Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0824608
Nº Convencional: JTRP00042314
Relator: CANELAS BRÁS
Descritores: DOAÇÃO
COLAÇÃO
Nº do Documento: RP200903100824608
Data do Acordão: 03/10/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: CONFIRMADA.
Indicações Eventuais: LIVRO 302 - FLS. 154.
Área Temática: .
Sumário: I- Por trás de uma doação está sempre uma liberalidade ou um espírito de liberalidade; ao invés, por trás de uma dação em pagamento está sempre uma obrigatoriedade, o espírito de cumprimento de uma obrigação assumida, embora com entrega diversa da que estava combinada.
II- Por isso, a doação deve ser conferida e, nas condições da lei, chamada à colação, para não interferir com a legítima dos outros herdeiros, assim se evitando o conluio (e a consequente fraude à lei) do autor da sucessão com alguns dos seus descendentes em prejuízo dos outros.
III- Mas já não tem a mínima razão de ser, chamar à colação bens que tenham sido objecto de dação em pagamento e que, por isso, não foram doados, mas serviram ainda para o cumprimento de obrigações do ‘de cujus’.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO Nº. 4608/2008-2 – APELAÇÃO (VILA POUCA de AGUIAR)

Acordam os juízes nesta Relação:


O recorrente B…………, casado, agricultor, residente em ......., Vila Pouca de Aguiar, interpõe recurso da douta sentença proferida nessa comarca, na acção de condenação, com processo ordinário, que, por apenso ao processo de inventário que aí correu com o n.º …/1993, intentara (com a sua mulher C………….) contra os recorridos D…………. e marido E…………., residentes em …………..., Vila Pouca de Aguiar e F…………… e G…………… – estes dois entretanto já falecidos –, intentando ver revogada a decisão da 1.ª instância que lhe denegou a pretensão que formulara de trazer à colação o prédio rústico que identifica na p. i., e que o seu pai havia doado à Ré D…………., sua irmã, que assim deveria ter sido reduzida por inoficiosa (com o fundamento aduzido na douta sentença de que os Autores não fizeram a prova de o prédio pertencer à herança e ter aquela Ré provado afinal que adquiriu originariamente o mesmo por usucapião), alegando, para tanto e em síntese, que não concorda com tais conclusões a que chegou o M.º Juiz ‘a quo’, pois tendo os interessados no processo de inventário sido remetidos para os meios comuns quanto ao dito prédio, deveria o mesmo ser agora declarado como sendo bem da herança e não daquela Ré. É que, de outra maneira, com o entendimento da douta sentença, “fácil seria aos progenitores deserdar um filho” (“bastaria que em vida doassem a totalidade dos seus bens a um dos herdeiros, e que essa doação, e sequente posse, seja efectuada pelo prazo de vinte anos”, aduz). Ademais, nem a referida Ré tem ‘animus’ de posse sobre o prédio, pese embora o detenha. São termos em que deverá a decisão recorrida vir a ser alterada no sentido pretendido e esse bem ser chamado à colação, reduzindo-se por inoficiosa a respectiva doação.
Os recorridos não apresentaram contra-alegações válidas, pois que as que juntaram aos autos foram mandadas desentranhar, por não ter sido paga a taxa de justiça devida por essa apresentação (vidé o respectivo despacho a fls. 208).
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Vêm dados por provados os seguintes factos:

1) No processo de inventário n.º …./93, de que estes autos são apenso, foi relacionado e descrito para ser partilhado o prédio rústico constituído por terra de cultivo, no lugar ……….., inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ……., sob o artigo 5.522º e descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar sob o n.º 34.322.
2) Por escritura pública de doação, datada de 17 de Abril de 1979 e celebrada no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, o H………… declarou doar a sua filha D…………., por conta da sua quota disponível, uma terra de cultivo, sita no lugar ………., no limite de ……….., inscrito na matriz predial rústica da freguesia ………. sob o artigo 5.522º e descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar sob o n.º 34.322.
3) Por decisão datada de 05 de Setembro de 2003, proferida nos autos de Inventário n.º ……/93, desta comarca, foram as partes remetidas para os meios comuns, relativamente ao dito prédio.
4) Por escritura pública de dação em cumprimento, datada de 7 de Janeiro de 1980, celebrada no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, o H…………. declarou que, para pagamento e cumprimento da dívida de cem mil escudos, dava à sua filha D…………… a terra de cultivo, sita no lugar ……….., Limite de ……….., inscrita na matriz predial rústica da freguesia de ……….. sob o artigo 5.522º e descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar sob o n.º 34.322.
5) Após a morte das pessoas referidas em 1), o prédio aí referido tem vindo a ser cultivado pelos Réus D…………. e marido.
6) Os Autores sempre aceitaram que o prédio referido em 1) foi dado à Ré D………….. para pagamento da dívida de cem mil escudos.
7) Desde há 26 anos que os réus sempre possuíram como exclusivamente seu, o prédio referido supra em 1) desta matéria.
8) Os Réus arrotearam, plantaram e administraram como seu, o prédio referido supra em 1) desta matéria.
9) Suportaram todos os encargos inerentes ao mesmo e auferiram todos os benefícios, contínua e exclusivamente e sem oposição de ninguém.
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Ora, a questão que demanda apreciação e decisão da parte deste Tribunal ‘ad quem’ é a de saber se havia motivo para desatender a pretensão dos Autores que conduzisse a um reconhecimento de que o prédio rústico identificado nos autos pertencia à herança aberta por morte dos pais do Autor marido e da Ré mulher ou se, pese embora não considerando que assim seja, possa, pelo menos, vir ainda a ser chamada à colação, para ser reduzida, por inoficiosa, a doação do mesmo à Ré mulher por parte do autor da sucessão H………….. É só isso que ‘hic et nunc’ está em causa, como se vê das conclusões do recurso apresentado.
Vejamos.

O recorrente põe o assento tónico da sua discordância da douta decisão recorrida no facto de, pese embora nela se ter considerado que o prédio rústico em causa não é pertença da herança aberta por morte de seu pai, o identificado H………….. – o que o apelante até parece aceitar –, ter esse bem, apesar de tudo, que ser chamado à colação e a doação reduzida por inoficiosa, sob pena de os herdeiros nada virem a receber.
Aparentemente, porém, tal modo de focar o problema esquece alguma da factualidade que vem dada por provada na decisão recorrida, quando é certo não ter o ora recorrente posto em causa tal decisão nessa sua vertente da fixação da matéria de facto.
Com efeito, não se provou apenas a existência de uma escritura pública de doação, datada de 17 de Abril de 1979 e celebrada no Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, em que o H…………… declarou doar a sua filha D……………, por conta da sua quota disponível, uma terra de cultivo, sita no lugar ………., no limite de …………, inscrito na matriz predial rústica da freguesia de ……….. sob o artigo 5.522º e descrita na Conservatória do Registo Predial de Vila Pouca de Aguiar sob o n.º 34.322 (ponto 2 da matéria assente).
Provou-se ainda que o mesmo prédio foi objecto de uma escritura pública de dação em cumprimento, datada de 07 de Janeiro de 1980 e celebrada naquele mesmo Cartório Notarial de Vila Pouca de Aguiar, tendo o H……………. aí declarado que o dava à sua filha D…………. “para pagamento e cumprimento da dívida de cem mil escudos, que tem para com a segunda outorgante” (ponto 4 da matéria assente, relativa ao documento de fls. 21 a 22 dos autos).
[Terá sido mesmo essa uma das razões por que no processo de inventário se remeteram os interessados para os meios comuns quanto a este assunto, pois que se existisse só aquela primeira escritura pública de doação, por conta da quota disponível do doador, nenhuma dificuldade teria o Tribunal em decidir a questão e chamar o negócio à colação, informado que estava da inexistência de quaisquer outros bens no acervo da herança.]
Quer isto dizer que a questão não poderá ser vista do modo simplificado como o recorrente agora a coloca, como se tivesse existido apenas uma doação do bem, que facilmente pode ser chamada à colação, esquecendo todas as outras descritas vicissitudes da situação.

Analisemos, então, melhor, a natureza jurídica destes negócios.
A colação é a restituição à massa da herança – para conferência, em vista à igualação da partilha – dos bens ou valores que tenham sido doados pelo autor da herança aos descendentes que entrem na sua sucessão (artigo 2104.º, n.º 1 do Código Civil).
A doação é a disposição gratuita, por espírito de liberalidade e à custa do património de quem dá, de coisa ou direito em benefício de quem recebe (artigo 940.º, n.º 1 do Código Civil).
A dação em cumprimento (ou em pagamento) é a realização pelo devedor de uma prestação de coisa diversa da que for devida, com vista naturalmente à extinção de uma obrigação pelo cumprimento e sempre com o assentimento do credor (artigo 837.º do Código Civil).

Já se está, por isso, a ver que doação nada tem que ver com dação – como parece confundir intencionalmente o recorrente, por ser essa equiparação que permite os seus intentos no recurso: a chamada à colação do bem em causa.
Efectivamente, por trás de uma doação está sempre uma liberalidade ou um espírito de liberalidade, como diz a lei. Ao invés, por trás de uma dação está sempre uma obrigatoriedade, um espírito de cumprir uma obrigação assumida, embora com a entrega de algo diverso do que estava combinado.
Por isso se percebe perfeitamente que a doação deva ser conferida e, nas condições fixadas na lei, chamada à colação, para não interferir com a legítima dos outros herdeiros, assim se evitando o conluio (e a consequente fraude à lei) do autor da sucessão com alguns dos seus descendentes em prejuízo dos outros.
Já, porém, não tem a mínima razão de ser, dentro da economia do sistema – constituindo mesmo uma contradição nos termos e a verdadeira liquidação da função do instituto no comércio jurídico –, chamar à colação bens que tenham sido objecto de dação em pagamento e que, por isso, não foram doados, mas serviram para o cumprimento de obrigações do ‘de cujus’ que, de outro modo, ainda estariam pendentes no momento da abertura da sucessão e a que os bens da herança seriam chamados a responder (a dação em pagamento é ainda uma disposição onerosa de bens em vida, como qualquer outra, ‘maxime’ uma venda e nada tem que ver, por isso, com a figura e o regime da colação).
[Como a define Meneses Leitão no seu ‘Direito das Obrigações’, Volume II, 5.ª Edição, Almedina, páginas 188, a dação em cumprimento – exactamente em contraponto com a doação – “pode se definida como um contrato oneroso, pelo qual se extingue uma obrigação através da realização perante o credor de uma prestação diferente da devida como contrapartida da sua renúncia a receber a prestação primitiva”.]

Ora, no caso ‘sub judicio’, tendo os outorgantes acordado realmente uma dação em cumprimento, em que foi entregue um prédio rústico para pagamento de uma dívida, como consta da escritura pública de fls. 21 a 22 dos autos, o bem objecto da mesma não tem que ser chamado à colação na herança aberta depois por óbito do dador. Pois que se tratou de um contrato oneroso fora do âmbito de aplicação dessas figuras jurídicas, quer da doação, quer da colação.
Para mais, sendo certo que “os Autores sempre aceitaram que o prédio foi dado à Ré D………….. para pagamento da dívida de cem mil escudos” (ponto 6 da matéria assente), o que afastaria também qualquer situação menos clara – de tipo simulatório ou conluio para afastar os demais herdeiros – e nos permite interrogar sobre a razão de ser da demanda num caso que já era aceite.

Por fim, ainda que tudo quanto se deixa explicado não fosse adequado à situação, não deixaram de se provar nos autos todos os requisitos de que a lei faz depender a aquisição originária da propriedade, por usucapião, como analisa e decide da douta sentença impugnada. Assim: Desde há 26 anos que os Réus sempre possuíram como exclusivamente seu, o prédio referido em 1 (ponto 7 da matéria assente); os Réus arrotearam, plantaram e administraram como seu, o prédio referido supra em 1 (ponto 8); suportaram todos os encargos inerentes ao mesmo, auferiram todos os benefícios, contínua e exclusivamente sem oposição de ninguém (ponto 9). E, note-se, uma posse pública e pacífica, pois, como se viu no ponto 6) da matéria dada por provada, até os Autores a aceitaram desde sempre.
Pelo que também por aqui, como se decidiu, não tinha aquele dito prédio que ser chamado à conferência dos bens da herança para aferir de uma eventual inoficiosidade.

Motivo por que, neste enquadramento fáctico e jurídico, se manterá agora inalterada na ordem jurídica a sentença da 1ª instância, improcedendo o recurso.

E, em conclusão, dir-se-á:

I. Por trás de uma doação está sempre uma liberalidade ou um espírito de liberalidade; ao invés, por trás de uma dação em pagamento está sempre uma obrigatoriedade, o espírito de cumprimento de uma obrigação assumida, embora com entrega diversa da que estava combinada.
II. Por isso se percebe perfeitamente que a doação deva ser conferida e, nas condições da lei, chamada à colação, para não interferir com a legítima dos outros herdeiros, assim se evitando o conluio (e a consequente fraude à lei) do autor da sucessão com alguns dos seus descendentes em prejuízo dos outros.
III. Mas já não tem a mínima razão de ser, dentro da economia do sistema – constituindo mesmo uma contradição nos termos e a verdadeira liquidação da função do instituto no comércio jurídico –, chamar à colação bens que tenham sido objecto de dação em pagamento e que, por isso, não foram doados, mas serviram ainda para o cumprimento de obrigações do ‘de cujus’.
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Decidindo.

Assim, face ao que se deixa exposto, acordam os juízes nesta Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
Registe e notifique.

Porto, 10 de Março de 2009
Mário João Canelas Brás
Manuel Pinto dos Santos
Cândido Pelágio Castro de Lemos