Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
586/19.6T9VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA JOANA GRÁCIO
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA QUALIFICADA
DESOBIDIÊNCIA A DECISÃO DE PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RP20230503586/19.6T9VNG.P1
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AOS RECURSOS INTERPOSTOS PELOS ARGUIDOS
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A regular comunicação a que se alude no artigo 348.º, n.º 1, do Código Penal não exige, no caso de a desobediência estar suportada em sentença proferida em providência cautelar, que a mesma seja pessoalmente notificada ao requerido, isto é, ao obrigado ao cumprimento da decisão proferida.
II - Tal obrigação não resulta da letra da lei, nem a doutrina e a jurisprudência na área do direito penal postulam uma tal restrição, mas apenas que se cumpra uma regular notificação no âmbito das regras aplicáveis ao processo onde a sentença é proferida – no caso é a mera notificação ao advogado -, a que deve acrescer a necessidade de efetivo conhecimento do conteúdo da decisão por parte do(s) requerido(s), facto que é essencial para a configuração dos elementos subjetivos do crime, mas que pode ser demonstrado por várias vias, embora a notificação pessoal seja, por excelência, o meio de prova que mais facilmente o comprova.
III - O que habitualmente acontece é que é difícil, não impossível, provar o conhecimento da decisão cautelar sem que esta esteja notificada pessoalmente ao(s) requerido(s) e sem que nada aconteça após a sua regular notificação ao respetivo advogado ou apenas seja apresentado recurso; mas no caso dos autos ocorreu tramitação processual – oposição à execução de sentença – que nos assegura, de acordo com as regras da experiência comum, que os requeridos tiveram conhecimento da sentença proferida na providência cautelar.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 586/19.6T9VNG.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia – Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum Singular n.º 586/19.6T9VNG, a correr termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 2, por sentença de 27-10-2022, foi decidido:
«a) Condenar o Arguido AA, pela prática de 1 (um) crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelos artigos 348.º, nº 1 e 2, do Código Penal e 375.º do Código de Processo Civil, na pena de a pena de multa de 115 (cento e quinze) dias à taxa diária de Eur.7,00 (sete euros), perfazendo o montante global de Eur.805,00 (oitocentos e cinco euros).
b) Condenar o Arguido BB, pela prática de 1 (um) crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelos artigos 348.º, nº 1 e 2, do Código Penal e 375.º do Código de Processo Civil, na pena de a pena de multa de 115 (cento e quinze) dias à taxa diária de Eur.7,00 (sete euros), perfazendo o montante global de Eur.805,00 (oitocentos e cinco euros).
c) Condenar o Arguido CC, pela prática de 1 (um) crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelos artigos 348.º, nº 1 e 2, do Código Penal e 375.º do Código de Processo Civil, na pena de a pena de multa de 115 (cento e quinze) dias à taxa diária de Eur.7,00 (sete euros), perfazendo o montante global de Eur.805,00 (oitocentos e cinco euros).»
*
Inconformados, os arguidos AA, BB e CC interpuseram recurso desta decisão, solicitando que a sentença seja revogada e substituída por outra que os absolva do crime por que vêm condenados ou, assim não se entendendo, que sejam as penas fixadas reduzidas para medida próxima do mínimo legal, apresentando em apoio da sua argumentação as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«1. Pela prática de um crime de desobediência qualificada, o Tribunal a quo aplicou, de forma individual a cada um dos arguidos, uma pena de 115 dias de multa, à taxa diária de 7,00€, perfazendo o montante global de 805,00€ a cada um deles, pelo que vem o presente recurso interposto, pelo facto de os arguidos não se conformarem com a sentença:
A) MATÉRIA DE FACTO INCORRETAMENTE CONSIDERADA PROVADA:
2. Tendo em conta a inexistência de prova nos autos, consideram os recorrentes, que não deveriam ter sido dados como provados os factos 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11, considerados provados pelo Tribunal a quo.
3. Além dos factos 1 a 4 da matéria provada, que decorrem diretamente de prova documental constante dos auto, é o próprio Tribunal a quo que, na motivação da sentença, afirma perentoriamente que inexiste qualquer prova concreta de que os arguidos tiveram efetivo conhecimento da sentença proferida no procedimento cautelar não especificado com o número 9972/17.5T8VNG.
4. O Tribunal a quo confundiu o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal, com a efetiva falta de prova concreta e de vinculação aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório, porquanto se limita a retirar deduções superficiais acerca do facto de os arguidos terem subscrito a procuração forense que se encontra junta nos embargos de executado ali mencionado e que, por isso, certamente teriam tomado, pessoalmente, conhecimento do teor da sentença proferida nos autos de procedimento cautelar, o que não se provou, tendo, aliás, o Tribunal a quo afirmado o seguinte: “no que tange ao segundo elemento objetivo, merece maiores considerações face à tese da defesa, que propugna pela falta de verificação deste elemento, uma vez que a sentença não foi pessoalmente notificada aos Arguidos, o que, aliás, ficou demonstrado uma vez que apenas foi notificada ao seu II. Mandatário (cf. Facto 4 provado)”
5. Nos termos do disposto no artigo 348.º n.º 1 do Código Penal, comete o crime de desobediência aquele que faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência ou, na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.
6. Assim, para que a factualidade típica seja preenchida é necessário que uma ordem ou mandado legítimos tenham sido regularmente comunicados, tendo sido emanados de uma autoridade competente, além de que tenha existido a falta à obediência devida, surgindo-nos aqui a questão do efetivo conhecimento da ordem de demolição, pelos arguidos, ora recorrentes.
7. Conforme nos diz Tolda Pinto, “o agente tem que ter conhecimento efectivo da ordem, não bastando que o meio de fazer chegar a ordem ao conhecimento do seu destinatário se mostre formalmente irrepreensível; torna-se necessário que aquele se tenha inteirado, de facto, do seu conteúdo. A comunicação deve ser suficiente para fundar o dolo do incumpridor daquele que desobedece à ordem” (in “Comentário das Leis Penais Extravagantes”, Volume 2, pág. 624).
8. O mesmo defendem Cristina Líbano Monteiro, “Comentário Conimbricense”, Tomo III, Coimbra Editora, pág. 356-357, e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 2ª ed. Actualizada, pág. 914 e Acórdão da Relação de Guimarães, de 12-01-2009, in CJ, XXXIV, 1, pág. 307), quando concluem que os destinatários têm que ter também conhecimento da ordem ou mandado a que ficam sujeitos, pelo que se exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido.
9. Encontra-se, assim, associado à exigência “regularmente comunicada” o elemento subjetivo, pois é aquele elemento do tipo que fundamenta o dolo daquele que desobedece, porquanto, sem o efetivo conhecimento da ordem emitida, em obediência ao artigo 13.º do Código Penal, a desobediência negligente não é punível.
10. Não tendo a sentença sido notificada diretamente aos arguidos, nem tendo ficado efetivamente provado que estes tiveram conhecimento pessoal da sentença, não existe aqui uma ordem regularmente comunicada, pois não se provou que os arguidos tomaram consciência de que o incumprimento de tal ordem os faria incorrer na prática de um crime.
11. Aliás, neste mesmo sentido decidiu, por exemplo, o Tribunal da Relação de Évora, no processo 1627/09.0TAFAR.E2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/50EAB5CFD06DA6188025809D00417E64 , que conclui que “imputar a alguém um crime de desobediência qualificada, respeitante ao não acatamento de uma sentença judicial, obriga a ter como certo que essa pessoa foi notificada do seu conteúdo integral, tendo, por isso, tomado dele cabal conhecimento.”
12. A exigência de uma autêntica comunicação não se basta no facto de ter existido uma comunicação formalmente irrepreensível, com absoluta observância das formalidades que a lei estipula para a sua emissão, sendo também necessário que o agente se tenha inteirado, previamente, de facto do seu conteúdo integral.
13. É o que nos ensinam SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES, (Código Penal Anotado, 2.º volume, 3.ª edição, Rei dos Livros, 2000, p. 1504), quando defendem que os destinatários têm que ter também conhecimento da ordem ou mandado a que ficam sujeitos, pelo que se exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que aqueles tenham conhecimento do que lhes é imposto ou exigido.
14. No mesmo sentido, ABRANTES GERALDES defende, (in “Temas da reforma do processo civil, III, 3.ª edição, Almedina, 2004, p. 327”), que há consumação do crime independentemente de haver ou não transitado em julgado a decisão desde que ao recurso seja atribuído efeito meramente devolutivo, mas sendo necessário que o requerido seja pessoalmente notificado, não bastando a notificação do respectivo mandatário (p. 328) (sublinhado nosso), assim como defende LOPES DO REGO (in Comentários ao Código de Processo Civil, I, 2.ª edição, Almedina, 2004, p. 361), quando defende que o requerido deve ser pessoalmente notificado que, se a infringir dolosamente, incorrerá no crime de desobediência qualificada.
15. Assim, provado que ficou que a sentença do procedimento cautelar foi apenas notificada ao Advogado dos ali requeridos, aqui arguidos e recorrentes, não tendo sido provado que os arguidos tiveram conhecimento pessoal daquela sentença, não se encontram preenchidos os elementos do tipo legal de crime de desobediência qualificada, pelo que devem estes ser absolvidos, o que ora se propugna almejar com o presente recurso.
B) FALTA DE MENÇÃO AO ARGUIDO CC NA SENTENÇA DO PROCESSO CAUTELAR:
16. Admitindo, por mera cautela de patrocínio, que os arguidos não venham a ser absolvido nos termos supra alegados, sempre teria o arguido CC de ser absolvido, porquanto a sentença do procedimento cautelar é omissa quanto à sua pessoa, (veja-se a sentença proferida no procedimento cautelar n.º 9972/17.5T8VNG, que se encontra junta a fls. 99, 101 a 108).
17. Não nos parece aceitável o argumento utilizado pelo Tribunal a quo, de que a não menção do nome deste arguido se trata de um “mero lapso de escrita, porquanto o mencionado arguido assumia, igualmente, a posição de requerido (…) tem de considerar-se que foi também condenado pelo dispositivo que refere «ordeno aos requeridos»”, pois que não nos aparenta tolerável a possibilidade de um Tribunal Penal corrigir uma decisão proferida por um Tribunal Cível da mesma instância hierárquica, sem que àquele de competência cível tenha sido solicitado qualquer parecer acerca da correção ou não da sentença em causa, violando os mais elementares princípios que devem nortear a aplicação do Direito Penal, e condenando-o por desrespeitar uma sentença que nem sequer o menciona, mesmo que tal se possa dever a um lapso não corrigido.
18. Como tal, a este respeito, deve a decisão do Tribunal a quo ser revogada e o arguido CC ser absolvido, com as legais consequências.
C) DA MEDIDA DA PENA – VIOLAÇÃO DO ARTº 70º, 71.º e 77.º DO CÓDIGO PENAL
19. Novamente admitindo que os arguidos não são absolvidos com base nos argumentos acima aduzidos, o que apenas por cautela de patrocínio se admite, cremos que, na determinação da medida da pena, o Tribunal a quo não apreciou devidamente as circunstâncias que favorecem os arguidos, pelo que parece-nos que foi aplicada uma pena excessiva, além de se ter violado o disposto no artº 71º do Cód. Penal, ao não se ter em consideração, na determinação da sua medida, todos os factos que depuseram a favor dos arguidos, nomeadamente o grau de ilicitude, a situação pessoal dos arguidos, o seu comportamento anterior e posterior à prática do crime e a sua idade.
20. De facto, além de ter que atender à culpa, a medida da pena tem de corresponder às expetativas da comunidade, sendo que, daí para cima, a medida exata da pena é a que resulta das regras da prevenção especial, causando apenas o “mal necessário” para afastar o agente da delinquência e o integrar nos princípios dominantes da comunidade, pelo que, atentos os fundamentos da medida da mesma e as circunstâncias que o Tribunal a quo deu como provadas e não valorou na determinação dessa medida, é manifestamente desadequada, por desajustada quer à culpa, quer às exigências de prevenção.
21. A fixação do “quantum da pena” concreto deve fazer-se com base na culpa e na prevenção, quer atenuantes e agravantes gerais, para encontrar a medida concreta da pena depois de determinado o seu “ quantum “ em função do critério geral da medida fornecida por lei, sendo assim medida pela necessidade de evitar a produção de lesões futuras semelhantes por qualquer outro membro da comunidade ou mais exatamente de acordo com as necessidades de estabilização das expectativas na validade do direito por parte da comunidade em face da lesão dos bens jurídicos.
22. Em defesa da proporcionalidade entre a medida da pena e a gravidade do facto praticado, Luzon Peña refere que a intimidação geral exige proporcionalidade entre a medida da pena aplicada e a gravidade do facto ilícito, sendo que aquela não é mais do que um princípio limite da pena derivado da exigência da eficácia e idoneidade da intimidação geral, acrescentando, ou se, pelo contrário, porque a intimidação não sofreria perda, bastaria para esse efeito uma quantidade menor (...) que exigências de prevenção especial aconselhariam ou exigiriam.
23. Acrescenta-nos Figueiredo Dias, (in Direito Penal Português, pág. 231) que a medida da pena, além da sua necessidade, terá que ter em conta as exigências individuais e concretas de socialização do agente, sendo certo que na sua determinação ter-se-á que ter em linha de conta que se deve evitar a ressocialização do agente, devendo ainda atender a todas as circunstãncias que, não fazendo parte do crime, deponham a favor do agente ou contra ele, art. 71.º, n.º 2 do CP.
24. Estabelecendo o artigo 71.º do C. P. que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, mesmo não fazendo parte do crime, deponham a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente a ilicitude, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos, fins e motivos manifestados no cometimento do crime, as suas condições pessoais e a sua situação económica, a sua conduta, nomeadamente quando esta se destinou a reparar as consequências do crime, pelo que importa considerar os factos que possam depor a favor dos arguidos, e que foram considerados provados, nomeadamente que as obras já se encontram realizadas, que os arguidos se encontram plenamente inseridos na sociedade e não têm antecedententes criminais, o que tem necessariamente de abonar em seu favor, concluindo-se que o seu grau de culpa é diminuído.
25. A exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo Juíz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável, até porque o artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal consigna que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, pelo que poderemos concluir que a pena aplicada é exagerada, porquanto, dado os factos provados em audiência de discussão e julgamento e os assentes pelo Tribunal a quo na sentença, entendem o recorrentem que na determinação da medida da pena o Tribunal não tomou devidamente em consideração o disposto no artº 71, nº 2, al. e) do C. Penal, pois deveria ter aplicado uma pena de multa próxima do mínimo legal.
26. A pena aplicada aos arguidos olvida as finalidades preventivas especiais das penas que devem imperar, pelo que se entende por adequado, proporcional e suficiente, no caso concreto, a condenação dos arguidos numa pena inferior à fixada pelo Tribunal a quo, próxima do mínimo legal, o que pelo presente se requer.
27. Tudo nos termos do disposto nos artigos 40º 47.º e 71º do Código Penal.
DISPOSIÇÕES LEGAIS VIOLADAS
· Artigos 40º, 47.º e 71.º, todos do Código Penal
· Artigo 32.º da Constituição da Republica Portuguesa.»
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O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência e pela manutenção da sentença recorrida.
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Neste Tribunal da Relação do Porto, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto aderiu à posição do Ministério Público junto do Tribunal recorrido, desenvolvendo-a e emitindo parecer no sentido da improcedência total do recurso.
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Notificados nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, os recorrentes não apresentaram resposta.
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Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.
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II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que os recorrentes colocam à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Erro de julgamento em sede de matéria de facto;
- Falta de menção ao arguido CC na sentença do processo cautelar; e
- Medida concreta das penas.
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Para análise das questões que importa apreciar releva desde logo a factualidade subjacente e razões da sua fixação, sendo do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da sentença recorrida (transcrição):
«II- FUNDAMENTAÇÃO
1. DE FACTO
1.1. Factos provados
Da audiência de julgamento, e com relevo para a decisão a proferir, resultam provados os seguintes factos:
Constantes da acusação pública:
1. Por sentença proferida a 09 de Janeiro de 2019 no procedimento cautelar não especificado n.º 9972/17.5T8VNG, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia – Juiz 4, no qual eram requeridos os aqui arguidos, foi ordenado aos “requeridos e intervenientes que procedam, no prazo de 15 dias, às obras de demolição do seu prédio melhor identificado no ponto 2 dos factos provados”.
2. Prédio este sito no Largo ..., números ... e ..., casas ... a ..., na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz respetiva sob o artigo ....
3. Os ora arguidos não interpuseram recurso da aludida decisão proferida no âmbito dos autos acima mencionados, a qual transitou em julgado.
4. A referida sentença foi notificada, em 10.01.2019, ao Il. Mandatário constituído dos ora arguidos.
5. Os arguidos, enquanto requeridos nesse processo, foram notificados do teor da sentença proferida na providência cautelar na pessoa do seu Il. Mandatário nesses autos, tendo conhecimento, em data não concretamente apurada entre 10 de Janeiro e 20 de Março do ano de 2019, do teor dessa decisão judicial e do comportamento que esta lhes impunha.
6. Não obstante, os arguidos não só não acataram essa ordem, no prazo que para tanto lhes foi concedido, como embargaram a execução da respetiva sentença através de requerimento que deu entrada em 20.03.2019.
7. Apesar de saberem que após o trânsito em julgado da dita sentença teriam que demolir o prédio, sito no Largo ..., números ... e ..., casas ... a ..., na freguesia ... no concelho de Vila Nova de Gaia, no estado em que se encontrava, tal como fora decretado naqueles autos, os arguidos até ao presente momento não o fizeram.
8. Desta forma, desrespeitaram por completo a ordem judicial legítima emitida no âmbito do procedimento cautelar referido, que lhes foi regularmente transmitida e cujo conteúdo, alcance e consequências perceberam integralmente.
9. Estavam os arguidos perfeitamente cientes de que, ao não cumprirem a sentença aludida, desrespeitavam ordem judicial legítima que lhes havia sido regularmente comunicada, tendo-a assim violado, apesar de gozar de proteção penal.
10. Bem sabiam os arguidos que, ao atuarem do modo supra descrito, infringiam tal ordem judicial, com perfeita consciência que estavam obrigados a respeitá-la, por ter transitado em julgado, cumprindo nos seus exatos termos e prazos aí definidos a ordem que de tal sentença emanava.
11. Os arguidos sabiam que essa sua conduta era proibida e punida por lei.
Constantes da acusação:
12. Por documento denominado “compra e venda”, outorgado no Cartório Notarial de DD, em 18 de Outubro de 2019, os Arguidos e EE, FF e marido GG declararam vender à sociedade comercial com a firma A... Lda., além do mais, o prédio referido em 2.
13. Por documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, celebrado entre o Assistente e HH e a sociedade comercial A..., Lda., datado de 26 de Janeiro de 2022, os primeiros declararam prometer vender e esta declarou prometer comprar os prédios confinantes com o referido em 2, declarando a A..., Lda., ainda, e além do mais, suportar as despesas da demolição ordenada no processo 9972/17.5T8VNG.
14. A A... Lda. já realizou grande parte das obras de demolição.
Quanto às condições socioeconómicas, profissionais e familiares dos Arguidos:
15. O Arguido AA exerce profissionalmente a atividade de consultor digital, auferindo, mensalmente e em média, a quantia de Eur.1.000,00 (mil euros).
16. Reside em casa de família, sozinho.
17. A título de despesas com os serviços básicos da habitação suporta a quantia de Eur.200,00 (duzentos euros).
18. Tem uma filha com 27 anos.
19. Tem como habilitações literárias o 12.º ano, tendo frequentado o curso superior de engenharia eletrotécnica até ao 2.º ano, o qual não veio a concluir.
20. O Arguido BB encontra-se reformado da atividade de desenhador projetista e aufere pensão de reforma e de viuvez no valor global de Eur.1.100,00 (mil e cem euros).
21. Reside sozinho na casa que era dos pais e que ainda não foi objeto de partilha.
22. Suporta, a título de despesa para internet da habitação, a quantia de Eur.60,00 (sessenta euros).
23. Tem uma filha de 23 anos que se encontra a estudar em Vila Real, a quem presta auxílio monetário em valor não concretamente apurado.
24. Tem como habilitações literárias o 12.º ano.
25. O Arguido CC exerce profissionalmente a atividade de Engenheiro Agrónomo na câmara municipal ..., auferindo mensalmente, a título de retribuição, a quantia de Eur.1.900,00 (mil e novecentos euros) brutos.
26. Reside em casa própria com a mulher e os três filhos de 26, 21 e 15 anos, os últimos estudantes e o mais velho a estagiar.
27. A esposa do Arguido é professora do ensino secundário e aufere mensalmente a quantia de Eur.1.900,00 (mil e novecentos euros) brutos.
28. A título de prestação para amortização do crédito à habitação bancário suporta a quantia de cerca de Eur.250,00 (duzentos e cinquenta euros).
29. A título de despesas com os serviços básicos da habitação suporta, em média, a quantia de Eur.250,00 (Duzentos e cinquenta euros).
30. Tem como habilitações literárias uma licenciatura em agronomia e uma pós-graduação na mesma área.
Quanto aos antecedentes criminais:
31. Os Arguidos não têm antecedentes criminais.
1.2. Factos não provados
Com relevo para a decisão da causa inexistem factos não provados.
Os factos não especificamente dados como provados ou não provados, ou são apenas a negação ou afirmação repetida de outros especificamente considerados provados ou não provados, ou são conclusivos (em termos factuais ou por encerrarem questões de Direito ou adjetivação), ou contem matéria irrelevante para a decisão da causa.
1.3. Motivação da decisão da matéria de facto
A consideração da factualidade supra referida como provada resulta da análise crítica e ponderada da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, de acordo com as regras da experiência comum e à luz do princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Com efeito, a afirmação do facto 1 decorre da análise da certidão da sentença proferida no procedimento cautelar que correu termos sob o n.º 9972/17.5T8VNG que se encontra junta a fls.99, 101 a 108, conjugada com a certidão do requerimento inicial que originou o referido processo, junta em 21/10/2022 e, ainda, com os avisos de receção assinados de fls. 364 e 365, relativos às cartas de citação enviadas no âmbito do processo para os três Arguidos. É certo que, analisado o relatório da referida sentença, constata-se que não é feita referência ao Arguido CC. No entanto, o Tribunal considerou que tal omissão se deveu a um mero lapso de escrita porquanto o mencionado Arguido assumia, igualmente, a posição de requerido, conforme se retira da referida certidão do requerimento inicial, da qual consta que o procedimento cautelar é instaurado contra II, AA, BB e CC, ou seja, os aqui Arguidos e ainda outra Requerida, entretanto falecida (cf. fls.91), e da circunstância de os três terem sido citados para a ação, através de carta registada com aviso de receção, devidamente assinado e, especificamente quanto ao Arguido CC, pelo próprio (cf. fls.364). Deste modo, assumindo este Arguido, igualmente, a qualidade de requerido tem de considerar-se que foi também condenado pelo dispositivo que refere “ordeno aos requeridos (…)”. Saliente-se que inexiste qualquer informação relativa a uma absolvição da instância do Arguido naquele processo, nem foi tal circunstância alegada pela defesa, pelo que nada contraria a conclusão alcançada.
A identificação do prédio que foi objeto da referida providência (facto 2) consta, igualmente, da referida certidão do requerimento inicial junto em 21/10/2022 e do facto 2, dos factos provados da sentença proferida no âmbito do mencionado procedimento cautelar, tendo sido igualmente identificada pelo Assistente, proprietário do imóvel contíguo e pela testemunha JJ, genro do Assistente, que afirmou conhecer o prédio que se situa no Largo ....
A convicção do Tribunal quanto ao facto 3 resulta da certidão do despacho que indeferiu o recurso interposto pela requerida II e a pela interveniente FF (que não são, aqui, Arguidas), junto aos autos a fls.100, o que, concatenado com a ausência de informação prestada pelo processo 9972/17.5T8VNG no sentido da interposição do recurso pelos Arguidos, permite inferir que apenas aquelas o terão feito, sem prejuízo de este vir a ser indeferido o que redundou no trânsito da decisão, trânsito esse aliás referido pelos Arguidos no artigo 3.º da sua petição de embargos de executado de fls. 229.
A factualidade constante do facto 4 resultou das informações do processo 9972/17.5T8VNG que consta de fls.189 e 359.
No que tange ao circunstancialismo referido no facto 5, é convicção do Tribunal que os Arguidos tiveram efetivo conhecimento da sentença, pelo menos até 20 de Março de 2019, porquanto embargaram a execução da mesma naquela data (cf. facto provado 6), não sendo verosímil que a oposição à execução tenha sido apresentada sem o seu conhecimento o que, aliás, é contrariado pela procuração junta com tal articulado, subscrita por todos os Arguidos a favor do seu Il. Mandatário, com data de 5 de Março de 2022. Na verdade, se outorgam procuração a favor do Il. Mandatário, que vem a ser junta no processo executivo, não é plausível que não saibam para que efeito o estão a fazer. É certo que se poderia conjeturar que a procuração foi outorgada para outras situações e aproveitada para a junção ao processo, mas tal conclusão não se afigura verosímil uma vez que, confrontando-se com a procuração junta aos presentes autos de fls.120, com data distinta, afigura-se que, como deve, efetivamente, ser, as procurações são outorgadas para os concretos processos. Por outro lado, o efetivo conhecimento da sentença pelos Arguidos resulta mesmo das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer porquanto seria uma inconcebível falta de zelo profissional e uma violação dos deveres deontológicos que são impostos aos advogados pelo seu Estatuto que o Il. Mandatário dos ali requeridos não lhes tivesse comunicado o teor da referida sentença, violação que não se pode ter como certa. A tudo isto acresce que em momento algum foi pelos Arguidos alegado o desconhecimento da sentença, nem em sede de contestação, nem em sede de embargos do executado no processo de execução da sentença, o que sempre se verificaria caso a mesma não tivesse, efetivamente, chegado ao seu conhecimento.
A oposição à execução da sentença (facto 6) resulta da certidão do requerimento de oposição por embargos, junto aos autos a fls.225 a 251, sublinhando-se que a data da assinatura do requerimento (fls.251), da emissão do DUC (fçs.248v) e do pagamento da taxa de justiça (fls.249) que aí se encontra retratada é de 20/03/2019.
Relativamente ao facto 7, a convicção do Tribunal formou-se por reporte aos depoimentos das testemunhas JJ e KK, este identificado como “morador daquele prédio desde 2005” que, de forma espontânea, escorreita, séria, credível e congruente explicaram, cada um à sua maneira, que após a decisão – que JJ afirmou saber que foi em 2019 e KK que a situou “antes do covid” -, não foi realizada qualquer obra de demolição, circunstância igualmente declarada pelo Assistente. Acresce que, a não realização das obras ordenadas decorre ainda da própria oposição à execução da sentença, porquanto os Arguidos a ela não se teriam oposto, pelo menos com os fundamentos que dela constam (cf. fls.225 a 251), se tivessem já realizado as obras. A fortalecer a convicção do Tribunal quanto à não realização das obras está, ainda, o Documento 2 e o Documento 3 juntos com a contestação. O primeiro retrata a escritura de compra e venda celebrada entre os aqui Arguidos e a A... Lda., e dela decorre que esta última, declarando adquirir o imóvel identificado no facto 2, mais declara que conhece o teor da sentença referida no facto provado 1 e que se obriga a cumpri-la nos seus exatos termos, permitindo daí retirar a conclusão de que, se a compradora se obriga ao cumprimento do ordenado, o ordenado, ou seja, as obras de demolição, não tinham ainda sido realizadas na data em que foi celebrada a compra e venda do prédio (Outubro de 2019). O segundo corresponde à ordem dada pela Câmara Municipal à A... Lda., e ao aqui Assistente, como proprietário do prédio contíguo àquele cuja demolição foi ordenada por sentença, para que realizassem as obras de demolição e de conservação nos respetivos prédios. Esta ordem data de 5/11/2020 e a mesma refere que surge na sequência de uma vistoria realizada ao local em 20 de Julho de 2020. Mais uma vez, face ao teor deste documento se conclui que, a esta data, não tinham, ainda, sido realizadas as obras ordenadas na sentença.
Em suma, da conjugação destes elementos de prova resulta inequívoco que os Arguidos não realizaram as obras de demolição que lhes foram ordenadas na sentença, nem no prazo de 15 dias a contar do trânsito, nem, ainda que se considerasse que só dela tomaram conhecimento no dia 20 de Março de 2019, no prazo de 15 dias a contar daí e, nem sequer, em momento algum dos meses posteriores, porquanto venderam o imóvel sem cumprir a obrigação que lhes foi imposta.
Este comportamento omissivo comportando uma conduta contrária à imposta pela sentença traduz um consequente e lógico desrespeito pela ordem dada, demonstrando-se o facto 8 por essa lógica sequencial.
Quando aos factos 9, 10 e 11, os mesmos decorrem da comprovação dos factos objetivos e das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer. Com efeito, da análise da factualidade objetiva apurada, designadamente a verificação de uma ordem de demolição do imóvel identificado nos autos de procedimento cautelar com o n.º 9972/17.5T8VNG e considerando que, de acordo com as regras da experiência comum, os destinatários das decisões sabem que têm de cumprir as ordens determinadas pelo Tribunal, foi possível assentar o conhecimento dos Arguidos de que, ao não cumprirem a ordem que lhes foi dada sabiam que a desrespeitavam e, bem assim, assentar que agiram de forma livre, voluntária e consciente. Aliás, o facto de terem embargado a execução da sentença reforça a intenção de incumprimento da sentença. Deste modo, os Arguidos decidiram desrespeitar a decisão judicial proferida e persistiram nessa atitude até a empresa adquirente as ter realizado.
Além disso, quiseram fazê-lo, voluntariamente, não se tendo demonstrado que tenha ocorrido alguma circunstância impeditiva do cumprimento, nomeadamente, a exigência de autorizações camarárias para a demolição, uma vez que, além de não ter sido alegado pelos Arguidos qualquer factualidade atinente a comprovar que a não realização das obras de demolição não lhes é imputável mas sim, eventualmente, à câmara que não emitiu essas licenças, também não existia esse impedimento. Concretizando, a realização das obras de demolição em cuja execução os Arguidos foram condenados haviam já sido ordenadas pela Câmara Municipal, em 2010, conforme decorre da carta enviada ao Arguido, junta a fls.41, da qual consta que se ordena “nos termos do disposto no artigo 89.º, n.º3, do Decreto-Lei 555/99 de 16 de Dezembro, a execução, no prazo de 30 dias úteis contados da receção da presente notificação, da demolição das casas ... a ..., sitas no Largo ..., ... (…)”. Ora, daqui resulta que a demolição ordenada na sentença do procedimento cautelar já tinha sido ordenada anteriormente o que retira, desde logo, os formalismos necessários à realização de obras deste tipo que se impõem em situações onde as mesmas não foram ordenadas. É isto, aliás, que resulta da conjugação do mencionado artigo 89.º com o artigo 90.º-A n.º2, do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação e ainda do artigo 4.º n.º4, alínea i) do mesmo diploma, dos quais decorre que as obras de demolição, já anteriormente ordenadas, não carecem de licenciamento ou do autorização, porquanto, no máximo apenas necessitariam da mera comunicação prévia, (que sempre poderia ser substituída pela simples indicação dos elementos instrutórios necessários para a sua execução – cf. artigo 90.º-A, n.º2 do Regime Jurídico da Urbanização e Edificação), o que os Arguidos também não fizeram.
Sublinhe-se que estas considerações não são contrariadas pelo depoimento da testemunha LL – na parte em que refere que para a realização das obras que posteriormente a A... veio a realizar, foi necessário solicitar autorização à câmara - nem pelo documento que se encontra junto a fls.246, relativo a um documento que acompanha os embargos de executado e que retrata um pedido submetido pelos Arguidos à câmara municipal, sem data. E não são contrariadas porquanto este pedido submetido, bem como aquele que LL relatou são relativos não apenas a obras de demolição, mas a obras de edificação as quais, não tendo sido anteriormente ordenadas pela câmara nem pelo Tribunal, careciam de outras autorizações camarárias e de outros procedimentos, que não são transversais às obras de demolição cuja execução foi ordenada e desrespeitada.
Neste sentido, é possível concluir que o desrespeito da ordem imposta pelo Tribunal resultou de uma vontade dos Arguidos, que podiam ter cumprido o ordenado e não o fizeram.
A venda do imóvel dos Arguidos (facto 12) afirma-se pela análise do Documento 2 junto com a contestação concatenado com os depoimentos das testemunhas JJ e LL, sendo certo que este último mediou a venda e interveio no contrato, assumindo-se como garante das obrigações que dele decorrem, solidariamente com a sociedade compradora e aquele afirmou conhecer a venda e conhecer, inclusivamente o preço da mesma.
Quanto ao facto 13, resulta do documento 7 junto com a contestação.
Por fim, o facto 14 foi declarado pelo Assistente e pelas restantes testemunhas que, de forma coerente e sincera atestaram que as obras de demolição já foram realizadas, “muito recentemente” nas palavras de JJ e “a meio do ano passado” nas palavras de KK, tendo ambos transmitido que as mesmas tinham sido feitas pela empresa que adquiriu o prédio, JJ de forma inequívoca e KK, ao referir que os trabalhadores que se encontravam a realizar os trabalhos estavam a cargo de LL. Ora, LL, também testemunha, agora da defesa, atestou que representou a empresa A... Lda., e que acompanhou as diligências de venda do prédio e asseverou que as obras de demolição foram realizadas durante a pandemia, em várias fases.
As condições socioeconómicas, profissionais e familiares dos Arguidos (factos 15 a 30) retiraram-se das declarações prestadas pelos mesmos, que, tendo-o sido de forma escorreita, espontânea e simples mereceram a credibilidade do Tribunal e não fizeram duvidar da sua veracidade.
Para a verificação dos antecedentes criminais (facto 31) contribuíram os certificados de registo criminal de cada um dos Arguidos juntos aos autos em 20/09/2022.»
*
Apreciando.
Erro de julgamento em sede de matéria de facto
Na análise deste segmento do recurso importa ter presente que resulta do texto do art. 412.º, n.º 3, do CPPenal que não é uma qualquer divergência que pode levar o Tribunal ad quem a decidir pela alteração do julgado em sede de matéria de facto.
As provas que o recorrente invoque e a apreciação que sobre as mesmas faça recair, em confronto com a valoração realizada pelo Tribunal a quo, devem revelar que os factos foram incorrectamente julgados e que se impunha decisão diversa da recorrida em sede do elenco dos factos provados e não provados.
Ou seja, não basta estar demonstrada a possibilidade de existir uma solução em termos de matéria de facto alternativa à fixada pelo Tribunal a quo, é necessário que essa versão seja a única admissível.
Ora, é raro o julgamento onde não estão em confronto duas, ou mais, versões dos factos (arguido/assistente ou arguido/Ministério Público ou mesmo arguido/arguido), qualquer delas sustentada, em abstracto, em prova produzida, seja com base em declarações dos arguidos, seja com fundamento em prova testemunhal, seja alicerçada em outros elementos probatórios. Por isso, haver prova produzida em sentido contrário, ou diverso, ao acolhido e considerado relevante pelo Tribunal a quo não só é vulgar como é insuficiente para, só por si, alterar a decisão em sede de matéria de facto.
É necessário que os recorrentes demonstrem que a prova produzida no julgamento só poderia ter conduzido à solução por si pugnada, e não à consignada pelo Tribunal, em sede de elenco de matéria de facto provada e não provada.
E na análise da prova que apresentam na sua impugnação da matéria de facto têm os recorrentes de argumentar fazendo uso do mesmo raciocínio lógico e exame crítico que se impõe ao Tribunal na fundamentação das suas decisões, com respeito pelos princípios da imediação e da livre apreciação da prova.

Esta ideia sobressai do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-11-2017, onde se afirmou[2]:
«I - Há uma dimensão inalienável consubstanciada no princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º, do CPP. A partir de um raciocínio lógico feito com base na prova produzida afigura-se, de modo objectivável, ter por certo que o arguido praticou determinados factos. Exige-se não uma certeza absoluta mas apenas e só o grau de certeza que afaste a dúvida razoável, a dúvida suscitada por razões adequadas. O que há-de ser feito mediante uma «valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência comum».
II - Percorrido este caminho na fundamentação, a impugnação dos factos há-de ser feita com a indicação das concretas provas que imponham decisão diversa da recorrida sob pena de tal impugnação redundar em mera discordância acerca da apreciação da prova desses mesmos factos, respeitável decerto, mas sem consequências de índole processual.»

E esta posição está igualmente associada à ideia – que é preciso não perder de vista – de que o reexame da matéria de facto não de destina a realizar um segundo julgamento pelo Tribunal da Relação, mas tão-somente a corrigir erros de julgamento em que possa ter incorrido a 1.ª Instância.
Neste sentido, que é pacífico, decidiu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-09-2017[3]:
«I - O reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso não constitui, salvo os casos de renovação da prova, uma nova ou uma suplementar audiência, de e para produção e apreciação de prova, sendo antes uma actividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento – art. 412.º, n.º 2, als. a) e b), do CPP.
II - O recurso da matéria de facto não visa a prolação de uma segunda decisão de facto, antes e tão só a sindicação da já proferida.»

Contextualizado, de forma sumária, o quadro legal e jurisprudencial em que assenta o reexame da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, apreciemos a argumentação do recurso.
Entendem os recorrentes que os factos provados 5, 6, 7, 8, 9, 10 e 11 deviam ser levados ao elenco dos factos não provados. Para tanto alegam que o Tribunal a quo se limitou «a retirar deduções superficiais acerca do facto de os arguidos terem subscrito a procuração forense que se encontra junta nos embargos de executado ali mencionado e, por isso, infere que certamente estes teriam tomado, pessoalmente, conhecimento do teor da sentença proferida nos autos de procedimento cautelar, o que não se provou».
E mais adiante acrescentam que «[e]ncontra-se aqui associado à exigência “regularmente comunicada” o elemento subjetivo, pois é aquele elemento do tipo que fundamenta o dolo daquele que desobedece, na medida em que, sem o seu efetivo conhecimento da ordem emitida, e tendo em conta o disposto no artigo 13.º do Código Penal, a desobediência negligente não é punível.
Ora, não tendo a sentença sido notificada diretamente aos arguidos, nem tendo ficado efetivamente provado que estes tiveram conhecimento pessoal da sentença, não existe aqui uma ordem regularmente comunicada, pelo que não existem sequer indícios mínimos de que os arguidos tomaram consciência de que o incumprimento de tal ordem os faria incorrer na prática de um crime.»
Invocam em apoio desta posição um acórdão do Tribunal da Relação de Évora e alguma doutrina.
Por nos encontrarmos no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, importa não confundir a inexistência de prova de determinados factos dados como provados com a questão de direito dos elementos constitutivos do crime.
Os recorrentes, quanto a nós, colocam tudo no mesmo saco, sendo, por isso, necessário distinguir em que águas nos movemos.
A questão colocada reconduz-nos a duas vertentes diferentes: por um lado, saber se para a perfectibilização do crime de desobediência qualificada que tem na sua base o desrespeito a uma sentença proferida no âmbito de processo de providência cautelar se impõe uma notificação pessoal dos requeridos, o que nos conduz a uma questão de enquadramento jurídico dos factos, e, por outro, saber se, a prova realizada nos autos permite concluir pelo concreto conhecimento pelos arguidos daquela decisão, aqui se avaliando ainda se se exige qualquer tipo de prova tarifada para sua demonstração, o que nos cinge a uma avaliação da prova produzida.

Dito isto, cumpre salientar que o ponto 5 da matéria de facto provada (os arguidos, enquanto requeridos nesse processo, foram notificados do teor da sentença proferida na providência cautelar na pessoa do seu Il. Mandatário nesses autos, tendo conhecimento, em data não concretamente apurada entre 10 de Janeiro e 20 de Março do ano de 2019, do teor dessa decisão judicial e do comportamento que esta lhes impunha) é fulcral nesta análise, já que é aí que se estabelece o conhecimento por parte dos recorrentes do teor da decisão proferida na providência cautelar e se baseia a fixação dos factos seguintes, que aqui foram impugnados.
Para fundamentar a sua fixação, o Tribunal a quo apresentou a seguinte justificação:
«No que tange ao circunstancialismo referido no facto 5, é convicção do Tribunal que os Arguidos tiveram efetivo conhecimento da sentença, pelo menos até 20 de Março de 2019, porquanto embargaram a execução da mesma naquela data (cf. facto provado 6), não sendo verosímil que a oposição à execução tenha sido apresentada sem o seu conhecimento o que, aliás, é contrariado pela procuração junta com tal articulado, subscrita por todos os Arguidos a favor do seu Il. Mandatário, com data de 5 de Março de 2022. Na verdade, se outorgam procuração a favor do Il. Mandatário, que vem a ser junta no processo executivo, não é plausível que não saibam para que efeito o estão a fazer. É certo que se poderia conjeturar que a procuração foi outorgada para outras situações e aproveitada para a junção ao processo, mas tal conclusão não se afigura verosímil uma vez que, confrontando-se com a procuração junta aos presentes autos de fls.120, com data distinta, afigura-se que, como deve, efetivamente, ser, as procurações são outorgadas para os concretos processos. Por outro lado, o efetivo conhecimento da sentença pelos Arguidos resulta mesmo das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer porquanto seria uma inconcebível falta de zelo profissional e uma violação dos deveres deontológicos que são impostos aos advogados pelo seu Estatuto que o Il. Mandatário dos ali requeridos não lhes tivesse comunicado o teor da referida sentença, violação que não se pode ter como certa. A tudo isto acresce que em momento algum foi pelos Arguidos alegado o desconhecimento da sentença, nem em sede de contestação, nem em sede de embargos do executado no processo de execução da sentença, o que sempre se verificaria caso a mesma não tivesse, efetivamente, chegado ao seu conhecimento.»

O recorrente, em boa verdade, não infirma as bases desta fundamentação, defendendo, apenas e tão-somente, que era necessária uma notificação pessoal dos requeridos para que se pudesse concluir que estes tomaram conhecimento do teor da decisão proferida na sentença cautelar que contém uma ordem de demolição.
Ora, nos factos assentes não está dado como provado que ocorreu uma notificação pessoal daquela decisão aos recorrentes, mas apenas que estes foram notificados do teor da sentença proferida na providência cautelar na pessoa do seu Ilustre Mandatário, tendo esta notificação ocorrido em 10-01-2019 (factos provados 4 e 5), remetendo-se para os documentos de fls. 189 e 359 dos autos, que confirmam esta tramitação.
O Tribunal a quo deu também como provado que os recorrentes tiveram conhecimento da sentença proferida na providência cautelar entre os dias 10 de Janeiro e 20 de Março do ano de 2019. A primeira data representa a de notificação do Ilustre Mandatário dos recorrentes e a segunda a data em que estes deram entrada em juízo a um requerimento de oposição à execução por embargo de executado.
O raciocínio realizado é, quanto a nós, legítimo e coerente com as regras da experiência comum. Com efeito, embora não conseguindo fixar com exactidão a data em que os recorrentes tiveram conhecimento da sentença que os obrigou à realização de obras de demolição, dispensando até os requerentes da providência da propositura da acção principal demolição, o Tribunal a quo entendeu que esse conhecimento adveio entre a data de notificação da sentença ao Ilustre Advogado que os representava (10-01-2019) e a data em que os mesmos agiram judicialmente (20-03-2019), procurando opor-se à execução da sentença, conforme fls. 225 a 251, como se indica para justificação do facto provado 6.
E neste conjunto documental incluiu-se uma procuração (conforme fls. 178 e 151 v.º) datada de 05-03-2019 que terá sido utilizada nessa oposição.
A argumentação do Tribunal a quo para considerar demonstrado o conhecimento da decisão por parte dos recorrentes baseia-se em dados objectivos e conhecidos que permitem sustentar aquele facto à luz das regras da experiência. Incoerente e inconsistente com estas, isso sim, seria considerar que o Ilustre Mandatário dos requeridos nada lhes comunicou, que intentou em nome daqueles, mas com o seu desconhecimento, uma oposição por embargos à execução da sentença – em cujo requerimento estes reconhecem o teor da sentença da providência cautelar –, que fez acompanhar aquele requerimento de uma procuração emitida pelos aqui recorrentes precisamente dentro daquele período temporal descrito (datada de 05-03-2019), e pagou não só a taxa de justiça no valor de € 306, como também uma multa de € 76,50, tudo sem conhecimento e consentimento dos requeridos na providência cautelar, aqui recorrentes, que, curiosamente, em momento algum, seja na contestação, seja nos embargos de executado, como se justifica na decisão recorrida quanto ao ponto de facto provado 5, alegaram o desconhecimento da sentença da providência cautelar que determinou a ordem de demolição.
O conhecimento do teor de uma decisão judicial, salvo se a lei estabelecer prova específica para o efeito, o que não é o caso, pode ocorrer por diversas formas, desde logo por ter sido efectuada uma notificação pessoal – que no caso não se realizou –, mas também por qualquer outro meio de prova que não seja proibido por lei (arts. 125.º e 127.º do CPPenal).
Conforme se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-10-2012[4], em situação idêntica à dos autos, posição com a qual se concorda, «os factos referentes ao conhecimento pelo destinatário da ordem e da obrigação de cumprimento podem provar-se por qualquer meio admissível (prova documental mas também confissão, prova por testemunho ou por presunções naturais)».
Os recorrentes, para além de entenderem que a argumentação do Tribunal a quo é insuficiente para demonstrar o efectivo conhecimento da sentença da providência cautelar pelos requeridos – sem razão, como se viu –, não apresentam qualquer outro fundamento que leve a invalidar a prova que sustentou a convicção do Tribunal a quo quanto os pontos de facto provados impugnados – que são de manter nos seus precisos termos –, insistindo sempre na necessidade de uma efectiva notificação pessoal aos recorrentes, que o Tribunal a quo não nega inexistir, relembra-se.
Contudo, como já se referiu, essa exigência não resulta da lei em termos probatórios.
Resta analisá-la ao nível da subsunção dos factos ao direito, configurando, na perspectiva dos recorrentes (embora assim a não qualifiquem), um erro de julgamento em sede de direito.
Todavia, também aqui não lhes assiste razão, como se vê do completo e bem fundamentado segmento da decisão recorrida que aprecia o enquadramento jurídico-penal dos factos, que acolhemos na íntegra e que dispensa maiores desenvolvimentos, e que é do seguinte teor:
«2. DO DIREITO
2.1. Enquadramento jurídico-penal
Face aos factos apurados, impõe-se agora analisar o tipo legal de crime de modo a aquilatar a subsunção da conduta dada como provada ao crime de quem vêm acusados.
A acusação imputa aos arguidos a prática, em coautoria, de um crime de desobediência qualificada, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º1, alínea a) e n.º2 do Código Penal. Nos termos dos referidos preceitos “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples (…)” e “A pena é de prisão até 2 anos ou de multa até 240 dias nos casos em que uma disposição legal cominar a punição da desobediência qualificada”.
Com a criação do tipo legal da desobediência, o legislador quis tutelar a autonomia intencional do Estado, como sustenta CRISTINA LÍBANO MONTEIRO (Comentário Conimbricense, Tomo III, Coimbra Editora, 1999, p.350), visando-se a garantia do dever geral de aceitação e obediência aos mandados legítimos das forças de autoridade e, ainda, a autonomia intencional do funcionário, como defende PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE “uma vez que o conceito de funcionário inclui os gestores e trabalhadores das empresas privadas concessionárias de serviços públicos” (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal – à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição, Universidade Católica Editora, 2015, p.1103) – Neste sentido, cf. MIGUEZ GARCIA e CASTELA RIO, Código Penal com notas e comentários, 2ª edição, Almedina, 2015, p.1234.
O crime de desobediência integra-se na tipologia dos crimes de dano, uma vez que, para a sua consumação, exige a efetiva lesão do bem jurídico protegido, bem como na categoria dos crimes de mera atividade por se bastar com a adoção da conduta tipificada pelo agente, não se exigindo a produção de determinado evento. Em suma “o crime consuma-se com a prática do ato cuja omissão foi ordenada ou a omissão do cuja prática foi ordenada” (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob cit.p.1103)
O tipo objetivo do ilícito pode ser decomposto em diversos elementos, dos quais, (i) a existência de uma ordem ou mandado legítimo; (ii) que seja comunicada ao destinatário pelas vias normais; (iii) que se funde em cominação legal ou em cominação expressa pela autoridade emitente; (iv) a adoção de uma conduta contrária à ordem.
Assim, para o preenchimento da conduta típica é necessário um ato que imponha determinada conduta e que o mesmo seja legítimo, para o que deve ser emitido pela entidade competente – isto é, pela entidade com o poder legal para a proferir - e não padecer de vícios de natureza material e formal. Em suma, o ato é legítimo quando não contrarie a ordem jurídica no seu todo.
Além disto, deve o ato ser regularmente comunicado, “isto é, devem ser transmitidos aos respetivos destinatários pelos meios previstos na lei. Portanto, o destinatário da ordem ou mandado deve tomar conhecimento do conteúdo dos mesmos, o que exige um processo regular e capaz para a sua transmissão, por forma a que o destinatário tenha conhecimento do que lhe é imposto ou exigido” (cf. PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, ob.cit., p.1105).
No entanto, o não acatamento de uma ordem deste tipo não chega, por si só, para conferir à conduta (ativa ou omissiva, consoante a ordem seja de uma atuação omissa ou ativa) a dignidade penal que fundamenta a condenação. Para tal é necessário que a ordem assente em uma de duas fontes: ou na disposição legal que comina a atuação num sentido contrário à ordem como desobediência; ou na cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário que ditou a ordem. É esta circunstância que cria um “dever de obediência qualificado – qualificado na medida em que o seu não cumprimento traz consigo uma sanção criminal” – CRISTINA LIBANO MONTEIRO, ob cit., p. 351
No que diz respeito à disposição legal que comina determinada atuação como um crime de desobediência, por ser através dessa que a conduta é imputada ao Arguido, a mesma deve estar prevista em Lei da AR e não é necessário que a autoridade que emite a ordem faça expressa menção da cominação legal (neste sentido, Acórdão da Relação do Porto de 16/01/2017 e Acórdão da Relação de Guimarães de 2/12/2013, disponíveis em www.dgsi.pt).
Por fim, o último elemento objetivo do crime carece de uma conduta contrária à ordem, que pode revestir-se de natureza ativa ou omissiva. Esta dualidade importa para efeitos de consumação do crime, sendo certo que este se terá por consumado quando o agente pratica o ato proibido ou omite aquele a que estava obrigado. Nesta última situação, havendo prazo para a prática do ato, o crime consuma-se com a passagem do prazo sem que o agente adote a conduta a que estava obrigado.
Por sua vez, a estrutura subjetiva do crime de desobediência assenta num só elemento, circunscrito ao dolo, mas admitido em qualquer uma das suas modalidades, exigindo-se que o agente represente e queira a concretização dos elementos objetivos do tipo, designadamente que conheça e represente a ordem emitida e que não a cumpra, voluntariamente.
Transpondo todas estas considerações para o caso concreto verifica-se que o primeiro elemento objetivo do tipo está verificado porquanto existe uma ordem – a ordem de demolição -, que é legítima, porquanto foi proferida pela entidade com o poder legal para o fazer – o Tribunal – e que se encontra cristalizada numa sentença, que não padece de qualquer vício de natureza material ou formal.
No que tange ao segundo elemento objetivo, merece maiores considerações face à tese da defesa, que propugna pela falta de verificação deste elemento uma vez que a sentença não foi pessoalmente notificada aos Arguidos, o que, aliás, ficou demonstrado uma vez que apenas foi notificada ao seu Il. Mandatário (cf. facto provado 4).
Ora, sobre as notificações no âmbito do processo civil, dispõe o artigo 247.º, n.º1, do Código de Processo Civil que “As notificações às partes em processos pendentes são feitas na pessoa dos seus mandatários judiciais”. Daqui resulta que, quando as partes constituam mandatário, é na pessoa destes que são realizadas as notificações, inexistindo qualquer outra formalidade que tenha de ser realizada para que as partes se considerem regularmente notificadas. Como tal, não foram os Arguidos pessoalmente notificados da sentença pois não o teriam de ser. Nem seria concebível ou viável que se sustentasse que, para que se possa preencher os elementos do crime de desobediência, as sentenças proferidas em procedimentos cautelares tivessem de ser notificadas, diretamente, às partes, porquanto tal exigência ficaria à margem daquilo que a lei impõe e, nessa sequência, tornaria inócua a tutela penal que é conferida ao não acatamento de toda e qualquer ordem determinada em procedimento cautelar. Na verdade, se a lei não impõe que as partes sejam notificadas da decisão que defere a providência cautelar, estas nunca seriam e, se se defendesse que para a desobediência seria indispensável essa notificação, entrar-se-ia num vazio de condenação porquanto a mesma nunca seria possível, tornando o disposto no artigo 375.º, do Código de Processo Civil letra morta, inaplicável em qualquer situação.
Neste mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/11/2014, disponível em www.dgsi.pt que no seu sumário conclui que “Para que exista incumprimento de uma decisão judicial, decorrente de um processo de restituição provisória de posse, basta que esta tenha sido notificada nos termos legalmente prescritos, pois o tipo legal (artº 348º1 CP) remete para a legislação especifica sobre a notificação dos atos de autoridade (regularmente comunicada)”, fundamentando que “Como se vê, em parte alguma dos autos se refere que a referida sentença – que integrava a ordem não cumprida – foi notificada pessoalmente aos arguidos/recorrentes. A decisão recorrida não teve necessidade de apurar esse aspeto – notificação pessoal da ordem – porque, em boa verdade, para que exista incumprimento de uma decisão judicial basta que esta tenha sido notificada nos termos legalmente prescrito”, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/10/2012 que sumaria dizendo “Sendo caso de desobediência em consequência de desrespeito de uma sentença proferida em providência cautelar, por força do disposto nos artigos 127.º n.º 3 e 159.º n.º 2 alínea a) do Código do Processo nos Tribunais Administrativos e na alínea a) do artigo 348.º n.º 1 do Código Penal, o preenchimento do elemento típico da regular comunicação da decisão proferida em providencia cautelar não exige uma notificação pessoal, nem a advertência do destinatário da consequência penal decorrente do incumprimento, sendo suficiente que a pessoa visada tenha perfeito conhecimento da ordem.
Assim, considerando que a notificação às partes da sentença que decreta a procidência cautelar não é exigível, é a notificação no Il. Mandatário dos requeridos, aqui Arguidos, bastante para se ter a sentença como regularmente notificada.
Acresce que, no seguimento do transcrito Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22/10/2012, especificamente a sua parte final, não obstante a desnecessidade de notificação pessoal, é necessário que a pessoa visada tenha conhecimento da ordem. Na verdade, não seria possível afirmar o dolo do incumprimento se aquele que tem de cumprir a ordem a desconhecesse. É mesmo isso que refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO ao afirmar que “não basta que o meio de fazer chegar a ordem ao conhecimento do seu destinatário se mostre (de acordo com a lei) formalmente irrepreensível, torna-se necessário que aquele se tenha inteirado, de facto, do seu conteúdo”.
No caso dos autos, esse conhecimento verificou-se (cf. facto provado 5), em data não concretamente apurada, é certo, mas pelo menos a 20 de Março de 2019. Não se ignora que se poderia argumentar que, nesta data, já teriam decorrido os 15 dias fixados na sentença como prazo para a realização das obras de demolição, que se contariam a partir do trânsito em julgado da sentença. No entanto, ainda que se contem os 15 dias a partir do conhecimento dos Arguidos da sentença, a verdade é que, conhecendo plenamente o sentido da ordem que lhes foi dada, não a cumpriram, nem nos 15 dias posteriores ao trânsito, nem nos 15 dias que se seguiram a 20 de Março de 2019. E não se diga que não o fizeram porque embargaram a respetiva sentença porquanto os embargos apenas reforçam a intenção dos Arguidos no não cumprimento da ordem ali determinada.
O terceiro elemento objetivo do tipo assenta, no caso concreto, na cominação legal da atuação num sentido contrário à ordem como desobediência verificada no disposto no artigo 375.º, do Código de Processo Civil que, sob a epígrafe “Garantia penal da providência” estabelece: “Incorre na pena do crime de desobediência qualificada todo aquele que infrinja a providência cautelar decretada, sem prejuízo das medidas adequadas à sua execução coerciva”. Assim, é através desta disposição legal que é possível subsumir a conduta dos Arguidos não apenas ao crime de desobediência simples mas sim à desobediência qualificada.
Por fim, a adoção de uma conduta contrária à ordem está igualmente verificada através da omissão da realização das obras de demolição em cuja execução foram os Arguidos condenados a fazer (cf. facto provado 7).
Relativamente ao tipo subjetivo do ilícito, da factualidade provada resultou que os Arguidos, conhecendo a ordem que lhes era imposta, quiseram desrespeitar e desrespeitaram aquilo a que estavam obrigados por sentença, legitimamente proferida pelo Tribunal, ou seja, representando e querendo realizar, voluntariamente, os elementos objetivos do ilícito.
Em face do exposto, constata-se o preenchimento de todos os elementos objetivos e subjetivos do ilícito ao mesmo tempo que não se descortinam causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, que obstem à afirmação do facto ilícito, típico e culposo e, deste jeito, obstem à punibilidade dos arguidos.
Conclui-se, pois, que os factos dados como provados integram a prática, pelos Arguidos, de um crime de desobediência qualificada p. e p. no artigo 348º, n.º 2 do Código Penal, pelo qual terão de ser condenados.»

O argumento dos recorrentes para rebater o entendimento que foi assumido na decisão recorrida é o de que a regular comunicação a que se alude no art. 348.º, n.º 1, do CPenal exige, no caso de a desobediência estar suportada em sentença proferida em providência cautelar, que a mesma seja pessoalmente notificada ao requerido, isto é, ao obrigado ao cumprimento da decisão proferida.
Ora, nem tal obrigação resulta da letra da lei, nem a doutrina e a jurisprudência na área do direito penal que os recorrentes citam postula uma tal restrição, mas apenas, como se defende na decisão recorrida, que se cumpra uma regular notificação no âmbito das regras aplicáveis ao processo onde a sentença é proferida – no caso é a mera notificação ao advogado, como se explica na fundamentação supratranscrita –, a que deve acrescer, como igualmente se perfilha na decisão recorrida, a necessidade de efectivo conhecimento do conteúdo da decisão por parte do(s) requerido(s), facto que é essencial para a configuração dos elementos subjectivos do crime, mas que, como se referiu, pode ser demonstrado por várias vias, embora a notificação pessoal seja, por excelência, o meio de prova que mais facilmente o comprova.
O que habitualmente acontece, como dá nota a jurisprudência[5], é que é difícil, não impossível, provar o conhecimento da decisão cautelar sem que esta esteja notificada pessoalmente ao(s) requerido(s) e sem que nada aconteça após a sua regular notificação ao respectivo advogado ou apenas seja apresentado recurso.
Mas no caso autos ocorreu tramitação processual – oposição à execução de sentença – que nos assegura, de acordo com as regras da experiência comum, que os requeridos tiveram conhecimento da sentença proferida na providência cautelar, como se explica na fundamentação da decisão recorrida, e já aqui analisamos, mostrando-se naquela adequadamente fundamentada a sua opção em termos doutrinais e jurisprudenciais, para os quais se remete.
Em face do exposto, nenhum erro de julgamento em sede de matéria de facto ou de direito se detecta, pois, na sentença recorrida.
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No recurso apresentado vem ainda invocada a falta de menção ao arguido CC na sentença do processo cautelar, o que determinaria a sua absolvição quanto ao crime de desobediência já que não foi visado com a decisão proferida naquele processo cautelar.
Estabelece o art. 3.º, n.º 1, do CPCivil, sob a epígrafe “Necessidade do pedido e da contradição”, que o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição.
Resulta do documento n.º 1 junto com a denúncia que a providência cautelar que deu origem à sentença que determinou «aos requeridos e intervenientes que procedam, no prazo de 15 dias, às obras de demolição do seu prédio melhor identificado no ponto 2 dos factos provados» foi intentada por MM e HH (uma parte, os requerentes) contra II, AA, BB e CC (a outra parte, os requeridos).
Da sentença proferida na providência cautelar – constante, designadamente, de fls. 101 a 108 dos autos – decorre que foram ainda chamados outros intervenientes ao processo (EE e FF) e que todos os requeridos foram citados para a acção, tendo apenas os inicialmente demandados vindo deduzir oposição.
De acordo com o disposto nos arts. 259.º e 260.º do CPCivil, iniciada a instância com a propositura da acção e citados os réus, no caso, requeridos, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.
Não há nota na sentença, nem os recorrentes alegam qualquer alteração nesse sentido, que reflita qualquer modificação da composição das partes acima identificada, requerentes ou requeridos, pelo que os requeridos e os intervenientes que no final da sentença são visados com a ordem de demolição de prédio são todos aqueles que acima se identificaram, incluindo o requerido CC, como, aliás, se explica na sentença aqui recorrida, conforme consta da motivação quanto à fixação do facto provado 1.
Decorrendo a qualidade de requerido de providência cautelar única e exclusivamente da lei – e, por via desta, da identificação que os requerentes fazem da parte que pretendem demandar e do seu chamamento à acção –, e não da identificação realizada na sentença, que claramente omitiu por lapso a identificação de um dos requeridos, nenhum óbice se verifica a que CC seja considerado requerido naqueles autos.
E tanto é assim que também ele deduziu oposição à execução da sentença, apresentando procuração nesse incidente.
Improcede, pois, igualmente esta parcela do recurso.
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Por fim, questionam os recorrentes a medida concreta das penas, que consideram excessivas e desajustadas quer à culpa, quer às exigências de prevenção, alegando que o Tribunal a quo não ponderou devidamente todos os factos que depuseram a favor dos arguidos, nomeadamente o grau de ilicitude, a situação pessoal, o seu comportamento anterior e posterior à prática do crime e a idade dos arguidos.
Pugnam pela aplicação de penas de multa fixadas em medida próxima do mínimo legal.
Sobre esta matéria pronunciou-se o Tribunal a quo nos seguintes termos:
«2.2. Da determinação da pena concreta
Feito o enquadramento jurídico-penal da conduta dos Arguidos, importa agora proceder à determinação da espécie e da medida da reação penal a aplicar no caso concreto.
2.2.1. Da escolha da espécie da pena
O crime de desobediência qualificada é punido com pena de prisão ou com pena de multa, conforme decorre do disposto no artigo 348º, n.º2 do Código Penal.
Perante a previsão alternativa de uma pena privativa da liberdade e uma pena não privativa da liberdade, a primeira operação a realizar é a escolha da espécie da pena aplicável.
Nos termos do artigo 70.º, do Código Penal, o Tribunal, perante uma situação destas, deve dar prevalência às medidas não privativas da liberdade se estas forem suscetíveis de “realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”. Assim, perante o comando do legislador, e de acordo com o princípio da intervenção mínima e com a consideração de que a pena de prisão deve ser uma reação de última ratio, só aplicável quando outras se revelem inadequadas a responder às exigências de prevenção, importa determinar se a aplicação de uma pena de multa, no caso concreto, poderá ainda efetivar a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente, ou seja, os fins visados pela aplicação das penas, diretamente relacionados com a concretização de exigências de prevenção geral e de prevenção especial positiva referidos pelo artigo 40.º do Código Penal.
No caso concreto, considerando a ausência de quaisquer antecedentes criminais dos três Arguido, é verosímil que a aplicação de uma pena de multa mantenha, ainda, a virtualidade de os sensibilizar e de os fazer interiorizar o desvalor da sua conduta, prevenindo-se o cometimento de novos crimes e assegurando a tutela dos bens jurídicos ao mesmo tempo que se evita a reclusão e os efeitos prejudiciais que a mesma representa em termos de ressocialização.
Deste modo, quanto à espécie da pena a aplicar, opta-se pela aplicação aos três Arguidos de uma pena de multa.
2.2.2. Da determinação da medida concreta da pena
Escolhida a espécie da pena, importa encontrar a moldura penal abstrata aplicável ao caso.
O legislador prevê que a dosimetria do crime praticado vai de 10 dias a 240 dias de multa, nos termos do artigo 47.º, do Código Penal e do artigo 348.º, do Código Penal.
Para a determinação da medida concreta da pena de multa, o legislador português, inspirado no modelo escandinavo, acolheu o sistema dos dias de multa. Este sistema, assenta na realização de duas operações sucessivas às quais presidirão critérios distintos. Num primeiro momento, o julgador será chamado a determinar o número de dias de multa, convocando os mesmos critérios que utiliza na determinação da pena de prisão pressupostos pelo artigo 71.º, do Código Penal. Num segundo momento, terá que ser fixada, dentro dos limites legais, o quantitativo de cada dia de multa, atendendo já não a critérios de prevenção e de culpa do agente mas sim à sua situação económico-financeira e aos seus encargos pessoais – cf. artigo 47.º, n.º1 e n.º2, do Código Penal.
No âmbito da primeira operação a realizar, a determinação da medida concreta da pena de multa deve ser feita “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, conforme dispõe o artigo 71.º n.º1 para o qual o artigo 47.º do Código Penal expressamente remete.
A referência à culpa terá de ser conjugada com a imposição de que a pena não ultrapasse, em caso algo, a medida da culpa – cf. artigo 40.º n.º2, do Código Penal-, enquanto que a referência a que se atendam às exigências de prevenção traduz a necessidade de reafirmação contrafáctica da norma violada junto da comunidade.
A culpa e a prevenção funcionarão assim, como os dois vetores que oferecem os limites dentro dos quais deve ser achado o quantum da condenação, e que sempre terá de ser determinado com vista à realização das finalidades da punição, correspondendo o ponto dado pela culpa o limite máximo inultrapassável e sendo o limite mínimo desta operação dado pelo quantum da pena, imprescindível para a tutela dos bens jurídicos e para a estabilização da crença comunitária na norma violada, isto é, pelo limite abaixo do qual já não é suportável a fixação de uma pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função.
Dentro destes limites atuam os pontos de vista de prevenção especial positiva, virados para a ressocialização do agente e para a sua necessidade de intervenção, que serão os que determinarão, em último termo a medida da pena.
No caso dos autos, as exigências de prevenção geral são consideráveis uma vez que a autonomia intencional do Estado ou dos funcionários é frequentemente posta em causa, sendo muitas vezes encarada sem a seriedade e o respeito devido, o que convoca a necessidade de uma reação penal que espelhe uma firme reafirmação da validade da norma no seio da comunidade.
Quanto à culpa, determinante do limite máximo inultrapassável, está assente que os Arguidos agiram com dolo direito, a forma mais grave da culpa, tendo atuado livre e conscientemente e sendo, por isso, legítimo exigir-lhe que tivesse agido de outra forma.
Quanto às exigências de prevenção especial, não se considera que nenhum dos três Arguidos apresente necessidades de ressocialização ou de intervenção no âmbito da prevenção da prática de novos crimes, face aos antecedentes criminais que não apresentam.
Devem, agora, apurar-se, no caso concreto, as circunstâncias do complexo integral do facto que possam contribuir para a concretização das mencionadas culpa e prevenção. Para esta operação, devem ser consideradas as circunstâncias concretas que possam militar contra ou a favor do arguido e que não integrem já o tipo de ilícito (de forma a respeitar o princípio da proibição da dupla valoração), tendo o legislador auxiliado o julgador através de uma concretização exemplificativa de alguns elementos que podem ser tidos em consideração – cf. artigo 71.º, n.º2, do Código Penal.
No âmbito dos fatores relativos à execução do facto, deve considerar-se o grau de ilicitude médio alto da conduta uma vez que os Arguidos desrespeitaram a ordem contida na sentença proferida pelo Tribunal, omitindo a conduta ordenada, tendo depois persistido nessa omissão reiterando-a através da oposição à execução que depois deduziram, querendo mesmo impedir a efetivação da ordem dada.
Por outro lado, deve relevar-se a circunstância de, atualmente, as obras já se encontrarem, na sua maioria, realizadas encontrando-se regularizada a situação, ainda que o tenha sido por entidade diferente e não pelos Arguidos.
Quanto à intensidade do dolo, os Arguidos atuaram com dolo na sua modalidade mais intensa, o dolo direto, uma vez que de forma deliberada, livre e consciente, quiseram desobedecer e desobedeceram à ordem que lhes foi dada.
Não pode, também, ignorar-se os sentimentos demonstrados pelos Arguidos no cometimento do crime, que agiram com desprezo pelo bem jurídico protegido, ao ignorar a ordem que lhes foi determinada.
Já nos fatores relativos à personalidade do agente, residem alguns pontos que militam a favor dos três Arguidos, designadamente, a circunstância de todos estarem integrados familiar, profissional e socialmente. Na verdade, os Arguidos AA e CC encontram-se a exercer uma atividade laboral e o Arguido BB encontra-se reformado, todos auferindo rendimentos que os permitem sustentar-se e às suas famílias. Além disto, valorou-se igualmente a ausência de antecedentes criminais dos três Arguidos o que, conjugado com os elementos expostos, permite indiciar que a situação dos autos é meramente pontual, fortuita e sugere que estes têm levado - e daqui para a frente igualmente levarão - um caminho conforme ao direito.
Isto posto importaria referir que o quantum da pena a aplicar será idêntico em relação aos três arguidos uma vez que os fatores que se convocam para a sua determinação são os mesmos, tendo todos tido o mesmo grau de participação no facto e sendo idênticos os fatores relativos às suas personalidades.
Assim, ponderados todos os fatores e as exigências de prevenção geral e especial que o caso convoca, considera-se adequado às finalidades da punição aplicar a cada um dos Arguidos a pena de 115 (cento e quinze) dias de multa.
Segue-se, agora, a segunda operação integrante do processo de determinação da medida concreta da pena de multa e que se traduz na fixação do montante a que corresponderá o quantitativo diário da pena. Esta exigência legal justifica-se uma vez que o legislador procurou que a pena de multa fosse compreendida pelo arguido como uma verdadeira sanção pela conduta ilícita, o que só acontecerá se a multa for proporcional e adequada aos seus rendimentos, correndo-se o risco de uma mesma pena encerrar em si um quantum de sacrifício mais elevado para um arguido do que para outro que tivesse uma condição económica mais elevada.
O quantitativo diário fixado deve situar-se entre os limites legalmente impostos de Eur.5,00 e Eur.500,00 e para a sua determinação deve atender-se à situação económica do arguido e aos seus encargos pessoais – cf. artigo 47.º nº2, do Código Penal.
Das circunstâncias demonstradas relativamente à situação económica do Arguido AA importaria referir que aufere mensalmente a quantia de Eur.1.000,00 (mil euros) e apresenta como despesas a quantia de Eur.200,00 (duzentos euros) o que é demonstrativo de uma situação económica que não se tem por precária
Como tal afigura-se adequada à situação económica do Arguido AA, e, ao mesmo tempo, à salvaguarda do caráter sacrificial da pena, a fixação do quantitativo diário em Eur.7,00 (sete euros).
Quanto ao Arguido BB, embora tenha ainda uma filha a estudar que, carecerá, naturalmente, de ajuda financeira, conhecidos que são os encargos com os jovens que estudam longe de casa, apresenta somente, a título de despesas fixas a quantia de Eur.60,00 (sessenta euros) o que, aliado ao rendimento mensal que aufere também configura uma situação económica salutar.
Como tal, afigura-se adequada à situação económica do Arguido AA, e, ao mesmo tempo, à salvaguarda do caráter sacrificial da pena, a fixação do quantitativo diário em Eur.7,00 (sete euros).
Por fim, o Arguido CC apresenta, de igual modo, uma situação económica salutar, uma vez que os rendimentos do agregado familiar ascendem a Eur.3.800,00 (três mil e oitocentos euros), aos quais devem ser deduzidos o valor de Eur.500,00 (quinhentos euros) relativo às despesas fixas, resultando num valor disponível de Eur.3.300,00 (três mil e trezentos euros). Sem prejuízo do rendimento comum do agregado, não pode olvidar-se que a pena de multa deve constituir um sacrifício pessoal e próprio para o Arguido, devendo ser suportada por este e não por terceiros, por forma a que satisfaça as necessidades de censura e prevenção e que o Arguido sinta que é uma verdadeira consequência do facto perpetrado. Assim, dividindo-se por dois o valor global do rendimento disponível do agregado, como impõe o carácter individual da pena de multa, pode afirmar-se que este Arguido CC obtém, uma quantia de cerca de Eur.1.650,00 (mil seiscentos e cinquenta euros) para si e para fazer face às restantes despesas do agregado familiar, que se inferem pelas regras de experiência comum uma vez que é sabido o montante aproximado relativo a gastos inerentes à manutenção e sustento de um agregado familiar composto por três dependentes.
Considerando, por um lado, o rendimento disponível, sem esquecer o carácter individual da pena, que deve constituir um sacrifício pessoal e próprio para o Arguido, relembrando que os valores que se expenderam são valores brutos e não de rendimentos líquidos e sublinhando que, apesar de ter rendimentos superiores aos dos restantes Arguidos tem, também, mais despesas e três filhos a seu cargo, afigura-se adequada, igualmente, a fixação do quantitativo diário em Eur.7,00 (sete euros).
Em suma, decide-se aplicar:
Ao Arguido AA, a pena de multa de 115 (cento e quinze) dias à taxa diária de Eur.7,00 (sete euros), perfazendo o montante global de Eur.805,00 (oitocentos e cinco euros).
Ao Arguido BB, a pena de multa de 115 (cento e quinze) dias à taxa diária de Eur.7,00 (sete euros), perfazendo o montante global de Eur.805,00 (oitocentos e cinco euros).
Ao Arguido CC, a pena de multa de 115 (cento e quinze) dias à taxa diária de Eur.7,00 (sete euros), perfazendo o montante global de Eur.805,00 (oitocentos e cinco euros).»

Como se pode ver pela leitura deste segmento da decisão, o Tribunal a quo cumpriu todo um percurso de fundamentação que lhe era exigido, como ali mesmo se dá nota.
Com efeito, como ali também se explica, na escolha e determinação da medida concreta da pena impõe-se ao julgador que tenha presente o disposto em três normas fundamentais nesta matéria, os arts. 40.º, 70.º e 71.º do CPenal.
Dispõe o primeiro dos indicados preceitos, com a epígrafe “Finalidades das penas e das medidas de segurança”, que:
«1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3 - A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente.»

Tendo presente estas finalidades, deve o julgador de seguida, na operação de escolha da pena, ter em atenção a regra ínsita no art. 70.º do CPenal, segundo o qual:
«Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.»

Por fim, especifica o terceiro dos indicados preceitos (art. 71.º do CPenal) que na determinação da medida concreta da pena deve o julgador ter em atenção que:
«1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 - Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 - Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.»

Nas palavras sempre actuais de Figueiredo Dias[6], «[a] exigência legal de que a medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa e da prevenção é absolutamente compreensível e justificável. Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção.»

Para além destas indicações é preciso não perder de vista que «A necessidade, proporcionalidade e adequação são princípios orientadores que devem presidir à determinação da pena aplicável à violação de um bem jurídico fundamental.»[7]

A medida concreta da pena tem, pois, de ser fixada de modo a permitir a satisfação das exigências de prevenção geral, salvaguardando as expectativas da comunidade na validade e manutenção/reforço da norma violada – o que constitui o seu limite mínimo, abaixo do qual não estão a ser cumpridas as finalidades da punição –, embora sem ultrapassar a medida da culpa – que funciona como limite máximo da medida da sanção, sob pena de ser posta em causa a dignidade da pessoa do delinquente –, devendo a concretização da pena, a fixar entre tais limites mínimo e máximo, corresponder ao necessário e suficiente para a reintegração do agente, aí sendo realizado o juízo de ponderação das exigências de prevenção especial.

São estes parâmetros de concretização da pena que é aplicada aos arguidos condenados que devem estar explicitados na sentença, permitindo aos destinatários da mesma acompanhar o percurso decisório do julgador na 1.ª Instância.

Por outro lado, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem entendendo há muito que «[e]m matéria de medida concreta da pena, apesar de se mostrar hoje afastada a concepção da medida da pena concreta, como a «arte de julgar» substituída pela de autêntica aplicação do direito, aceitando-se a sindicabilidade da correcção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, bem como a questão do limite ou da moldura da culpa e a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado, salvo perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efectuada.»[8]

No mesmo sentido, entre outros, entendeu-se no acórdão da Relação de Coimbra de 05-04-2017[9] que:
«I - No quadro da moldura penal abstracta, a fixação [da pena] estabelece-se entre o mínimo, em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo que a culpa do agente consente: entre estes limites satisfazem-se as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização.
II - Relativamente à determinação do quantum exacto de pena [só] será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada.»

Esta jurisprudência reflecte a ideia, que perfilhamos, de que a alteração da medida concreta da pena em sede de recurso deve respeitar a zona de liberdade do julgador em 1.ª Instância ao fixar o quantum da pena, desde que se situe entre os referidos limites que satisfazem as necessidades de prevenção especial (o mínimo necessário à salvaguarda das expectativas comunitárias e o máximo balizado pela culpa do agente) e não ocorra violação das regras da experiência comum ou manifesta desproporção na pena aplicada.

Examinada a argumentação do Tribunal a quo neste segmento da sentença recorrida verificamos, ao contrário do invocado, que a mesma se mostra ajustada e completa, dando cabal cumprimento às exigências de fundamentação que resultam das regras e princípios indicados, abordando todos os pontos que os recorrentes alegaram em faltam, salvo quanto às respectivas idades, embora também não expliquem qual a concreta interferência desse dado na medida das penas, que não se antevê qual seja, a não ser de forma indirecta, por via de outros factores tidos em consideração, como a ausência de antecedentes criminais e a natureza isolado das condutas.
O Tribunal a quo, ponderando, essencialmente, a ausência de antecedentes criminais, começou por optar pela aplicação de penas de multa.
Após, salientou, e bem, as fortes exigências de prevenção geral decorrentes do considerável número de vezes em que a autonomia intencional do Estado é posta em causa e encarada com pouca seriedade e com o respeito devido[10].
Considerou não serem elevadas as exigências de prevenção especial atenta a ausência de antecedentes criminais.
Na concretização da medida da pena de multa, dentro da moldura penal abstracta de 10 (dez) a 240 (duzentos e quarenta) dias de multa, apelou ao dolo directo dos arguidos, à mediana ilicitude dos factos, a que fez acrescer a circunstância de actualmente as obras se encontrarem na sua maioria realizadas, mostrando-se a situação regularizada, ainda que o tenham sido por outra entidade e não pelos arguidos.
O Tribunal a quo ponderou ainda a inserção familiar, profissional e social dos arguidos, a ausência de antecedentes criminais e a natureza isolada dos acontecimentos, decidindo depois pela aplicação das penas que considerou adequadas e que foram fixadas, em medida igual para os três arguidos, a meio da moldura penal abstracta da pena multa.
Sendo essa medida perfeitamente adequada à análise descrita, deve ainda lembrar-se que a opção por uma pena de multa e não uma pena de prisão já representa um juízo de ponderação que reflecte uma valoração de menor censura sobre a conduta, com reflexos, naturalmente, na posterior concretização da pena dentro da moldura abstracta da multa.
Assim, ao contrário do alegado, a fixação da medida concreta das penas de multa foi realizada de acordo com os parâmetros legais de proporcionalidade, adequação e necessidade, tendo em conta a medida da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial expressas na decisão recorrida.
Não sendo questionado o quantitativo diário fixado (€ 7), nada mais se oferece referir a propósito da medida concreta das penas, devendo improceder também este segmento do recurso.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar total provimento ao recurso interposto pelos arguidos AA, BB e CC e em confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça devida por cada um deles (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).
Notifique.

Porto, 03 de Maio de 2023
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico

(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
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[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.
[2] Proc. n.º 146/14.8GTCSC.S1 - 5.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[3] Proc. n.º 772/10.4PCLRS.L1.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[4] Relatado por João Lee Ferreira no âmbito do Proc. n.º 657/08.4TABGC.G1.
[5] Como é o caso dos acórdãos do TRE de 29-11-2016, relatado por Maria Isabel Duarte no âmbito do Proc. n.º 1627/09.0TAFAR.E2, e de 18-04-2017, relatado por Alberto Borges no âmbito do Proc. n.º 106/16.4T9EVE.E1, e do TRC de 08-03-2017, relatado por Luís Teixeira no âmbito do Proc. n.º 651/15.9T9CVL.C1, todos acessíveis in www.dgsi.pt.
[6] Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pág. 215.
[7] Acórdão do STJ de 22-11-2017, Proc. n.º 731/15.0JABRG.G1.S1 - 3.ª secção, acessível in www.stj.pt (Jurisprudência/Acórdãos/Sumários de Acórdãos).
[8] Cf., entre muitos outros, acórdão de 11-10-2007, Proc. n.º 07P3171, acessível in www.dgsi.pt.
[9] Cf. Proc. n.º 47/15.2IDLRA.C1, acessível in www.dgsi.pt.
[10] Neste mesmo sentido se pronunciou o acórdão do TRE de 16-06-2015, CJ, Ano XL, tomo 3, pág. 341.