Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1012/13.0TBVLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO ANTECIPADA DA EXONERAÇÃO
Nº do Documento: RP201911041012/13.0TBVLG.P1
Data do Acordão: 11/04/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - De acordo com o disposto no artigo 243.º, nº 1, al. a) do CIRE a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante ocorre quando o devedor tenha, dolosamente ou com negligência grave, violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, nº 4 do mesmo diploma, exigindo-se ainda que de tal violação tenha resultado prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
II - Se na decisão recorrida se conclui que o insolvente violou o disposto no artigo 239.º, nº 4 al. a) do CIRE mas nela não se analisou o prejuízo que dessa violação resultou para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, não podia, apenas com esse fundamento, ser declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1012/13.0TBVLG.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Comércio de Santo Tirso-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Por despacho datado de 21/05/2013, foi liminarmente deferida a exoneração do passivo restante à insolvente B…, determinando-se que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento da insolvência, o seu rendimento disponível, acima de dois salários mínimos nacionais, devia considerar-se cedido ao fiduciário, ficando a insolvente sujeita a observar as condições e regras estabelecidas no artigo 239º, nº 4 do CIRE.
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O encerramento da insolvência foi decretado por despacho de 14/03/2017, do que a insolvente foi regularmente notificada.
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Tendo o processo seguido os seus regulares termos, foi notificado o Sr. Fiduciário para apresentar o relatório a que alude o artigo 240º/2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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Entretanto, o Sr. Fiduciário veio aos autos informar nunca ter sido contactado pela insolvente, não terem sido cedidas quaisquer quantias, nem ter aquela insolvente prestado informações quanto à sua situação profissional e económica, apesar de notificada para o efeito.
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A insolvente notificada na pessoa da patrona nomeada pelo tribunal para se pronunciar quanto a estas informações e quanto à eventual cessação antecipada da exoneração, nada disse.
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Nessa sequência o Sr. Fiduciário requereu a cessação antecipada da exoneração.
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Datada de 04/06/2019 foi proferida decisão que recusou a exoneração do passivo restante e determinou a cessação antecipada do procedimento correspondente.
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Inconformada com esta decisão, veio a insolvente interpor o presente recurso, cujas alegações terminou com as seguintes conclusões:
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar decidir:
a)- saber se existia, ou não, fundamento para a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante apresentado pela recorrente.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria factual ter em conta para a decisão do presente recurso é a que do relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Tal como supra se referiu é apenas uma a questão que cumpre apreciar e decidir:
a)- saber se existia, ou não, fundamento para a cessação antecipada do incidente de exoneração do passivo restante apresentado pela recorrente.
Como se sabe o Código de Insolvência e Recuperação de Empresa (CIRE) veio introduzir uma nova medida de protecção do devedor que seja uma pessoa singular, ao permitir que, caso este não satisfaça integralmente os créditos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerra­mento, venha a ser exonerado do pagamento desses mesmos créditos, desde que satisfaça as condi­ções fixadas no incidente de exoneração do passivo restante destinadas a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores.
O referido incidente é uma solução que não tem correspondência na legislação falimentar anterior e que se inspirou no chamado modelo de fresh start, nos termos do qual o devedor pessoa singular tem a possibilidade de se libertar do peso do passivo e recomeçar a sua vida económica de novo, não obstante ter sido declarado insolvente.[1]
É incontroverso que se não ocorresse a declaração de insolvência o devedor teria de pagar a totalidade das suas dívidas sem prejuízo da eventual prescrição, a qual pode atingir o prazo de 20 anos segundo a lei civil portuguesa.[2]
O procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida–nem podia ser–logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1 do art.º 239º do CIRE.
Como assim, o CIRE veio estabelecer fundamentos que justificam a não concessão liminar da possibilidade de exoneração do passivo restante, os quais se traduzem em comportamentos do devedor relativos à sua situação de insolvência e que para ela contribuíram ou a agravaram. [3]
Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas e, por fim, distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme dispõe o artigo 241.º do CIRE.
No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (cfr. artigo 241.º, n.º 1 e 245.º, ambos do CIRE).
Em consequência do despacho inicial da exoneração o insolvente fica adstrito ao cumprimento das obrigações enumeradas no artigo 239.º do CIRE, podendo a violação dolosa das mesmas, entre outras, determinar a cessação antecipada do procedimento de exoneração.
A cessação antecipada da exoneração ocorre:
a)- logo que se verifique a satisfação integral dos créditos da insolvência–artigo 243º, n.º 4, do CIRE;
b)– sempre que o procedimento venha a ser extinto antes de ser concedida ao devedor a exoneração do passivo restante; e
c)- sempre que se verifique supervenientemente que o devedor não se mostra digno de obter a exoneração.
Lida a decisão em causa de recusa antecipada de exoneração, resulta que a mesma se fundou na verificação da factie species dos artigo 243.º, n.º 1, alínea a) e nº 3 do CIRE.
Com o assim decidido não concorda a recorrente.
Que dizer?
Estatui o artigo 243.º do CIRE sob a epígrafe “Cessação antecipada do procedimento de exoneração” que:
1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do Fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
(…)
3- Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
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Portanto, a questão que agora se coloca é se a factualidade dada como assente preenche, ou não, a factie species das citada normas.
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Isto dito vejamos, então, se no caso concreto podemos considerar preenchida a estatuição das alíneas c) do nº 4 do artigo 239.º e a) do nº 1 do artigo 243.º do CIRE.
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Uma das obrigações a que o insolvente fica adstrito em consequência do despacho inicial da exoneração é a de não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado [artigo 239.º, nº 4 al. c) do CIRE].
Obrigação que se compreende por si, se se tiver presente que esse será o único meio de satisfação dos créditos da insolvência, dado que, durante o período da cessão, não se admite a agressão por via executiva do património do insolvente com vista à satisfação daqueles créditos (artigo 242.º, nº 1 do CIRE).
Portanto, a recusa da exoneração do passivo restante poder ocorrer antes de terminar o período de cessão, designadamente com fundamento na violação, pelos insolventes, daquela obrigação.
Resta saber, porém, que requisitos se devem exigir para que ocorra essa recusa.
Com efeito, nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao insolvente como corolário da admissão liminar do pedido exoneração releva como causa de recusa do benefício: a lei é terminante em exigir, de um aspecto, que se trate de um prevaricação dolosa ou com grave negligência e, cumulativamente, de outro, que tenha prejudicado, a satisfação dos credores da insolvência [cfr. artigo 243.º, nº 1 al. a) do CIRE]
A doutrina adiciona a estes dois requisitos um terceiro: o da existência de um nexo causal entre a conduta dolosa do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos.[4]
Acresce que, a violação, com dolo ou negligência grave da obrigação que vincula o insolvente há-de provocar um resultado: a afectação da satisfação dos créditos sobre a insolvência.
E para estes efeitos, ao contrário do que sucede para a revogação da exoneração em que é necessário um prejuízo relevante [cfr. artigos 243.º al. b) e 246 nº 1, in fine, do CIRE), aqui é suficiente um qualquer prejuízo, ou seja, um simples prejuízo para a satisfação dos créditos.
Feitos estes considerandos e descendo ao caso concreto, se bem que se possa aceitar que a recorrente violou de forma negligente[5] os citados deveres de informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe foi requisitado, o certo é que na decisão nenhuma alusão se fez ao prejuízo que teria resultado para os créditos da insolvência em virtude daquele incumprimento, já que não se divisa onde, em termos legais, se filia a afirmação feita na decisão recorrida de o incumprimento deste dever de informação prescinde da prova do prejuízo da omissão para a satisfação dos créditos.
É que como supra se referiu a lei não se satisfaz para a cessação antecipada da exoneração do passivo restante com a conduta do Insolvente, exigindo que do seu incumprimento tenha resultado prejuízo relevante para os credores.
Entendemos, pois, que pese embora a ocorrência de incumprimento dos citados deveres por parte da insolvente, não se achando demonstrado, perante os elementos que decorrem do processo, que do mesmo resultou prejuízo para os créditos sobre a insolvência, não pode ser declarada a cessação antecipada do procedimento de exoneração, como se fez na decisão recorrida.
Deste modo, impõe-se a revogação do decidido pela 1ª instância.[6]
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo insolvente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida.
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Sem custas (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 04/11/2019.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] Cfr. preâmbulo do DL 53/2004, de 18 de Março.
[2] Assunção Cristas, in Exoneração do devedor pelo passivo restante, Themis–Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edi­ção especial, pág. 166-167.
[3] Cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, pág. 188-190, da ed. de 2005, da Quid Juris.
[4] Cfr. L. M. Martins, Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2ª edição, 2012, Almedina, Coimbra, pág. 163.
[5] Importa não olvidar que a circunstância de a insolvente ter mudado de residência não é justificadora do incumprimento de tal dever pois que, como resulta da decisão que lhe deferiu liminarmente a exoneração do passivo, aí ficou consignado que a insolvente estava obrigada Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, obrigação que, aliás, resulta do estatuído na al. d) do nº 4 do artigo 239.º do CIRE.
[6] Sobre esta matéria cfr. também, entre outros, os Acórdãos da Relação de Guimarães de 24.9.2015, proc. 3481/07.8 TBGMR.G.1, da Relação do Porto de 6.4.2017, proc. 1288/12.0 TJPRT.P1 e da Relação de Coimbra de 7.4.2016, proc. 3112/13.7 TJCBR.C1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.