Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
24484/16.6T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: PEDIDO RECONVENCIONAL
RÉPLICA
VENDA À CONSIGNAÇÃO
EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO
BOA-FÉ
Nº do Documento: RP2021120224484/16.6T8PRT.P1
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A réplica desempenha, em face da reconvenção, o mesmo papel que a contestação (defesa) do réu em face da petição inicial: é, por sua natureza, uma contestação da reconvenção, inteiramente sujeita, ressalvadas as devidas adaptações, ao regime da contestação.
II - O fornecimento de equipamentos de electrodomésticos efectuado pelo fabricante a um comerciante para que este os venda aos seus clientes mediante o pagamento de uma comissão pelo fornecedor, ficando aquele com a obrigação de retomar os bens que não forem vendidos, configura um contrato de venda à consignação, em que o consignatário (comissário) efetua as vendas em nome próprio, mas por conta do consignante (comitente), numa relação de mandato sem representação.
III - Para que a exceção de não cumprimento não seja julgada contrária à boa fé, deverá haver uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade.
IV - Atenta contra a boa fé contratual a invocação da exceção de não cumprimento do contrato numa situação em que, devendo a R. (comissária) pagar à A. (comitente) uma dívida superior a € 100.000,00, se recusa a fazê-lo enquanto esta não aceitar a retoma de 5 a 10 fogões devolvidos por clientes com a invocação de defeitos após a resolução e a retoma da totalidade dos bens existentes no armazém da R.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 24484/16.6T8PRT.P1 – 3ª Secção (apelação)
Comarca do Porto Este - Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 4

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, S.A., com domicílio na Rua …, …, …, ….-… Paredes, instaurou Injunção de Pagamento Europeia contra C…, com sede em …, …, …, ….. Alemanha, posteriormente convertida em ação declarativa comum, face à oposição da Requerida, com a apresentação de petição inicial aperfeiçoada onde, no essencial, alega a celebração de um contrato entre as partes em cujo âmbito a R. venderia os seus produtos na Alemanha, pagando-lhe a A. 5% do valor dessas vendas, ficando a cargo da demandada a responsabilidade pela assistência técnica, para o que contratava uma empresa para o efeito.
A R. deixou de pagar os bens e a A. deslocou-se à Alemanha recolhendo parte dos mesmos para abater ao valor da dívida, que se mantém em mais de cem mil euros, e que foi determinante da resolução do contrato.
Terminou o seu articulado com o seguinte pedido:
«(…) ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de € 108.476,75 (cento e oito mil quatrocentos e setenta e seis euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros desde a citação da Ré até efetivo e integral pagamento.».
Citada, a R. ofereceu contestação-reconvenção onde alegou que a resolução contratual operada pela A. é ilícita, por não haver incumprimento da primeira, que teve prejuízos com a venda dos produtos da A., por serem defeituosos, razão pela qual não os pagou. Na reconvenção alegou matéria relacionada com prejuízos causados pelos equipamentos defeituosos, pedindo uma indemnização em função dos defeitos, com perda de lucros e de clientela, assim como por danos não patrimoniais pela afetação do seu bom-nome e reputação, a determinar em oportuno incidente de liquidação.
A A. replicou alegando a inadmissibilidade da reconvenção por falta da indicação do valor, que não existe qualquer problema técnico comunicado à A. que esteja por solucionar, que desconhece a troca de e-mails entre a R. e os consumidores finais e com a empresa que prestava assistência técnica e que a R. nem sequer especifica que bens tinham defeitos, que valores foram gastos ou devolvidos, nunca nada tendo sido comunicado à A., estando qualquer alegado direito ferido de caducidade.
Acrescentou que a R. litiga de má fé por nunca ter aludido a defeitos como causa do seu não pagamento, sempre tendo, aliás, aceitado a dívida, com invocação de dificuldades financeiras e apresentação de planos de pagamento.
Concluiu pela improcedência da reconvenção e pela condenação da R. como litigante de má-fé.
Aperfeiçoada que foi a reconvenção, opôs-se-lhe, mais uma vez, a reconvinda em nova réplica.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador e foi fixado o valor da causa em € 350.564,25.
O tribunal indicou o objeto do litígio e os temas de prova, tendo-se pronunciado ainda relativamente aos meios de prova e ao agendamento da audiência final, com as limitações ditadas pela legislação COVID 19.
De notar que foram muitas as vicissitudes processuais por que passaram os autos, não só em função das referidas limitações legislativas, mas também, desde o seu início, em razão da fixação da competência territorial, aperfeiçoamento de articulados, junção de documentos e sua tradução, nulidades processuais, designadamente quanto à citação e à notificação da contestação-reconvenção, pedido de prorrogação de prazos, interposição e rejeição de recurso de decisão interlocutória e marcação da audiência final.
Realizada aquela audiência, foi proferida sentença pela qual o tribunal a quo julgou a ação e a reconvenção nos seguintes termos, ipsis verbis:
«A) julgo a presente acção totalmente procedente e, em consequência, condeno a R. C… a pagar à A. B…, SA. a quantia de € 100.607,23 (cem mil seiscentos e sete euros e vinte e três cêntimos), acrescida de juros de mora à taxa comercial, nos termos da Portaria n.º 277/2013, de 26/08, desde da data de vencimento de cada uma das facturas até ao seu efectivo e integral pagamento.
B) julgo a reconvenção totalmente improcedente e absolvo a A. dos pedidos.
Custas a suportar pela R. na acção e na reconvenção (art. 527º do CPC).
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Não existem factos concretos para a condenação em litigância de má-fé.»
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Inconformada com a decisão, recorreu a R., alegando com as seguintes CONCLUSÕES:
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………………………………

A A. ofereceu contra-alegações, mas foram rejeitadas, por extemporaneidade.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
Exceção feita para as questões que sejam do conhecimento oficioso, a matéria a decidir está delimitada pelas conclusões da apelação da R recorrente, acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
A apelação incide sobre duas decisões:
A- A decisão interlocutória proferida no dia 19.11.2019 (ref.ª 81153077) que sanou uma invocada irregularidade, concedendo à A. prazo para dedução de réplica;
B- A sentença (ref.ª 84360017)

Assim, importa decidir:
- Quanto à decisão interlocutória de 19.11.2019, se a irregularidade não tem fundamento e não deveria ter sido concedido o prazo da réplica à A. para responder à reconvenção.

- Quanto à sentença:
1. Nulidade da sentença, por falta de fundamentação e por ininteligibilidade;
2. Erro de julgamento relativo à decisão em matéria de facto;
3. Cumprimento defeituoso da obrigação da A. e a exceção de não cumprimento do contrato;
4. Em sede reconvencional, a obrigação da A. reconvinda de indemnizar a R. reconvinte pelo dano reputacional, pelo impacto negativo que situação teve nas vendas e lucro da R., perda de clientela e pelo valor dos fogões devolvidos.
*
III.
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância[1]:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica, entre outras actividades, ao fabrico, comercialização e instalação de equipamentos de cozinha.
2. No exercício da sua atividade comercial, a Autora celebrou com a Ré, em 01 de Junho de 2014, um contrato denominado “Agreement”, nos termos do qual, a Autora, a pedido e sob encomenda da Ré, forneceu-lhe diversa mercadoria, a fim de esta a colocar para venda no seu armazém, sito em …, na Alemanha.
3. Em contrapartida, a Ré teria direito a uma comissão sobre cada venda efetuada de 5% sobre o valor da venda constante de factura emitida ao cliente final.
4. O direito ao recebimento da aludida comissão dependia da emissão e envio à Autora pela Ré de um relatório de vendas (“Sales Report”) mensal que, após aprovação, seria pago pela Autora no prazo de 30 dias após a sua emissão.
5. Desde Outubro de 2015, que a Ré deixou de remeter à Autora os relatórios de vendas, bem como os documentos respeitantes às comissões eventualmente devidas, tendo, desde então, apresentado à Autora diversos planos de pagamentos, os quais nunca cumpriu.
6. Em 27 de Maio de 2016, dois representantes da Autora deslocaram-se ao armazém da Ré a fim de efetuar um levantamento, no local, da mercadoria ainda por vender, tendo verificado que a diferença entre o valor em dívida por parte da Ré, na altura de € 112.711,42 e a mercadoria efetivamente existente (€ 38.150,43), era grande.
7. Perante tal cenário, por carta datada de 10 de Outubro de 2016, a Autora resolve o contrato celebrado com a R., com efeitos imediatos e nos termos da cláusula 5ª, n.º 2.
8. Nos termos da aludida carta e a fim de minimizar os prejuízos dali decorrentes, a Autora informa a Ré que, no dia 25 de Outubro de 2016, irá proceder ao levantamento de toda a mercadoria existente no armazém da Ré, ficando os custos inerentes ao transporte da mesma a cargo desta, conforme estipulado no ponto 3, da cláusula quinta, do contrato.
9. No dia 25 de Outubro de 2016, a Autora procedeu à recolha de mercadoria no valor global de € 12.104,19, a qual originou a Nota de Crédito n.º NCV 16/002095, emitida em 04-11-2016.
10. Apesar das interpelações efectuadas, encontra-se por pagar o montante de € 100.607,23 (cem mil seiscentos e sete euros e vinte e três cêntimos), do preço da mercadoria fornecida pela Autora à Ré ao abrigo do contrato, conforme descrito nas seguintes faturas:
a) FCT 15/005533, emitida em 30-07-2015 e vencida em 28-09-2015, no montante de € 35.839,41;
b) FCT 15/008392, emitida em 03-11-2015 e vencida em 02-01-2016, no montante de € 126,00;
c) FCT 15/008399, emitida em 03-11-2015 e vencida em 02-01-2016, no montante de € 42.324,06;
d) FCT 15/008401, emitida em 03-11-2015 e vencida em 02-01-2016, no montante de € 2.183,30;
e) FCT 15/009011, emitida em 24-11-2015 e vencida em 23-01-2016, no montante de € 1.142,40;
f) FCT 16/001601, emitida em 26-02-2016 e vencida em 26-04-2016, no montante de € 46.042,80.
11. A R. dedica-se ao comércio para cozinhas e casas de banho, tais como fornos, fogões, micro-ondas, torneiras, que efectua online, designadamente através de plataformas como o L… e M….
12. A R. era representante da marca comercializada pela A. para o mercado alemão, tendo a A. realizado todas as certificações CE, de acordo com a Directiva de aparelhos a gás n.º 2009/142/CE.
13. A A. deu acesso à R. ao Webservice que lhe permitia encomendar todos os acessórios e equipamentos que necessitasse.
14. A R. procedia ao embalamento e envio do produto ao cliente final e ficava a cargo do comprador a montagem e instalação dos produtos.
15. Para efeitos de prestação de garantia da mercadoria transaccionada, a R. contratou, à sua escolha, o centro de assistência técnica D… para solucionar os pedidos de assistência técnica que viesse a necessitar, no âmbito da garantia prestada aos seus clientes, estando a R. obrigada a dar garantia pelo prazo de dois anos após a compra, contra ‘defeitos de fabrico’.
16. A Autora remeteu, sempre que lhe foi solicitado pela Ré, através do serviço Webservice disponibilizado para o efeito, todos os acessórios e peças requisitados pela mesma, os quais foram sempre fornecidos gratuitamente ao abrigo da garantia, num total de 267 acessórios e no valor de € 2.483,99.
17. A Autora suportou, sempre, a devolução de todos os eletrodomésticos do armazém da Ré, na Alemanha, para o armazém da Autora, em Portugal, inexistindo qualquer equipamento reclamado que esteja por resolver, em termos técnicos.
18. Já em 2017, a Autora, que pretendia efetuar vendas diretas no mercado alemão, foi surpreendida pela D… que lhe comunicou a existência de um débito por parte da Ré, no valor de € 3.619,65, decorrente de assistências técnicas por esta solicitadas entre 29/02/2016 e 30/04/2016, valor este que a Autora liquidou, a fim de manter uma boa imagem e relacionamento com a dita empresa a operar no mercado alemão.
19. Nos dias 17 e 18 de maio de 2016, um Administrador e um director de vendas da Autora deslocaram-se à Alemanha, onde reuniram com o Sr. E…, responsável da Ré, com vista ao apuramento da situação e da forma de solucionar o incumprimento nos pagamentos.
20. Nessa reunião ficou acordado que a Ré apresentaria um plano de pagamentos da dívida que colocaria à consideração da Autora, atentas as dificuldades financeiras invocadas, e que autorizaria o levantamento do seu armazém de todos os eletrodomésticos com deficiências e novos que não vendeu, com o objetivo de abater ao valor em débito.
21. Neste seguimento, em 31 de Maio de 2016, a Ré remeteu à Autora um e-mail apresentando um plano de pagamentos faseado e contendo uma listagem de bens para serem levantados pela Autora Reconvinda de forma a abater à dívida.
22. A 30 de Junho de 2016, a Ré envia um novo e-mail à Autora com um novo plano de pagamentos onde, inclusivamente, refere a possibilidade de obter um empréstimo bancário com vista ao pagamento da dívida.
23. O incumprimento da R. mantém-se e a 10 de outubro de 2016, a Autora remete à Ré uma carta registada a informar que iria proceder ao levantamento de toda a mercadoria que restava no seu armazém atenta a falta de pagamento, o que se veio a verificar.
24. A R. nunca tinha alegado qualquer defeito ou problema técnico dos equipamentos como causa do incumprimento verificado, referindo apenas que o motivo do incumprimento eram dificuldades financeiras que a impediam de efectuar o pagamento da dívida, já acumulada em mais de € 100.000,00, atenta a confiança, até então, depositada pela Autora na Ré.
25. Foram devolvidos pelos clientes à R. os seguintes bens:
1x …
3x …
6x …
5x …
1x ...
3x ...
2x ...
1x ...
1x ...
2x ...
1x ...
2x ...
1x ...
1x ...
1x ...
1x ...
26. A R. devolveu à A. os seguintes equipamentos:
31x ...
10x ...
2x ...
9x ...
10x ...
9x ...
8x ...
4x ...
7x ...
6x ...
10x ...
4x ...
2x ...
4x ...
27. Os bens aludidos em 25. e 26. foram recolhidos e creditados pela A. para diminuição do débito em conta-corrente, estando plasmados na nota de crédito NCV 16001027, de 02/06/2016 e no extracto da aludida contacorrente.
28. A R. deixou de vender produtos da A. e as suas vendas diminuíram em 2016.
29. Alguns dos produtos devolvidos pela R. à A. aludidos em 25. e 26. E creditados à R., apresentavam portas que não fechavam, cujos vidros se partiram, com ruído nos ventiladores, problemas nos termóstatos, sobreaquecimento da parte de baixo do forno, que ligavam e desligavam sozinhos.
*
A 1ª instância, ainda através da sentença, deu como não provada a seguinte matéria:[2]
A) A R. teve custos com os serviços de gestão de reclamações e apoio aos clientes no valor de € 2.000,00 e custos de transporte com os serviços de reparação e/ou devolução dos equipamentos no valor de € 2.587,50.
B) A R. ainda tem na sua posse cerca de 10 fogões devolvidos por clientes, no valor de € 4.800,00.
C) A R. tinha uma previsão de lucro em 2016 com outros produtos, que não da A., de € 45.000, correspondente à venda de 300 equipamentos, com uma margem unitária de € 150.
D) A previsão de lucro da R., apenas dos produtos da A., era em 2016 de € 7.200.
E) A R. tinha uma previsão de lucro em 2017 com outros produtos, que não da A., de € 52.500, correspondente à venda de 350 equipamentos, com uma margem unitária de € 150.
F) A previsão de lucro da R., apenas com os produtos da A., era em 2017 de € 8.400.
G) A R. tinha uma previsão de lucro em 2018 com outros produtos, que não da A., de € 60.000, correspondente à venda de 400 equipamentos, com uma margem unitária de € 150.
H) A previsão de lucro da R., apenas com os produtos da A., era em 2018 de € 9.600.
I) Com um valor total de prejuízos de € 192.087,50 por causa da actuação da A..
J) A R. comunicou à A. outros defeitos em mais de 90 aparelhos, que esta reconheceu e ficaram por resolver.
K) Devido à actuação da A., a R. passou a ser vista como uma empresa que vende produtos de fraca qualidade.
*
IV.
Apreciação das questões do recurso
A- A decisão interlocutória proferida no dia 19.11.2019 (ref.ª 81153077) que sanou uma invocada irregularidade, concedendo à A. prazo para dedução de réplica
Somos chamados a decidir se aquela irregularidade era inexistente e não deveria ter sido concedido o prazo da réplica à A. para responder à reconvenção.
O teor da decisão recorrida:
Veio a A. invocar a nulidade do acto da secretaria de notificação da contestação sem a indicação da existência de qualquer reconvenção ou a junção de documentos.
A R. veio pronunciar-se no sentido de indeferimento do peticionado, alegando além do mais a sua intempestividade.
Cumpre apreciar e decidir.
Compulsados os autos verifica-se, efectivamente, que a secretaria notificou a A. da contestação sem qualquer referência à reconvenção deduzida, como acontece habitualmente, e sem a junção de qualquer documento, que só posteriormente foi junto aos autos e que nunca foi formalmente notificado à A. (o que deveria ter sido até no âmbito do disposto no art. 220º do CPC).
A falta de notificação desses documentos pela secretaria não é despiciendo, tanto mais que a apresentação de qualquer contestação, com ou sem reconvenção, só pode considerar-se completa, após a junção de todos os elementos na mesma assinalados, pois só a partir desse momento a parte contém todos os elementos para se pronunciar integralmente sobre o pretendido.
Dispõe o art. 157º, n.º 6, do CPC que os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.
Constituindo a omissão da secretaria uma irregularidade, deve a mesma ser oficiosamente conhecida, na medida em que tal acarrete prejuízo para a parte (cfr. o Ac. Da RP de 21/03/2018, processo n.º 4316/14.0TDPRT-A.P1, in www.dgsi.pt).
Na verdade, a falta de notificação pela secretaria dos documentos da contestação/reconvenção e sem a prévia alusão à sua inclusão no teor da contestação/reconvenção, constitui uma irregularidade que pode influir no exame ou na decisão da causa (arts. 195º e ss. do CPC) e uma irregularidade que prejudica as partes.
É certo que a A. foi posteriormente notificada pela R. da ‘junção de documentos’, sem contudo se fazer a correspondência com o que era alegado em reconvenção e sem que os mesmos estivessem integralmente traduzidos, até ao presente momento.
Razão pela qual se entende que, além da A. estar em tempo para arguir a irregularidade em causa (de que agora tomou conhecimento mormente em relação aos documentos dos autos, agora integralmente traduzidos), deve a referida irregularidade ser sanada, com a concessão de prazo à A. para, querendo, apresentar a réplica, tendo a partir deste momento os elementos necessários para o fazer e o prazo que agora começa a contar-se (após a notificação deste despacho).
(…)”.
Vejamos.
A R. deduziu contestação com reconvenção no dia 25.1.2019. Ali, requereu a produção de meios de prova e protestou juntar um documento em 30 dias.
Daquele articulado consta efetivamente, no seu introito, imediatamente antes do artigo 1º, a expressão “CONTESTAÇÃO COM RECONVENÇÃO”. Não obstante ter sido envida pela secretaria cópia desta peça processual à A. no ato de notificação, do respetivo ofício, enviado no dia 29.1.2019, consta simplesmente:
«Assunto: Contestação
Fica notificado, relativamente ao processo supra identificado, da junção da Contestação aos presentes autos, cujos duplicados se remetem.
Mais se informação que o réu protestou juntar no prazo de 30 dias o DOC 1».
A falta de referência à reconvenção no ofício de notificação terá induzido em erro a A. no sentido de que a R. se limitava a contestar a ação. Nesse pressuposto, não replicou. Não se tratando de uma ação de simples apreciação negativa e estando a A. convencida --- pelos termos do ofício de notificação --- de que inexistia reconvenção, não tinha que se preocupar com a leitura da suposta cópia da contestação dentro de qualquer prazo, pois que não haveria lugar a réplica (art.º 584º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil[3]). Com o atual Código de Processo Civil, a réplica deixou de ter lugar para resposta às exceções deduzidas na contestação, função esta que anteriormente também desempenhava.
A notificação da contestação ou da contestação com reconvenção é da responsabilidade da secretaria. Só a partir daí se impõe a notificação entre mandatários (art.º 221º, nº 1).
Trata-se de um ato que, caso não seja escrupulosamente cumprido, pode causar prejuízo muito significativo ao autor (art.º 220, nº 1).
De acordo com o nº 3 do art.º 219º, tanto a citação como as notificações são sempre acompanhadas “de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto”.
Explicam A. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e L. Filipe Pires de Sousa[4] que o nº 3 do art.º 219º institui o princípio da transparência da citação e da notificação, impondo a completude e legibilidade dos elementos necessários à compreensão do ato recetício em causa (art.º 131º, nº 3) e que a sua inobservância é suscetível de geral nulidade processual, nos termos do art.º 195º, nº 1.
A notificação da reconvenção ao autor não é um ato de somenos importância. A falta de apresentação da réplica ou a falta de impugnação dos novos factos alegados pelo réu tem o efeito previsto no art.º 574º (cf. art.º 587º), ou seja, pode, mediante a exclusão de determinadas condicionantes, conduzir à admissão por acordo dos factos alegados pelo réu que não forem impugnados. É na réplica que o autor tem que deduzir toda a defesa relativamente à matéria da reconvenção (art.º 584º, nº 1).
Não contendo o Código de Processo Civil, para a notificação da reconvenção, norma semelhante à que nele se prevê para a citação do réu no art.º 563º --- o dever de advertência, no ato de citação, da consequência da falta de contestação ---nem por isso deixam de se justificar para a notificação da reconvenção, as especiais cautelas que nortearam aquela norma. A falta de réplica implica, como vimos, a revelia do reconvindo quanto ao pedido reconvencional.
A réplica desempenha, em face da reconvenção, o mesmo papel que a contestação (defesa) do réu em face da petição inicial: é, por sua natureza, uma contestação da reconvenção, inteiramente sujeita, ressalvadas as devidas adaptações, ao regime da contestação.[5] Ou, como escreve Paulo Pimenta[6], “(…) a reconvenção corresponde a uma acção que se cruza, no mesmo processo, com uma outra já pendente, proposta pelo autor, e que encerra uma pretensão de tutela jurisdicional que o réu sempre poderia formular em acção instaurada com esse objectivo.
Assim sendo, o regime processual a que se sujeita tal pedido do réu há-de ser idêntico, seja apresentado em reconvenção, seja em acção própria. (…)”.
Neste conspecto, em que a notificação da secretaria apenas se refere à existência de contestação e a um documento que irá ser junto ao processo em momento posterior, temos como desculpável a A. não se ter apercebido da existência de reconvenção, apesar do envio e receção de cópia do articulado da contestação, contendo reconvenção.
Mas ainda que se considerasse indesculpável o erro da A. induzido pela secretaria, a verdade é que a notificação, tal como a R. na reconvenção, aludiu à junção futura, em 30 dias, de um documento probatório inerente ao articulado em causa.
Esse documento poderia ser necessário à plena compreensão do objeto da reconvenção. A sua falta pode influir no exame daquela peça processual e tolher o exercício da defesa da A. na réplica. Tanto assim que a própria R., por requerimento de 28.2.2019, informou o tribunal que tal documento é composto por centenas de páginas em língua alemã, solicitando prorrogação de prazo para a sua apresentação com a devida tradução, o que foi deferido, por 15 dias.
Foi posteriormente junto o alegado documento, em vários requerimentos dos dias 11, 12 e 13 de março de 2019, que, na realidade, são vários documentos --- como a própria R. assumiu em vários dos requerimento de apresentação (cf. pág.s 2613, 2558, 2455, 2351, 2302, 2245, 2143, 2040, 1967, 1894 e 1817, do histórico do processo electrónico[7]), contendo dezenas de e.mails, parcialmente ilegíveis, conforme acusou a A. aquando da sua notificação, sendo que, com cada requerimento de notificação, a R. referiu o documento ou os documentos que protestou juntar com a contestação.
O requerimento junto pela A. a pág.s 1812, no dia 26.3.2019 que motivou a resposta da R. de pág.s 1808 e 1809, deixa transparecer que ainda não se tinha apercebido de que a R. havia deduzido reconvenção e foi determinante para que a R. corrigisse as irregularidades relativas à sua junção, designadamente as ilegibilidades e traduções, o que justificou novas dilações e novas entregas, mais uma vez sempre com referência à contestação.
Só com a notificação do requerimento que a R. apresentou em 16.10.2019, depois da A. se ter pronunciado, em 2.10.2019, sobre os documentos definitivamente juntos em condições de serem apreciados, a A. declarou ter-se então apercebido da existência de reconvenção, arguindo a nulidade processual.
Dado este conjunto de vicissitudes, a A. ter-se-á convencido, desde o momento em que foi notificada da constestação de que inexistia reconvenção e só com a explicação produzida pela R. no requerimento de 16.10.2019, se tornou exigível à A. o conhecimento da existência da pretensão reconvencional, pelo que, ao invocar a nulidade processual secundária relativa à irregularidade da notificação no dia 31.10.2019, fê-lo em tempo, no prazo de 10 dias que resulta da aplicação dos art.ºs 149º e 199º, nº 1, última parte.
É de admitir também que a própria falta de apresentação dos documentos (centenas de páginas de documentos) com a reconvenção influísse no conteúdo daquele articulado, assim, no exame que a reconvinda sempre havia de fazer da causa, o que fundamenta também a invocada nulidade processual ao abrigo do art.º 195º, nº 1, parte final, em conjugação com os art.ºs 219º, nº 3 e 423º, nº 1.
Por tudo quanto fica exposto, confirma-se a decisão interlocutória recorrida que julgou procedente a nulidade processual invocada e admitiu a réplica.
*
B- Da sentença
1. Nulidade da sentença
Passa depois a R. recorrente a invocar a nulidade da sentença por, na respetiva fundamentação, não discriminar um “conjunto vasto” de materialidade alegada pela demandada na contestação/reconvenção que discriminou como correspondente a determinados artigos que identificou.
Dispõe o art.º 615º, nº 1, al. b), que “a sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
O art.º 154º, nº 1, determina que “as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas”. Esta norma decorre do comando que o art.º 205º da Constituição da República prevê: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
É pela fundamentação que a decisão se revela um ato não arbitrário, a concretização da vontade abstrata da lei ao caso particular submetido à apreciação jurisdicional. É por ela que as partes ficam a saber da razão ou razões do decaimento nas suas pretensões, designadamente para ajuizarem da viabilidade da utilização dos meios de impugnação legalmente admitidos.
Não surpreende, pois, que a falta de fundamentação da decisão, quando ela é devida, gere a sua nulidade. Tal falta, trate-se de um mero despacho ou de uma sentença, há de revelar-se por ininteligibilidade do discurso decisório, por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira. Só aquela ausência de motivação torna a peça imprestável ou impercetível. Uma errada, insuficiente ou incompleta fundamentação não afeta o valor legal da decisão qua tale[8]. Ou seja, a norma penaliza a falta absoluta de fundamentação da decisão de uma das suas questões a tratar e decidir, não padecendo desse vício aquela que contém uma fundamentação deficiente, medíocre ou mesmo errada.[9]
Como escreveu o Professor Alberto dos Reis[10], «o que a lei considera causa de nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou a mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz a nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto”.
Bem ou mal --- não interessa para resolver esta questão ---, a decisão recorrida está fundamentada, como resulta à evidência do texto da sentença, quer pela fixação da matéria de facto considerada como provada e como não provada, quer pela subsunção jurídica subsequente. A matéria de facto dada como provada está descrita dos pontos 1 a 29 e a matéria dada como não provada está igualmente discriminada, sob as alíneas a) a k), na sentença.
Se existem outros factos alegados que a recorrente considera relevantes para a decisão da ação ou da reconvenção, o problema não é de falta de fundamentação de facto, mas de averiguação sobre a existência e relevância desses outros factos e a sua eventual adição à matéria de facto provada e não provada, em sede de modificação da decisão em matéria de facto (art.º 662º).
Decorre do exposto que a sentença está fundamentada, de facto e de Direito, não ocorrendo a apontada nulidade.

A recorrente parece propugnar ainda a nulidade da sentença com fundamento em ininteligibilidade, nos termos da al. c) do nº 1 do art.º 615º.
Quanto a esta questão, extrai-se do corpo das alegações de recurso:
«A formulação constante da sentença recorrida reportada ao dever de fundamentação constante do art. 704º, nº 4, do Código de Processo Civil: “Foram considerados como factos não provados: todos os demais alegados que contrariam ou excedem os acima expostos [os 28 indicados como provados], nomeadamente os alegados em 6° a 11°, 58° a 77° da petição de embargos” é complexa, obscura, não permitindo a imediata exigível compreensão e apreensão dos factos que a sentença considerou não provados, pois implica uma indagação analítica e especiosa sobre quais são os factos não provados, com referência à formulação complexa “todos os demais alegados que contrariem os acima expostos, nomeadamente os alegados nos arts. 6º a 11º, 58º a 77º da petição dos embargos”».
Em tese, acontece serem alegados factos sem relevância para a decisão das questões que cumpre ao tribunal conhecer, seja relativamente à causa de pedir, seja em matéria de exceção, ou ainda em matéria reconvencional, quando exista.
Quando o tribunal dá como provados ou não provados determinados factos, há de atender apenas àqueles que relevam para a decisão a proferir; não tem que os transcrever todos.
Ora, o tribunal, na sentença, especificou, discriminou, factos concretos no âmbito dos factos que deu como provados e não provados: registou 29 factos provados e 11 factos não provados que identificou sob as al.s A) a K). Estes constituem, para o tribunal, os factos mais relevantes na decisão da ação e da reconvenção.
A indicação ali escrita pelo tribunal de que, além daqueles, não se provaram os demais factos constantes dos autos, não deixa qualquer dúvida quanto ao que se provou e não provou e aponta para a desnecessidade da sua transcrição.
Não há qualquer ininteligibilidade do referido texto.
A ininteligibilidade, seja por ambiguidade, seja por obscuridade, pressupõe que a sentença seja equívoca ou imprecisa, apresentando plurissignificações argumentativas ou decisórias ou quando a fundamentação ou decisão não exteriorizam, respetivamente, o que foi argumentado ou deliberado, bloqueando qualquer compreensão analítica do seu substrato legal ou da racionalidade do seu discernimento jurídico, tendo repercussões tanto a nível declarativo (efeito imediato), como da sua consequência prática (efeito mediato), ao ponto de se tornar ininteligível, incompreensível.
Com ou sem acerto na decisão em matéria de facto ou na aplicação do Direito --- não releva agora para os fundamentos da nulidade invocada --- a sentença recorrida é perfeitamente inteligível, está motivada de modo compreensível e foi, aliás, bem compreendida pela recorrente, como resulta dos próprios termos do recurso.
Designadamente, os seus fundamentos de facto são perfeitamente compreensíveis e têm sentido lógico sequencial. Lida a fundamentação de facto (e de Direito) da sentença, percebe-se perfeitamente, o que o tribunal quis que fosse dado como provado e o que fosse dado como não provado.
O texto da sentença, em matéria de facto, é claro e unívoco.
Aquilo de que a recorrente discorda, verdadeiramente, é de alguns dos factos que foram dados como provados e de outros que foram considerados não provados (transcritos ou não transcritos na sentença); discorda também da solução jurídica que, à sua luz, foi encontrada, mas isso não é um problema de nulidade da sentença, será (eventualmente) erro de julgamento.
Não ocorre qualquer fundamento que possa constituir nulidade da sentença nos termos do art.º 615º, nº 1, al. c).
Improcede também esta nulidade.
*
2. Erro de julgamento relativo à decisão em matéria de facto
A recorrente deu cumprimento ao ónus de impugnação previsto no art.º 640º, nº 1, al.s a), b) e c) e nº 2, al. a). Identificou perfeitamente os pontos e as alíneas da matéria de facto provada e não provada relativamente à qual assinalou a sua discordância, propôs relativamente a cada facto impugnado a versão que considera ter ficado demonstrada na ação e indicou as provas que tem por relevantes para as alterações pretendidas, seja por referência a determinados documentos, seja com indicação de declarações e depoimentos relativamente aos quais designou, no corpo das alegações, as passagens da gravação que considera pertinentes, transcrevendo até alguns excertos, cuja extensão pouco ou nada importa, contanto que seja indicada como relevante pela apelante.
A impugnação recai sobre os pontos 12°, 14º, 16º, 17º, 18º e 24° dos factos dados como provados, as al.s A), B), J) e K) dos factos dados como não provados e os artigos 8º, 9º e 34º, 12º a 18º, 23º, 44º, 45º, 56º e 58º a 65º da contestação-reconvenção cujo teor pretende que seja dado como provado.
Na perspetiva da recorrente, aqueles pontos, alíneas e artigos, face à prova produzida, devem ser objeto das seguintes alterações:
Ponto 12- A R. era representante da marca comercializada pela A. para o mercado alemão, tendo a A. realizado para a Alemanha a certificação CE para os seus modelos ... e ..., de acordo com a Diretiva de aparelhos a gás n.º 2009/142/CE.
Ponto 14- A R. procedia ao envio do produto ao cliente final, que já vinha embalado de Portugal, e ficava a cargo do comprador a montagem e instalação dos produtos.
Ponto 16- A A. remeteu, sempre que lhe foi solicitado pela R., através do serviço Webservice disponibilizado para o efeito, todos os acessórios e peças requisitados pela mesma, os quais foram sempre fornecidos gratuitamente ao abrigo da garantia.
Ponto 17- A A. suportou a devolução de eletrodomésticos do armazém da R., na Alemanha, para o armazém da A., em Portugal, existindo, contudo, 8 (oito) a 10 (dez) equipamentos reclamados que estão por resolver, em termos técnicos.
Ou,
Ponto 17- A A. suportou a devolução de eletrodomésticos do armazém da R., na Alemanha, para o armazém da A., em Portugal, existindo, contudo, 5 (cinco) equipamentos reclamados que estão por resolver, em termos técnicos.
Ponto 18- Deve transitar para a matéria não provada.
Ponto 24- A R. alegou à A. os defeitos ou problemas técnicos dos equipamentos e o impacto económico que isso lhe estava a provocar como causa do incumprimento verificado.

Al. A)- Deve transitar para os factos provados como ponto 30: A R. teve custos com os serviços de gestão de reclamações e apoio aos clientes no valor de € 2.000,00 e custos de transporte com os serviços de reparação e/ou devolução dos equipamentos no valor de € 2.587,50.
Al. B)- Deve transitar para os factos provados como ponto 31, com o seguinte texto: A R. ainda tem na sua posse 10 fogões devolvidos por clientes após o fim do contrato com a A., de montante a apurar.
Ou
Al. B)- A R. ainda tem na sua posse 5 fogões devolvidos por clientes após o fim do contrato com a A., de montante a apurar.
Al. J)- Deve transitar para os factos provados como ponto 32, com o seguinte texto: A R. comunicou à A. os defeitos de muitos aparelhos, que esta reconheceu.
Al. K)- Deve transitar para os factos provados como ponto 33: Devido à atuação da A., a R. passou a ser vista como uma empresa que vende produtos de fraca qualidade.

Quanto ao artigo 8º da contestação-reconvenção deve transitar para os factos provados nos seguintes termos:
Ponto 34: Acontece porém que dezenas de fornos, fogões e placas fornecidos pela A. e vendidos pela R. no mercado alemão foram objeto de inúmeras reclamações por parte dos clientes finais.

Relativamente aos artigos 9º e 34º da contestação-reconvenção, devem acrescer ao ponto 29 dos factos provados que deve passar a ter o seguinte texto: Dezenas de produtos fornecidos pela A. à R., alguns dos quais devolvidos por esta àquela em 25 e 26 e creditados à R., apresentavam portas que não fechavam, cujos vidros se partiram, com ruído nos ventiladores, problemas nos termóstatos, sobreaquecimento da parte de baixo do forno, ligavam e desligavam sozinhos, tabuleiros inseridos nos fornos que correspondiam a outros modelos, tabuleiros de tal forma afiados que chegaram a cortar os dedos dos clientes, forno e placa de gás não funcionarem simultaneamente, as velas de ignição dos fogões não ligarem.
Os artigos 12 a 18 devem transitar para os factos provados como se segue:
35- Foram largas dezenas de reclamações efetuadas à R., desde pelo menos 2015, por parte dos seus clientes.
36- Muitos deles manifestando de forma veemente o seu desagrado, especialmente no caso dos defeitos reportados por ocasião de épocas festivas como no Natal.
37- Por tudo isso, a R. foi obrigada a afetar recursos humanos à gestão das avarias reportadas, quer na relação direta com o cliente, quer com a A., quer com as equipas de intervenção, verificação e reparação.
38- Em muitos casos, procedeu-se a intervenções nos equipamentos dos clientes, mas os problemas antes reportados (ou novos) voltavam a repetir-se.
39- Por isso, foram muitos os equipamentos devolvidos pelos clientes à R.,
40- Tendo esta devolvido o dinheiro aos clientes.
41- A R. ia informando a A. daquelas reclamações, bem como das intervenções e das devoluções de material, solicitando sempre a sua intervenção para a resolução de todos os problemas reportados.

Os artigos 22 e 23 passam para os factos provados, com o seguinte teor:
42- Perante tal conduta, teve de ser a R. a assumir os custos inerentes às intervenções e reparações nos equipamentos e respetivas deslocações, ao levantamento e transporte dos equipamentos defeituosos, e teve em muitos casos de aceitar a devolução dos equipamentos vendidos e de proceder à total devolução do preço pago aos clientes.
43- Desse modo, os fogões, fornos e placas fornecidos pela A. à R. não possuíam as qualidades necessárias para desempenhar a sua função.

Os artigos 44 e 45 devem passar para os factos provados, assim:
44- Inicialmente, a R. negou a existência de qualquer defeito nos seus equipamentos.
45- Mas, posteriormente, acabou por reconhecer os defeitos denunciados pelos clientes.

Os artigos 56 e 58 a 65 deverão passar, ainda na perspetiva da recorrente, para os factos provados sob os seguintes pontos:
46- O que se deveu à cada vez menor procura pelos clientes da R. dos produtos da A., em função do conhecimento que se espalhou no mercado sobre a fraca qualidade dos produtos desta.
47- Acresce que as vendas gerais da R., nomeadamente nos canais L… e M…, têm vindo a diminuir desde 2016 até à actualidade, devido à crise de confiança que se instalou no mercado relativamente à qualidade dos bens por si fornecidos.
48- Ou seja, devido ao largo número de reclamações, originadas pelos defeitos dos produtos fornecidos pela A., o bom-nome que a R. despertava no mercado foi seriamente afetado.
49- Efectivamente, devido aos defeitos supra enumerados, o mercado Alemão em geral e os clientes da R. em particular passaram a associá-la a uma empresa que vende produtos de fraca qualidade,
50- Pondo em crise, por um lado, o seu prestígio, reputação e bom-nome,
51- E, por outro, causando, como causou, um impacto financeiro negativo.
52- De facto, as vendas gerais da R. diminuíram naqueles anos de 2016 até hoje, e, por consequência, a sua liquidez foi seriamente afetada pondo em risco o seu equilíbrio económico-financeiro, ou seja a sua capacidade para honrar pontualmente todos os seus compromissos, seja com os trabalhadores, com as autoridades fiscal e da segurança social alemãs, com a banca e com os fornecedores.
53- Tudo isso conduziu, inclusivamente, à frustração da capacidade de atrair novos negócios, pois a reputação de mercado da R. foi profundamente atingida.
54- Ou seja, a clientela afastou-se com a consequente frustração de vendas e diminuição do lucro.

Entende-se atualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no art.º 662º, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (art.º 655º do anterior Código de Processo Civil e art.º 607º, nº 5, do novo Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efetivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efetiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes[11], “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”… “afastando definitivamente o argumento de que a modificação da decisão da matéria de facto deveria ser reservada para casos de erro manifesto” ou de que “não é permitido à Relação contrariar o juízo formulado pela 1ª instância relativamente a meios de prova que foram objecto de livre apreciação”, acrescentando que este tribunal “deve assumir-se como verdadeiro tribunal de instância e, por isso, desde que, dentro dos seus poderes de livre apreciação dos meios de prova, encontre motivo para tal, deve introduzir as modificações que se justificarem”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pela recorrente e, se necessário, outras provas, como sejam as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção da Ex.ma Juiz, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efetivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, se necessário, a decisão em matéria de facto.
Ensina Vaz Serra[12] que “as provas não têm forçosamente que criar no espírito do juiz uma absoluta certeza acerca dos factos a provar, certeza essa que seria impossível ou geralmente impossível: o que elas devem é determinar um grau de probabilidade tão elevado que baste para as necessidades da vida”. É a afirmação da corrente probabilística, seguida pela maior parte da doutrina que, opondo-se à corrente dogmática, considera não exigível mais do que um elevado grau de probabilidade para que se considere provado o facto. Mas terá que haver sempre um grau de convicção indispensável e suficiente que justifique a decisão, que não pode ser, de modo algum, arbitrária, funcionando aquela justificação (fundamentação) como base de compreensão do processo lógico e convincente da sua formação.
Vejamos então!
A complexidade da materialidade e a referência probatória que foi efetuada na motivação da sentença para os factos que foram impugnados, levaram a Relação a ouvir toda a prova gravada, no uso dos poderes que lhe são cometidos pela 1ª parte do nº 2 do art.º 640º.
De um mogo geral, toda a prova produzida evidencia um conteúdo valioso para a decisão da matéria de facto, não devendo olvidar-se as regras da experiência comum também enquanto meio de análise interpretativa dos testemunhos dos vários depoentes/declarantes, especialmente na parte em que se discutem as causas da cessação de pagamentos dos equipamentos que a A. fornecia à R. e que esta vendia em regime de consignação, enquanto cerne da relação comercial que travaram entre junho de 2014 e outubro de 2016.
Ficámos efetivamente convencidos de que os problemas nos equipamentos transacionados que a A. assumiu entregar e entregou à R., na Alemanha, e que esta vendia on-line, através de duas plataformas informáticas (L… e M…), podiam ter várias origens, a saber: danos causados nos transportes da mercadoria, seja o transporte internacional por contentor, seja no interior da Alemanha, percorrendo muitas vezes longas distâncias entre o armazém da R. e o cliente, nas respetivas operações de carga e descarga; erros de instalação do equipamento, sobretudo os fogões a gás, que eram da responsabilidade do cliente e deveria ser assistida por um técnico por ele contratado; e vícios de fabrico que, em alguma medida, sempre ocorrem nos equipamentos domésticos de cozinha, por qualquer falha construtiva do equipamento ou da aplicação ou construção dos seus acessórios.
Se a A. assumiu a responsabilidade pelo transporte das mercadorias, mesmo no interior da Alemanha, a R. assumiu a obrigação de contratar uma empresa de prestação de serviços de assistência técnica aos equipamentos da marca F… (a marca da A.), designadamente aos fogões e respetivos fornos --- o grosso de vendas que a R. protagonizava dos produtos recebidos da A. --- para assistir os clientes no período de dois anos de garantia pós venda. Mas sempre que foi necessário substituir algum acessório ou alguma parte de equipamentos com defeito e isso foi solicitado à A., esta assumiu essa responsabilidade sem qualquer custo para a R.
Esta matéria foi referida pelo legal representante da A. nas suas declarações, de modo explicado e convincente, foi secundado pelo seu filho e diretor de exportação, G… e, no essencial, não foi significativamente contrariada por nenhuma das outras testemunhas.
Os documentos (ou documento, como intitulou a R.), com centenas de páginas (originais e tradução), juntos com os requerimentos de 9.9.2019 (pág.s 817 a 1780[13]), onde são descritas várias reclamações dos clientes, por e.mails enviados à R., em parte confirmados em audiência, por testemunhas, em análise por amostragem, são suficientes para a confirmação de que, pelo menos alguns dos vícios encontrados nos equipamentos de cozinha resultam do seu fabrico, mas também de que algum do material que a A. retomou do armazém da R., na sequência da resolução do contrato, evidenciava danos causados pelos transportes, cargas e descarga (vidros do forno partidos e chaparia amolgada) e parte deles podia resultar de instalação e manuseamento deficientes.
A ausência de correspondência entre A. e R. em que esta justificasse o não pagamento à A. dos bens que vendia com a existência de reclamações de defeitos e devoluções, entre outros problemas, e o reconhecimento pelo legal representante da R., E…, da existência desse progressivo incumprimento e da falta da prestação periódica de contas, a partir de finais de 2015, apontam claramente para uma situação de vícios de construção pouco significativos no conjunto dos bens vendidos e até das reclamações efetuadas.
Esta conclusão sai reforçada com a prova de sucessivos pedidos da R., através do seu legal representante, para que a A. aceitasse o pagamento em prestações da quantia em dívida (já de valor superior a € 100.000,00), tendo sido a última a recusar que o pagamento se fizesse dessa forma, pela quantia proposta de € 3.000,00 por mês, propondo a quantia de € 5.000,00 que a R. não aceitou. Para além de referências nas declarações de parte do legal representante da A. e da testemunha G…, há documentação nos autos neste sentido relativamente a estes factos (doc.s de pág.s 680, 765 a 768, também a pág.s 3074 a 3077).
Acresce ainda que não foi a R., mas a A. que decidiu colocar termo à relação comercial.
Efetuada esta apreciação geral do caso, vejamos a matéria efetivamente impugnada.

Ponto 12
O essencial é saber se os aparelhos a gás que a A. destinava ao mercado alemão estavam certificados para aquele mercado.
O declarante H… referiu que todos os produtos que a A. fabrica e venda para todos os continentes, incluindo a Austrália, estão certificados em função do seu destino, tendo a Alemanha uma certificação especial para os fogões a gás, por causa da específica pressão utilizada naquele país. Os fogões estavam certificados para o mercado alemão.
A A. não fornecia à R. apenas fogões a gás; também fornecia fogões elétricos e combinados e outros eletrodomésticos.
Os fogões a gás estavam certificados para a Alemanha, conforme documentos nºs 1 e 2 juntos com a (primeira) réplica (pág.s 760 a 763). Confrontado o legal representante da A. sobre a certificação dos produtos para a Alemanha, nem o ilustre mandatária da R. colocou em causa a certificação de algum modelo dos fogões a gás que eram vendidos para aquele país, designadamente pelo confronto com outros documentos.
Seja como for, a cerificação comprovada nos autos refere-se a modelos … e …, de acordo com a diretiva de aparelhos a gás nº 2009/142/CE.
O ponto 12 passa a ter o seguinte teor, proposto pelo R.:
12. A R. era representante da marca comercializada pela A. para o mercado alemão, tendo a A. realizado para a Alemanha a certificação CE para os seus modelos … e …, de acordo com a Diretiva de aparelhos a gás n.º 2009/142/CE.

Ponto 14
Foram várias as prestações probatória, incluindo da parte de H… de que os produtos eram entregues ao cliente com a embalagem que a A. lhes dava em Portugal. Não eram embalados pela R., o que, de resto, não teria justificação, segundo as regras da experiência, nada justificando a substituição do embalamento de origem.
O ponto 14 passa a ter o seguinte teor:
14. A R. procedia ao envio do produto ao cliente final, que já vinha embalado de Portugal, e ficava a cargo do comprador a montagem e instalação dos produtos.

Ponto 16
Não há elementos seguros no processo para a quantia de € 2.483,99 ou qualquer outro valor como sendo o custo suportado pela A. com a substituição de acessórios requisitados pela R. H… e o filho G… não confirmaram qualquer valor. Mas está efetivamente provado que a A. nunca cobrou nada à R. quando esse material lhe era requisitado, designadamente para que as reparações fossem efetuadas.

O ponto 16 passa a ter o seguinte teor:
A Autora remeteu, sempre que lhe foi solicitado pela R., através do serviço Webservice disponibilizado para o efeito, todos os acessórios e peças requisitados pela mesma, os quais foram sempre fornecidos gratuitamente ao abrigo da garantia.

Ponto 17
O representante legal da R., nas suas declarações, referiu que, já depois da resolução do contrato e do levantamento (por duas vezes, em maio e em outubro de 2016) dos produtos da A. existentes no armazém, ainda ocorreram cerca de 8 a 10 devoluções de equipamentos que ainda se encontram no seu armazém e cuja situação está por resolver. Há alguns documentos juntos com a contestação que indicam também algumas devoluções posteriores ao último levantamento de mercadoria.
O ponto 17 passa a ter seguinte texto:
A A. suportou a devolução de todos os eletrodomésticos (em bom estado e danificados ou defeituosos) do armazém da R., na Alemanha, para o armazém da A., em Portugal, até ao mês de outubro de 2016, tendo havido, porém, posteriormente, devolução à R. de cerca de 5 a 10 equipamentos de fogão por clientes depois dessa data que a A. então não discutiu nem assumiu.

Ponto 18
A testemunha G… explicou esta situação, subjacente ao documento junto com a (primeira) réplica, a pág.s 764. A ideia da A. era manter as suas vendas no mercado alemão através de outro representante, para o que tinha que contratar uma empresa que assegurasse o funcionamento das reparações na garantia dos equipamentos. Por isso contactou a D… (que trabalhava com a R.) para o efeito, ficando então a saber que existia uma dívida da demandada. A própria A. pagou essa dívida para poder sustentar o seu bom nome comercial no mercado daquele país, onde desejava continuar a vender os seus produtos. Indicou, no entanto, um valor superior ao documentado na referida nota de crédito que o tribunal desconsiderou e bem, atendendo apenas ao valor documentado.
Este ponto mantém-se como provado.

Ponto 24
Apesar da R. ter solicitado à A. acessórios dos equipamentos com vista a substituições, durante a relação comercial, designadamente pelo telefone e por e.mail, nunca reportou à demandante a existência de defeitos ou problemas técnicos como causa do não pagamento da dívida que se ia acumulando. Diferentemente, o que fez foi pedir prazo para pagar, designadamente em prestações, enquanto a dívida se ia agravando desde finais do ano de 2015, até que a A. deixou de a fornecer a partir de fevereiro de 2016. O legal representante da R. ainda referiu estar a diligenciar pela obtenção e um empréstimo para pagar a dívida peticionada. Sempre foi dificuldade financeira o argumento que o representante legal da R. invocou para não pagar, tal como se comprova também por documentos juntos ao processo.
Não é a existência de problemas técnicos ou de outra ordem nos equipamentos que está em causa neste ponto, mas a sua relação com o não pagamento do preço.
Importa não olvidar que a R. tinha assumido suportar os custos da garantia, para o que contratou a assistência técnica com a D….
A A., ao retomar todo o material existente no armazém da R., cerca de metade em bom estado e outra metade danificado, em maio e em outubro de 2016, não discutiu as causas dos danos ou vícios dos equipamentos, o que não significou reconhecimento de defeitos de origem (embora pudessem existir), mas boa vontade na resolução dos problemas existentes entre as partes.
O que resulta das regras da experiência é que o comerciante normal, minimamente avisado, documenta as diversas situações do seu comércio. Não é razoável admitir que a R. alguma vez tivesse justificado o não pagamento da dívida por causa de defeitos de fabrico da A. sem o envio de simples e.mails a consignar essa sua posição. Mais, tendo-o feito, no entanto, para afirmar as suas dificuldades em pagar.
Este ponto não merece qualquer reparo, pelo que se confirma.

Matéria dada como não provada
Al. A)
Está bem patente nas prestações testemunhais dos ex-funcionários da R., I… e J…, assim como na generalidade da demais prova oralmente produzida que a R. suportou custos com a assistência técnica de garantia dada aos clientes, designadamente com a contratação da sociedade D…. Mas desconhecemos se o custo do transporte dos equipamentos estava ou não estava incluído no contrato de prestação de serviços de reparação celebrado com esta empresa e que outros custos suportou.
Este facto deve manter-se na matéria dada como não provada.

Al. B)
Esta matéria é retirada da matéria dada como não provada, estando já refletida no ponto 17 dos factos provados.

Al. J)
O que G… reconheceu no seu depoimento foi que o R. lhe pedia acessórios e os enviava para a Alemanha, não propriamente que o R. lhe reportava defeitos pelos quais a R. devesse responder para além do envio dos acessórios (que fazia gratuitamente). Esclareceu esta testemunha que apenas esporadicamente, em 3 ou 4 casos, a R. lhe reportou defeitos nos equipamentos, que o depoente considerou tratar-se de problemas de instalação e dano (2 ou 3 casos de vidro partido).
Não está provado que naquelas situações os problemas tivessem ficado por resolver.
A al. J) mantém-se na matéria dada como não provada.

Al. K)
Esta matéria foi afirmada pelas testemunhas indicadas pela R. e pelo seu legal representante. Mas não basta dizer, é necessário convencer.
A todo o momento, a R. poderia ter rescindido o contrato com a A., salvaguardando o seu nome e reputação no mercado on-line (onde vendia os equipamentos), se assim o desejasse. Não resulta de qualquer meio de prova produzido que alguma vez fosse intenção da R. fazer cessar a sua relação comercial com a A. Pelo contrário, foi sempre encomendando e vendendo os produtos da A. que bem entendeu e enquanto quis, rectius, até ter sido a própria demandante a fazer cessar o contrato. De resto, a R. não comprava os produtos, recebia-os à consignação e tinha toda a liberdade para devolver o que não lhe interessasse, como, aliás, aconteceu em maio de 2016.
Esta matéria mantém-se como não provada.

Os (novos) factos alegado pela R. na contestação-reconvenção
Esta matéria encontra apoio probatório nos documentos juntos com os requerimentos de 9.9.2019 corroborados pelos depoimentos das testemunhas I…, que trabalhou na R. cerca de 3 anos, entre 2015 e 2017 ou 2018, no serviço das encomendas dos clientes, expedição de produtos, faturação e reclamações, sempre on-line. Confirmou muitas das reclamações apresentadas e documentadas e referiu que a R. perdeu clientes para os fogões por causa das reclamações. Mas afirmou também que, se por causa destes problemas a R. ficou incapacitada de atrair novos negócios, também não sabe como é que o Sr. E… geria o dinheiro que cobrava pelas vendas que fazia e não conseguiu quantificar as reclamações. Tudo o que tinha a ver com o dinheiro era tratado pelo Sr. E…. Ele chegou a restituir a clientes o preço de fogões que lhe eram devolvidos. Alguns clientes reclamavam logo que recebiam o produto e outros reclamavam mais tarde.
J… foi empregado da R. de agosto de 2013 até ao início de 2016, trabalhando apenas no armazém, em cargas e descargas. As reclamações dos clientes não passavam por ele e era recorrente nem chegar a saber o que continham as embalagens. Só se apercebia de que havia fogões quando foram devolvidos. Refere que foram várias as devoluções, mas não sabe qual era o problema dos fogões. Foi despedido por haver problemas financeiros na R., mas nem sabe qual foi sua a causa dessa situação.
A testemunha K… é enteada do E…, trabalha na R. desde 2013, nos serviços de contabilidade. Sabe que existiu uma quebra de lucros, mas desconhece a sua origem. Desconhece as anomalias dos produtos e não se recorda muito bem da situação, dado o tempo de corrido, mas confirmou a devolução de preços pela R. a clientes, por ser visível nos relatórios anuais e nas revisões de mapas que fizeram.
Esta testemunha e o legal representante da R. acabaram por atribuir às reclamações a causa da perda de lucros, de mercado e de boa imagem da R. Mas a sua versão não pode deixar de ser confrontada com outras provas, documentais e depoimentos do legal representante da A. e de seu filho G…, evidenciando-se que a existência de defeitos em vários equipamentos não era invocada como causa de não pagamento dos preços devidos pela R. à A.
As dúvidas surgidas não permitem, designadamente, relacionar a perda de lucros com a existência de defeitos de mercadoria imputáveis ao fabrico dos equipamentos. Estes existiam, mas outros havia relacionados com o transporte e manuseamento dos equipamentos, sendo que a instalação dos fogões não era da responsabilidade da A. nem da R., mas do cliente, e a Alemanha é especialmente exigente em matéria de instalação de fogões a gás.
A R. não afetou novos recursos humanos por causa das avarias. A assistência ao cliente era desenvolvida pela D….
A R. deixou mesmo de enviar à A. relatórios periódicos a que se obrigara e não há prova de que tivesse reportado os problemas nos equipamentos à medida que iam surgindo e fossem feitas as reclamações.
A afirmação de que determinados equipamentos “não possuíam as qualidades necessárias para desempenhar a sua função” é conclusiva.
Também ficou dúvida séria sobre as causas da atual situação económica da R., designadamente se resultam de qualquer afetação do seu bom nome e reputação com origem na venda dos produtos da A. O que resulta do processo é que a R. deixou de vender os produtos da A. porque esta não mais lhe quis consignar a sua venda em razão da falta de pagamento de uma dívida acumulada superior a € 100.000,00, num conjunto total de faturação de vendas de cerca de € 225.000,00, e não que alguma vez tivesse sido vontade da R. deixar de vender os produtos da A. para toda a Alemanha (como acontecia) por causa dos problemas surgidos com vários deles.
Toda a prova aponta, aliás, no sentido de que, fora das situações em que o cliente devolveu o equipamento adquirido, as reparações foram efetuadas, designadamente com material de substituição que a A. forneceu gratuitamente sempre que lhe foi solicitado.

Tudo ponderado, de entre a matéria da contestação/reconvenção que a R. pretende que seja aditada aos factos provados e com interesse para o processo, temos como provado o seguinte:
34. Vários fornos, fogões e placas fornecidos pela A. e vendidos pela R. no mercado alemão foram objeto de reclamações por parte dos clientes finais.
Altera-se o ponto 29 para os seguintes termos:
29. Entre os produtos fornecidos pela A. à R., alguns dos quais devolvidos àquela, conforme pontos 25 e 26 e creditados à R., apresentavam as seguintes situações: porta que não fechava, cujo vidro se partiu, ruído nos ventiladores, problemas nos termóstato (corte de corrente e sua retoma sem intervenção humana e sobreaquecimento da parte de baixo do forno), tabuleiro inserido no forno que correspondia a outro modelo, tabuleiro mal polido no rebordo que, conforme reclamação, fez um corte nos dedos do cliente, forno e placa de gás a não funcionarem simultaneamente, as velas de ignição do fogão a não ligarem.
35. Foram feitas, pelos seus clientes, sucessivas reclamações à R. desde o ano de 2015.
36. Alguns clientes manifestando de forma veemente o seu desagrado.
37. Em alguns casos, o problema surgido no equipamento foi reparado e surgiu de novo.
38. Aconteceu a R. devolver o preço do equipamento ao cliente, retomando o equipamento avariado.
39. Alguns dos problemas surgidos nos fogões foram reconhecidos pela A.
40. As vendas gerais da R., nomeadamente nas plataformas L… e M…, têm vindo a diminuir desse 2016 até à atualidade, afetando a sua liquidez e o seu equilíbrio económico e financeiro, designadamente os seus compromissos com fornecedores, trabalhadores, Fisco e Segurança Social alemã.
Procede, assim, parcialmente a impugnação da decisão em matéria de facto.
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A aplicação do Direito
3. Cumprimento defeituoso da obrigação da A. e a exceção de não cumprimento do contrato
Incumbe ao tribunal proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, nos termos do art.º 5º, nº 3, considerando a delimitação dada pela factualidade alegada e provada e os limites do efeito prático-jurídico pretendido.
No dia 1 de junho de 2014, a A. celebrou um acordo com a R. pelo qual, a pedido e sob encomenda desta última, a primeira lhe passou a fornecer vários equipamentos do seu comércio a fim desta a colocar no seu armazém para venda. Em contrapartida, a R. receberia uma comissão sobre cada venda efectuada, de 5% do valor da venda revelado na fatura que emitia ao cliente final.
Para que se concretizasse o recebimento da comissão, a R. estava obrigada a emitir e a enviar à A. um relatório mensal relativo às vendas que efetuava, dependente da aprovação da A. em determinado prazo.
Salvo melhor posição, temos para nós que o contrato celebrado não é um normal contrato de compra e venda, mas um contrato de compra e venda à consignação, por consistir na entrega de mercadoria a um negociante para que as venda ou revenda por conta de quem lha entrega, efectuando o consignatário as vendas em nome próprio, mas por conta do consignante.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9.10.2003[14], no seu significado comercial a consignação "consiste na entrega de mercadorias a um negociante para que as venda ou revenda por conta de quem lhas entrega"[15].
Assim, nesse contrato de consignação, melhor dito de venda à consignação, "o consignatário efectua as vendas em nome próprio, mas por conta do consignante"[16].
Há, pois, um verdadeiro mandato[17] para venda do bem ou bens entregues em regime de consignação (com a obrigatoriedade, para o consignatário, de devolver o bem se o não vender) embora sem que ao mandatário sejam conferidos poderes de representação, situação expressamente prevista pelo art.º 1180º do Código Civil.
Na verdade, "configura-se um mandato sem representação, nos termos e para os efeitos dos artºs. 1180º e seguintes do C.Civil, quando, concertadamente, e sem outorga da procuração específica, o mandatário celebra um dado negócio jurídico em seu próprio nome (nomine proprio) mas por conta do mandante, ocorrendo em tal situação uma interposição real de pessoas"[18].
Tal mandato sem representação possui o seu homólogo no domínio do direito comercial --- art.º 266º do Código Comercial --- o qual define como contrato de comissão aquele em que no exercício do mandato comercial o mandatário executa o acto sem menção ou alusão alguma ao mandante, contratando por si e em seu nome, como principal e único contraente.
Foi esta relação continuada de comissão para venda à consignação --- e não de compra e venda --- a que se estabeleceu entre A. e R. nos limites do contrato celebrado no dia de junho de 2014. É um contrato bilateral e sinalagmático, tem direitos e obrigações correspetivas: À venda dos equipamentos da A., por parte da R., corresponde a obrigação daquela de lhe pagar o valor da comissão acordada.
São aspectos da relação interna, entre a A., como mandante/comitente, e a R., na qualidade de mandatária/comissária, que aqui estão em causa: e existência de defeitos na mercadoria fornecida à consignação para venda a clientes da R. na Alemanha, e a aplicação da exceção de não cumprimento relativamente à entrega do preço dessa mercadoria à A. comitente.
Pra além dos deveres específicos do mandante, no âmbito do mandato, previstos no art.º 1167º do Código Civil, também neste contrato, à semelhança da compra e venda, se impõem deveres gerais de cumprimento, como é o cumprimento pontual (no devido tempo e sem vícios ou defeitos), nos termos dos art.ºs 762º e seg.s, 798º e 799º do Código Civil.
Se, à semelhança da generalidade dos contratos, há flexibilidade na contratação de comissão, há rigidez no cumprimento, pois que estes existem para serem cumpridos com respeito pelos interesses da contraparte, legal e contratualmente protegidos (art.ºs 398º, nº 1 e 406º, º 1, do Código Civil). Existe uma eficácia comum a todos os contratos que se consubstancia no princípio da força vinculativa ou da obrigatoriedade; significa que, uma vez celebrado, o contrato plenamente válido e eficaz, constitui lei imperativa entre as partes.
Almeida Costa[19] define ainda a regra da eficácia vinculativa através dos seguintes princípios:
- O da pontualidade, utilizando a lei o termo “pontualmente” com o alcance de que o contrato deve ser executado ponto por ponto, quer dizer, em todas as suas cláusulas e não apenas no prazo estipulado[20]; e
- Os da irretratabilidade ou da irrevogabilidade dos vínculos contratuais e da intangibilidade do seu conteúdo, fundindo-se estes no que também se designa por princípio da estabilidade dos contratos.
Como refere Enzo Roppo, cada um “é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fica ligado de modo irrevogável à palavra dada: pacta sunt servanda”[21], sendo certo que, é “nesta estrutura de confiança que se intercala o laço social instituído pelos contratos e pelos pactos de todos os tipos que conferem uma estrutura jurídica à troca das palavras dadas”, e que, o “facto de os pactos deverem ser observados é um princípio que constitui uma regra de reconhecimento que ultrapassa o face a face da promessa de pessoa a pessoa”[22].
Ainda assim, ocorrem situações que, excecionalmente, por motivos supervenientes, justificam um desvio àquela regra, permitindo que uma relação contratual validamente constituída se extinga, sendo uma delas a resolução contratual.
Tanto o comitente como o comissário estão adstritos ao princípio da boa fé (art.º 762º, nº 2, do Código Civil). Este princípio, em sentido objetivo, acompanha a relação contratual desde o seu início, permanece durante toda a sua vida e subsiste mesmo após se ter extinguido. Está presente, além do mais, na formação do contrato e na sua execução e cumprimento.
Invocou a R. a exceção de não cumprimento do contrato e, com base nela, o direito a não pagar o valor em que foi condenada na 1ª instância enquanto a A. não substituir os 8 a 10 fogões (ou, pelo menos, 5 fogões) por outros de qualidade, ou o seu valor em dinheiro.
Vejamos.
O ponto 17 dos factos provados foi alterado, tendo passado a ter o seguinte teor:
A A. suportou a devolução de todos os eletrodomésticos (em bom estado e danificados ou defeituosos) do armazém da R., na Alemanha, para o armazém da A., em Portugal, até ao mês de outubro de 2016, tendo havido, porém, posteriormente, devolução à R. de cerca de 5 a 10 equipamentos de fogão por clientes depois dessa data que a A. não discutiu nem assumiu.

Dispõe o art.º 428º, nº 1, do Código Civil, que “se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo”.
A exceptio é um reflexo do sinalagma funcional, um corolário da interdependência das obrigações sinalagmáticas; cada uma é causa da outra (nexo causal recíproco).
As obrigações do sinalagma devem, em princípio, ser cumpridas simultaneamente. Uma parte tem a faculdade de recusar o cumprimento da obrigação própria enquanto a outra parte não cumpra ou não ofereça o cumprimento, quando as obrigações são sinalagmáticas ou não têm prazos diferentes de cumprimento.
A exceptio non adimpleti contractus constitui uma exceção perentória de direito material, cujo objectivo e funcionamento se ligam ao equilíbrio das prestações, valendo, tipicamente, no contexto de contratos bilaterais, quer haja incumprimento ou cumprimento defeituoso. São seus pressupostos a existência de um contrato bilateral, não cumprimento ou não oferecimento do cumprimento simultâneo da contraprestação e a não contrariedade à boa fé.
Em regra, a exceptio aplica-se às obrigações principais e essenciais ligadas por um vínculo de reciprocidade e interdependência. [23] Mas, a interdependência pode ocorrer relativamente a prestações acessórias do contrato. A exceção de inexecução visa precisamente evitar que um dos sujeitos seja obrigado a realizar a sua prestação quando a contraprestação, sua causa, não seja por sua vez, realizada.
Mesmo havendo prazos diferentes para cumprimento, a exceção em referência pode ser invocada pelo contraente que está obrigado a cumprir em segundo lugar quando aquele que estava obrigado a cumprir em primeiro lugar o não tenha feito.
A exceção vale tanto para o caso de falta integral de cumprimento, como para o incumprimento parcial ou o cumprimento defeituoso; porém, desde que a sua invocação não contrarie o princípio geral da boa fé (art.º 762º, nº 2, do Código Civil).
Para que a exceção de não cumprimento não seja julgada contrária à boa fé, deverá haver uma tripla relação entre o incumprimento do outro contraente e a recusa de cumprir por parte do excipiente: relação de sucessão, de causalidade e de proporcionalidade.
Assim, não pode recusar a sua prestação, por via da exceptio, o contraente que primeiro deixou de cumprir. A recusa de cumprir do excipiente deve ser posterior à inexecução da prestação da contraparte.
A suspensão da prestação do excipiente deve ter unicamente por causa aquele incumprimento, sendo sua consequência imediata.
Pelo princípio da equivalência ou proporcionalidade das inexecuções, a recusa do excipiente deve ser equivalente ou proporcionada à inexecução da contraparte que reclama o cumprimento, de modo que, se a falta desta for de leve importância, o recurso à exceção pode ser ilegítimo.
A recusa pode ainda mostrar-se contrária à boa fé se o que falta prestar é uma pequena parte, que na ocasião não possa ser prestada.
Como refere F. Baptista de Oliveira[24], “seria realmente contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua prestação só porque o outro não cumpriu uma parte insignificante, que não podia de momento cumprir.
O razoável é que, em tal caso, lhe seja consentido apenas recusar uma parte da prestação, bastante para se garantir da parte não cumprida.[25]
Almeida Costa também ensina que seria contrário à boa fé que um dos contraentes recusasse a sua inteira prestação só porque a do outro enferma de uma falta mínima ou sem suficiente relevo. Acrescenta que “na mesma linha surge a regra da adequação ou proporcionalidade entre a ofensa do direito do excipiente e o exercício de uma exceção. Uma prestação significativamente incompleta ou viciada justifica que o outro obrigado reduza a contraprestação a que se acha adstrito. Mas, em tal caso, só é razoável que recuse quando se torne necessário garantir o seu direito”.[26]
Volvendo ao caso sub judice, a aplicação da exceção de não cumprimento do contrato está fragilizada desde logo pelo facto de não estarem em causa as prestações essenciais ou fundamentais do contrato: A venda dos produtos da A. versus o pagamento da comissão a que ela se obrigou.
Poderá haver correspetividade --- uma relação causa-efeito --- entre a obrigação da R. de entrega dos valores relativos aos preços de venda dos equipamentos à A. e o pagamento das comissões a que tem direito. Mas, ainda assim, o direito ao recebimento da comissão (5%) estava dependente da emissão e envio à A. pela R. de um relatório de vendas (“sales report”) mensal que, após aprovação, seria pago pela A. no prazo de 30 dias após a sua emissão. E a verdade é que, em outubro 2015 a R. deixou de remeter os relatórios de vendas, bem como os documentos respeitantes às comissões eventualmente devidas.
Não há simultaneidade de prestações entre a obrigação da A. de recolha de bens devolvidos e o dever de entrega do preço por parte da R. Esta obrigação é anterior às vicissitudes pós-vendas e a R. não provou a causa das concretas devoluções de equipamentos, sendo estas já posteriores à resolução do contrato por parte da A. e à recolha de existências nos armazéns da R. A situação não foi oportunamente reportada à demandante, para que pudesse ter sido atempadamente atendida.
Ocorre também que o valor de 5 a 10 fogões não tem expressão significativa no elevado volume de negócios havido entre as partes, determinante do pagamento de uma dívida superior a € 100.000,00 pela R. à A. Não sabemos quantos fogões foram efectivamente devolvidos, podendo ser apenas cinco.
Suspender o pagamento daquela dívida de valor elevado em função de um acerto de contas motivado por 5 a 10 fogões de cozinha, nas referidas condições, é manifestamente desproporcional e atentatório do princípio da boa fé contratual.
De resto, aqueles fogões estão na posse da R. e, ainda que estejam viciados, constituem uma garantia de valor que lhe é favorável.
Termos em que improcede a questão da exceção de não cumprimento do contrato, invocada pela recorrente.
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4. Em sede reconvencional, a obrigação da A. reconvinda de indemnizar a R. reconvinte pelo dano reputacional, pelo impacto negativo que a situação teve nas vendas e lucros da R., perda de clientela e pelo valor dos fogões devolvidos
Alega a R., quanto à matéria da reconvenção, que, de acordo com o art.º 798º do Código Civil, o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação se torna responsável pelo prejuízo que causa ao credor, sendo que nos termos do art.º 799, nº 1, do mesmo código, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.
No entender da reconvinte, a A. reconvinda não afastou aquela presunção.
Aquele princípio da presunção de culpa da parte que não cumpriu o contrato, ou que o cumpriu defeituosamente, está correto, porquanto nos situamos em sede de responsabilidade contratual. No entanto, à semelhança do que acontece na responsabilidade civil por atos ilícitos, é o credor que deve provar o incumprimento ou o cumprimento defeituoso, o prejuízo e o nexo causal entre aquela contrariedade à lei e ao contrato e o dito resultado danoso.
Era à R. que cumpria alegar e provar o ambiente da obrigação contratual da A. e o respetivo incumprimento, sendo ónus desta última a demonstração de que o incumprimento não resultou de culpa sua, ilidindo a presunção que lhe está associada, nos termos do art.º 799º, nº 1, do Código Civil.
A A. estava obrigada a entregar à R. os produtos do seu comércio sem vícios que os desvalorizassem, que impedissem a realização do fim a que se destinavam, com as qualidades por ela asseguradas ou necessárias para a realização daquele fim.
Cabia, assim, à R. reconvinte provar a existência e identificar os vícios nos materiais que a A. lhe foi fornecendo, ou seja, o cumprimento defeituoso da obrigação, ainda o nexo causal entre a desconformidade e os danos por ela sofridos, e fazer a respetiva denúncia, devendo a A., por seu turno, provar que o defeito não lhe é imputável, que não procede de culpa sua (art.ºs 483º e 799º do Código Civil).
Dado o tipo de contrato em causa e o acordado pelas partes, na existência de defeitos, cumpria à A. aceitar a devolução dos produtos defeituosos ou contribuir para a sua reparação.
O desenvolvimento da relação contratual estava sujeito a um relatório mensal que reflectia o estado das vendas e as condições de que dependia o pagamento da comissão a que a R. tinha direito.
Ora, desde outubro de 2015 que a R. não mais enviou à A. os relatórios de vendas, o que, por certo, complicou a relação comercial.
A R. assumira a obrigação de garantia de qualidade dos produtos dada aos seus clientes (finais), por dois anos, a contar da venda, e a A. remeteu, sempre que foi solicitado pela R., gratuitamente e ao abrigo da garantia, todos os acessórios e peças que aquela requisitava. Suportou também a A. a devolução de todos os electrodomésticos (em bom estado, e danificados ou defeituosos) do armazém da R., na Alemanha, para o seu armazém, em Portugal, inexistindo, até à data da resolução do contrato (efectuada pela A., com base no incumprimento da R. por falta de pagamento) qualquer equipamento reclamado que esteja por resolver.
Está bem patente nos autos que foi o incumprimento da R. que deu origem à resolução (válida) do contrato.
A R. não logrou fazer prova de que a A. deixou de cumprir as suas obrigações contratuais.
É certo que existiam defeitos em vários equipamentos enviados pela A. à R. para venda no mercado alemão, mas, sempre que lhe foi solicitado, a A. contribuiu para a solução desses problemas, de acordo com o contrato, aceitando devoluções e enviando peças ou acessórios, conforme o solicitado, para que fosse efectuada a devida reparação.
Era da R. a responsabilidade pela prestação de assistência técnica em relação aos produtos que vendia, com a garantia de dois anos, não logrando demonstrar que foi impedida pela A. do cumprimento dessa sua obrigação, tanto mais que não fez prova de datas em que comunicou problemas com os bens à A. ou que esta se recusou a substituir peças ou os equipamentos.
Não tendo ficado demonstrado o incumprimento da A., antes se concluindo que o incumprimento definitivo do contrato é imputável à R., por falta injustificada de pagamento e que foi determinante da resolução do contrato (efectuada por carta de outubro de 2015), a reconvinda não tem que ilidir qualquer presunção de culpa para evitar a sua responsabilização, seja por danos reputacionais da R., sejam eles por ofensa do bom nome e credibilidade (dano não patrimonial), sem como dano patrimonial indirecto (o impacto negativo nas vendas e lucros cessantes da R.). De igual modo, não se encontra fundamento para condenar a A. relativamente a despesas com o serviço de gestão de reclamações e apoio aos clientes e de transportes, ou com prejuízos resultantes de perda de clientela, vendas e lucros.
Vários fornos, fogões e placas fornecidos pela A. e vendidos pela R. foram objeto de várias reclamações por parte dos clientes finais, tendo defeitos os que se identificam sob o ponto 29. Também é certo que as vendas gerais da R., nomeadamente nas plataformas L… e M…, têm vindo a diminuir desse 2016 até à atualidade, afetando a sua liquidez e o seu equilíbrio económico e financeiro, designadamente os seus compromissos com fornecedores, trabalhadores, Fisco e Segurança Social alemã. Mas não provou a R. nexo de causalidade relevante entre a existência daqueles defeitos e a degradação progressiva da sua condição económica e empresarial.
Como se refere na sentença recorrida, “(…) não fez a R., também, prova de custos acrescidos com as alegadas reclamações e devoluções dos bens (de € 2.000,00 e € 2.587,50 – alínea A) dos factos não provados), nem de qualquer quantia monetária concreta, nem da possibilidade de existirem valores só afectos a tal situação para a resolução de ‘defeitos’, desconhecendo-se o contrato que a R. fez com a D…, designadamente se comportava uma quantia por cada intervenção, por grupo de intervenções ou mensal
(…)
Apenas se apurou que a R. deixou de vender produtos da A. e as suas vendas diminuíram em 2016, mas não se conseguiu apurar se tal diminuição se deveu exclusivamente à venda de produtos objecto de reclamação, até porque a R. continuou a sua actividade, que mantém, com outro fornecedor e, de qualquer forma, vendeu muitos outros produtos da A. que não apresentaram qualquer problema”.
Note-se que a R. nunca tinha alegado qualquer defeito ou problema técnico dos equipamentos como causa do seu incumprimento, apenas referindo que o motivo do incumprimento verificado eram as suas dificuldades financeiras, que eram estas que a impediam de efectuar o pagamento da dívida, já acumulada em mais de € 100.000,00.
Andou bem a sentença ao não atribuir indemnização à reconvinte com os referidos fundamentos.
Resta apenas a questão dos 5 a 10 fogões que foram devolvidos por clientes à R. após a resolução do contrato de comissão pela A.
A reconvinte pretende obter uma indemnização da A. reconvinda pelo valor dos referidos fogões, a liquidar oportunamente.
A devolução dos fogões indicia, mas não demonstra, a existência de vícios nesses bens e, na afirmativa, quais sejam eles, e se são reparáveis ao abrigo da garantia, ou não. As devoluções dos fogões pelos clientes finais, ou algumas delas, podem ter origem noutras causas, que não a existência de defeitos.
A R. assumira a responsabilidade pela garantia prestada na venda dos produtos aos seus clientes, estando obrigada a fazê-lo pelo prazo de 2 anos, contra os defeitos de fabrico. Para o efeito, foi ela, e não a A., que contratou a D… para solucionar os pedidos de assistência técnica no âmbito da garantia.
Dado o contrato celebrado, a R. poderá (eventualmente) ter direito à devolução dos fogões à A. (com ou sem defeitos e com ou sem alguma compensação de créditos), mas a matéria de facto provada é insuficiente à procedência de um pedido deste jaez --- que, aliás, não foi formulado na reconvenção ---, não havendo também fundamento factual justificativo de indemnização a favor da reconvinte pelo valor dos fogões (de 5 a 10) que tem na sua posse.
Decorre de tudo o que ficou exposto que a reconvenção improcede totalmente, devendo confirmar-se, também nesta parte, a sentença recorrida.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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V.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida, quer quanto à acção, quer quanto à reconvenção.
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Custas pela R. reconvinte apelante, por ter decaído totalmente no recurso (art.º 527º, nº 1, do Código de Processo Civil).
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Porto, 18 de novembro de 2021
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Por transcrição.
[2] Por transcrição.
[3] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[4] Código de Processo Civil anotado, Almedina, 2019, Vol. I, pág. 252.
[5] Lebre de Freitas, A Ação Declarativa Comum, Coimbra, 3ª edição, pág. 137.
[6] Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 188.
[7] Paginação que se seguirá em qualquer citação do processo que se faça neste acórdão.
[8] Cf., entre outros, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396 e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro in Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, in www.dgsi.pt e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390.
[9] Cf., entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27.4.2004 e de 10.4.2008, o acórdão da Relação de Lisboa de 17.1.1999, BMJ 489/396. Cf. ainda os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.1.2000, de 26.2.2004, de 12.5.2005 e de 10.7.2008, o primeiro in Sumários, 37º, pág. 34 e, os restantes, in www.dgsi.pt e Pais do Amaral, in Direito Processual Civil, 7ª ed., pág. 390.
[10] Código de Processo Civil anotado, vol. 5º, pág. 140.
[11] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 224 e 225.
[12] “Provas – Direito Probatório Material”, BMJ 110/82 e 171.
[13] Do histórico do processo eletrónico, a que pertencem todas as páginas do processo que forem citadas sem menção de origem.
[14] Proc. 03B1585, in www.dgsi.pt.
[15] "Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea", Academia das Ciências de Lisboa, 2001, vol. I, pág. 934.
[16] Ac. Relação do Porto de 04.02/99, proc. 64116 (relator Gonçalves Rodrigues).
[17] Nos termos do art.º 1157º do Código Civil, "mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra".
[18] Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 15.05.2003, proc. 1137/03 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida).
[19] Direito das Obrigações, Almedina 1979, pág. 232.
[20] Cf. também Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª edição, 2.° vol., pág. 13.
[21] O Contrato, 1989, pág. 34.
[22] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, pág. 32.
[23] P. de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, Vol. I, 3ª edição, pág. 381.
[24] Contratos Privados, Vol. II, pág. 752.
[25] Citando A. Varela, CJ, 1987, T. IV, pág. 410 e Vaz Serra, “Excepção de contrato não cumpriodo”, in BMJ, nº 67, pág. 42.
[26] Revista de Leg. e Jurisp., Ano 119º, pág. 144.