Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
541/17.0T8AMT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA RESTRITA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
Nº do Documento: RP20170914541/17.0T8AMT.P1
Data do Acordão: 09/14/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTO Nº 103, FLS 181-188)
Área Temática: .
Sumário: I - Deduzido pelo devedor pedido de exoneração do passivo restante no requerimento inicial de apresentação à insolvência, o tribunal não pode optar pela sentença de insolvência de carater restrito ou simplificada, ainda que haja insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente (at.º 39º, nºs 1 e 8, do CIRE).
II - Se, naquela situação, o tribunal declara a insolvência restrita ao abrigo do referido nº 1 do art.º 39º (desrespeitando o subsequente nº 8) e, em simultâneo, admite liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, tendo essa decisão transitado em julgado, este incidente tem que prosseguir, ainda que de modo anómalo, adaptando-lhe as normas legais do instituto da insolvência, de modo a que a (eventual) cessão do rendimento disponível e o pagamento aos credores possam funcionar.
III - O encerramento do processo de insolvência é compatível com o prosseguimento do incidente da exoneração do passivo restante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 541/17.0T8AMT.P1 (apelação)
Comarca do Porto Este – Juízo de Comércio de Amarante

Relator: Filipe Caroço
Adjuntos: Desemb. Judite Pires
Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam os Juízes nesta Relação do Porto

I.
B..., contribuinte n.º ........., viúva, residente na Rua ... n.º ..., R/C Dto., ....-... ... - Lousada, no dia 12.4.2017, apresentou-se à insolvência deduzindo simultaneamente pedido de exoneração do passivo restante, com descrição dos factos que teve por relevantes para o deferimento dessas duas pretensões.
Para prova do alegado, juntou vários documentos.
No subsequente dia 17, o tribunal recorrido pronunciou-se sobre aquele requerimento nos seguintes termos, ipsis verbis:
«Nestes autos de declaração de insolvência instaurados por B..., posto que é a devedora mesma quem se apresenta à insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo 28º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, decide-se declarar a insolvência da requerente B..., viúva, contribuinte n.º ........., filha de C... e D..., nascida em 26 de Abril de 1971.
Consigna-se que o património da devedora não é presumivelmente suficiente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente, não estando essa satisfação por outra forma garantida, nos termos e para os efeitos do artigo 39º do CIRE.
Consequentemente:
a) fixo a residência à insolvente na Rua ... n.º ..., R/C Dto., ....-... ... - Lousada, local indicado na petição inicial;
b) nomeio administrador da insolvência o Sr. Dr. E..., com o domicílio profissional constante da lista oficial;
c) a exoneração pedida será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência.
Notifique, cite, publicite e registe.»
Efetuadas as notificações e decorrido que estava o prazo de recurso, a Ex.ma Juiz, a 15.5.2017, proferiu despacho que versou quatro questões (a) do encerramento do processo; b) da prestação de contas; c) da qualificação da insolvência; d) da exoneração do passivo restante), que transcrevemos aqui na parte que releva para o conhecimento do objeto da apelação:
«- Do encerramento do processo.
Não tendo sido requerido o complemento da sentença e mostrando-se esta transitada em julgado, declara-se findo o processo de insolvência – cfr. artigo 39.º, n.º 7, al. b), do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa.
*
Dispensa-se a elaboração de conta – cfr. artigo 29.º, n.º 1, alínea b), do Regulamento das Custas Processuais.
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- Da prestação de contas.
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- Da qualificação da insolvência
...
- Da Exoneração do Passivo Restante
A insolvente B... veio requerer, na Petição Inicial, a exoneração do passivo restante.
Não obstante tal pedido e o disposto no segmento decisório alínea c) da Sentença proferida nos autos a fls. 27, o certo é que esta sentença foi proferida ao abrigo do artigo 39.º, estando vedada a possibilidade de apreciação do pedido de exoneração do passivo restante (cfr. art.º 39.º, n.º 8, do CIRE), não tendo sido apresentado recurso da mesma, designadamente pela parte com legitimidade e interesse para tanto, in casu, a própria insolvente, afetada pelos termos em que tal sentença foi proferida, como abaixo será decidido, pelo que, a mesma transitou em julgado.
Assim, tendo a sentença transitado em julgado, a mesma não pode agora ser alterada.
Por outro lado, tendo a mesma sido proferida ao abrigo do disposto no artigo 39.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa fica prejudicada, como dissemos, a possibilidade de apreciação do pedido de exoneração de passivo restante apresentado, já que, não foi concedido prazo aos credores para virem aos autos reclamar os seus créditos, pelo que, a existir algum produto que viesse a ser arrecadado por virtude da cessão do rendimento disponível no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante, no período de 5 anos, desconhecer-se-iam os credores a quem o mesmo deveria ser entregue, por inexistir reclamação de créditos e consequente apresentação de Lista de Créditos Reconhecidos ao abrigo do disposto no artigo 129.º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa e consequente sentença de homologação.
Mas também porque, tendo a sentença sido proferida ao abrigo do disposto no artigo 39.º também não se designou data para realização da Assembleia de Credores para apreciação do relatório, pelo que igualmente ficou vedada a possibilidade de se cumprir o disposto no artigo 236.º, n.º 4, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, isto é, a possibilidade de aí os credores se pronunciarem sobre o requerimento de exoneração apresentado.
Termos em que, por estar encerrado o processo ao abrigo do disposto no artigo 39.º, n.º 7, al. b), do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa e por manifesta impossibilidade superveniente, decorrente do trânsito em julgado da sentença proferida nos termos do artigo 39.º, do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresa, não se conhece do pedido de exoneração do passivo restante apresentado.
Notifique.»

Inconformada com este despacho, dele recorreu a insolvente quanto à decisão relativa à exoneração do passivo restante, produzindo alegações com as seguintes CONCLUSÕES:
«I. A recorrente requereu a sua insolvência, bem como a exoneração do passivo restante na sua petição inicial, respeitando todos os requisitos legais para que o mesmo fosse apreciado e concedido.
II. Por sentença proferida a 17 de Abril de 2017, foi aquela declarada insolvente, sentença esta que decretou ainda que “a exoneração pedida será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no art.º 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência.”
III. Não obstante o conteúdo da sentença e não dando seguimento ao estabelecido naquela, vem o mesmo tribunal, em despacho proferido a 17 de Maio de 2017, decidir que “por estar encerrado o processo ao abrigo do disposto no art.º 39.º n.º 7 b) do Código de Insolvência e Recuperação de Empresa e por manifesta impossibilidade superveniente (…) não se conhece do pedido de exoneração do passivo restante apresentado”.
IV. A recorrente não se conforma que o tribunal a quo tenha decidido em primeiro lugar relegar a apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, para em momento posterior, já depois de decretada a insolvência, venha decidir que afinal não poderá apreciar tal pedido, por lhe estar vedado.
V. Não se conforma também a recorrente que o tribunal a quo aluda que não pode uma sentença transitada em julgado ser alterada, no entanto por outro lado vem ele próprio alterar esta sentença, concluindo não se pronunciar sobre o pedido de exoneração, quando a sentença havia consignado que este pedido seria apreciado.
VI. Não tendo o tribunal a quo indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, deveria ter encetado as necessárias diligências para aferir se o pedido poderia ou não ser deferido.
VII. Nos termos do art.º 237.º do CIRE dispõe-se que “A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que:
a) Não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido, por força do disposto no artigo seguinte;
b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial”
VIII. Tendo a recorrente formulado o pedido de exoneração do passivo restante na petição inicial, não havendo motivo para o indeferimento liminar e tendo a douta sentença proferido despacho nos termos do art.º 237.º b), não procedeu o tribunal a quo a uma correta interpretação e aplicação do Direito, designadamente dos art.ºs 236.º e ss e 39.º do CIRE
IX. Entende a recorrente que incorreu o tribunal a quo num vício por omissão de pronúncia.
X. Pelo que, deve ser modificada a decisão proferida, substituindo-se por outra que aprecie o pedido de exoneração do passivo restante.» (sic)
Entende, assim, a recorrente que o despacho deve ser revogado e substituído por decisão que aprecie o pedido de exoneração do passivo restante.

Não foram oferecidas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
A questão a decidir encerra exclusivamente matéria de direito, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Impõe-se encontrar solução apenas para a seguinte questão:
- Nulidade por omissão de pronúncia/preterição do dever de apreciação e decisão do pedido de exoneração do passivo restante.
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III.
Os factos relevantes são os que constam do relatório que antecede, decorrendo designadamente do teor da transcrição dos dois despachos.
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Mérito do recurso
O art.º 235º do CIRE[1] estabelece o princípio geral de que, se o devedor for uma pessoa singular, pode obter a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao respetivo encerramento. Esta exoneração constitui, no CIRE, uma inovação que passa pela conjugação do princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
Este instituto, tributário da ideia de fresh start ou de reeducação, tem como objetivo a extinção das dívidas e a libertação do devedor que, mediante o cumprimento de várias condições legais em período de tempo legalmente fixado (5 anos) e reunidos que estejam determinados requisitos, desenvolva uma conduta positiva, favorável à satisfação dos créditos, de tal modo que se revele merecedor, também pelo seu comportamento anterior ao processo de insolvência, do benefício advindo da exoneração (art.ºs 237º, 238º e 239º). Ocorrerá, assim, uma liberação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento, nas condições fixadas no incidente.
Dado que a responsabilidade se mantém até à prescrição das suas obrigações, a ordem jurídica visa, assim, conceder a possibilidade de um novo começo, sem o peso da insolvência anterior[2]. Quando pessoas singulares, os insolventes ficam, por tal via, exonerados dos seus débitos e fica viabilizada a sua reabilitação económica, importando para os credores na correspondente perda de parte dos seus créditos, porventura em montantes muito avultados, que desse modo se extinguem por causa diversa do cumprimento.
O prosseguimento do incidente depende de despacho liminar, prevendo o n.º 1 do art.º 238º, pela negativa, os casos em que deve ser proferido despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Dos referidos requisitos ou pressupostos a observar, uns são de natureza processual, como é o caso dos mencionados no art.º 236º e na al. c) do art.º 237º, e outros de natureza substantiva, como acontece com os indicados nas al.s b) a g) do nº 1 do art.º 238º, ex vi al. a) do art.º 237º.
Desenvolvendo um pouco aquele ponto, o procedimento em questão tem dois momentos fundamentais: o despacho inicial e o despacho de exoneração. A libertação definitiva do devedor quanto ao passivo restante não é concedida --- nem podia ser --- logo no início do procedimento, quando é proferido o despacho inicial a que alude o n.º 1 do art.º 239º. Este despacho liminar destina-se a averiguar da existência de fundamento para o seu indeferimento imediato ou se estão reunidas as condições necessárias ao seu prosseguimento. Na afirmativa, abrir-se-á o período de cessão.
Haverá que distinguir claramente entre os requisitos da exoneração definitiva e os requisitos da admissão do pedido que se destinam tão só a permitir a sujeição do devedor a um período de prova, findo o qual, aí sim, o tribunal proferirá um juízo de valor sobre se o seu comportamento durante os cinco anos foi de modo e merecer a concessão do benefício.[3]
Assim, não havendo motivo para indeferimento liminar, o juiz profere o denominado despacho inicial do processamento (art.º 239º), continuando a potencial concessão efetiva da exoneração dependente da inexistência de motivos para o indeferimento liminar e ainda do cumprimento, pelo devedor, das condições a que fica obrigado no despacho inicial, além de outros requisitos a que se refere o art.º 237º.
No termo do período de cessão, cumprindo o devedor todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que o liberta das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento (preâmbulo do Decreto-Lei 53/2004, de 18 de março).
Feita esta introdução, retomemos o caso sub judice.
A requerente deduziu pedido de exoneração do passivo restante na petição inicial e a Ex.ma Juiz, na própria sentença em que declarou a insolvência, admitiu liminarmente esse pedido, assegurando que a exoneração seria concedida no processo contanto que a devedora viesse a observar as condições previstas no art.º 239º. Não se trata de uma mera intenção de vir a apreciar liminarmente o pedido de exoneração, mas uma real e efetiva decisão de admissão liminar que ficou expressa na al. c) da sentença de declaração de insolvência, não obstante falte ali a fixação do valor do rendimento disponível a entregar ao fiduciário (ainda não nomeado) no período de cessão (cf. art.ºs 237º, al. b) e 239º).
- Poderia ter sido ali proferida aquela decisão liminar, …ou melhor, …poderia, naquelas condições, ser proferida a sentença de insolvência por insuficiência da massa insolvente?
A resposta é necessariamente negativa.
Com toda a evidência, por resultar dos seus próprios termos, a sentença de insolvência foi proferida ao abrigo do art.º 39º, nº 1, do CIRE. Não foi requerido complemento da sentença (nºs 2 e seg.s do mesmo preceito legal).
O nº 8 do art.º 39º é muito claro: “O disposto neste artigo não é aplicável quando o devedor, sendo uma pessoa singular, tenha requerido, anteriormente à sentença de declaração de insolvência, a exoneração do passivo restante”. O mesmo é dizer que o juiz não pode proferir sentença de insolvência restrita, por insuficiência da massa, ao abrigo do art.º 39º, nº 1, se o requerente tiver apresentado pedido de exoneração do passivo restante.
Por conseguinte, o tribunal não devia ter declarado a insolvência ao abrigo daquele normativo, antes o deveria ter feito nos termos do art.º 36º, por sentença irrestrita ou de carater pleno, sem que pudesse sequer prescindir da realização da assembleia de credores, desde logo por ter sido deduzido o pedido de exoneração do passivo restante e ser nessa assembleia ou depois dela, no prazo de dez dias, que, nos termos do art.º 239º, nº 1, deve ser admitido ou rejeitado tal pedido, com audição prévia dos credores e do administrador da insolvência (art.º 238º, nº 2).
Acontece que aquela sentença transitou em julgado; tornou-se definitiva, imodificável[4], quanto à declaração restrita ou simplificada da insolvência da requerente, mas também quanto à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, ao afirmar que a exoneração seria concedida à devedora se viesse a observar as condições previstas no art.º 239º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência. Nos precisos termos do julgado, transitou a declaração de insolvência e a admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante (art.º 619º, nº 1 e 621º).
Como ensina ainda Alberto dos Reis[5], “desde que uma sentença, transitada em julgado, reconhece a alguém certo benefício, certo direito, certos bens, é absolutamente indispensável, para que haja confiança e segurança nas relações sociais, que esse benefício, esse direito, esses bens constituam aquisições definitivas, isto é, que não lhe possam ser tirados por uma sentença posterior. Se assim não fosse, se uma nova sentença pudesse negar o que a primeira concedeu, ninguém podia estar seguro e tranquilo; a vida social, em vez de assentar sobre uma base de segurança e de certeza, ofereceria o aspecto da insegurança, da inquietação, da anarquia. …A força e a autoridade derivam … da necessidade superior de certeza e segurança jurídica”.
A força do caso julgado assenta, pois, na necessidade de assegurar a certeza das situações jurídicas apreciadas, nos termos em que o foram, que é inerente às decisões definitivamente julgadas, pressupondo a existência de uma conexão que impeça que a primeira decisão, transitada em julgado, seja contraditada pela segunda.
Refere-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.2.2012[6], citando e traduzindo De la Oliva dos Santos, Andrés[7]: “Estas exigências necessitam de um vínculo que impeça: 1) que uma controvérsia se prolongue até ao infinito; 2) que se torne a instaurar uma segunda causa sobre uma matéria já decidida em via definitiva num órgão judicial; 3) que se produzam decisões e sentenças contraditórias ou se verifique uma injusta e irracional reiteração de sentença de conteúdo idêntico no confronto das mesmas partes”.
Para além do caso julgado, que constitui um obstáculo a uma nova decisão de mérito, há igualmente que atender à autoridade do caso julgado, a qual tem antes o efeito positivo de impor a decisão, no caso, dentro do processo.
A ilegalidade da decisão não obsta ao caso julgado. Tal decisão passa a valer como se de lei se tratasse. Sendo um processo de partes (eficácia relativa) é para elas que se decide e a elas compete também o controlo da legalidade por via do recurso.
A recorrente, com base no decidido, confiou fundadamente em que o seu pedido de exoneração do passivo restante foi liminarmente admitido, como foi efetivamente --- não obstante faltar a nomeação do fiduciário e a fixação do rendimento disponível --- e em que o período de cessão se iniciaria logo após o enceramento do processo; isto, apesar do caráter restrito da sentença de declaração de insolvência. Assim transitada, a sentença tem que ser cumprida, e pode sê-lo, como passamos a explicar, sendo que o despacho recorrido contraria a autoridade do caso julgado formado sobre a decisão de admissão liminar do incidente de exoneração do passivo restante que ordenou o início do período de cessão após o encerramento do processo.
O processo foi declarado encerrado ao abrigo das al. b) do nº 7 do art.º 39º, por não ter sido requerido o complemento da sentença e esta ter transitado em julgado.
É possível encontrar uma solução no contexto legislativo insolvencial que permite conciliar a insolvência restritivamente declarada e a prossecução do incidente da exoneração do passivo restante, sem incompatibilidade, assim, com respeito pelo caso julgado da decisão dentro do próprio processo.
Consta do art.º 233º, nº 1, al. c): Encerrado o processo, “os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do nº 1 do artigo 242º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos ou a decisão proferida em acção de verificação ulterior, em conjugação, se for o caso, com a sentença homologatória do plano de insolvência;”. Assim, o encerramento do processo de insolvência faz cessar todos os efeitos que resultam da declaração de insolvência e faculta ao devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão dos seus negócios. Os credores passam a poder exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as referidas, sendo que o n.º 1 do artigo 242º se reporta precisamente à exoneração do passivo restante, no sentido de que “não são permitidas quaisquer execuções sobre os bens do devedor destinadas à satisfação dos créditos sobre a insolvência, durante o período da cessão”, pois que existe autonomização patrimonial dos rendimentos de devedor durante o período de cessão, que ficam afetos à satisfação dos créditos sobre a insolvência.
Como se expressa no acórdão da Relação do Porto de 14 de junho de 2011[8], do cotejo daqueles normativos resulta que o encerramento do processo de insolvência, ainda que decretado na assembleia de apreciação do relatório, tem os seus efeitos definidos no artigo 233º, dentre os quais se não encontra excluída a admissão do incidente de exoneração do passivo restante. Vale por dizer que o artigo 233º não atribui à declaração de encerramento do processo um efeito excludente desse incidente. Ao invés, no seu nº 1, al. c), com aquela alusão à igualdade dos credores durante o período de cessão (artigo 242º, nº 1) antes parece deixar a porta aberta ao seu prosseguimento.[9] Acrescenta-se ali que esta solução parece-nos reforçada pelo fim ínsito à exoneração do passivo restante, que não está focalizado na satisfação dos credores da insolvência mas na concessão ao insolvente de uma segunda oportunidade para o liberar do passivo que não seja pago no processo de insolvência. O art.º 233º não atribui à declaração de encerramento do processo um efeito excludente da exoneração do passivo.[10]
Diz-se no citado acórdão da Relação do Porto de 13.11.2012 que o próprio legislador, ao prever a hipótese da insuficiência da massa insolvente, não encontrou qualquer incompatibilidade entre aquela e a dedução do pedido de exoneração do pedido restante, não a considerando impeditiva da dedução deste pedido.
Se, nos termos da lei, a dedução do pedido de exoneração do passivo restante obsta à declaração de insolvência restrita, a situação anómala ocorrida de prolação simultânea daquela declaração e admissão liminar do pedido de exoneração, com trânsito em julgado (decisão favorável à devedora recorrente), não pode obstar ao desenvolvimento do incidente da exoneração de créditos, nos termos gerais, compatível com o encerramento do processo.
Como tem sido decidido, o facto de, no momento da admissão liminar do pedido de exoneração não existir rendimento disponível não obsta ao deferimento da cessão, por não ser de excluir o advento de melhor fortuna ao devedor (p. ex., o aumento dos rendimentos do trabalho resultante de um novo contrato de trabalho do devedor).[11]
A questão agudiza-se em razão do momento em que o pedido de exoneração foi liminarmente admitido: na sentença que declarou a insolvência, portanto, antes do momento e lugar próprios que é o da realização da assembleia de apreciação do relatório ou nos 10 dias subsequentes (art.ºs 239º, nº 1), ouvidos os credores e o administrador da insolvência (art.º 238º, nº 2).
Os credores não chegaram a ter oportunidade de reclamar os seus créditos, nem foi elaborada sequer, pelo administrador, lista provisória de créditos reconhecidos. A cessão do rendimento disponível visa a satisfação, em alguma medida, dos créditos reconhecidos, nas condições prescritas para o pagamento no processo de insolvência, depois de pagas as custas do processo ainda em dívida, do reembolso ao CGT das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário e da sua própria remuneração (art.º 241º, nº 1, al.s a), b), c) e d)).
Assim, a prossecução do incidente da exoneração do passivo restante, ditada pelo caso julgado, será possível se encontrarmos no Direito da Insolvência o mecanismo necessário à determinação, reconhecimento e graduação dos créditos dos credores da insolvente.
No citado acórdão da Relação do Porto de 14.6.2011 sustentou-se a possibilidade de prosseguimento da exoneração do passivo mesmo sem o credores credores terem reclamado os seus créditos na insolvência (tendo sido notificados para o efeito). Pela sua expressividade, transcrevemos aqui as considerações ali tecidas: “Os credores da insolvência que pretendam fazer valer os seus direitos têm de reclamar os seus créditos, mas a reclamação não é essencial para o reconhecimento do crédito, dado que o administrador da insolvência tem o dever de reconhecer não apenas os créditos reclamados mas também os que constem dos elementos da contabilidade do devedor e os que, por outra forma, sejam do seu conhecimento (artigo 129º, 1, do CIRE).

Acresce que, mesmo depois de findo o prazo fixado para a reclamação de créditos, é ainda possível reclamá-los ulteriormente (artigo 146º, na redacção dada pela Lei 25/2009, de 12 de Agosto). Tudo a significar que a ausência de reclamação dos créditos sobre o devedor, constantes da lista apresentada pela administradora de insolvência, não impede o seu reconhecimento e pagamento no processo de insolvência. Donde não haja qualquer inutilidade/impossibilidade no prosseguimento do incidente de exoneração do passivo.
Também no caso que nos ocupa, o objetivo da exoneração só será cumprido se forem estabelecidas as condições de pagamento aos credores com o produto do rendimento disponível que eventualmente se venha a obter no período de cessão (determinado por decisão transitada em julgado). Nada obsta a que, usando dos mecanismos disponíveis no instituto da insolvência, se obtenham os elementos indispensáveis àquele fim: a designação de um prazo, até 30 dias para reclamação de créditos, a apresentação pelo administrador da insolvência da lista provisória de credores por si reconhecidos (e uma lista dos não reconhecidos) e a graduação de créditos, devendo ainda proceder-se à nomeação do fiduciário, tudo com o exclusivo propósito de cumprir o caso julgado, servindo o incidente da exoneração do passivo restante, designadamente a afetação dos valores de rendimento disponível que eventualmente sejam entregues ao fiduciário no período de cessão, que só poderá iniciar-se depois da determinação do rendimento disponível.
Assim se satisfaz o decidido na sentença simplificada de insolvência transitada em julgado, com respeito pelos direitos da insolvente e dos credores em sede do admitido procedimento de exoneração do passivo restante.
Porém, não ocorre nulidade por omissão de pronúncia. O tribunal pronunciou-se --- e fê-lo fundamentadamente --- sobre a questão da exoneração do passivo restante nos termos que constam da decisão recorrida, decidindo-se pela impossibilidade superveniente do seu conhecimento. Aquela nulidade pressupunha a omissão absoluta de decisão nessa matéria.
Temos para nós que o recurso procede, com revogação da decisão recorrida.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
1. Deduzido pelo devedor pedido de exoneração do passivo restante no requerimento inicial de apresentação à insolvência, o tribunal não pode optar pela sentença de insolvência de carater restrito ou simplificada, ainda que haja insuficiência da massa insolvente para a satisfação das custas do processo e das dívidas previsíveis da massa insolvente (at.º 39º, nºs 1 e 8, do CIRE).
2. Se, naquela situação, o tribunal declara a insolvência restrita ao abrigo do referido nº 1 do art.º 39º (desrespeitando o subsequente nº 8) e, em simultâneo, admite liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, tendo essa decisão transitado em julgado, este incidente tem que prosseguir, ainda que de modo anómalo, adaptando-lhe as normas legais do instituto da insolvência, de modo a que a (eventual) cessão do rendimento disponível e o pagamento aos credores possam funcionar.
3. O encerramento do processo de insolvência é compatível com o prosseguimento do incidente da exoneração do passivo restante.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se a prossecução do incidente da exoneração do passivo restante, devendo, para tal, nomear-se fiduciário, fixar-se o valor do rendimento disponível (ainda não fixado), notificar-se os credores para reclamarem os seus créditos, ser elaboradas pelos administrador da insolvência as listas provisórias de créditos (reconhecidos e não reconhecidos), que deverão ser graduados (os reconhecidos), exclusivamente para servir o referido incidente, nomeadamente o pagamento aos credores com o rendimento disponível que venha a ser entregue ao fiduciário no período de cessão.

Custas pela massa insolvente (art.ºs 303º e 304º do CIRE).
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Porto, 14 de setembro de 2017
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem).
[2] L. Teles de Meneses Leitão, Direito da Insolvência, 2012, 4ª edição, Almedina, pág. s 316 e 317.
[3] Acórdão da Relação do Porto de 13.11.2012, proc. 2503/12.5TBVFR-A.P1, in www.dgsi.pt.
[4] Exceção feita para a remota possibilidade de alteração através do recurso de revisão (art.ºs 696º e seg.s do Código de Processo Civil).
[5] Código de Processo Civil anotado, vol. III, pág.s 94 e 95.
[6] Proc. 5182/06.5TBMTS-B.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[7] Oggetto del Processo Civile e Cosa Giudicata”, Giuffrè Editore, Milão, 2009,116-118.
[8] Proc. nº 4196/10.5TBSTS.P1, in www.dgsi.pt (citado pela recorrente), onde se remete também para os acórdãos desta mesma Relação, de 5.11.2017 e de 12.5.2009, publicados na mesma base de dados.
[9] Neste sentido, cf. ainda o acórdão da Relação de Lisboa de 12.3.2015, proc. 3476-12.0YXLSB.L1-6, o acórdão da Relação de Évora de 19.11.2015, proc. 366/14.5TBCTX.E1 e outra jurisprudência neles citada, todos in www.dgsi.pt.
[10] Cf. também Catarina Serra, “O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução”, 4ª edição, Almedina, Setembro 2010, pág. 134.
[11] V.d. entre outros, o citado acórdão de 13.11.2012.