Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
46/14.1T9MCN.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAUL ESTEVES
Descritores: CRIME
VIOLAÇÃO DA OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
EXECUÇÃO DE SENTENÇA
RENÚNCIA DA QUEIXA
CRIME SEMI-PÚBLICO
Nº do Documento: RP2016112346/14.1T9MCN.P1
Data do Acordão: 11/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º1033, FLS.190-196)
Área Temática: .
Sumário: I - A instauração da execução de sentença civil que fixou uma pensão alimentar a cargo do arguido, é um mero procedimento executivo decorrente daquela decisão.
II - Não se confunde com uma acção civil tendente a obter uma condenação a pagar uma indemnização, pois esta já ocorreu anteriormente.
III - Tal execução não constitui tem renuncia nem determina a extinção do direito de queixa, nos termos do art.º 72º2 CPP em relação ao crime de violação da obrigação de alimentos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência os Juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1 Relatório

Nos autos nº 46/14.1T9MCN.P1 que correram os seus termos na Comarca de Porto Este, Tribunal de Marco de Canavezes, Instância Local, Secção Criminal J1, foi proferida sentença que decidiu:
Condenar o arguido B…, pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de violação da obrigação de alimentos, previsto e punível pelo artigo 250.º, nº 1, 2 e 3, do Código Penal, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à razão diária de €7,00 (sete euros), o que perfaz um total de €770,00 (setecentos e setenta euros)
Não conformado veio o arguido interpor recurso, alegando para tanto o que consta de fls. 273 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido, concluindo nos seguintes termos:
1) A queixosa/assistente viu reconhecido o direito a alimentos a cargo do arguido/recorrente em acções cíveis, cujas sentenças transitaram em 05/06/2011 e 01/12/2013, respectivamente, no montante de Euros 200,00 |duzentos euros| por mês;
2) A queixosa/assistente instaurou a acção executiva para cobrança coerciva dos alimentos em 23/09/2011;
3) A queixosa/assistente instaurou o presente processo-crime em 08/10/2014 que depende de queixa – artigo 250.º, n.º 5, do Código de Penal;
4) Até à presente data, o arguido não efectuou qualquer pagamento à queixosa/assistente a título de alimentos, nem o Tribunal em sede executiva;
5) A queixosa/assistente aufere do Rendimento Social de Inserção (RSI) a quantia mensal de Euros 178,15 |cento e setenta e oito euros e quinze cêntimos| desde 01/04/2011, como resulta de fls. 210 dos autos;
6) Na execução de sentença instaurada em 23/09/2011, apesar das sucessivas penhoras e da falta de oposição do executado, ora recorrente, ainda não foram vendidos quaisquer bens para pagamento da quantia exequenda, situação absurda e injustificável;
7) O inventário para partilha de bens comuns do casal instaurado no Cartório Notarial em Marco de Canaveses em 2013, continua pendente, sem qualquer decisão que permita registar bens provenientes da partilha acordada e, por isso, não é possível a sua alienação e obtenção de liquidez;
8) O arguido/recorrente constituiu com a queixosa/assistente hipoteca voluntária sobre a casa de morada de família para pagamento do débito bancário em 20/03/2013 |cfr. fls. 180|;
9) O arguido/recorrente não paga a pensão de alimentos por falta de liquidez e devido à morosidade anormal dos processos em Tribunal e no Cartório Notarial, o que é do conhecimento geral; está manietado pela inoperância do sistema judiciário;
10) Os factos em causa – não pagamento de alimentos – revestem simultaneamente ilícito cível e penal, verificados os respectivos pressupostos;
11) A queixosa/assistente privilegiou sempre o recurso às acções cíveis e só em 2014, face à morosidade anormal daquelas, recorreu à via crime que decidiu em menos de dois anos, permanecendo ainda aquelas e continuando por pagar os alimentos;
12) A queixosa denunciou o contrato de intermediação imobiliária e assim impediu a realização de liquidez;
13) O recorrente invocou, face à situação concreta, o princípio geral que dimana do artigo 72.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, documentando nos autos e instauração dos competentes processos cíveis;
14) O Tribunal “a quo” numa interpretação ilegal redutora e restritiva desta disposição legal considerou-a inaplicável na situação em apreço;
15) Esta interpretação do artigo 72.º, n.º 2, do Código de Processo Penal é materialmente inconstitucional por violar os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da protecção da confiança, previstos nos artigos 2.º, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa, ínsitos na ideia de Estado de Direito Democrático;
16) Tal disposição legal deve ser interpretada de forma abrangente e inclusiva de todas as situações, face à “ratio legis” e à realidade das situações de facto que em abstracto e em concreto, constituam, simultaneamente, ilícito civil e ilícito criminal dependente de queixa;
17) O processo-crime é irrelevante quanto ao pagamento pretendido pela queixosa/assistente e, como tal, puro abuso de direito, como meio de pressão inidóneo e de “pura chantagem” que o torna ilegítimo e, como tal, irrelevante no domínio criminal;
18) Ao recorrente aproveita o disposto no n.º 2 do artigo 72.º do Código de Processo Penal;
19) A conduta do recorrente foi entendida como consubstanciando a prática de um único crime, tendo por base uma única resolução e factos endógenos relativos ao mesmo recorrente;
20) Contudo, a considerar-se a existência de matéria crime – o que se não concede – o certo é que por força do Rendimento Social de Inserção (RSI) recebido desde 01-04-2011, a mesma sempre se enquadrará no disposto no artigo 250.º, n.ºs 1 e 2, por ser suposto não ocorrer a situação de necessidades fundamentais, por se encontrar o Estado a suprir as suas próprias deficiências na área da Justiça;
21) A concessão do Rendimento Social de Inserção (RSI) assenta na satisfação das necessidades fundamentais do beneficiário – artigo 63.º, n.º 3, da Constituição e 22.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos;
22) A situação discutida nos presentes autos, considerada no seu todo e dentro da unidade da ordem jurídica, não envolve qualquer ilicitude criminal, face ao que se dispõe no artigo 31.º, n.º 1, do Código Penal e, especialmente, ao abuso do direito, também invocável no caso presente;
23) Violou a aliás doutíssima sentença o disposto nos artigos 31.º, n.º 1, 250.º, n.ºs 1, 2 e 3 do Código Penal, 72.º, n.º 2, do Código de Processo Penal e 2.º, 13.º e 18.º e 63.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa;
O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu ao recurso, tendo pugnado pela sua improcedência, concluindo nos seguintes termos:
1. Nos presentes autos a ofendida C… intentou execução comum contra o ora arguido, aí executado, por requerimento executivo datado de 23-09-2011, que deu origem ao Processo nº 1126/10.8TBMCN-C que corre termos pela Instância Central, secção de família e menores, J3, de Paredes, sendo que serviu de título executivo a sentença proferida no processo de alimentos provisórios intentado em incidente nos autos de acção de divórcio, com o mesmo número.
2. Os presentes autos tiveram origem na queixa apresentada pela denunciante em 08-10-2014.
3. Ora, conforme resulta evidente não foi deduzido qualquer pedido de indemnização, muito menos perante tribunal cível, nem sequer fundado em responsabilidade civil, mas antes foi instaurada a competente execução para cobrança coerciva de alimentos, tendo por base uma sentença judicial, como aliás vem salientado e fundamentado na sentença.
4. Alega ainda o recorrente que o Tribunal a quo ao considerar inaplicável o disposto no art. 72º, nº do Código Penal violou os princípios constitucionais da igualdade, proporcionalidade e da protecção da confiança, dos art. 2º, 13º e 18º da CRP.
5. Não vislumbramos em que termos é que ocorre tal violação, nem o recorrente concretiza, bastando-se com uma mera menção esvaziada de conteúdo, pelo que nada mais resta que concluir que não se verifica qualquer violação de normas constitucionais.
6. Alega ainda, que o facto da ofendida ser beneficiária de rendimento de inserção social, tanto basta para que não se verifique os elementos objectivos do nº 3 do art. 250º do Código Penal.
7. Ao contrário do alegado, entendemos que o facto de a ofendida ser beneficiária de tal prestação social apenas reforça a conclusão de que a mesma se encontrava numa situação de absoluta carência e não o contrário, pois se tal não sucedesse, não poderia beneficiar da aludida prestação, que o Estado assegura apenas àquelas pessoas que se encontram em situação limite de carência económica.
8. Fazendo-se um paralelismo com a situação dos alimentos a menores, a interpretação do recorrente quanto ao art. 72º, nº2 do Código de Processo Penal, conduziria a que sendo executados coercivamente os alimentos no património do progenitor devedor, situação, aliás, para a qual o Ministério Público tem legitimidade, tal obstaria a que posteriormente também o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, não pudesse instaurar procedimento criminal pela prática do crime de violação da obrigação de alimentos.
9. Por outro lado, para que se possa instaurar execução para pagamento coercivo de alimentos, basta a sua fixação por sentença judicial e a falta de cumprimento pontual de uma única prestação e, caso estivéssemos perante uma renúncia ao direito de queixa, tal obstaria sempre a que se procedesse criminalmente, uma vez que para que o tipo de ilícito se verifique, a lei determina que apenas após 2 meses seguintes ao vencimento é que se encontra preenchido o respectivo tipo objectivo, o que, caso a interpretação do recorrente tivesse algum colhimento, tal constituiria um autêntico absurdo do próprio sistema.
10. Em conclusão, dir-se-á que sentença recorrida, não violou, assim, qualquer norma legal.
Neste Tribunal o Digno Procurador-geral Adjunto teve vista nos autos, emitindo parecer no mesmo sentido.
Deu-se cumprimento ao disposto no artigo 417º nº 2 do CPP, foram os autos aos vistos e procedeu-se à Conferência.
Nada obsta à apreciação do mérito da causa.
Cumpre assim apreciar e decidir.
2 Fundamentação
Resultam assentes e não assentes nos autos os factos abaixo transcritos, como também se mostra fundamentada a convicção do Tribunal nos termos que se irá de seguida transcrever:

Factos provados

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos:

1. Em 29 de Setembro de 1979 o arguido B… casou, sem convenção antenupcial, com a ofendida C…;
2. Por sentença transitada em julgado em 06-06-2011, nos autos de procedimento cautelar de alimentos provisórios que correram os seus termos no presente tribunal sob o n.º 1126/10.8TBMCN-A, foi condenado o arguido no pagamento mensal da quantia de €200,00 (duzentos euros) a título de alimentos provisórios à aqui ofendida;
3. Por seu turno, por sentença transitada em julgado em 01-02-2013, nos autos de divórcio sem consentimento que correu os seus termos no presente tribunal sob número 1126/10.8TBMCN, foi dissolvido o vínculo matrimonial supra identificado e condenado o arguido ao pagamento mensal da quantia de €200,00 (duzentos euros) a título de alimentos definitivos à aqui ofendida;
4. Todavia e apesar de tal decisão, o arguido nunca pagou à ofendida qualquer quantia, pelo que se encontram em dívida todas as prestações, vencidas desde Julho de 2011 até à presente data, as quais totalizam a quantia superior a €8.600,00 (oito mil e seiscentos euros);
5. No entanto, o arguido tem possibilidades económicas para tal, dado que explora e sempre explorou um estabelecimento que se dedica à reparação de automóveis, auferindo, pelo menos, €419,22 mensais, pelo que sempre teve condições de satisfazer tais prestações;
6. Para além do mais, é proprietário de dois veículos automóveis e, ainda, um prédio rústico e dois urbanos situados na área da presente comarca;
7. Por seu turno, a progenitora encontra-se desempregada e a auferir o rendimento social de inserção desde 01-04-2011, no valor de 178,15€ por mês;
8. Os rendimentos da ofendida são, pois, insuficientes para fazer face às necessidades essenciais como a habitação, alimentação, vestuário, apenas conseguindo sobreviver com o apoio social e o auxilio das filhas e do genro, estes que lhe emprestaram uma casa para viver e que lhe fornecem alguns géneros alimentares;
9. O arguido agiu livre e conscientemente com o propósito concretizado de se furtar ao pagamento das referidas prestações de alimentos devidas à sua ex-mulher, bem sabendo que tal conduta punha em perigo as necessidades fundamentais da mesma e que esta actuação era proibida e punida por lei;
10. Com a referida conduta pôs em perigo a satisfação das mais básicas necessidades de alimentação, vestuário e alojamento da sua ex-mulher, o que só não veio a concretizar-se mercê da intervenção de terceiros, facto de que o arguido tinha perfeito conhecimento;
11. O arguido exerce a profissão de mecânico e tem receitas do seu trabalho por conta própria, explorando o estabelecimento comercial de reparação de veículos automóveis e comércio de pneus, auferindo valor não concretamente apurado mas necessariamente bastante para satisfazer suas despesas pessoais, designadamente as mensalidades dos empréstimos bancários que se cifram em 800,00€ por mês;
12. O arguido vive sozinho e não tem filhos dependentes a seu cargo;
13. Tem duas filhas de 29 e 33 anos;
14. O arguido estudou até à 4.ª classe;
15. O arguido não tem antecedentes criminais.
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Factos Não Provados

Não se provou qualquer outro facto relevante para a decisão da causa, designadamente que:
A) A assistente sempre possuiu bens para fazer face à sua subsistência e manteve sempre um nível de vida aceitável;
B) Em 2011 o arguido propôs vender bens imóveis, mas a ofendida não aceitou e também não aceitou arrendar um armazém, cuja renda mensal de 500,00€ reverteria a seu favor, sendo que a assistente tem as chaves de tal armazém que se mantém fechado.
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Como é jurisprudência assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – vícios decisórios e nulidades referidas no artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do Código de Processo Penal – é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Atentas as conclusões do recurso, podemos delimitar o seu objecto à apreciação das seguintes questões:
a) Violação do disposto no artigo 72º do CPP;
b) Inconstitucionalidade da interpretação dada pelo Tribunal ao artigo 72º do CPP
c) Ausência de ilicitude
Vejamos então:
a) Violação do disposto no artigo 72º do CPP.
Alega e conclui o recorrente que face ao que está documentado no processo terá havido por parte da queixosa-assistente renúncia ao exercício do direito de queixa por força do disposto no artigo 72.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Isto porque “houve decisões cíveis já em fase de execução, pelo que compete aos Tribunais executá-las e não é agora que, pelo facto da jurisdição cível não funcionar em pleno, se justifica recorrer aos meios crime”, pois “o art. 72.º, n.º 4 do Código de Processo Penal estabelece o seguinte: No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renuncia a este direito”

Respondeu o Digno Magistrado do Ministério Público, dizendo: “Fazendo-se um paralelismo com a situação dos alimentos a menores, a interpretação do recorrente quanto ao art. 72º, nº2 do Código de Processo Penal, conduziria a que sendo executados coercivamente os alimentos no património do progenitor devedor, situação, aliás, para a qual o Ministério Público tem legitimidade, tal obstaria a que posteriormente também o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, não pudesse instaurar procedimento criminal pela prática do crime de violação da obrigação de alimentos, a que acresce ainda o facto de, para que se possa instaurar execução para pagamento coercivo de alimentos, basta a sua fixação por sentença judicial e falta de cumprimento pontual de uma única prestação para que possa ser instaurada a competente execução, tal obstaria a que se procedesse criminalmente, uma vez que para que o tipo de ilícito se verifique a lei determina que apenas após 2 meses seguinte ao vencimento é que se encontra preenchido o respectivo tipo objectivo, o que, caso a interpretação do recorrente tivesse algum colhimento, tal constituiria um autêntico absurdo do próprio sistema”.

A questão agora levantada pelo recorrente, foi objecto de apreciação na sentença recorrida, tendo o Tribunal apreciado a mesma nos seguintes termos:
“Alega o arguido que ofendida ainda antes de iniciar o processo-crime instaurou a respectiva execução comum, o que implica renuncia ao exercício da acção penal e é impeditiva de qualquer sancionamento criminal.
Cumpre apreciar e decidir
Com interesse para a decisão de tal questão, resultou provado que:
A) A ofendida C… intentou execução comum contra o executado, ora arguido, B… que corre os seus termos na Inst. Central – Sec. Família e Menores – J3, de Paredes, sob o n.º 1126/10.8TBMCN-C, por requerimento executivo datado de 23 de Setembro de 2011, apresentando como título executivo a sentença proferida no proc. de alimentos provisórios intentado em incidente nos autos de acção de divórcio com o n.º 1126/10.8TBMCN;
B) A queixa que deu origem aos presentes autos foi apresentada pela ofendida C… em 8 de Outubro de 2014.
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Os factos dados como provados resultam da prova documental junta aos autos, concretamente com base no carimbo aposto na denúncia/queixa de fls. 2 e ss e no teor da certidão junta em audiência de julgamento.
Ora, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, conforme estipula o art.º 71.º do CPP.
Por outro lado, dispõe o art.º 72.º, n.º 2 do CPP que no caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.
No caso em apreço, a ofendida não deduziu qualquer pedido de indemnização civil (fundado em responsabilidade civil) perante o Tribunal civil, mas apenas accionou a cobrança coerciva de alimentos com base na execução de uma sentença judicial, o que são situações distintas e que não se confundem entre si.
Assim sendo, a prévia instauração de acção executiva não corresponde à apresentação de um pedido de indemnização civil e, por conseguinte, não vale como renúncia ao direito de queixa por parte da ofendida.”
Ora, dispõe o artigo 72º do CPP o seguinte:
Artigo 72.º
Pedido em separado
1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando:
a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;
c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;
d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;
e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 3 do artigo 82.º;
f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido;
g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular;
h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;
i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º
2 - No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.
Pretende o recorrente, atenta a formulação do nº 2 do preceito acima transcrito, que seja reconhecido a renúncia ao direito de queixa por parte da ofendida em virtude de esta ter anteriormente à apresentação da queixa-crime, que está na base destes autos, iniciado processo executivo contra o arguido com vista a obter o pagamento coercivo dos montantes das pensões alimentares que lhe são devidas e estão em dívida.
Conforme resulta dos autos a ofendida C… intentou execução comum contra o executado, ora arguido, B… que corre os seus termos na Inst. Central – Sec. Família e Menores – J3, de Paredes, sob o n.º 1126/10.8TBMCN-C, por requerimento executivo datado de 23 de Setembro de 2011, apresentando como título executivo a sentença proferida no proc. de alimentos provisórios intentado em incidente nos autos de acção de divórcio com o n.º 1126/10.8TBMCN e apresentou a queixa que deu origem aos presentes autos em 8 de Outubro de 2014.
Tal conduta significa uma renúncia ao direito de apresentar queixa contra o arguido, como o fez nestes autos?
Com o devido respeito pelo recorrente, não lhe assiste razão.
A formulação de pedido cível perante tribunal cível com vista a ser obtida uma indemnização pelos prejuízos causados por uma conduta ilícita do devedor, sendo essa ilicitude em concreto tipificada na lei como crime, impede, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 72º o posterior exercício do direito de apresentar queixa, nos casos dos crimes cujo procedimento depender de queixa ou de acusação particular.
Tal é a melhor interpretação que se retira do disposto no artigo 72º nº 2 do CPP.
E entende-se que assim seja, pois o recurso à via civilista para a reparação de danos causados por uma conduta ilícita e penalmente protegida, face aos valores subjacentes protegidos, nos casos de crimes dependentes de queixa ou acusação particular, está na disponibilidade do lesado, sendo a protecção da norma penal violada deixada à consideração da vítima.
Sendo certo que a escolha do mesmo, pela via da acção cível, impede-o de perseguir criminalmente o autor da conduta danosa.
No caso dos autos, a ofendida não deduziu algum pedido cível, junto de tribunal cível, cuja causa de pedir fossem os danos que a conduta ilícita do arguido lhe tivesse causado.
A sua iniciativa forense resumiu-se a intentar uma execução de sentença, proferida pela jurisdição cível, no caso a execução dos montantes devidos pelo arguido – fixados em acção cível – a título de pensões alimentares o que é coisa substancialmente diferente daquela que o nº 2 do artigo 72º pretende acautelar.
E, com o devido respeito, a interpretação que o recorrente faz do artigo 72º nº 2 do CPP, é perfeitamente desajustada ao caso, sendo manifesto que um procedimento executivo, cujo objecto é uma decisão cível que condenou o arguido numa obrigação alimentar – nem sequer condenou numa obrigação resultante de uma indemnização por danos causados, nos termos do disposto no artigo 483º do C. Civil – não se confunde nunca com uma acção cível tendente a obter uma condenação a pagar uma indemnização.
Assim, e nesta parte, julga-se improcedente o recurso.
b) Da Inconstitucionalidade da interpretação que o Tribunal fez do artigo 72º nº 2 do CPP.

Alega e conclui o recorrente que a interpretação feita pelo Tribunal do artigo 72.º, n.º 2, do Código de Processo Penal é materialmente inconstitucional por violar os princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade e da protecção da confiança, previstos nos artigos 2.º, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa, ínsitos na ideia de Estado de Direito Democrático.
Ora, lendo a motivação do recurso, de molde a se poder compreender a conclusão acima transcrita, apenas encontramos uma referência semelhante à conclusiva, dizendo o recorrente, e citamos: “A interpretação constante da aliás douta sentença quanto à não aplicação do disposto no artigo 72.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, é ilegal, redutora e restritiva e, por isso, violadora do legítimo direito de defesa e dos princípios constitucionais da igualdade da proporcionalidade e da protecção da confiança ínsitos na ideia de Estado de Direito Democrático.
Tal interpretação do Tribunal “a quo” é inconstitucional e viola o disposto nos artigos 2.º, 13.º e 18.º da Constituição da República Portuguesa”

Com o devido respeito, não concretiza o recorrente onde e como retira tal conclusão, sendo certo que os preceitos constitucionais citados, em nada influenciam a interpretação feita.
Vejamos os preceitos constitucionais citados:
Artigo 2.º
(Estado de direito democrático)
A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa.
Artigo 13.º
(Princípio da igualdade)
1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.
ARTIGO 18.º
(Força jurídica)
1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Ora, a interpretação do artigo 72º nº 2 do CPP, segundo a qual a instauração de acção executiva para cobrança coerciva de pensões alimentares devidas, fixadas por sentença judicial, em acto anterior à queixa-crime por se indiciar o cometimento de crime p. e p. pelo artigo 250º do Código Penal não tem o alcance de impedir por renúncia do direito de queixa, atentos os preceitos constitucionais acima transcritos, não é violadora de qualquer princípio ou afloramento neles constantes, pelo que, e sem necessidade de mais considerações, entendemos não merecer a sentença recorrida qualquer censura a este título, sendo também nesta parte improcedente o recurso.

c) Ausência de ilicitude

Por último veio o recorrente concluir que “a considerar-se a existência de matéria crime – o que se não concede – o certo é que por força do Rendimento Social de Inserção (RSI) recebido desde 01-04-2011, a mesma sempre se enquadrará no disposto no artigo 250.º, n.ºs 1 e 2, por ser suposto não ocorrer a situação de necessidades fundamentais, por se encontrar o Estado a suprir as suas próprias deficiências na área da Justiça; A concessão do Rendimento Social de Inserção (RSI) assenta na satisfação das necessidades fundamentais do beneficiário – artigo 63.º, n.º 3, da Constituição e 22.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos; A situação discutida nos presentes autos, considerada no seu todo e dentro da unidade da ordem jurídica, não envolve qualquer ilicitude criminal, face ao que se dispõe no artigo 31.º, n.º 1, do Código Penal e, especialmente, ao abuso do direito, também invocável no caso presente.
Parece entender-se que retira o recorrente do facto de a ofendida estar a receber o subsídio de rendimento social de inserção levaria a que ficasse este desobrigado de pagar as pensões alimentares que lhe foram fixadas pelo tribunal.
Assim sendo a sua recusa a pagar não teria qualquer carga de ilicitude na conduta, sendo afastada a tipicidade da norma punitiva, ou seja o artigo 250º.
Como é evidente, esta tese do recorrente é insustentável, e é insustentável pois a contrária, a que a ofendida se socorreu do RSI porque o arguido não cumpriu as suas obrigações, afigura-se como cruelmente plausível e verídica.
O artigo 31º nº 1 do C. Penal, trazido pelo recorrente em seu auxílio, nesta tese original, não tem o mérito de responder à sua pretensão jurídica.
A ilicitude do recorrente mostra-se espelhada na factualidade assente nos autos e nenhuma das circunstâncias previstas no artigo 31º, nem a ordem jurídica considerada na sua totalidade, permitem afastar a ilicitude do arguido consubstanciada no facto de estando obrigado a prestar alimentos à ofendida, tenho condições para o fazer, não cumprir essa sua obrigação, pondo assim em perigo a satisfação – sem auxílio de terceiros – das necessidades fundamentais de quem a eles tem direito.
Ora, pelo exposto, também aqui se julga improcedente o recurso.

3 Decisão

Julga-se improcedente o recurso e consequentemente mantém-se nos seus precisos termos a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se taxa de justiça em 4 uc’s.

Notifique

Porto, 23 de Novembro de 2016
Raul Esteves
Élia São Pedro