Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
148/12.9TBVLP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
Nº do Documento: RP20141023148/12.9TBVLP.P1
Data do Acordão: 10/23/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Os danos a indemnizar não incluem aqueles que foram provocados por outrem e que em circunstâncias normais não ocorreriam.
II – Um cônjuge não pode pedir indemnização por danos verificados em bens em relação aos quais nem sequer alega os factos necessários para que sejam considerados comuns e não próprios do outro cônjuge.
III – A perda da capacidade de ganho é indemnizada tendo em consideração a aplicação da percentagem dessa perda em relação à remuneração que se recebia, e não pela diferença entre aquilo que se recebia antes do evento lesivo e uma pensão que se passou a receber da segurança social.
IV – A remuneração a ter em conta é a ilíquida e não a líquida.
V – O que importa é a esperança média de vida e não a idade da reforma.
VI. Aqueles que ficam totalmente incapacitados para o trabalho, embora tenham apenas um défice funcional permanente de 29 + 5 pontos, devem ser indemnizados como se tivessem uma incapacidade de 87,5%.
VII – Ainda hoje no cálculo da indemnização da perda da capacidade de ganho há que ter em consideração, para além do mais, “a evolução provável na situação profissional do lesado, o aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível, a melhoria expectável das condições de vida, a inflação provável ao longo do período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização.”
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acção ordinária 148/12.9TBVLP do Tribunal Judicial de Valpaços

Sumário:
I – Os danos a indemnizar não incluem aqueles que foram provocados por outrem e que em circunstâncias normais não ocorreriam.
II – Um cônjuge não pode pedir indemnização por danos verificados em bens em relação aos quais nem sequer alega os factos necessários para que sejam considerados comuns e não próprios do outro cônjuge.
III – A perda da capacidade de ganho é indemnizada tendo em consideração a aplicação da percentagem dessa perda em relação à remuneração que se recebia, e não pela diferença entre aquilo que se recebia antes do evento lesivo e uma pensão que se passou a receber da segurança social.
IV – A remuneração a ter em conta é a ilíquida e não a líquida.
V – O que importa é a esperança média de vida e não a idade da reforma.
VI. Aqueles que ficam totalmente incapacitados para o trabalho, embora tenham apenas um défice funcional permanente de 29 + 5 pontos, devem ser indemnizados como se tivessem uma incapacidade de 87,5%.
VII – Ainda hoje no cálculo da indemnização da perda da capacidade de ganho há que ter em consideração, para além do mais, “a evolução provável na situação profissional do lesado, o aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível, a melhoria expectável das condições de vida, a inflação provável ao longo do período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização.”

Acordam no Tribunal da Relação do Porto os juízes abaixo assinados:

B… intentou a presente acção contra a C…, Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação desta a pagar-lhe, entre o mais, como indemnização por danos sofridos em consequência de um acidente de viação causado por culpa exclusiva do condutor do veículo seguro, (i) o valor de um salário (1550€) do seu marido por este não ter podido trabalhar durante um mês para lhe prestar assistência; (ii) o custo (79,18€) de telefonemas feitos pela sua filha, e (iii) 200.000€ pela perda da capacidade de ganho de rendimentos com o seu trabalho, que ela calcula com base naquilo que auferia diminuído do valor de uma pensão que passou a receber, com base numa taxa de juro de 5% ao ano.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, condenando a seguradora a indemnizar estes danos, embora o último com apenas 180.000€ e não com os 200.000€ pedidos.
A seguradora interpôs recurso desta sentença para que seja revogada na parte em que concede a indemnização pelos dois primeiros itens e para que seja diminuída quanto ao último, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) A autora não tem legitimidade para peticionar neste autos indemnizações correspondentes a perdas salariais do seu marido, nem a despesas/gastos da sua filha, os quais, por essa razão, deverão ser retirados ao montante final da condenação;
B) A indemnização destinada a ressarcir o dano patrimonial futuro da autora não deverá ir além dos 152.000€, sob pena de o montante atribuído, acrescido da pensão da autora, a colocar numa situação que, sob o ponto de vista patrimonial, seria muito superior à verificada antes do acidente.
A autora contra-alegou defendendo a improcedência do recurso. Mas antes, sem mais, diz que “o recurso não deve ser admitido dada a sua extemporaneidade e ausência do pagamento de qualquer sanção.”
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O recurso foi admitido pelo tribunal recorrido que o considerou tempestivo “uma vez que o recorrente pagou multa inerente à prática do acto no segundo dia após o fim do prazo” [o que está comprovado a fl. 437 do processo electrónico]
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Questões que importa decidir: a prévia da tempestividade do recurso; a de saber se a seguradora não devia ter sido condenada relativamente aos dois primeiros itens e se a indemnização pela perda de capacidade de ganho deve ser reduzida para, no máximo, 152.000€.
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Da tempestividade do recurso
Como resulta do que antecede, a seguradora pagou multa pela apresentação do recurso no segundo dia após o prazo, pelo que o recurso não pode ser considerado extemporâneo.
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Para a decisão das outras questões, passam a considerar-se os factos dados como provados com interesse para tal decisão (tendo-se como pressuposto, não discutido pela ré, que a autora tem direito à indemnização dos danos sofridos, por a culpa exclusiva do acidente – ocorrido a 31/12/2006 – ser do condutor do veículo segurado pela ré):
39. A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 05/02/2010.
52. Em 31/12/2006, a autora prestava serviços domésticos, sobretudo de limpeza, no Principado de Andorra.
53. A autora estava inscrita, como trabalhadora, na CASS como contribuinte e beneficiária com o n.º ……..
54. A autora completou a 3.ª classe do ensino primário.
55. Em consequência do acidente de viação e das lesões provocadas pelo mesmo, a autora ficou incapacitada para o trabalho da sua profissão, e o seu défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixa-se em 29 pontos, a que acrescem 5 pontos de dano futuro.
56. …e, por força da sua idade e do facto 54, a autora ficou totalmente incapacitada para o trabalho.
64. Em 31/12/2006, a autora auferia mensalmente a quantia média de 1.423,62€.
66. A autora em consequência da incapacidade para o trabalho, foi reformada pela CASS com a importância mensal de 711,81€.
67. …recebendo a quantia de 672,66€ a partir de 07/07/2010 que subiu para 723,20€ mas que só recebe 683,42€.
68. A autora desde 31/12/2006 até 07/07/2010, recebeu da CASS o subsídio mensal por doença no valor de 866,52€.
69. A autora teria mais 15 anos de vida activa (até aos 67 anos).
70. O marido da autora devia apresentar-se ao trabalho em 02/01/2007, o que não sucedeu em virtude de ter de permanecer em Portugal até 31/01/2007, para apoiar a autora.
72. …o que importou a perda de vencimento de um mês equivalente a 1550€ por não ter trabalhado.
75. A filha da autora usou do telefone desta para se informar do seu estado o que importou um custo de 79,18€.
Facto acrescentado na sentença [ao abrigo legítimo do art. 607/4 do CPC]: A autora nasceu em 18/12/1958 – documento de fls. 366.
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Quanto à segunda questão, a sentença integrou nas despesas que a autora teve a perda do salário do marido e as chamadas feitas pela filha, acrescentando:
“é certo que é discutível que o valor que o marido deixou de ganhar seja um dano emergente (podendo enquadrar-se como lucro cessante) e que esta verba e as despesas de telefone da filha poderão configurar danos de terceiro não enquadráveis nestes autos; todavia, parece que a economia processual e a justiça do caso concreto, aliados a uma relativa insignificância de valores em causa, no conjunto do que vem peticionado, permitirão, sem abuso, considerá-las aqui.”
Pegando nestas palavras da sentença, a seguradora veio, no corpo das alegações, dizer o seguinte sobre a questão:
“A autora não intentou a presente acção em representação do seu marido ou filha, nem se vê que estes últimos sejam parte na causa.
Assim sendo, não se percebe ao abrigo de que princípio de natureza jurídica se aceita que determinada pessoa, sem mandato, reclame em juízo os prejuízos ou danos sofridos pelo seu cônjuge ou filhos (a menos que estes fossem menores, o que não foi alegado).
Como é bom de ver, estamos perante um evidente problema de falta de legitimidade, que nenhuma consideração relacionada com economia processual, justiça do caso concreto ou insignificância de valores poderá superar.
[…].”
A autora, por sua vez, diz o seguinte:
“Na sua contestação não alegou a seguradora ilegitimidade em qualquer aspecto. No despacho saneador declaram-se legítimas as partes. A declaração de legitimidade respeita a todo o objecto da acção. Não deduziu a seguradora qualquer reclamação ao despacho saneador, pelo que transitou em julgado, não podendo agora a seguradora furtar-se ao pagamento com base na ilegitimidade.
Se no aspecto adjectivo não lhe assiste razão, muito menos a tem no substantivo.
Vejamos o salário do marido da autora: não põe a seguradora em dúvida que a autora é casada, tal como se apresenta no cabeçalho da p. i. e se vê da certidão do seu assento de nascimento constante dos autos. É o regime de bens o supletivo, ou seja, o da comunhão de adquiridos. O vencimento de qualquer dos cônjuges aos dois pertence. A sua falta é um dano no património de ambos, pelo que qualquer deles o pode reclamar. Por outro lado, embora dos autos não conste, era o património de ambos administrado por qualquer dos cônjuges. A autora ao reclamar o vencimento de seu marido, está actuando por direito próprio e reclamando o que lhe pertence.
Quanto às despesas telefónicas: diz-se no art. 83 da p. i. que a filha da autora telefonou várias vezes para se informar do estado de saúde da mãe e que “usou o telefone da autora”, tendo gasto 78,18€. É exactamente isto o que se tem por provado no facto 75. Também aqui a autora reclama o que lhe pertence a si própria e não à filha.”
Decidindo
Quanto ao custo dos telefonemas: a autora não disse, ao contrário do que foi interpretado pela sentença, logo seguida pela seguradora, que o telefone era da filha ou que as despesas eram da filha. O que ela disse é que a filha praticou actos que se traduziram em despesas da própria autora. Apesar disso, a questão mantém-se, embora com outra forma: os danos de que os lesados têm direito a ser indemnizados são aqueles que podem ser considerados consequência adequada do acto lesivo (no caso, o acidente de viação; arts. 483 e 563 do CC). Ora, os gastos com os telefonemas não foram provocados pelo acidente, mas pela conduta da filha da autora que utilizou o telefone da mãe para os fazer. É certo que se não fosse o acidente, a filha da autora não faria estes telefonemas (isto é, com o conteúdo que é pressuposto implícito no facto 75, ou seja, para saber do seu estado decorrente do acidente). Mas isso, só por si, não justifica que o custo deles deva ser suportado pela seguradora, porque nem tudo aquilo que ocorre na sequência de um facto pode ser imputado juridicamente a este, mas apenas aquilo que é consequência adequada dele. Ora, não se pode dizer que em consequência de um acidente seja normal que venham a ser feitas chamadas, com um custo significativo, dos telefones das vítimas, para se saber do estado de saúde destas. Só circunstâncias fora do normal podem justificar que tal tenha acontecido. E assim sendo não se justifica que seja o lesante – ou a sua seguradora – a suportar tal gasto.
Quanto ao salário do marido: a autora, para rebater os argumentos da seguradora, utiliza factos que não constam dos factos provados e que ela nem sequer tinha alegado como tal, designadamente o seu casamento, mas também e principalmente, o regime de bens de tal casamento.
Veja-se: o que está em causa é o facto de o marido não ter podido trabalhar (e por isso não ter podido receber a contrapartida desse trabalho) por ter tido que cumprir o dever de assistência matrimonial. Ele teria assim sofrido um dano (um lucro cessante) que se traduziria no não recebimento de um bem que é bem comum (arts. 1724/a e 1734, ambos do CC), o que daria origem a uma indemnização que se destinaria a substituir esse bem comum. Essa indemnização seria pois bem comum (art. 1733/1d) do CC, a contrario). Daqui a autora retiraria a conclusão de que poderia pedir, como acto de administração, essa indemnização, tal como a retira da afirmação de que o produto do trabalho dos cônjuges faz parte da comunhão (art. 1724/a do CC), sem se dar conta que a administração do produto do trabalho dos cônjuges cabe exclusivamente ao cônjuge que recebe esses proventos (art. 1678/2a do CC), salvo em situações excepcionais que não foram alegadas (art. 1679 do CC).
Mas, mesmo descontando isto, o que interessa é que a construção feita depende da afirmação de que o regime de bens é um de comunhão, afirmação que a autora não fez, nem está provada nos autos. O facto de o regime de comunhão de adquiridos ser um regime supletivo, facto invocado pela autora, não ajuda porque essa supletividade tem só a ver com a escolha do regime de bens no momento do casamento, nem com regras de ónus da prova sobre factos que não foram alegados numa dada acção.
Não se podendo dizer que o dano invocado diga respeito a um bem comum do casal, nem, face à natureza do dano, a um bem próprio da autora, esta não podia estar a pedir a sua indemnização.
E nada disto tem a ver com a questão da legitimidade processual; tem sim a ver com a legitimidade substancial. Não é o direito de a autora estar em juízo a pedir a indemnização que está em causa; o que está em causa é o direito substantivo da autora à indemnização por um dano que a autora tinha que provar que se tinha produzido na sua esfera patrimonial.
De qualquer modo, a decisão genérica sobre questões processuais proferida no despacho saneador (como é o caso, em que se limitou a dizer que “as partes têm […] legitimidade” – 2ª folha do despacho saneador) não faz, ao contrário do que diz a autora, caso julgado. Tal só aconteceria quanto às excepções dilatórias concretamente apreciadas (art. 595/3 do CPC).
Em suma, a seguradora tem razão: a autora não tem direito à indemnização pelo trabalho que o marido deixou de receber e pelos telefonemas que a filha fez pelo seu (dela, autora) telefone.
*
Do montante pela perda de capacidade de ganho
A sentença, depois de ampla fundamentação, fez o seguinte cálculo do montante em causa: a autora ganhava 1.423,62€ e ficou com uma incapacidade de 35% (antecipando já os 5% futuros); logo, perdeu, por mês, cerca de 500€, e 6000€ por ano; considerando-se que lhe restava um período de vida activa de 19 anos (dos 48 anos – o que quer dizer que está a reportar o calculo a 2006 - aos 67 anos), tal corresponde a 114.000€; a isto acrescenta-se 66.000€ (± 57,89%) uma vez que, na prática, a autora não conseguirá arranjar trabalho; na fundamentação, a sentença ainda refere, de forma directa ou por remissão, a necessidade de se ter em conta a esperança de vida e de se ponderar a evolução do salário auferido, as taxas de juro e o coeficiente de desvalorização da moeda.
A seguradora faz antes os seguintes cálculos: a autora recebia uma média mensal líquida de 1352€ (este valor vai-o buscar ao que foi dito por uma outra autora num apenso e no que consta dos recibos, que não identifica, juntos pela autora); passou a receber, líquidos, 683,42€, pelo que a perda mensal líquida foi de 668,58€, que, multiplicados por 12 meses e por 24 anos (vida activa), dá o valor de 192.551,04€. Uma vez que a atribuição imediata, por antecipação, de tais rendimentos corresponderá a um significativo benefício, por facultar à autora no presente rendimentos que apenas auferiria daqui 5, 10, 15, 20 e mais anos, é justo que tal quantia sofra uma redução para não mais de 162.000€ (embora logo a seguir passe a referir o valor de 152.000€).
Efectua este cálculo a partir de Julho de 2010, porque, segundo ela, a autora até essa data, segundo o facto 43, não perdeu qualquer rendimento (o facto 43 é um facto do apenso já referido que, em conjunto com o facto 42 do mesmo apenso, tem o seguinte teor: 42. Desde 31/12/2006 até 07/07/2010, a autora esteve impossibilitada de trabalhar; 43. Em consequência do descrito em 42, a CASS entregou à autora 36.805,48€ em substituição dos rendimentos provenientes da sua actividade laboral: 584,96€ em Janeiro de 2007, 866,52€ desde Fevereiro de 2007 até Junho de 2010 e 693,21€ em Julho de 2010).
Por fim, diz:
“[O] extremo exagero que a verba de 180.000€ representa ilustra-se num cálculo aritmético simples […]. A referida quantia de 180.000€, rende de juros, mensalmente, a uma taxa anual de 2,5% líquidos, 375€.
Pois bem! Se mês a mês, com início em Julho de 2010 […], adicionarmos ao capital de 180.000€, os juros, e lhe retirarmos aquele rendimento todos os meses perdido pela autora – 668,43€ – temos que o capital se vai perdendo lentamente, todos os meses, pois o juro mensal é inferior ao rendimento mensal perdido.
Porém, feita a progressão aritmética, vemos que em 2030, ano em que a autora completaria os 72 anos de idade, o capital ainda estaria em 89.233,22€, ou seja, muito longe de estar esgotado. Mais exactamente, apenas quase metade desse capital estaria consumido.
[…]”
A autora, por sua vez, começa por refazer os cálculos da remuneração média mensal bruta de 1423,62€ com base nos “comprovados vencimentos”, “conforme documentação de fls. 250 e 251.” E, ainda com base nessa documentação, diz que a remuneração média mensal líquida [deduzida da retenção para a CASS (= segurança social)] é de 1362,32€; logo, a perda mensal líquida seria 678,90€ (deduzindo a pensão líquida que recebe, de 683,42€, ao valor líquido que recebia), pelo que em 24 anos perderia 195.523,20€
Acrescenta que a indemnização a atribuir não se deve limitar ao tempo de vida activa da vítima, mas sim à presumível data da sua morte, sendo que o índice etário de mortalidade para as mulheres é já para além dos 84 anos, pelo que a autora ainda tinha uma esperança de 36 anos de vida, pois que nasceu em 1958. Por outro lado, chama a atenção para os índices de desvalorização da moeda, pelo que, tomando em conta a evolução do salário mínimo nacional de 1979 a 2011, no fim dos 84 anos aqueles 678,90€ teriam atingindo o décuplo. Por fim, diz que as reformas são maiores ou menores conforme os anos de desconto e o aumento da retribuição salarial dos lesados e que não têm o mesmo valor se ocorrerem antes do tempo regulamentar.
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E tudo isto leva às seguintes sub-questões:
A questão da pensão
O cálculo do dano da perda da capacidade deve ser feito como o fez a sentença recorrida, isto é, aplicando a percentagem de incapacidade àquilo que a autora recebia, ou deve ser calculada, como o fez a autora (na petição inicial e mais tarde nas contra-alegações) e depois a seguradora, tendo em conta aquilo que a autora auferia e aquilo que passou a receber?
É a sentença que tem razão: o que a autora perdeu, isto é, o dano por ela sofrido, foi uma parte da sua capacidade de ganho de rendimentos, que não tem correspondência com a diferença entre aquilo que se auferia e aquilo que se passou a receber por outra fonte.
Por isso é que se costuma dizer que é indiferente que o lesado tenha continuado a auferir o mesmo ordenado apesar de ter uma dada incapacidade, pois que se continua a receber o mesmo é porque continua a produzir o mesmo, tendo para isso que empregar muito maior esforço (poderia dizer-se que o mesmo ordenado pode ser mantido por liberalidade da entidade patronal, mas isso não corresponde à normalidade das coisas e a acontecer não deve ser o lesante/seguradora a beneficiar dessa liberalidade).
Neste sentido, a sentença invoca os acórdãos do STJ de 17/05/1994, CJSTJ, tomo II, págs. 101/102, do STJ de 07/10/1997, BMJ, 470, págs. 569 a 575, do STJ de 11/02/99, BMJ, 484, págs. 352 a 355, do STJ de 06/12/2001, 01A3707, do STJ de 13/11/2001, 01A3307, do STJ de 15/01/2004, 03B3926, e os acs. do TRP de 27/05/2004, 0432724, do TRP de 21/04/2005, 0531755 os quais dizem, com mais ou menos diferentes formulações, que:
“a incapacidade funcional, ainda que não impeça o lesado de continuar a trabalhar e ainda que dela não resulte perda de vencimento, reveste a natureza de «um dano patrimonial, já que a força do trabalho do homem, porque lhe propicia fonte de rendimentos, é um bem patrimonial, sendo certo que essa incapacidade obriga o lesado a um maior esforço para manter o nível de rendimentos auferidos antes da lesão”,
ou então, que:
“o lesado não tem de alegar perda de rendimentos laborais para o tribunal atribuir indemnização por ter sofrido incapacidade permanente parcial; apenas tem de alegar (e provar depois) que sofreu incapacidade permanente parcial.
Outra questão seria a de saber se o facto de a autora receber, para além desta indemnização, uma pensão da segurança social, representaria uma cumulação indevida, a originar um enriquecimento sem causa.
Mas, por um lado, seria necessário demonstrar que o recebimento das duas (indemnização e pensão) ultrapassaria o que a autora recebia antes do acidente. E, por outro lado, a haver um enriquecimento sem causa, quem seria a prejudicada seria a segurança social de Andorra, não a seguradora, pelo que a questão não pode ser posta por esta. Ou seja, se a autora antes do acidente recebia x€ por mês, a seguradora do lesante teria que pagar esses x€ por mês. Se esses x€ por mês apenas são pagos com a soma da indemnização com a pensão da segurança social, quem está a pagar o que não deve (por não ser lesante nem seguradora) é a segurança social, pelo que é esta que tem direito a exigir o reembolso (direito que aliás é reconhecido por lei em relação à segurança social portuguesa: o regime está previsto nos arts. 6 a 9 do DL 187/2007, de 10/05, e antes nos arts. 9 a 12 do DL 329/93, de 25/09) à seguradora (que é quem devia pagar a totalidade do dano sofrido pelo lesado). Se a soma é superior devido à pensão da segurança social (= x€ + 50€, por exemplo), o enriquecimento é da autora mas o empobrecimento é da segurança social, não da seguradora, pelo que seria a segurança social a ter direito a pedir da autora o reembolso desse excesso. A não ser que a seguradora tivesse entretanto reembolsado a segurança social de tudo o que esta despendeu pela pensão de invalidez a seguir à data da consolidação das lesões, caso em que era a seguradora que teria direito a demandar a autora pelo excesso por esta eventualmente recebido (ou a deduzir naquilo que tivesse que lhe pagar, aquilo que tivesse que pagar à segurança social a esse título para a reembolsar). Mas não é nada disto que está em causa nesta acção (várias destas questões podem ver-se, por exemplo, no ac. do STJ de 11/11/2010, 270/04.5TBOFR.C1.S1, lido com as devidas adaptações tendo em conta as circunstâncias do caso).
Por fim, quanto a esta sub-questão diga-se que é certo que, no caso, o cálculo proposto pela seguradora, que aproveitou a posição tomada pela autora, até parece beneficiar a autora, pois que em vez dos 500€ mensais a que formalmente chegou a sentença, o resultado (obtido pelas partes) é, para este factor do cálculo, de 668,58€ (ou 678,90€) mensais. Mas isto não seria razão para alterar a forma correcta de cálculo, nem, como se verá mais à frente, corresponde à realidade (pois que a sentença acrescentou, ao valor encontrado, quase 60% a mais, por razões de equidade…).
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O valor da remuneração é o líquido ou o ilíquido?
A sentença considerou o valor ilíquido, as partes utilizam o valor líquido.
É a sentença que tem razão, pois aquilo que o lesado perde realmente - a situação que existiria se não fosse o evento (art. 562 do CC) -, é o salário ilíquido e não o líquido.
Quanto à não dedução de contribuições para a segurança social – que aliás é o caso do autos – não se tem discutido sequer a questão, pelo que se dirá mais à frente.
Quanto à dedução de impostos, entende-se (neste sentido, já vai o ac. do TRP de 31/10/2013, 7794/09.6TBMTS.P1, com o mesmo relator, não publicado) que a posição correcta é de considerar que estes são descontados do vencimento do trabalhador por conta de outrem e são portanto parte do pagamento do trabalho produzido pelo mesmo, embora venham depois a ser destinados ao Estado e não ao trabalhador. Os impostos respeitam assim às relações entre os lesados e o Estado, não devendo ser os lesantes ou as suas seguradoras a beneficiar com as vicissitudes que têm a ver com essas relações. Se a entidade patronal pagava 1000 ao trabalhador dos quais 100 acabavam por ir para o Estado, se a seguradora apenas pagar 900 não está a repor a situação anterior. Isto é, em termos globais, uma percentagem de rendimentos que iam para o trabalho (embora depois passassem para o Estado, que depois redistribuiria parte em prestações que são considerados retribuição indirecta do trabalho), passavam a fazer parte dos rendimentos do capital financeiro (por deixarem de sair dele). Não pode ser.
Certamente por isto, a Lei dos acidentes de trabalho, nº. 98/2009, de 04/09, diz no seu art. 71/1: “A indemnização por incapacidade temporária e a pensão por morte e por incapacidade permanente, absoluta ou parcial, são calculadas com base na retribuição anual ilíquida normalmente devida ao sinistrado, à data do acidente.” (vejam-se, no mesmo sentido, as normas dos arts. 71/7 e 111/1 da mesma lei).
No mesmo sentido, veja-se o sumário do ac. do TRL de 26/05/1999, sob o nº. 0018143 da base de dados do IGFEJ: I. No cálculo da indemnização por danos patrimoniais futuros o rendimento a considerar é o rendimento bruto, ilíquido. II. Assim, não é correcto deduzir-se os impostos pagos ou a pagar ao lesado.”
E é esta a posição que é normalmente seguida, embora de forma implícita e por várias razões, na jurisprudência (isto é, por norma, os cálculos são quase sempre feitos com base nos valores ilíquidos; assim, por exemplo, os acórdãos do STJ de 10/05/2012, 451/06.7GTBRG.G1.S2, 16/12/2010, 270/06.0TBLSD.P1.S, de 21/10/2010, 1331/2002.P1.S1, de 07/10/2010, 839/07.6TBPFR.P1.S1, de 30/09/2010, 935/06.7TBPTL.G1.S1, de 05/11/2009, 381-2002.S1, de 24/09/2009, 09B0037, de 22/01/2009, 07B4242, e de 23/09/2008, 07B2469); em alguns casos chega-se a usar expressamente a expressão valor ilíquidos: apenas por exemplo, nos acs. do STJ de 21/03/2013, 565/10.9TBPVL.S1, de 07/10/2010, 2171/07.6TBCBR.C1.S1.
Aliás, seria criar uma incongruência no seio do sistema jurídico, considerar para estes efeitos um salário líquido, quanto no regime dos acidentes de trabalho se considera expressamente o ilíquido.
Como ponto de comparação, também não se indemniza a expropriação de um imóvel com base no seu valor líquido, isto é, diminuído de uma capitalização do imposto municipal sobre imóveis.
E não é possível comparar o valor da Lei 98/2009, com o da Portaria 377/2008, de 26/05 (entretanto alterada, mas não neste ponto, pela Portaria 679/2009, de 25/06) e com os nºs. 7 e 9 do art. 64 do DL 291/2007, de 21/08 (na redacção que lhe foi dada pelo DL 153/2008, de 06/08), que vão em sentido contrário. É que o valor normativo daquela portaria (e o DL referido limitou-se a segui-la) é manifestamente inferior ao daquela lei e, para além disso, como reiteradamente vem sentido dito, o que dela consta não vincula os tribunais (neste sentido, veja-se, apenas por exemplo, o ac. do STJ de 25/03/2010, 344/07.0TACVD.P1.S1, do STJ de 09/09/2010, 2572/07.0TBTVD.L1, do STJ de 07/07/2009, 205/07.3GTLRA.C1, do TRP de 17/03/2011, 2993/08.0TBPVZ.P1, que lembra ainda o ac. do STJ de 01/07/2010, 457/07.9TCGMR.G1.S1 – que diz estar publicado na CJSTJ.2010.II, págs. 139 e segs - que refere que a portaria tem a “típica funcionalidade de mero estabelecimento de padrões mínimos a cumprir pelas seguradoras na apresentação de propostas sérias e razoáveis de regularização de sinistros”, de tal modo que a sua aplicação pura se poderia traduzir num “insustentável retrocesso na protecção devida aos lesados, voltando-se a um «miserabilismo» indemnizatório há muito justificadamente derrogado pelos critérios jurisprudenciais dominantes, de modo a afastar decididamente o arbitramento de montantes indemnizatórios irrisórios, desproporcionadamente exíguos perante a gravidade das lesões sofridas”; e ainda os acórdãos do TRC de 15/02/2011, 291/07.6TBLRA.C1, de 21/09/2011, 794/04.4GBILH.C1, de 21/12/2010, 1601/08.4TBVIS.C1, e do TRP de 07/02/2011, 2942/08.6TBVCD.P1; o mesmo aliás tem sido dito quanto aos critérios do próprio DL 291/2007, como se vê, por exemplo, na decisão sumária de 09/01/2012 do TRC, 153/11.2TJCBR.C1); para além de que, como também vem sendo dito, as normas daquela portaria e DL alterado na sequência da portaria, inserem-se num conjunto de normas que tiveram em vista o “respaldo” das seguradoras, em detrimento dos lesados (são “medida[s] de claro favorecimento das seguradoras em prejuízo dos lesados”), motivo pelo qual em relação a várias dessas normas se tem defendido a sua inconstitucionalidade ou manifesta injustiça material (por exemplo, Prof. Menezes Cordeiro, Tratado do Direito Civil, II, Tomo III, Almedina, 2010, págs. 753 e 759, Prof. Paulo Mota Pinto, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Coimbra Editora, Dez2008, notas 1639 a 1641, págs. 568/571, Menezes Leitão, citado pelo último; também pela jurisprudência, por exemplo, em relação ao art. 64, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional de 12/07/2012, n.º 383/2012, proferido no processo n.º 437/10; isto já para não falar dos erros de que enfermam, como, por exemplo, o facto de a tabela actual da Portaria não coincidir com a fórmula por ela avançada, erro de que se dão conta o ac. do TRL de 21/03/2012, 4129/06.3TBSXL.L2-2, e o voto de vencido aí lavrado, ou de a taxa de juro aplicada continuar a ser, 5 anos depois, e sem qualquer conexão com a realidade das coisas, de 5% ao ano).
Em sentido contrário, vejam-se, no entanto, os acs. do STJ de 15/01/2013, 21/1998.P1.S1, e do TRP de 15/09/2014, 17/11.0TVPRT.P1.
Mas, para além de tudo isto, a verdade é que nem sequer há dados que demonstrem que a remuneração da autora sofresse de quaisquer descontos para impostos (e a autora trabalhava na Andorra, não havendo razões para recorrer a regras da experiência comum das coisas para dizer que todos os trabalhadores pagam impostos…). No caso dos autos, o que existe, segundo as partes, sem reflexo suficiente nos factos provados, não é uma dedução de impostos, mas de contribuições para a segurança social de Andorra (= Caixa Andorrana de Segurança Social).
Ora, em relação a estas contribuições, a questão da liquidez já não se põe, pois como se diz no último acórdão citado contra a posição agora seguida, o do TRP de 15/09/2014, não se põe em causa que elas “importam um benefício diferido para o lesado”, pois que as contribuições obrigatórias para regimes de protecção social são “essenciais para assegurar futuramente o direito a uma pensão de reforma”.
Ou seja, em relação a elas, mesmo segundo esta outra posição, não havia que as deduzir à remuneração ilíquida.
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A vida activa ou a esperança média de vida
A sentença recorrida e a autora têm em conta a esperança média de vida, enquanto a seguradora argumenta e faz as contas com base na vida activa que ainda restaria à autora, esquecendo, de todo, aquela esperança média de vida.
Ora, o número de anos que importa ter em conta não é o número de anos que falta atingir para a idade da reforma, mas sim para a idade correspondente à esperança média de vida da vítima (isto é, o que importa é o tempo provável de vida da vítima).
A referência ao tempo provável de vida da vítima foi opção seguida pelo acórdão do STJ de 28/9/1995, publicado na CJ.STJ.95.III, pág. 36 (:“finda a vida activa do lesado não é razoável ficcionar que também a vida física desaparece no mesmo momento e com ela todas as necessidades do lesado e, por outro lado, geralmente, continua a receber remunerações, ou como pensão de aposentação da própria profissão, ou como prestação da segurança social”) e nos acórdãos do STJ de 16/3/1999, CJ.STJ.99.I.167, de 25/7/2002, na CJ.STJ.2002.II.128.
E passou a ser seguida por grande parte da jurisprudência, principalmente a partir do momento em que tal referência foi adoptada no parecer do Provedor de Justiça a propósito do caso da ponte de Entre-os--Rios (parecer de 19/03/2001, publicado no Diário da República, II série, nº. 96, de 24/4/2001, págs. 7139 e segs., especificamente ponto 38, nota 17): “julga-se a utilização do período de vida expectável da vítima como critério mais adequado do que o comummente utilizado da idade da reforma/aposentação, já que é de supor que o auferimento de rendimentos durante a vida activa permitiria, pela inscrição obrigatória em regime de segurança social, o recebimento de pensão de velhice ou de aposentação até ao fim da vida” [neste sentido, apenas por exemplo, vejam-se os acórdãos do STJ de 19/04/2012 (3046/09.0TBFIG.S1); de 20/10/2011 (428/07.5TBFAF. G1.S1); de 07/06/2011 (524/07.9TCGMR.G1.S1); de 20/05/2010 (103/2002. L1.S1); e de 17/06/2008 (08A1266)].
Note-se que parte da jurisprudência – como a do ac. do STJ de 04/12/2007 (07A3836) e também a sentença recorrida – utiliza a idade da reforma… mas apenas na aplicação das fórmulas matemáticas, considerando depois a esperança média de vida no ajustamento equitativo do resultado obtido com tais fórmulas. Assim, por exemplo, o referido acórdão do STJ de 04/12/2007 diz: “Aqui chegados, entramos na 3.ª fase, ou seja, naquela em que há que atender a todos os outros factores que as ditas fórmulas não contemplam, e que se repercutirão, previsivelmente, em termos de perdas patrimoniais, e que são extremamente relevantes, indicando-se a título exemplificativo: “o prolongamento da IPP para além da idade de reforma (sendo importante sublinhar que entrando na base de cálculo a referência à idade de reforma aos 65 anos não significa necessariamente que se deixe de trabalhar depois dessa idade, ou que se deixe de ter actividade depois dela).”
Assim, seja por uma via ou por outra, o que deve entrar como factor é a esperança média de vida e não o tempo provável de vida activa.
Ora, em Fevereiro de 2010 (data a que deve ser reportado o cálculo desta indemnização, como se verá mais à frente), uma mulher com 51 anos de idade (a autora nasceu em 18/12/1958) tinha uma esperança média de vida de 32,56 anos file:///C:/Documents%20and%20Settings/Pedro%20Martins/Os%20meus%20documentos/Downloads/27TabMortPot2008_2010%20(1).pdf
Portanto, não são os 15 anos de que fala o facto 59, nem os 19 anos de que fala, em primeira linha a sentença – embora depois a nível da equidade tenha tido também em conta a esperança média da vida -, nem os 20 ou 24 anos de que fala a seguradora, nem os 36 anos de que fala a autora.
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A incapacidade total para o trabalho
A sentença aplica, no cálculo matemático, a percentagem de incapacidade de 35%, mas depois acrescenta mais de 60% ao valor encontrado, para, entre o mais, ter em conta que a autora não mais conseguirá arranjar trabalho.
A seguradora não põe em causa esta incapacidade total para o trabalho, mas depois não a toma em consideração no cálculo. E o mesmo acaba por fazer a autora.
É de novo a sentença recorrida que tem razão em considerar, efectivamente, os factos dados como provados em 55 e 56, isto é, que em consequência do acidente e das lesões provocadas pelo mesmo, a autora ficou incapacitada para o trabalho da sua profissão, e o seu défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixa-se em 29 pontos, a que acrescem 5 pontos de dano futuro, e, por força da sua idade e do facto 54 (a autora completou a 3.ª classe do ensino primário), ficou totalmente incapacitada para o trabalho.
O acórdão do TRP de 31/03/2009 (3138/06.7TBMTS.P1) diz:
I Na determinação da perda da capacidade de ganho, deve ser considerada como perda a 100% a existência de uma incapacidade permanente que, embora fixada em 25% para o trabalho em geral, se traduza, relativamente à ofendida, na absoluta incapacidade de exercer a sua profissão específica e quando não tenha condições para se reconverter a outra actividade profissional.
Este acórdão, na fundamentação da sua decisão remete para a doutrina do ac. do STJ 28/10/92, publicado no BMJ 420, págs. 544 e segs:
“VI. Na determinação da perda da capacidade de ganho, deve ser considerada como perda a 100% a existência de uma incapacidade permanente que, embora fixada em 65% para o trabalho em geral, se traduza na perda de um braço, relativamente a ofendido que, com ela, fique absolutamente incapacitado de exercer a sua profissão específica e não tenha condições para se reconverter a outra actividade profissional”.
Este acórdão do STJ reporta-se a uma incapacidade de 65% e a alguém que não tinha condições para se reconverter a outra actividade profissional. Melhor, nos dizeres do texto do acórdão: “porque não se provou que pudesse ter ou tivesse possibilidade de exercer outra.”. O que quer dizer, em relação a este último pressuposto – a possibilidade de exercer outra profissão - , que, na lógica do acórdão, o mesmo deve ser provado pela ré. O mesmo – quanto ao ónus da prova – decorria do nº. 5 do art. dedicado à indemnização em forma de renda do anteprojecto do Prof. Vaz Serra (BMJ 100, pág. 128), citado por Dario Martins de Almeida, obra referida, págs. 413/414: “Só pode exigir-se do lesado uma mudança de profissão ou actividade, para o efeito de valorizar quanto possível a sua capacidade aquisitiva, quando tal for evidentemente admissível, vistas as circunstâncias do caso. O encargo da prova cabe ao responsável pela indemnização”.
Uma das fontes destas considerações é, por exemplo, a Base XVI/1b) da Lei 2127 de 03/08/1965 – a antiga Lei dos acidentes de trabalho – que previa que se do acidente resultasse incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, a pensão vitalícia seria fixada entre metade e dois terços da retribuição-base [mesmo uma incapacidade absoluta para todo e qualquer trabalho só dava direito a uma pensão de 80%...], conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de outra profissão compatível.
Dizia Cruz de Carvalho, que a fixação deste regime especial resultou da consideração lógica […] de que a incapacidade permanente absoluta para todo o trabalho habitual é sempre mais grave do que uma diminuição parcial da mesma amplitude fisiológica, não só pela necessidade de mudança de profissão, como pela dificuldade de reeducação profissional, exigindo por isso uma compensação maior” (Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Petrony, 2ª edição, 1983, pág. 97; no mesmo sentido, veja-se ainda Vítor Ribeiro, Acidentes de Trabalho, Rei dos Livros, Jan84, págs. 317/318).
O art. 17/1b) da Lei 100/97, de 13/09 – lei dos acidentes de trabalho – prevê que na incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, seja fixada uma pensão anual e vitalícia compreendida entre 50% e 70% da retribuição, conforme a maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de profissão compatível. O mesmo diz hoje a o art. 48/3b) da nova lei dos acidentes de trabalho, Lei 98/2009, de 04/09.
De novo há que notar que mesmo uma incapacidade permanente absoluta para todo e qualquer trabalho só por si só dá direito, na lei dos acidentes de trabalho, a uma pensão anual e vitalícia igual a 80% da retribuição (por exemplo, art. 48/3a) da Lei 98/2009).
Considerando isto tudo dir-se-á que não é aceitável considerar aquele que fica totalmente incapacitado para o trabalho habitual mas tem uma incapacidade permanente de 29+5%, igual àquele que tem uma incapacidade permanente total. A situação é necessariamente menos grave. Mas muito mais inadmissível é considerar esse lesado numa situação igual à daquele que tem uma incapacidade permanente de 29+5% sem mais nada.
A forma de fazer a distinção pode perfeitamente passar pela adaptação da legislação laboral, adaptação que terá que ter em conta que nos actos geradores de responsabilidade civil não laboral não há limites de 80% para a indemnização dos danos. E, assim, se aquele que tem uma incapacidade permanente absoluta para todo o trabalho pode receber, no máximo, por acidente de trabalho, uma pensão de 80%, mas se fosse num acidente não laboral já poderia receber 100%, então há que fazer a correspondência proporcional dos limites de 50 a 70% para aqueles que ficam totalmente incapacitados para o trabalho habitual, bem como de qualquer outro dentro da sua área de preparação técnico-profissional. Ora, se 80% corresponde a 100%, 70% corresponde a 87,5% e 50 corresponde a 62,5%. E dentro destes limites, a percentagem deve ser fixada conforme o que se prove quanto à maior ou menor capacidade funcional residual para o exercício de qualquer outra profissão.
No caso, a percentagem deve ser a máxima (87,50%), pois que até se prova que, dadas as características do caso, a autora está totalmente incapacitada para o trabalho.
Assim é como se a autora tivesse perdido 87,50% da sua capacidade de ganho.
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A que data deve ser reportada a incapacidade de ganho?
É desde a data da consolidação da incapacidade – até lá o que há é uma incapacidade temporária, não a permanente -, ou seja, no caso, a partir de Fev2010. A seguradora fala em Julho de 2010, mas, por um lado, sem ter em conta – e sem explicar a desconsideração – da data da consolidação, por outro lado, com base em factos que não estão dados como provados e, por fim, com base em factos que não permitem a conclusão tirada por ela (se a autora recebia 1423,62€ e lhe foram pagos até Julho de 2010, 866,52€ desde Fevereiro de 2007 até Junho de 2010 e 693,21€ em Julho de 2010, não se pode dizer, como diz a ré, que a autora não teve qualquer perda de rendimentos). A autora, pelas contas que faz, aplica a data do acidente, também sem explicar como é que o dano em causa pode ter surgido logo nessa data, se a consolidação das lesões só ocorreu em Fev2010.
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A taxa de juro
A autora falava (na petição inicial) numa taxa de 5% (que é, aliás, a taxa que a portaria já referida utiliza…). A seguradora fala numa taxa de 2,5%. Qualquer destas taxas não tem, hoje em dia, e previsivelmente no futuro, qualquer razão de ser. Um cidadão comum, não especializado e sem poder negocial, não consegue obter uma taxa de juros de 2,5% e muito menos de 5%. Para além de que o capital terá que ir diminuindo todos os anos, não podendo, por isso, falar-se numa colocação a longo prazo de tal capital, assim, sem mais nada. Entende-se que já será mesmo difícil obter uma taxa de 1,5% ao ano. Pelo que é esta a taxa que vai ser aplicada.
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A inflação e os ganhos de produtividade e as promoções profissionais
Perante os cálculos e exemplo da seguradora, nos próximos 20 ou 24 anos não haverá nem inflação, nem ganhos de produtividade nem promoções profissionais, sendo que a sentença e a autora defendem o contrário.
É de novo a sentença que tem razão, pois que sempre se tem defendido que se deve tomar em conta que: o lesado evoluiria na sua situação profissional; há aumentos de produtividade; existe a tendência, pelo menos a médio e longo prazo, para a melhoria das condições de vida do país e da sociedade; existe inflação; e a longevidade vai aumentando (por exemplo, o acórdão do STJ de 04/12/2007). Ou, nos termos do ac. do STJ de 05/11/2009 (381-2002.S1): há que ponderar também a evolução provável na situação profissional do lesado, o aumento previsível da produtividade e do rendimento disponível, a melhoria expectável das condições de vida, a inflação provável ao longo do período temporal a que se reporta o cômputo da indemnização.
Tudo isto continua a ser válido ainda hoje. Não é previsível que os vencimentos/salários dos trabalhadores nunca mais serão aumentados regularmente (nem mesmo para acompanhar a inflação), que todos os ganhos de produtividade nunca mais beneficiarão os trabalhadores por conta de outrem e que eles nunca mais serão promovidos. Embora se reconheça que, ao menos em parte, é essa a tendência actual (mas não tão simplesmente: ainda recentemente o salário mínimo nacional foi aumentado), não se pode dizer que seja algo definitivo, tanto que se invoca normalmente para a justificar a existência de uma situação de crise excepcional.
Pelo que, deve manter-se a consideração destes factores (mesmo que numa percentagem mais baixa do que até há pouco tempo antes), se possível nas fórmulas de cálculo de que se falará à frente.
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Em suma: os factores a ter em conta no cálculo da indemnização da perda da capacidade de ganho são, assim, os seguintes:
A perda de capacidade é equivalente a 87,50%; a remuneração mensal a ter em conta é de 1423,62€; logo, o valor da perda mensal equivale a 1245,67€.
Os meses são 12 (e não os usuais 14) tendo em conta que a autora trabalhava no estrangeiro e os factos apontam para que apenas lhe fossem pagos 12 meses; logo, o valor da perda anual é de 1245,67€ x 12 = 14.948,04€
Os anos a ter em conta são os da esperança média de vida, no caso, mais 32,56, a contar de Fev2010.
Uma taxa de juros de 1,5%.
Uma inflação anual de 0,5%.
Ganhos de produtividade de 0,375%.
Promoções profissionais de 0,375%.
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O cálculo
Trata-se agora, com estes dados, de calcular o capital necessário à retirada anual pela autora de um montante igual àquele que perdeu (1245,67€ mensais), durante 32,56 anos, de modo a que, durante esse período, o capital vá diminuindo e findo o mesmo deixe de existir.
Para o cálculo deste capital, tem-se entendido que ele deve “começar por ser procurado com recurso a processos objectivos (através de fórmulas matemáticas, cálculos financeiros, aplicação de tabelas)” (acórdão do STJ de 04/12/2007, publicado sob o nº. 07A3836 da base de dados do IGFEJ), isto “[p]ara evitar um total subjectivismo – que, em última análise, poderia afectar a segurança do direito e o princípio da igualdade” (ac. do STJ de 05/11/2009 (381-2002.S1).
Mas depois acrescenta-se (nos termos do acórdão do STJ de 04/12/2007):
“embora depois seja preciso ter em conta que o valor resultante das fórmulas matemáticas ou tabelas financeiras dá um valor estático” não contando com todos aqueles factores supra referidos. “Daí que a utilização das fórmulas matemáticas, ou tabelas financeiras só possa servir para determinar o minus indemnizatório, o qual, terá posteriormente de ser corrigido com vários outros elementos, quer objectivos quer subjectivos, que possam conduzir a uma indemnização justa
Ou (dito nos termos do ac. do STJ de 05/11/2009):
“Porém, e como vem sendo uniformemente reconhecido, o valor estático alcançado através da automática aplicação de tal tabela «objectiva» - e que apenas permitirá alcançar um minus indemnizatório - terá de ser temperado através do recurso à equidade - que naturalmente desempenha um papel corrector e de adequação do montante indemnizatório às circunstâncias específicas do caso, permitindo ainda a ponderação de variantes dinâmicas que escapam, em absoluto, ao referido cálculo objectivo” já referidas acima.
Ora, na medida em que a fórmula matemática a aplicar inclua alguns destes factores, diminui-se o subjectivismo e evita-se a aplicação incontrolada dos juízos de equidade.
Ou seja, pode-se aplicar uma fórmula matemática muito simples, como o fez a sentença e por regra o fazem também os tribunais superiores e depois aumentar (embora alguns também diminuam…) o resultado obtido com base em razões de equidade, ou tentar aplicar uma fórmula matemática em que se tentem incluir a maior parte dos factores, como, por exemplo, a esperança média de vida em vez de apenas a vida activa previsível, como se viu acima.
*
As fórmulas
O acórdão do STJ de 04/12/2007 colocou ao dispor de “quem não é perito em operações complexas em matemática e deseje rapidamente chegar a resultados semelhantes ao das fórmulas utilizadas pelo STJ no ac. de 05/05/1994 ou do TRC de 04/04/1995” [uma tabela] e a essa tabela chegou-se “pela simples aplicação do programa informático excell à fórmula financeira utilizada pelo STJ, tomando como parâmetros a idade que ainda falta à vítima para atingir a idade de reforma e a taxa de rendimento previsível de 3% ao ano para as aplicações a médio e longo prazo […]”.
Portanto, tal tabela é uma aplicação da fórmula usada pelo STJ no ac. de 05/05/1994 (publicado na CJ.STJ.94.2.86, onde se esclarece que ela foi facultada pelo docente Dr. Joaquim Correia Caetano), e antes deste no ac. do STJ de 04/02/1993 (do mesmo relator e publicado na CJ.STJ.93.1.128).
Ora, aquela fórmula foi desenvolvida depois pelo ac. do TRC de 04/04/1995 (publicado na CJ.95.2.23/26), de modo a tomar em consideração o crescimento dos salários ao longo de toda a vida laboral, a acompanhar a inflação, e os ganhos de produtividade e as promoções profissionais.
E assim, desde tal data têm sido utilizadas para a consideração de todos estes factores e já tendo em conta que o capital tem de estar esgotado no fim do período em causa, as seguintes duas fórmulas complementares:
A 1ª (que é um resumo simplificado da fórmula matemática utilizada pelo STJ, fornecida pelo autor da acção julgada no ac. do TRC de 04/04/1995) é:
C = [(1 + i)N – 1 / (1 + i)N x i] x P
em que
C = capital;
P = prestação a pagar no 1º ano;
i = taxa de juro; e
n = o nº. de anos de esperança de vida;
A 2ª é:
i = (1 + r / 1 + k) - 1
em que:
r = taxa de juro nominal líquida.
k = taxa anual de crescimento de P (inflação + ganhos da produtividade + promoções profissionais).
Isto para que a variável i não seja a taxa de juro nominal líquida da apli­cação financeira, mas sim a taxa de juros real líquida.
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Taxa de juros real líquida:
No caso dos autos, para aplicação da 2º fórmula, considera-se que:
r = deve ser de 1,5% (o cidadão comum, não especializado em aplicações financeiras e sem poder negocial, não consegue, hoje em dia, uma taxa de rendimento bancário superior).
k = P (inflação de 0,5% + ganhos da produtividade de 0,375% + promoções profissionais de 0,375%) = 1,25%
Pelo que, i é 0,247%.
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Assim
C = [(1 + 0,247%)32,56 - 1 / (1+0,247%)32,56 x 0,247%] x 14.948,04€
C = 467.097,40€.
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Da eventual dedução por entrega imediata do capital
Os acórdãos do STJ de 1994 e o do TRC de 1995 – que estão na origem das fórmulas referidas - não faziam tal dedução.
O ac. do STJ de 25/11/2009, (397/03.0GEBNV.S1), diz que se deve fazer esta dedução:
“Após determinação do capital, há que proceder ao “desconto”, “dedução” ou “acerto” porque o lesado perceberá a indemnização por junto, podendo o capital a receber ser rentabilizado, produzindo juros, sendo que se impõe que, no termo do prazo considerado, o capital se encontre esgotado; trata-se de subtrair o benefício respeitante à recepção antecipada de capital, de efectuar uma dedução correspondente à entrega imediata e integral do capital, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa do lesado à custa alheia. Na quantificação do desconto em equação a jurisprudência tem oscilado na consideração de uma redução entre os 10% e os 33%.”
Tem-se acompanhado a jurisprudência na dedução desta percentagem.
O cálculo da dedução faz-se diminuindo o valor de i, tendo em conta que a taxa de crescimento que interessa, para este efeito, é composta só da inflação, pelo que, em vez de 1,25%, o valor de k passa para 0,5% e assim o valor de i passa para 0,995% em vez de 0,247%, obtendo-se a medida de desconto de cerca de 11,37%.
Fazendo então o desconto de 11,37% pela entrega imediata, o valor do capital passa a ser de 413.988,43€.
Conclui-se, assim, que o valor da indemnização poderia ser superior ao valor que foi atribuído, pelo que a seguradora não tem razão para o querer baixar.
*
Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, diminuindo a condenação da ré C… em relação a esta autora (B…) para a quantia de 201.983,08€ (em vez de € 203.612,26), permanecendo tudo o mais.
Custas do recurso pela ré e pela autora na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário que foi concedido à autora.

Porto, 23/10/2014
Pedro Martins
Judite Pires
Teresa Santos