Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21434/18.9T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RP2019092321434/18.9T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 702, FLS 181-189)
Área Temática: .
Sumário: I - Encerrado o processo de insolvência, com fundamento em insuficiência de bens e prosseguindo como incidente de exoneração do passivo restante, face ao disposto no art. 242º/1 CIRE, só os titulares de “créditos sobre a insolvência” estão impedidos de promover execuções sobre os bens do devedor.
II - Titulares de créditos sobre a insolvência tem o significado que lhe é atribuído no artigo 47º do CIRE; os novos credores não estão impedidos de instaurar execução.
III - A norma visa garantir a igualdade entre os credores da insolvência, mas não impede os novos credores de executarem o património do devedor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Exec-ExonPasRest-Cessão-21434/18.9T8PRT.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto (5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)

I. Relatório
Nos presentes autos de execução para pagamento de quantia certa, instaurados em 12 de outubro de 2018, no qual figuram como:
- Exequente: B…, Rua …, N.º …, ….-… …, MTS; e
- Executados: C… e D… residentes na rua …, N.º …, r/c, ….-… …
pretende o exequente a promoção da execução para pagamento da quantia de 7 736,59 € (Sete Mil Setecentos e Trinta e Seis Euros e Cinquenta e Nove Cêntimos).
Alegou para o efeito que os executados por confissão de dívida assinada em 16 de fevereiro de 2018, com termo de autenticação da mesma data, se confessaram devedores ao exequente da importância global de 7.600,00€ (sete mil e seiscentos euros), correspondendo tal valor a rendas em dívida relativas ao contrato de arrendamento celebrado em 16 de janeiro de 2013 e relativo à fração autónoma designada pela letra "B", correspondente ao primeiro andar esquerdo, com entrada pelo n.º 253, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, da União de freguesias …, … e …, concelho de Matosinhos.
Acordaram o pagamento da quantia em dívida em 63 (sessenta e três) prestações mensais e sucessivas, vencendo-se a primeira no último dia do mês de março de 2018 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, mas não procederam os Executados ao pagamento da primeira prestação nem de qualquer quantia ou valor.
Acordaram Exequente e Executados que a falta de pagamento de uma prestação implicaria o imediato vencimento de todas as restantes, podendo, portanto, o credor exigir, desde logo, o pagamento de tudo quanto ainda for devido, pelo que, desde 01/04/2018 se encontra vencida a totalidade da dívida.
Acordaram, ainda, que seriam da exclusiva responsabilidade dos devedores todas as despesas judiciais e extrajudiciais que o Exequente viesse a fazer para segurança e cobrança do seu crédito. Mais acordaram que em caso de incumprimento da obrigação de pagamento, seria devido ao Exequente uma indemnização com natureza de cláusula penal no montante que resultar da aplicação da taxa de 4% ao ano calculada sobre o capital em dívida desde a data da mora, indemnização esta que desde 01/04/2018 até 12/09/2018 perfaz o valor de 136,59€ (cento e trinta e seis euros e cinquenta e nove cêntimos).
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Procedeu-se à penhora do vencimento do executado e à citação para os termos da execução.
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O executado veio requerer a redução da penhora para 1/6, o que foi deferido.
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Por requerimento datado de 12 de fevereiro de 2019 dirigido ao agente de execução, o executado veio informar que estava a decorrer o prazo de cinco anos após encerramento do processo de insolvência e requereu a sustação da penhora e devolução das quantias penhoradas a partir de novembro de 2018.
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O Administrador da Insolvência veio, de igual forma, em requerimento de 19 de fevereiro de 2019 requerer a sustação da execução com fundamento na pendência de processo de insolvência contra os executados e informação sobre a existência de bens suscetíveis de apreensão para a insolvência.
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Em 19 de fevereiro de 2019 o executado veio requerer de novo a sustação da penhora e a devolução das quantias apreendidas nos autos.
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Notificado o exequente veio pronunciar-se, alegando para o efeito e em síntese, que não é credor da insolvência dos executados C… e D…, porque os créditos reclamados na presente ação são posteriores à insolvência, reportando-se a rendas vencidas em período posterior à sentença de insolvência, razão pela qual não foram nem reclamados, nem reconhecidos naquela ação judicial. O documento de confissão de dívida e acordo de pagamento em prestações, que serve de título à presente ação, foi firmado pelos executados em 16 de fevereiro de 2018, ou seja, mais de três anos após a declaração de insolvência.
Mais alegou que a declaração de insolvência e as consequências inerentes à mesma apenas relevam relativamente às dívidas contraídas até a sua apresentação.
Alegou, ainda, que os devedores, não obstante a sua declaração de insolvência, podem administrar e dispor dos seus bens desde que não integrem a massa insolvente, o que equivale a afirmar que o devedor insolvente não sofre quaisquer limitações aos poderes de administração e até de disposição de bens não compreendidos na massa insolvente, pelo que os atos praticados pelos mesmos são válidos e eficazes.
Refere, ainda, que do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante e nomeação de fiduciário se constata que o processo foi encerrado por insuficiência da massa, pelo que, se verifica que não existia à data de encerramento quaisquer bens da massa insolvente.
A penhora de vencimento efetuada no âmbito da presente execução reduzida a 1/6, na sequência de requerimento apresentado pelos próprios executados, não afeta a massa insolvente, sendo deduzido ao montante excluído da cessão de rendimento.
A dívida exequenda existe, foi contraída em data posterior à insolvência pelos executados, pelo que o exequente, que não é credor da insolvência, tem direito a ser ressarcido do valor devido.
A penhora efetuada ao vencimento do exequente C…, reduzida a 1/6 do valor por requerimento apresentado pelo mesmo, não atinge a massa insolvente, pelo que nada justifica a suspensão da execução e a devolução do valor já penhorado.
Termina por considerar que não existem quaisquer razões jurídicas que fundamentem a suspensão e, consequentemente, devolução dos valores penhorados, requeridos pela administradora de insolvência e pelo executado.
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Proferiu-se despacho no qual se solicitou ao processo de insolvência informação do seu estado e cópia do despacho inicial de exoneração do passivo restante, o que foi atendido constando estes elementos dos autos.
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Proferiu-se despacho em 13 de março de 2019 (Ref citius 401910865) que se transcreve:
“Durante os cincos anos referentes ao período de cessão, não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor com vista à satisfação de créditos sobre a insolvência.
Aliás, neste período, os credores são pagos exclusivamente pelo fiduciário, não devendo o devedor pagar absolutamente nada fora do processo de insolvência, sendo que de outra estaria desvirtuado o efeito referente ao período de cessão.
Pelo exposto, cumpre suspender a penhora em curso, por violação do disposto no artº 88º do CIRE.
Por outro lado, uma vez que em violação deste regime, prosseguiu a efetivação dos descontos no vencimento mensal no processo executivo, não pode ulteriormente ser operada a apreensão a favor da massa insolvente do valor dos rendimentos auferidos pelo Insolvente no exercício da sua atividade laboral e após a declaração de insolvência, designadamente os salários ou vencimentos mensais do mesmo, assistindo a este o direito à sua restituição (neste sentido, Ac RP de 16.12.2015 in www.dgsi.pt).
Notifique, incluindo o AE para dar cumprimento ao ordenado”.
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O exequente B… veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
1 - O Recorrente /Exequente é credor dos Executados / Apelados por dívida titulada por confissão de dívida e acordo de pagamento em prestações, com respetivo termo de autenticação, firmado em 16 de fevereiro de 2018, pela qual aqueles reconhecem ser devedores da quantia total de 7.600,00€.
2 – Na execução interposta foi efetuada, em 22 de outubro de 2018, penhora de vencimento do executado C….
3 – Penhora esta reduzida a um sexto do valor por requerimento apresentado pelo executado C… em 02 de novembro de 2018 e decisão proferida em 07 de janeiro de 2019.
4 - Em 19 de fevereiro de 2019, deram entrada nos autos, o executado C… e a administradora de insolvência E…, requerimentos com pedido de suspensão da execução e da penhora efetuada, invocando a sentença de insolvência proferida contra os executados no âmbito do Processo n.º 287/15.4T8STS, do Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 3, do Tribunal da Comarca do Porto.
5 - Por sentença proferida, em 03 de fevereiro de 2015, no âmbito do referido processo de insolvência, foram os executados C… e D… declarados insolventes.
6 - O Recorrente / Exequente não é credor no âmbito do referido processo de insolvência, sendo que desconhecia a existência do mesmo, quer aquando de assinatura da confissão de dívida, quer aquando da interposição da ação executiva.
7 - Os créditos do ora Recorrente, constantes da confissão de dívida, respeitam a rendas posteriores à declaração de insolvência, titulados por documento lavrado mais de três anos após a sentença de declaração de insolvência.
8 - O Recorrente / Exequente expôs os factos retro alegados aos autos por requerimento apresentado em 21 de fevereiro de 2019, tendo requerido a notificação da administradora de insolvência para proceder à junção aos autos da relação dos credores reconhecidos, assim como do despacho de determinação de cessão de rendimento no âmbito do referido processo de insolvência.
9 - O Tribunal a quo apenas solicitou ao processo de insolvência informação do estado dos autos e cópia do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
10 - Do despacho inicial de exoneração do passivo restante, junto aos autos, entre o mais, se verifica que foi determinado o seguinte:
“Pelo exposto, admito o prosseguimento do processo para exoneração do passivo restante, determinando que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível superior a dois salários mínimos nacionais líquidos (SMN) no conjunto dos rendimentos do casal, que os requerentes C… e mulher, D…, venham a auferir se considera cedido ao fiduciário.” (negrito e sublinhado nosso).
11 – O Tribunal a quo proferiu a decisão de que ora se recorre determinando a suspensão da penhora em curso, por violação do disposto no art.º 88º do CIRE, determinando-se, consequentemente, a suspensão da penhora em curso.
12 – O referido art.º 88º do CIRE foi, na nossa modesta opinião, erroneamente interpretado, pois o mesmo não tem aplicabilidade no presente caso.
13 - Efetivamente, dispõe o n.º 1 do referido artigo que “A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou ao prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência; porém, se houver outros executados, a execução prossegue contra este.” (negrito e sublinhado nosso)
14 - O legislador no referido art.º 88º/1 do CIRE é claro quando expressamente consigna “…requeridas pelos credores da insolvência….” e “….intentada pelos credores da insolvência…”.
15 - O aqui Recorrente / Exequente não é credor da insolvência dos executados C… e D…, pelo que a suspensão prevista neste normativo não pode ser aplicada.
16 - Não é credor da insolvência dos executados, uma vez que os créditos reclamados na presente ação são posteriores à insolvência, reportando-se a rendas vencidas em período posterior à sentença de insolvência, razão pela qual não foram nem reclamados, nem reconhecidos naquela ação judicial.
17 - A declaração de insolvência e as consequências inerentes à mesma, mormente a suspensão das penhoras e da própria execução, apenas relevam relativamente às dívidas contraídas até a sua apresentação.
18 - Somente assim se compreende o disposto no n.º 3 do referido art.º 88º no qual se determina que “As ações executivas suspensas nos termos do n.º 1 extinguem-se, quanto ao executado insolvente, logo que o processo de insolvência seja encerrado nos termos previstos nas alíneas a) e d) do n.º 1 do artigo 230.º, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previsto.”
19 - Pois, de outra forma, seria permitir aos insolventes, após a declaração de insolvência e durante o período de cessão de rendimentos, a possibilidade de contrair de novas dívidas sem responsabilidade pelo pagamento destas, pois o credor em caso de incumprimento não poderia recorrer a ação executiva para cobrança coerciva das mesmas, o que seria subverter de todo a intenção do legislador.
20 - Os devedores, não obstante a sua declaração de insolvência, continuam a administrar e dispor dos seus bens desde que não integrem a massa insolvente, o que equivale a afirmar que o devedor insolvente não sofre quaisquer limitações aos poderes de administração e até de disposição de bens não compreendidos na massa insolvente, pelo que os atos praticados pelos mesmos são válidos e eficazes.
21 – Mais, condiciona ainda o artigo 88º/1 do CIRE a sua aplicação aos casos em que as diligências executivas ou providências cautelares “atinjam os bens integrantes da massa insolvente”, o que no caso concreto não sucede.
22 - De notar ainda que do despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante e nomeação de fiduciário se constata que o processo foi encerrado por insuficiência da massa, pois não existiam à data de encerramento quaisquer bens da massa insolvente.
23 – Mais, a penhora de vencimento efetuada no âmbito da presente execução reduzida a 1/6, na sequência de requerimento apresentado pelos próprios executados, não afeta a massa insolvente, sendo deduzido ao montante excluído da cessão de rendimento.
24 - Aliás nem a administradora de insolvência, nem o próprio executado /apelado alegam, nem invocam que a penhora de vencimento dos presentes autos afeta qualquer bem integrante da massa insolvente.
25 - Facto que é corroborado pela decisão ora recorrida, nos termos da qual se determina a devolução das quantias penhoradas ao executado insolvente e não à administradora, enquanto fiduciária.
26 - A penhora de vencimento efetuada não afeta a massa insolvente, não afetando a cedência de rendimentos e, portanto, os credores da insolvência, pelo que nada justifica a suspensão da penhora e devolução do valor já penhorado.
27 - A errónea interpretação do art.º 88º do CIRE determinou a decisão de suspensão da penhora, permitindo assim aos executados eximir-se ao cumprimento e pagamento de dívida contraída pelos mesmos, posteriormente à declaração de insolvência, o que, sem dúvida, subverte a intenção do legislador quando consignou a possibilidade de exoneração do passivo restante.
28 - A exoneração do passivo restante apenas poderá significar a libertação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência, e, como tal, apenas releva em relação ao passivo reclamado e reconhecido no processo.
29 - Assim, será de entender não existirem quaisquer razões jurídicas que fundamentem a suspensão e, consequentemente, devolução dos valores penhorados, requeridos pela administradora de insolvência e pelo executado, pelo que deverá ser revogada a decisão do tribunal a quo e substituída por outra que determine a prossecução do processo executivo e da penhora já efetuada.
Termina por pedir o provimento do recurso e, em consequência, a revogação da decisão proferida e substituída por outra que determine a prossecução da ação executiva e penhora de vencimento efetuada.
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Não foi apresentada resposta ao recurso.
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Dispensaram-se os vistos legais.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
A única questão a decidir consiste em apurar se deve ser sustada a execução instaurada depois de decretada a insolvência do executado e encerrado o processo por inexistência de bens, encontrando-se o processo a aguarda o termo do período de cessão, no incidente de exoneração do passivo restante.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos que decorrem dos autos, provados por documento autêntico (certidões judiciais do processo de insolvência):
- No Proc. 287/15.4T8STS Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 3, do Tribunal da Comarca do Porto por sentença de 03 de fevereiro de 2015 foram declarados em estado de insolvência C… e D…, executados na presente execução;
- Por despacho proferido em 25 de maio de 2015 foi declarado encerrado o processo ao abrigo do disposto no art. 232º/2 CIRE, com os efeitos constantes do art. 233º do mesmo diploma legal, mas sem prejuízo do incidente de exoneração do passivo.
- Em 25 de maio de 2015 proferiu-se despacho inicial no incidente de exoneração do passivo restante e admitido o prosseguimento do processo para exoneração do passivo restante, determinando que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível superior a dois salários mínimos nacionais líquidos (SMN) no conjunto dos rendimentos do casal, que os requerentes C… e mulher, D…, venham a auferir se considera cedido ao fiduciário.
- O incidente de exoneração do passivo restante encontra-se no quarto de cinco anos do período de cessão;
- A presente execução foi instaurada em 15 de Outubro de 2018.
- O acordo de pagamento que constitui título executivo foi celebrado com data 16 de fevereiro de 2018, pelo qual os executados reconhecem ser devedores da quantia total de 7.600,00€.
- Em 22 de outubro de 2018 procedeu-se à penhora de 1/3 do vencimento do executado C….
- Penhora esta reduzida a um sexto do valor, pelo período de três anos, por requerimento apresentado pelo executado C… em 02 de novembro de 2018 e decisão proferida em 07 de janeiro de 2019.
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3. O direito
Nas conclusões de recurso o apelante insurge-se contra a decisão, por considerar que foi indevidamente aplicado e interpretado o art. 88º CIRE no contexto dos factos que resultam dos autos face às informações obtidas junto do processo de insolvência do executado C…, pretendendo a revogação da decisão.
O despacho recorrido sustenta a decisão de sustação da penhora fundamentalmente em dois argumentos: o processo de insolvência ter prosseguido com o incidente de exoneração do passivo restante e estar a decorrer o período de cessão e a violação do art. 88º do CIRE.
Cumpre ter presente que o incidente que motivou o despacho foi suscitado pelo executado, que para o efeito alegou que estava a decorrer o prazo de cinco anos após encerramento do processo de insolvência e requereu a sustação da penhora e devolução das quantias penhoradas a partir de novembro de 2018.
O executado pretendeu obter a sustação da execução porque o processo prosseguiu com o incidente de exoneração do passivo restante.
A questão que se coloca consiste em saber se encerrado o processo de insolvência e prosseguindo o processo com o incidente de exoneração do passivo restante pode o exequente promover a execução no período de cessão.
Na apreciação da questão cumpre ter presente o regime do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e ainda, que o processo de insolvência foi instaurado em 2015, vigorando à data, o regime previsto no DL 53/2004 de 18/03, na redação do DL 200/2004 de 18/08, com as alterações introduzidas pelo DL 116/2008 de 04/07, DL 185/2009 de 12/08, Lei 16/2012 de 20 de abril (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que passaremos a designar de forma abreviada “CIRE”), que se aplicará ao caso presente.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º, nº 1 do CIRE).
De acordo com o disposto no artigo 90º do CIRE “[o]s credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.
Determina o art. 47º CIRE quem pode ser considerado credor da insolvência:
1. Declarada a insolvência, todos os titulares de créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente, ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente, cujo fundamento seja anterior à data dessa declaração, são considerados credores da insolvência, qualquer que seja a sua nacionalidade e domicílio.
2. Os créditos referidos no número anterior, bem como os que lhes sejam equiparados, e as dividas que lhes correspondem, são neste Código denominados, respetivamente, créditos sobre a insolvência e dívidas da insolvência.
3. São equiparados aos titulares de créditos sobre a insolvência à data da declaração da insolvência aqueles que mostrem tê-los adquirido no decorrer do processo
4. […]”.
De acordo com o citado preceito créditos da insolvência ou sobre a insolvência são os que, tendo natureza patrimonial ou tendo como garantia bens pertencentes à massa insolvente tenham fundamento anterior à data da declaração da insolvência.
A natureza universal do processo de insolvência determina a impossibilidade de ser instaurada qualquer ação executiva após a declaração de insolvência contra o insolvente, tal como se prevê no nº 1 do artigo 88º do CIRE.
A violação deste comando jurídico integra uma causa de impossibilidade legal originária da lide e é fundamento de extinção da lide executiva intentada com preterição da regra da universalidade do processo de insolvência (artigo 277º, alínea e), do Código de Processo Civil)[2].
Determina o art. 88º do CIRE:
1. A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta a instauração ou o prosseguimento de qualquer ação executiva intentada pelos credores da insolvência; porém se houver outros executados a execução prossegue contra estes.
2. (…)
3. As ações executivas suspensas nos termos do nº1 extinguem-se, quanto o executado insolvente, logo que o processo da insolvência seja encerrado nos termos das alíneas a) e d) do nº1 do artigo 230º, salvo para efeitos do exercício do direito de reversão legalmente previstos.
4. (…)”.
Resulta da disposição legal transcrita que com a declaração de insolvência as diligências executivas e as providências requeridas pelos credores da insolvência contra os bens da massa insolvente ficam suspensas e não é possível instaurar ou prosseguir qualquer ação executiva contra a mesma.
Encerrado o processo de insolvência, nos termos do art. 230º a) e d) CIRE, as execuções suspensas extinguem-se.
De acordo com o art. 230º/1 d) CIRE “prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento, quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente”.
Nos termos do art. 233º /1 c) do CIRE encerrado o processo, “os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº1 do art. 242º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em ação de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano”.
Encerrado o processo de insolvência podem os credores do insolvente exercer os seus direitos, ainda não satisfeitos contra o devedor promovendo as competentes execuções, com observância do plano de insolvência ou plano de pagamentos, quando aprovado e com a restrição do art. 242º/1 CIRE[3].
Prevê o art. 242º/1 CIRE:
“1.Não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período de cessão”.
Este regime que assenta no princípio da igualdade dos credores, o qual domina o processo de insolvência, visa como referem CARVALHO FERNANDES E JOÃO LABAREDA: “[…]assegurar a efetiva realização dos fins da cessão, pelo que respeita aos rendimentos cedidos, não os distraindo da sua afetação e a restrição quanto a outros bens do devedor […]revela[-se] adequada, quer por a sua execução poder afetar a fonte desses rendimentos, quer por esses bens constituírem a base da vida económico-social do devedor”[4].
Decorre do preceito que durante o período de cessão não podem ser promovidas execuções que incidam sobre os bens do devedor, destinados ao pagamento de créditos sobre a insolvência.
Contudo, só os titulares de “créditos sobre a insolvência” estão impedidos de promover execuções sobre os bens do devedor.
Como observam ANA PRATA et al:”titulares de créditos sobre a insolvência tem o significado que lhe é atribuído no artigo 47º”[5].
Créditos da insolvência ou sobre a insolvência são os que, tendo natureza patrimonial ou tendo como garantia bens pertencentes à massa insolvente tenham fundamento anterior à data da declaração da insolvência.
Daqui decorre, face ao disposto no art. 242º/1 CIRE que, ”[…]os novos credores não estão impedidos [de instaurar execução]. A norma visa garantir a igualdade entre os credores da insolvência, mas não impede os novos credores de executarem o património do devedor”[6].
Seguindo nesta linha de entendimento pronunciou-se o Ac. Rel. Porto 25 de janeiro de 2016, Proc. 1634/14.1T8MTS-C.P1 (acessível em www.dgsi.pt) onde se considerou que: “de acordo com o normativo que se acaba de citar [art. 242º/1 CIRE], a impossibilidade de instauração de execuções contra o devedor beneficiário do incidente de exoneração do passivo restante, durante o período da cessão, apenas opera relativamente aos créditos da insolvência, não sendo aplicável aos créditos constituídos após a declaração de insolvência, como sucede relativamente às prestações alimentares vencidas após a declaração de insolvência”.
Por fim, resta referir que de acordo com o nº 1, do artigo 245º do CIRE, a decisão final de exoneração do passivo restante importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, não sendo contudo afetados os direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação.
Desta previsão legal resulta, diretamente, que a decisão final de exoneração do passivo restante implica a extinção de todos os créditos da insolvência que ainda não se mostrem satisfeitos, ainda que não tenham sido reclamados ou verificados.
Transpondo o exposto para o caso concreto.
A presente execução foi instaurada em Outubro de 2018, depois de proferido despacho de encerramento do processo de insolvência (28 de maio de 2015).
A execução foi proposta contra o devedor C… e mulher, não sendo demandada a massa insolvente.
O processo de insolvência foi encerrado por insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente.
Os bens penhorados, que consistem nos descontos no vencimento do executado e se iniciaram em Novembro de 2018, não foram objeto de apreensão no processo de insolvência, pelo que, não constituem um bem da massa insolvente.
Neste contexto não estava o exequente impedido de promover a execução, não se justificando, por isso, a sua sustação ou a sustação da diligência de penhora, com fundamento no art. 88º CIRE, porque o processo de insolvência estava encerrado.
Por outro lado, verifica-se que não resulta do despacho recorrido que os créditos reclamados pelo exequente se constituíram em data anterior à data em que foi proferida a sentença de insolvência, nem que os créditos estavam garantidos por bens que integravam a massa insolvente e por isso, não se pode considerar o crédito exequendo como crédito sobre a insolvência.
O despacho recorrido reporta-se a conceitos de direito que não traduz em factos. Nem o executado, nem o Fiduciário alegaram factos tendentes a demonstrar que o crédito exequendo constituía um crédito sobre a insolvência. Apenas o exequente se reporta ao momento temporal da constituição do crédito, referindo no requerimento-resposta que o crédito se reporta a rendas vencidas depois de proferida a sentença que declarou a insolvência dos executados, renovando esse argumento nas conclusões de recurso.
Recaía sobre o executado o ónus de alegação e prova dos factos adequados para demonstrar o facto extintivo da execução e reembolso dos valores objeto de penhora, como decorre do art. 342º/1 CC.
Não se revela contudo exata a afirmação contida no ponto 28 das conclusões de recurso, no sentido que os efeitos do incidente de exoneração do passivo restante apenas se repercutem no passivo reclamado e reconhecido. Como se referiu, face ao disposto no art. 245º CIRE, a exoneração importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que subsistam à data em que é concedida, mesmo em relação aos créditos que não tenham sido reclamados e verificados.
Releva estarmos na presença de um crédito sobre a insolvência, com o significado e sentido previsto no art. 47º do CIRE e que subsistam à data em que é concedida a exoneração.
Conclui-se, que apesar de instaurada a execução depois do encerramento do processo de insolvência, mas no período de cessão, não resultando demonstrado que o crédito exequendo constitui um crédito sobre a insolvência, não se verifica qualquer obstáculo para que a execução prossiga os seus termos, por não se verificam os pressupostos do art. 242º/1 CIRE.
Nessa conformidade deve manter-se a penhora e consequentemente não se justifica restituir ao executado os valores já penhorados, por desconto no respetivo vencimento.
Resta referir, a respeito da devolução das quantias penhoradas, que o acórdão citado no despacho (Ac. Rel. Porto 16 de dezembro de 2015, Proc. 133/13.3TBVFR.P1, www.dgsi.pt) se reporta a situação de facto distinta daquela que aqui se aprecia, porque no douto aresto a execução foi instaurada na pendência do processo de insolvência e antes do seu encerramento. Por outro lado, aprecia-se da possibilidade de apreensão para a massa insolvente de fração do vencimento do devedor-insolvente, matéria a respeito da qual a jurisprudência não tem adotado uma resposta uniforme, como disso dá nota entre outros o Ac. Rel. Porto 16 de janeiro de 2018, Proc. 1224/11.0TJPRT-H.P1 e Ac. Rel. Lisboa 10 de setembro de 2015, Proc. 14943/10.0T2SNT-L1-6 (ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Contudo, esta questão não foi concretamente colocada na apelação e ainda que o fosse sempre estaria prejudicada pela decisão da anterior questão (art. 608º, ex vi, art. 663º/2 CPC).
Atento o exposto procedem, em parte, as conclusões de recurso e nessa conformidade, revoga-se a decisão recorrida, devendo a execução prosseguir os seus termos, sem restituição do produto da penhora ao executado.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo executado.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação e revogar o despacho proferido em 13 de março de 2019 (Ref citius 401910865) e nessa conformidade, manter a penhora com descontos no vencimento do executado e bem assim, o produto da penhora à ordem do processo de execução.
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Custas a cargo do executado.
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Porto, 23 de setembro de 2019
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
[2] Cfr. Ac. Rel. Porto 25 janeiro de 2016, Proc. 1634/14.1T8MTS-C.P1 (acessível em www.dgsi.pt)
[3] Cfr. Ac. Rel. Porto 01 de junho de 2017, Proc. 718/09.2TBMTS.P1; Ac. Rel. Porto 08 de julho de 2015, Proc. 5885/13.8TBVNG.P1, Ac. Rel. Lisboa de 12 de março de 2015, Proc. 3476-12.0YXLSB.L1-6, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[4] LUIS A. CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2ª edição, Quid Juris, Lisboa 2013, pag. 912, nota 2
[5] ANA PRATA, JORGE MORAIS CARVALHO, RUI SIMÕES Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Anotado, Almedina, Setembro 2013, nota 3, pag. 671-672
[6] ANA PRATA, JORGE MORAIS CARVALHO, RUI SIMÕES Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – Anotado, ob. cit., pag. 671-672