínio, sendo inequívoco, reafirmamos, que o arguido teve tantas resoluções criminosas quantas as relações sexuais que manteve com a menor. Salvo respeito por opinião diversa, não tem qualquer cabimento concluir que o arguido, em data não concretamente apurada mas antes de Janeiro de 2010 e depois de 3 de Agosto de 2009, tomou a resolução única de, sempre que tivesse oportunidade, manter relações sexuais com a menor D…: não tem porque vai contra a natureza e normalidade das coisas -é impossível uma pessoa autodeterminar-se a manter uma conduta deste jaez durante um período de tempo tão alargado, não só por isso mas também por estar em causa uma menor, que não vive com o arguido, que foi alterando o sem comportamento, assim como o próprio arguido, alterações que são obviamente consequentes no elemento intencional do agente - e, aliás, contra as declarações do arguido em sede de audiência de julgamento (nem o arguido o diz! – basta ver que este, admitindo que manteve relações sexuais com a menor por apenas três vezes, realça que a menor se insinuava, o provocava, apalpando-lhe as zonas genitais e beijando-o na boca, o que, desde logo, afasta qualquer hipótese de consideração da unicidade de resolução criminosa).

Assim vistas as coisas, uma vez que foi julgado provado no facto enumerado em 14. que «ao actuar da forma descrita, fê-lo, de cada vez, de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, concretizado, de manter com ela as referidas relações de cópula completa e de, assim, satisfazer os seus intentos libidinosos…», não ficam dúvidas de que 70 foram os crimes efectivamente cometidos pelo recorrente. Trata-se da conclusão adequada na consideração, como critério de distinção entre, por um lado, «um crime» ou «crime único», por outro, «pluralidade de crimes» ou «crimes em concurso», a tese de Figueiredo Dias como que correctiva da tese de Eduardo Correia, qual seja, aquela, que «... conduz ao concurso efectivo de crimes quando os factos ... subsumíveis a crimes que protejam o mesmo bem jurídico, as violações tenham lugar em situações históricas distintas (conclusão coincidente com a de Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª edição, 2010, página 185)»[29] como se constata no caso sub iudice mercê do supra expendido quanto à etiologia de cada uma das 70 condutas históricas do arguido ora recorrente cada uma delas de per si desvaliosas ético-socialmente! E com isto fica prejudicado o conhecimento da última questão atrás enunciada pois que passava por nessa parte provir o recurso e assim considerada a verificação de um tipo de crime prolongado ou de trato sucessivo e a moldura penal aplicável condenar o recorrente em pena de prisão inferior a cinco anos, suspensa na sua execução, considerando a inexistência de antecedentes criminais e a sua integração social e familiar.
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III - Decisão.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido.
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Nos termos do art.º 380.º, n.os 1, alínea b) e 2 do Código de Processo Penal, determina-se que se proceda à correcção do acórdão recorrido, substituindo-se, na parte decisória, a expressão «art.º 271.º» por «art.º 171.º».
Oportunamente, lavre cota da correcção.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC (art.os 513.º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III a ele anexa).
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Porto, 09-07-2014.
Alves Duarte
Castela Rio
_____________
[1] Para o Supremo Tribunal de Justiça que, por decisão sumária do relator, transitada em julgado, o declarou incompetente para dele conhecer e competente esta Relação do Porto.
[2] Com voto de vencido do Mm.º Juiz Presidente do Colectivo no concernente à solução jurídica encontrada pela maioria que o compunham.
[3] E absolveu a co-arguida C….
[4] Por manifesto erro de escrita, como tal por todos os sujeitos do processo entendido, no acórdão consignou-se a condenação do arguido pela prática de 70 crimes previstos e punidos pelo art.º 271.º, n.º 2 ao invés do art.º 171.º, n.º 2, um e outro do Código Penal, pedindo o Exm.º Sr. Procurador-Geral Adjunto que se proceda à sua correcção nos termos do art.º 380.º, n.os 1, alínea b) e 2 do Código de Processo Penal, o que se defere e consequentemente a final se declarará.
[5] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»
[6] Que assim é decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 19-10-1995, tirado no processo n.º 46.680/3.ª, publicado no Diário da República, série I-A, de 28 de Dezembro de 1995, mantendo esta jurisprudência perfeita actualidade, como se pode ver, inter alia, do acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, consultado em www.dgsi.pt, assim sumariado: «Continua em vigor o acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-09-1995 (DR I Série - A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.» Na Doutrina e no sentido propugnado, vd. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, página 1049.
[7] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-010-1995, publicado no DR, I-A Série, de 28-12-1995, que fixou jurisprudência naquela matéria.
[8] Art.º 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal.
[9] É o que resulta do corpo do n.º 2 do art.º 410.º do Código de Processo Penal, ao estabelecer que «… o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum»).
[10] Para bem se esclarecer a diferença entre o recurso da decisão da matéria de facto no âmbito da revista alargada e, portanto, dos vícios da sentença e da sua impugnação ampla, veja-se, por lapidar, o acórdão da Relação de Coimbra, de 14-01-2009, no processo n.º 175/07.8TASPS.C1, publicado em http://www.dgsi.pt, assim sumariado: «I - A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, no que se convencionou chamar de revista alargada; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.os 3, 4 e 6, do mesmo diploma. II - No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10.ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2.ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.). III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.os 3 e 4 do art.º 412.º do Código de Processo Penal».
[11] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, 3.ª edição, páginas 334 e seguinte.
[12] Idem, ibidem.
[13] Assim se decidiu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, no processo n.º 1248/07.2PAALM.S1, consultado em http://www.dgsi.pt: «O erro de julgamento da matéria de facto existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso, e tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do art. 127.º do CPP.»
[14] Art.º 124.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.
[15] Art.º 125.º do Código de Processo Penal.
[16] Art.º
[17] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-11-2012, no processo n.º 862/11.6TAPFR.S1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[18] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-09-2012, no processo n.º 2745/09.0TDLSB-L1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[19] Art.º 30.º, n.º 1 do Código Penal.
[20] Art.º 30.º, n.º 2 do Código Penal.
[21] Art.º 30.º, n.º 3 do Código Penal.
[22] Após a alteração legislativa operada pela Lei n.º 42/2010, de 3 de Setembro no n.º 3 do art.º 30.º do Código Penal.
[23] Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, Universidade Católica, 2.ª edição, Editora, 2010, página 162.
[24] Como se diz no n.º 2 do art.º 30.º do Código Penal, «… que diminua consideravelmente a culpa do agente».
[25] Que nos crimes prolongados ou de trato sucessivo a reiteração revela uma resolução determinada e persistente do agente e por isso traduz uma culpa agravada é pacificamente evidenciado pela jurisprudência, como de resto se pode ver nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-01-2008 e de 13-07-2011, aquele prolatado no processo n.º 4830/07, publicado em http://www.pgdlisboa.pt/jurel/stj_mostra_doc.php?nid=26347&stringbusca=&exacta= e este no processo n.º 451/05.4JABRG.G1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[26] Art.º 30.º, n.º 3 do Código Penal.
[27] Nestes sentido pode ver-se o voto de vencido que o Exm.º Cons.º Manuel Brás lavrou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-11-2012, no processo n.º 862/11.6TAPFR.S1, publicado em http://www.dgsi.pt, segundo o qual «a categoria de crime de trato sucessivo, a que a posição maioritária faz apelo, não vem, com essa designação, contemplada na lei, que prevê o crime permanente [art.º 119.º, n.º 2, alínea a), do CP], o crime continuado [art.os 119.º, n.º 2, alínea b), 30.º, n.os 2 e 3, e 79.º] e o crime habitual [art.º 119.º, n.º 2, alínea b)], bem como o crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados [art.º 19.º, n.º 2, do CPP]. O crime de trato sucessivo será reconduzível à figura do crime habitual, como refere Lobo Moutinho (Da unidade à pluralidade dos crimes no direito penal português, página 620, nota 1854)».
[28] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-09-2012, no processo n.º 2745/09.0TDLSB-L1.S1, publicado em http://www.dgsi.pt.
[29] Como condensam, da evolução doutrinal e jurisprudencial, Miguez Garcia, Castela Rio, no Código Penal, Parte geral e parte especial, Almedina 2013, página 221.