Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12374/20.2T8LSB.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
DANO ATENDÍVEL
EQUIDADE
Nº do Documento: RP2022101312374/20.2T8LSB.P1
Data do Acordão: 10/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A privação do uso de um veículo automóvel pode originar danos ou prejuízos de vária índole, designadamente lucros cessantes (por exemplo, se o veículo era um instrumento de trabalho, o que o lesado deixou de auferir por com ele não poder circular) e/ou danos emergentes (por exemplo, as despesas originadas pela necessidade de alugar outro veículo ou ter de se deslocar de táxi).
II - Independentemente da alegação/prova desses danos, a mera privação da possibilidade do uso de um veículo automóvel constitui um dano indemnizável, a ser ressarcido em termos de juízo de equidade.
III - O lapso de tempo a considerar deve corresponder ao período entre o acidente e o conhecimento da posição da Seguradora a declinar a responsabilidade, não sendo de atender ao período que o Autor demora a propor a ação judicial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº 12374/20.2T8LSB.P1


ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. AA e BB instauraram ação contra Companhia de Seguros K..., S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhes:
A) No que respeita ao 1º A (condutor da viatura) a quantia de €1.020,60, a título de danos não patrimoniais e não patrimoniais;
B) No que respeita ao 2º A (proprietário da viatura) a quantia de €11.244,40, a título de danos não patrimoniais e não patrimoniais;
C) Acrescida dos correspondentes juros de mora vencidos à taxa legal de 4,00%desde 09 de outubro de 2018 até à presente data no montante de €827,97, bem como os juros vincendos.
Fundamentaram o seu pedido em ser esse o montante dos danos que lhes advieram na sequência de um sinistro automóvel, cuja ocorrência se ficou a dever a culpa exclusiva do segurado da Ré.
Em contestação, a Ré impugnou a factualidade alegada, apresentando outra versão do acidente, da qual decorre a culpa exclusiva do Autor AA no acidente.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que condenou a Ré a pagar:
a) Ao primeiro Autor, a quantia de €800,00, acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano, desde esta data, até efetivo e integral pagamento;
b) Ao segundo Autor, a quantia de €9.040,00, acrescida de juros à taxa legal de 4% ao ano, desde a citação, até efetivo e integral pagamento.

2. Inconformado com tal decisão, dela vem apelar a Ré, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. O Tribunal a quo errou na apreciação da prova, mal julgando a factualidade constante dos itens 5 a 9 da matéria de facto dado como provada e itens f, g e h do elenco da matéria de facto dada como não provada, porquanto não tendo retirou da prova produzida todos os factos necessários e disponíveis para avaliar devidamente a dinâmica do acidente de viação em causa nos autos;
2. Consequentemente, errou igualmente no que concerne ao Direito ao caso aplicável, designadamente quanto à responsabilidade pela eclosão do acidente de viação em que foram intervenientes os veículos EI e PX;
3. A sentença em crise fundamenta o julgamento quanto à dinâmica do acidente de viação com as declarações de parte do primeiro autor (condutor do EI no momento do acidente de viação) em detrimento da testemunha CC (condutor do PX no momento do acidente de viação);
4. Desde logo, é inequívoco que as particularmente pormenorizadas declarações de parte do Recorrido não foram prestadas de forma espontânea, como se recordasse de factos constatados nos instantes em que o acidente se produz, sendo, ao invés, o resultado de uma calma ponderação elaborada por cima de um croquis da autoridade policial;
5. Acresce que, sempre que foram colocadas a este Recorrido questões que não tinham qualquer evidência no auto de ocorrência, o declarante referiu que não se recordava do que tinha ocorrido ou, pior, respondeu de forma contraditória;
6. Assim, apesar do cuidado pelo pormenor evidenciado nas declarações de parte do 1.º Recorrido, é inequívoco que o mesmo não viu o PX antes do embate, e não sabe o trajeto do PX nos momentos em que o acidente ocorreu, até porque alega que viu pela primeira vez o pára-choques branco do PX pela janela do condutor, sendo que, posteriormente, refere que viu este camião, pela primeira vez, pelo retrovisor esquerdo depois de ter sido embatido (o que é manifestamente contraditório à dinâmica invocada);
7. A alegação de que o EI circulava integralmente na via de trânsito da direita, não se coaduna com as marcas de travagem deixadas no asfalto, nem com a dinâmica por si alegada;
8. A declaração de que o veículo ligeiro por si conduzido não embateu nos rails, mas apenas raspou nos mesmos enquanto era empurrado pelo camião, é manifestamente contraditória com o registo fotográfico dos rails junto com a contestação, onde é possível ver, claramente, indícios de um forte embate nos rails, como se constata do ponto em “V” aí registado fotograficamente;
9. Como tal, sempre se dirá que, devidamente analisadas, as declarações de parte do 1.º Recorrido, estas mostram-se esvaziadas de informação espontânea e consentânea com os elementos objetivos carreados para os autos, especialmente a localização das marcas de travagem do camião e os danos constantes nos rails, não podendo merecer a credibilidade do Julgador;
10. Ao invés, a testemunha CC, condutor do PX, prestou um depoimento, muito menos pormenorizado, mas espontâneo e directo, face às questões que lhe eram colocadas, sendo evidente a ausência de qualquer interesse no desfecho da presente lide;
11. Deste depoimento, prestado de forma espontânea e credível, é forçoso concluir que o veículo conduzido pelo 1.º Recorrido se despistou, embateu contra os rails que separam a faixa de rodagem e só posteriormente é que o camião embateu no mesmo de forma ligeira;
12. Apenas esta dinâmica é compatível com os danos verificados nos rails, bem como com os rastos de travagem constatados no local, conforme resulta das fotografias juntas com a contestação e o auto de ocorrência junto com a petição inicial;
13. Destarte, considerando o depoimento da testemunha CC, bem como as fotografias juntas com a contestação e o auto de ocorrência junto com a petição inicial, sempre se dirá que tais elementos de prova impõe que os itens 5 a 9 do elenco da matéria de facto dada como provada devem ser julgados como não provados;
14. Do mesmo modo, estes mesmos elementos probatórios impõem que os itens f, g e h do elenco da matéria de facto dada como não provada devem, ao invés, ser julgados como provada, à exceção da menção “após ter feito duas piruetas”, o que deve permanecer como não provado;
15. No que concerne à decisão relativa à responsabilidade pela produção do acidente de viação sempre se dirá que, com a alteração da matéria de facto que se peticiona, torna-se manifesto que os Recorridos não deram cumprimento ao ónus probatório que sobre os mesmos impendia, designadamente, quanto à dinâmica do acidente de viação em causa nos autos nos termos do disposto no artigo 342.º do Código Civil;
16. Como tal, resulta inequívoco que a responsabilidade pelo acidente de viação em causa nos autos é integralmente imputável ao condutor do EI, que perdeu o controlo do seu veículo, dando causa exclusiva ao acidente de viação em causa nos autos;
17. Com a sua conduta, o Autor AA agiu com inconsideração e negligência manifestas e violou o disposto no art. 18.º, nº 2 do Código da Estrada, uma vez que não manteve distância lateral suficiente entre os veículos em causa nos autos, de forma a evitar o embate entre ambos;
18. Assim, considerando tudo o supra exposto, conclui-se que nenhuma responsabilidade pode ser imputada ao condutor do veículo seguro pela Recorrente, o qual, tendo observado todos os deveres de cuidado que lhe eram exigíveis, nada pôde fazer para evitar o acidente em causa nos autos;
19. Consequentemente, não existindo qualquer culpa do condutor do veículo por si seguro, deve a Recorrente ser integralmente absolvida do pleito.
20. Sem prejuízo do exposto e peticionado, não pode a Recorrente deixar de referir que a Meritíssima Juiz do Tribunal a quo errou igualmente quanto à determinação de uma indemnização a título de privação de uso do EI;
21. Com efeito, e desde logo, a matéria de facto dada como provada jamais permite concluir nos termos vertidos na douta sentença, não sendo devida qualquer quantia a esse título;
22. É jurisprudência maioritária que a eventual atribuição de indemnização por privação de uso dependerá sempre da prova (artigo 342º, n.º 1 do Código Civil) de uma efetiva perda de receitas que o mesmo poderia proporcionar, da comprovação de um acréscimo de despesas, motivadas pela privação de uso ou, no limite e pela equidade, que a privação do veículo tenha um impacto negativo e efetivo na vida do proprietário privado do seu veículo;
23. A matéria de facto dada como provada é completamente omissa no tocante à factualidade subjacente à necessidade e uso do veículo e inerentes prejuízos ou reflexos negativos quanto ao 2.º Recorrido, resultando apenas que este não teve a possibilidade de utilizar o veículo, o que, em si mesmo, não consubstancia qualquer dano;
24. Como tal não é devida qualquer indemnização a título de lucros cessantes;
25. Caso se entenda em sentido contrário, então, ainda assim, mal andou o Tribunal a quo na fixação do respetivo quantum indemnizatório;
26. A título de privação de uso é peticionado pelo 2.º Recorrido a privação pelo período que medeia entre o acidente de viação e a data em que foi proposta a petição inicial, em 16 de junho de 2020, num total de 606 dias;
27. Como resulta do ponto 16 do elenco da matéria de facto dada como provada, pelo menos desde 05 de fevereiro de 2019 que a Recorrente tomou a sua posição de recusa de qualquer responsabilidade pelos danos oriundos deste concreto acidente de viação;
28. Esta tomada de posição, datada de cerca de três meses e meio após o acidente de viação, impunha, como não poderia deixar de ser, que o 2.º Recorrido diligenciasse pela substituição do seu veículo, desta forma obviando a um agravamento de danos, caso estes existissem;
29. Por outro lado, a tomada de posição de 05 de fevereiro de 2019 forneceu ao 2.º Recorrido os elementos que o mesmo necessitava para, querendo, agir judicialmente contra a Recorrente;
30. Considerando que este Recorrido apenas propôs a presente ação judicial em 16 de junho de 2020, um ano e cinco meses após a tomada de posição da Recorrente, conclui-se que o 2.º Recorrido, pela sua inércia, agravou em mais do que um ano a alegada privação do uso, sem apresentar qualquer causa justificativa para o efeito e empolando a indemnização daí decorrente;
31. De notar ainda que estamos perante uma perda total em que o valor económico do veículo é de Eur. 3.500,00 (ponto 13 do elenco da matéria de facto dada como provada);
32. Neste contexto sempre se dirá que a eventual indemnização a fixar a título de privação do uso do veículo deve ser fixada considerando o período temporal decorrido entre o acidente de viação e a tomada de posição da Recorrente;
33. Atenta a falta de prova do uso do veículo, o valor económico deste e a culpa do lesado no agravamento do dano, entende-se como adequada e proporcional a fixação da indemnização decorrente de privação de uso, a ser devida, em montante nunca superior a Eur. 500,00;
34. Tudo considerando, conclui-se, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que a sentença em crise violou, pelo menos, o disposto nos artigos 342.º, 483.º, 562.º, 563.º, 564.º e 570.º do Código Civil e o artigo 414.º do Código de Processo Civil.
TERMOS EM QUE, deve o presente recurso de apelação ser julgado procedente e, consequentemente, ser proferido acórdão que revogue a douta sentença em crise, absolvendo a R. integralmente do pedido, como é de JUSTIÇA!
Caso assim não se entenda, deve a indemnização devida a título de privação do uso do veículo automóvel ser julgada não devida.
Caso assim não se considere, subsidiariamente, deve a indemnização devida a título de privação do uso do veículo automóvel ser reduzida para montante não superior a Eur. 500,00.»

3. Os Autores contra-alegaram, sustentando a improcedência da apelação.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. OS FACTOS
Foram os seguintes os factos considerados na douta sentença:
«Factos Provados
1 – No dia 19 de outubro de 2018, cerca das 18.45 h., na Estrada Nacional ..., no sentido Maia - Porto, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-EI-.., propriedade do Autor BB e conduzido pelo Autor AA, e um veículo pesado de mercadorias, com a matricula ..-PX-.., propriedade da P..., Lda e conduzido por CC – cfr. docs. nºs 1 e 2, juntos com a petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
2 – Nesse local a EN ... comporta duas vias de trânsito em cada sentido.
3 – Ambos os veículos circulavam no sentido Norte/Sul.
4 - No dia 23 de outubro de 2018, o segundo Autor participou o sinistro à A..., para a qual se encontrava transferida a responsabilidade civil decorrente do risco de circulação desse veículo, via e-mail – cfr. doc. nº 3 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
5 – O PX circulava na hemi-faixa esquerda da via, atento o seu sentido de marcha, mais atrás que o EI.
6 – O EI circulava na hemi-faixa direita da via, atento o seu sentido de marcha.
7- O PX passou a circular na hemi-faixa direita da via, vindo a embater na parte lateral traseira esquerda do EI, à altura do pneu e no guarda lamas imediatamente acima do mesmo, com a lateral direita da frente do PX.
8 – Em consequência desse embate, o primeiro Autor, perdeu o controlo do EI, que se enviesou na via, para o seu lado esquerdo, passando para a frente do PX, e para a faixa da esquerda, tendo sido novamente embatido pelo PX, agora na porta do condutor do lado esquerdo, tendo sido arrastado por alguns metros pelo PX até este ter parado a marcha.
9 – Em consequência de um desses embates o EI veio a embater nos rails do lado esquerdo da hemi-faixa de rodagem e foi arrastado contra os mesmos.
10 – Os referidos embates provocaram diversos estragos no EI, na sua frente, lateral esquerda e traseira, avaliados pela X..., SA, a solicitação da A..., em €5.901,97.
11 - No dia 07 de novembro de 2018, o primeiro Autor enviou por e-mail ao perito da UON, DD, comprovativo da fatura referente a entrada no serviço de urgências do Centro Hospital em Lisboa, no dia 20 de outubro de 2018, no valor de €20,60 – cfr. docs nºs 10 e 11 juntos com a petição inicial.
12 – O segundo Autor recebeu carta da A..., datada de 9 de novembro de 2018, comunicando-lhe que os danos sofridos no EI tornavam desaconselhável a sua reparação, configurando uma situação de perda total, e avaliando esse veículo – cfr. doc. nº 12 junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
13 - Avaliou ainda o valor venal do EI em €3.500,00.
14 - E estimou o valor do salvado em €520,00.
15 - Em 4 de janeiro de 2019, EE, agente de seguros da A..., enviou e-mail à Ré a reiterar para que desse seguimento ao processo de sinistro, solicitando o seu tratamento e informação sobre o estado do processo – cfr. doc. nº 13 junto com a petição inicial.
16 – Em 5 de fevereiro de 2019, por e-mail, a Ré respondeu a EE informando que concluíra pela integral responsabilidade do segurado da A..., declinando toda e qualquer responsabilidade no sinistro e que caso o mesmo reunisse elementos de prova que contestassem essa decisão estariam na disposição de reanalisar a mesma – cfr. doc. junto na primeira sessão da audiência de julgamento, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
17 - No dia 09 de outubro de 2019 a Ré enviou um e-mal para a A... comunicando-lhe que, uma vez que não haviam sido indicados novos elementos, reiterava a sua anterior posição - cfr. doc. nº 14, junto com a petição inicial, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
18 - Em 22 de novembro de 2019, a A... comunicou ao primeiro Autor essa informação – cfr. doc. nº 10 junto com a petição inicial.
19 – Desde o dia 19 de outubro de 2018 o segundo Autor ficou privado do uso do EI.
20 – O primeiro Autor despendeu a quantia de €20,60, no serviço de urgências, após o embate.
21 - O medo, a angústia e o desespero tomaram conta do primeiro Autor na altura do acidente.
22 – O tempo que os Autores aguardaram pelo ressarcimento dos danos que sofreram causou-lhes stress e frustração.
23 – A responsabilidade civil pela indemnização dos danos decorrentes do risco de circulação do PX em 19/10/2018, encontrava-se transferida para a Ré pela sua proprietária, por acordo titulado pela apólice nº ... – cfr. doc. nº 1, junto com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
24 – Quando se apercebeu da presença do EI atravessado à sua frente, o condutor do PX tentou evitar nova colisão, acionando o sistema de travagem, o qual se iniciou a 4.60 m do marco hectométrico 4.20 da EN e com o rodado do lado direito do veículo à distância de 1,20 m da linha limite da faixa de rodagem, do lado direito, terminando no eixo da via – cfr. croquis anexo ao doc. nº 1, junto com a petição inicial.
Factos Não Provados
a) Foram inúmeros os e-mails enviados pela seguradora do Autor à Ré aos quais recebiam respostas passado quase um mês depois, com o único propósito de se desvincular da responsabilidade de reparação pelos danos causados.
b) O medo, a angústia e o desespero tomaram conta do segundo Autor.
c) Os sentimentos de medo, angústia e desespero perdurarão por muitos anos, podendo mesmo provocar traumas psicológicos que os inviabilizem de voltar a conduzir.
d) Antes do primeiro embate o PX circulava pela faixa de rodagem do lado direito, atento o seu sentido de marcha.
e) O condutor do PX ia atento ao trânsito.
f) Em determinado momento, e sem que nada o fizesse prever, deparou com um veículo automóvel ligeiro que, em marcha descontrolada, foi chocar com a frente esquerda de encontro aos rails separadores do lado esquerdo da EN.
g) Atravessando-se de seguida à sua frente, após ter feito duas piruetas.
h) O EI rodou para o lado direito e, de seguida para o lado esquerdo.»

5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as QUESTÕES A DECIDIR:
· Reapreciação da matéria de facto
· Se é de atender ao dano da privação do uso do veículo do Autor e, em caso afirmativo, qual a duração a considerar e em que montante.

5.1. Reapreciação da matéria de facto
Olhadas as conclusões de recurso, verifica-se não ter o Recorrente cumprido da melhor forma os requisitos legais de forma e substância para que o seu recurso seja admitido e apreciado, pois não se deu cumprimento integral ao preceituado no art.º 640º do CPC, designadamente quais os “concretos meios probatórios”, nem qual a “decisão que, no seu entender, deve ser proferida”.
Contudo, esses elementos constam do texto da motivação de recurso, onde se deu nota dos factos que se entende mal apreciados, dos meios de prova, com transcrição dos depoimentos das testemunhas e indicação dos momentos da gravação.
Assim, iremos reapreciar a matéria de facto, partilhando do entendimento expresso no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 31/03/2022: «A apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art.º 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco.» [1]
Passando então à reapreciação da matéria de facto.
Pretende a Recorrente que os factos provados 5 a 9 passem a ser factos não provados e, em alternativa, passem a provados os factos vertidos sob as alíneas f), g) e h).
Como é bom de ver, toda essa factualidade respeita à dinâmica do acidente, com cada uma das partes a imputar à outra a culpa pela respetiva ocorrência.
E o erro que a Recorrente imputa ao Tribunal reside numa única circunstância: o Tribunal ter dado credibilidade às declarações do Autor AA, em detrimento do depoimento da testemunha CC (condutor do veículo pesado), que se lhe afigura muito mais credível.
Abandonado o sistema da prova legal, mostra-se consagrado entre nós o princípio da livre apreciação da prova: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto” (art.º 607º nº 5 do CPC).
Essa apreciação/valoração da prova é efetuada de acordo com as regras da lógica, as regras da vida e da experiência.
O que a Recorrente faz é deixar consignada a sua própria apreciação crítica da prova produzida.
Como referia Vaz Serra [2], “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um grau de probabilidade considerável para que se tenha provado o facto.
Qualquer testemunho comporta muitas variáveis, quer relativamente à pessoa que o presta, quer relativamente ao fenómeno que presencia e ao nexo entre ambos.
Também se colhe dos ensinamentos da psicologia do testemunho que a memória é falível e nem todas as pessoas que presenciam um acontecimento guardam as mesmas memórias, dependendo, por exemplo, do campo específico em que cada uma tinha centrada a sua atenção; e com o tempo, ocorre não só erosão das memórias, mas também um processo de elaboração intelectual em que o registo do facto é contaminado pelas emoções provocadas pelo evento, principalmente no que toca aos acontecimentos traumáticos.
O ataque à matéria de facto não pode ser feito fornecendo apenas a versão dos factos que se considera mais correta pois dessa forma o julgamento seria em conformidade com a “livre convicção do Recorrente”, em detrimento da “livre convicção do julgador”.
Ao contrário, o que nesta sede compete ao Recorrente, é a alegação/demonstração de que as provas produzidas não consentem a análise feita pelo juiz, de que a análise crítica por ele feita contraria a lógica, a razão e as regras da experiência comum, ou uma qualquer regra de direito material probatório. [3]
Desde logo porque, tratando-se em ambos os casos de “livre convicção”, com o que ela tem de pessoal, incumbiria sempre a mesma pergunta: qual delas seria a mais consentânea com a realidade material?
De qualquer forma, ouvidos os depoimentos, temos desde logo que CC, o condutor do veículo pesado envolvido no sinistro, foi sempre dizendo não se lembrar do ocorrido e que remetia para tudo o que disse à polícia que tomou conta da ocorrência. Interessante, porém, que, ainda que tal não lhe fosse perguntado, a testemunha por diversas vezes queria era falar dos rastos de travagem. Foi patente a falta de espontaneidade.
Ao contrário, o Autor AA prestou um depoimento consistente e, ao contrário da Recorrente, não detetamos nele contradições.
Entendemos que o Tribunal recorrido analisou e ponderou bem todos os meios de prova, que aqui reproduzimos, por aderir à motivação:
«Conjugando todos estes elementos de prova, ficou o tribunal convencido de que o PX circulava na faixa da esquerda e invadiu a faixa da direita onde circulava o EI passando a circular na mesma; que face à diferença da dimensão dos veículos, não se apercebeu da presença do EI à sua direita, no “canto morto” dos espelhos e lhe veio a embater, apenas tendo iniciado a travagem quando já havia embatido pela primeira vez nesse veículo, razão pela qual os rastos de travagem se iniciam mais à frente do local onde se encontravam os vestígios do degrau, e que por força do embate o EI guinou à esquerda, de forma enviesada, vindo a atravessar-se à frente do PX, vindo os posteriores embates a ocorrer conforme se deu como provado.
Levou-se ainda em consideração a fotografia que a Ré juntou aos autos com a contestação, a fls. 74, da qual é visível o rail de proteção da esquerda, atento o sentido de marcha dos veículos deformado em V e não apenas raspado, do que resulta que o EI bateu contra o mesmo, como, aliás, referiu a testemunha FF, agente da PSP que elaborou o auto policial, e ainda que esse embate foi frontal e com o EI enviesado.».
Improcede, por isso, a impugnação da matéria de facto.

5.2. Sobre a privação de uso do veículo
Defende a Recorrente que a privação de uso do veículo está dependente da prova de uma efetiva perda de receitas ou comprovação de um acréscimo de despesas, motivadas pela privação de uso ou, no limite e pela equidade, que a privação do veículo tenha um impacto negativo e efetivo na vida do proprietário privado do seu veículo.
Efetivamente, pode fazer-se a distinção entre a privação do uso e a mera privação da possibilidade desse uso.
Na verdade, a privação do uso de um veículo automóvel pode originar danos ou prejuízos de vária índole, designadamente lucros cessantes (por exemplo, se o veículo era um instrumento de trabalho, o que o lesado deixou de auferir por com ele não poder circular) e/ou danos emergentes (por exemplo, as despesas originadas pela necessidade de alugar outro veículo ou ter de se deslocar de táxi).
No caso em apreço, nenhum desses danos foi provado, porque nem sequer alegado.
O pedido do Autor BB reporta-se à simples privação do uso do veículo.
Ou seja, estamos no âmbito de danos patrimoniais autónomos, os transtornos e arrelias de quem não pode retirar as vantagens proporcionadas por uma coisa de sua propriedade.
Esta mera privação desse uso, será ela um dano indemnizável?
Utilizando a síntese formulada em douto acórdão do STJ, dir-se-á que «II -Sobre tal matéria é possível identificar dois entendimentos distintos na jurisprudência do STJ: para determinado sector jurisprudencial, a privação do uso da coisa constitui, só por si, um dano patrimonial indemnizável, visto que envolve, para o seu proprietário, a perda de uma utilidade, a de usar a coisa quando e como lhe aprouver, utilidade que, considerada em si mesma, tem um valor pecuniário; para outra orientação jurisprudencial, a privação do uso de uma coisa, por parte do seu proprietário, causada por terceiro, só é ressarcível, se aquele provar, como é ónus do lesado, quais os danos em concreto que decorrem da privação (a esta subjaz o argumento da que a privação do uso da coisa não gera, per si, prejuízos, pelo que é necessária a alegação e a prova dos danos provocados).». [4] [5] [6]
Também nós consideramos tais danos indemnizáveis.
Nos dias de hoje, esses incómodos, inconvenientes, contrariedades e esforços podem ser considerados factos notórios, sem necessidade de alegação e prova.
Na verdade, na linha do referido no acórdão do STJ atrás citado, tal decorre da simples constatação de que a perda dum bem envolve para “o seu proprietário, a perda de uma utilidade, a de usar a coisa quando e como lhe aprouver, utilidade que, considerada em si mesma, tem um valor pecuniário”.
O maior ou menor grau dessa perda é que já necessitaria de concretização factual (por exemplo, frequência e tipo de utilização do veículo) para se poder aquilatar de um maior ou menor montante indemnizatório.

Quanto ao lapso de tempo a considerar
O Autor considerou como período da privação do uso do veículo 606 dias, o tempo decorrido entre o acidente de viação (19 de outubro de 2018) e a data da propositura da presente ação (16 de junho de 2020).
E foi esse período temporal que foi considerado na sentença, com a seguinte argumentação: «A indemnização por este dano é devida desde a data em que o segundo Autor ficou impossibilitado de usar o veículo - 19/10/2018 – até à data em que a Ré puser à disposição do segundo Autor a indemnização devida, sendo que só nessa altura estará assegurada a possibilidade de o Autor satisfazer pela aquisição de veículo equivalente o dano de privação do veículo acidentado.
Os Autores peticionam a indemnização por este dano apenas desde a data do acidente até à data da propositura da ação, o que se computa em 606 dias, pelo que o valor dessa indemnização perfaz o valor de €6060,00.»
Por sua vez, a Recorrente entende que o período de tempo a considerar deve ser o decorrido entre o acidente de viação e a tomada de posição da Recorrente.
E, neste ponto, consideramos assistir-lhe razão.
Segundo se colhe dos autos, tendo o acidente ocorrido em 19 de outubro de 2018, o Autor enviou a participação amigável à sua Seguradora em 23 desse mês; em 9 de novembro de 2018, a sua Seguradora comunica-lhe que os danos sofridos no EI tornavam desaconselhável a sua reparação, configurando uma situação de perda total (enviando os dados de avaliação); em 4 de janeiro de 2019, EE, agente de seguros da A... (Seguradora do Autor), enviou e-mail à Ré a reiterar para que desse seguimento ao processo de sinistro, solicitando o seu tratamento e informação sobre o estado do processo; a Ré responde em 5 de fevereiro de 2019, informando que concluíra pela integral responsabilidade do Autor, declinando toda e qualquer responsabilidade no sinistro, posição que reiterou por e-mail datado de 09 de outubro de 2019; a seguradora do Autor comunicou-lhe esta posição da Ré em 22 de novembro de 2019. A ação foi intentada em 16 de junho de 2020.
Perante este quadro fático seria de concluir como período a considerar, o tempo que mediou entre 19/10/2018 (acidente) e 22/11/2019 (data do conhecimento por parte do Autor da posição da Ré), num total de 400 dias.
Explicitando, é de considerar a data de 22/11/2019 por ser aquela em que o Autor teve conhecimento, sendo de desconsiderar as trocas de comunicação entre ambas as Seguradoras, por constituírem res inter alios relativamente ao Autor.
A partir daí, sabedor da posição da Ré ─ sendo de considerar legítimo que a Ré tenha um outro entendimento sobre a responsabilidade no acidente, mormente em casos como o presente de versões totalmente contraditórias do mesmo ─, competiria ao Autor acionar os mecanismos legais para o mais rapidamente possível, obter a resolução do litígio.
Ao não o fazer (atenta a data da instauração da ação, aguardou cerca de 7 meses), já revela incúria ou falta de diligência por parte do Autor, pela qual não pode a Ré ser responsabilizada.
Neste sentido, acórdão do STJ de 08/09/2021: «III – Se o lesado interpõe a acção, inexplicavelmente, apenas cerca de 2 anos depois de conhecer a resposta definitiva da 1ª Ré, no sentido de esta considerar o acidente simulado e se recusar a pagar qualquer indemnização, o específico dano ressarcido (a privação do uso) é passível de revelar indiferença perante esse seu próprio e referido prejuízo, indiferença contrária ao “padrão de uma normalidade interventora na zona dos danos patrimoniais”. IV – Todavia, a redução da indemnização, considerando apenas o tempo decorrido desde o acidente até à propositura da acção, deve ser desconsiderada, caso o tempo decorrido na pendência da acção venha a acrescer à referida indemnização (reduzida até à propositura da acção), em função do pedido formulado pela Autora.» [7]
Será, assim, esse o lapso temporal a considerar, o que importará na redução da indemnização atribuída em 1ª instância pelo dano de privação do uso do veículo.

Quanto ao montante
O Autor peticionou €11,00 diários. Na sentença atribuiu-se €10,00. A Recorrente considera um valor global total de €500,00.
Já vimos que este prejuízo, pela sua própria natureza, é impossível de ser quantificado com rigor, pelo que se impõe o recurso a critérios de equidade (art.º 496º nº 4 e 566º nº 3 do CC).
Nesse âmbito, consideramos equilibrados os €10,00 atribuídos em 1ª instância, que corresponde ao valor mais usado na jurisprudência, designadamente em casos como este em que nada mais se provou para além da mera privação do uso.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, no parcial provimento do recurso, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em revogar a sentença recorrida na parte atinente à indemnização pela privação do uso do veículo, condenando-se agora a Ré a pagar ao Autor BB, a esse título, a quantia de dez euros por dia, por 400 dias, num total de quatro mil euros.
Em tudo o mais se mantém o decidido em 1ª instância.

Custas do recurso na proporção do decaimento.

Porto, 13 de outubro de 2022
Isabel Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
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[1] Proferido no processo nº 2525/18.2T8VNF-B.G1.S1, Relator: Rijo Ferreira, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[2] In “Provas - Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171.
[3] Pode ler-se no acórdão do STJ, de 15.12.2005 (processo 05P2951, Relator Simas Santos): «4 - Se o recorrente impugna somente a credibilidade da testemunha deve indicar os elementos objectivos que imponham um diverso juízo sobre a credibilidade dos depoimentos, pois ela, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso.».
[4] Acórdão do STJ, de 28.09.2011 (processo 2511/07.8TACSC.L2.S1, Relator OLIVEIRA MENDES).
[5] Esta ressarcibilidade autónoma do dano de privação de uso de veículo tem vindo a ser o entendimento da maioria dos acórdãos do STJ, como se colhe, a título de exemplo, dos seguintes: acórdão de 03.05.2011 (processo 2618/08.06TBOVR.P1, Relator NUNO CAMEIRA), de 21.04.2010 (processo 17/07.4TBCBR.C1.S1, Relator GARCIA CALEJO), de 05.07.2007 (processo 07B1849, Relator SANTOS BERNARDINO), de 08.05.2013 (processo 3036/04.9TBVLG.P1.S1, Relator MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA), de 23.11.2011 (Processo 397-B/1998.L1.S1, Relator ALVES VELHO), de 15.11.2011 (processo 6472/06.2TBSTB.E1.S1) e de 16.03.2011 (processo 3922/07.2TBVCT.G1.S1), ambos do Relator MOREIRA ALVES).
E, mais recentemente, do mesmo STJ, acórdão 28/09/2021 (processo 6250/18.6T8GMR.G1.S1, Relator OLIVEIRA ABREU), de 17/06/2021 (processo 879/17.7T8EVR.E1.S1, Relator: JOÃO CURA MARIANO) e de 25/10/2018 (processo 49/16.1T8FND.C1.S1, Relator: FÁTIMA GOMES).
[6] Também no mesmo sentido, e em termos doutrinários, Abrantes Geraldes, “Temas da Responsabilidade Civil, Indemnização do Dano de Privação de Uso”, I vol., Almedina, pág. 39; Américo Marcelino, “Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil”, 8ª edição, Livraria Petrony, pág. 430.
[7] Proferido no processo nº 10192/15.9T8STB.E1.S1, Relator: VIEIRA E CUNHA.
No mesmo sentido, acórdão desta Relação do Porto, referido pela Recorrente, de 22/09/2011 (processo 201/05.5TBMUR.P1, Relator: AMARAL FERREIRA).