Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
193/18.0T8VGS.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DIAS DA SILVA
Descritores: PROVA PERICIAL
VALORAÇÃO PELO JUIZ DA CAUSA
ACIDENTE DE VIAÇÃO
REPARAÇÃO DE VEÍCULO
EXCESSIVA ONEROSIDADE
PARALISAÇÃO DE VEÍCULO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RP20211215193/18.0T8VGS.P2
Data do Acordão: 12/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador; o julgador está amarrado ao juízo pericial, sendo que sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação.
II - A excessiva onerosidade terá de ser decidida, no caso concreto, atendendo e confrontando os interesses do lesado e do lesante e determinando até que ponto é que é exigível ao lesante suportar o custo das reparações, por tal corresponder a um interesse digno de tutela do lesado na integridade do seu património. Neste sentido não repugna sequer considerar que há aqui um certo paralelo com o abuso de direito e que é quando a exigência de reparação natural se apresenta abusiva, confrontando o benefício comparativamente reduzido do lesado e o sacrifício do lesante, que tal exigência não deve ter tutela legal.
III - A paralisação do veículo sinistrado e prejuízo inerente, existem quer haja ou não reparação, incumbindo ao lesante a obrigação de indemnizar o prejuízo nos termos do artigo 564º do Código Civil. A medida da indemnização, na ausência de reparação, não pode ficar ao arbítrio das conveniências do lesado: há que limitá-la ao tempo necessário à decisão e realização das diligências necessárias à sua substituição.
IV) - O dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se aleguem e provem factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500º n.º 1, do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação - 3ª Secção
ECLI:PT:TRP:2021:193/18.0T8VGS.P2

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

1. Relatório
B…, Ld.ª., com sede na Rua …, n.º ., …, ….-… Santa Maria da Feira, instaurou acção declarativa sob a forma de processo comum contra C…, residente na Rua …, …, n.º .., …. - … …, contra D…, residente na Rua …, …, n.º .., …. - … … e contra o Fundo de Garantia Automóvel, com sede na Avenida …, n.º .., ….-… Lisboa onde concluíram pedindo que sejam os Réus solidariamente condenados no pagamento da quantia de 42.210,95€, acrescida de juros vincendos desde a data da citação até integral pagamento.
Alega, em síntese, que no dia 29.12.2017, cerca das 13h15, ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo com a matrícula ..-..-SC, propriedade da 1ª Ré e conduzida pelo 2º Réu, e o veículo com matrícula ..-..-TU, propriedade da Autora.
Sustenta que o sinistro se deveu à circunstância de o veículo com matrícula ..-..-SC circular em excesso de velocidade, tendo entrado em despiste, na sequência do qual transpôs o eixo da via, embatendo no veículo propriedade da Autora, que circulava em sentido contrário.
Invoca, ainda, que o veículo que deu causa ao acidente não tinha seguro válido, pelo que é o Fundo de Garantia Automóvel responsável pelo pagamento dos danos causados.
Mais alega que, como consequência directa do sinistro, a sua viatura ficou com danos, que importam a reparação no valor de 25.098,16€, e os produtos que transportava no momento do sinistro ficaram destruídos o que causou um dano patrimonial de 3.060,81€. Ainda em virtude do acidente, teve de alugar um veículo semelhante, despendendo para o efeito a quantia de 1.353,00€ e o montante de 80,00€ pela participação de acidente elaborado pelas autoridades.
A título de privação de uso do veículo peticiona o valor diário de 75,00€, contabilizando o valor de 12.600,00€.
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Citado, o Fundo de Garantia Automóvel apresentou contestação.
Alega que os danos do veículo determinaram a consideração da sua perda total, pelo que estaria na disposição de proceder ao pagamento de uma indemnização pelo valor venal do veículo até ao montante de 5.500,00€.
Acrescentou, ainda, que, em relação aos demais danos, aceitou proceder ao pagamento de 2.405,42€ pelas mercadorias transportadas no veículo, 1.353,00€ pelo veículo de substituição e 80,00€ pela cópia da participação de acidente de viação.
Quanto ao montante peticionado a título de privação de uso, o Réu invocou que a Autora não tem direito a esta indemnização a partir do momento em que foi posto à sua disposição o valor da indemnização por perda total, o que sucedeu a 07.02.2018.
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Citados, os primeiros Réus defenderam-se por impugnação.
Alegaram para o efeito, que o veículo com matrícula ..-..-SC circulava a uma velocidade de cerca de 100km/hora e, porque se encontrava um veículo estacionado junto à berma, accionou o travão e o veículo entrou em despiste.
Nessa sequência, sem conseguir manter o controlo do veículo, não conseguiu evitar a colisão com o veículo da Autora que circulava em sentido contrário.
Invocam, ainda, que o piso estava molhado o que contribuiu para o deslizamento da sua viatura.
Assumem, assim, uma parte da responsabilidade na produção do sinistro, mas não na íntegra, pois, alega, que não fosse o veículo ter entrado inexplicavelmente em despiste, não teria existido a colisão.
Os Réus impugnaram, ainda, os valores dos danos reclamados por excessivos.
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Findos os articulados, foi proferido despacho saneador e despacho de identificação do objecto do litígio, bem como o de programação dos atos a realizar na audiência final.
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Realizou-se a audiência de julgamento com observância do formalismo legal.
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Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:
- Condenar a Ré C… e o Réu Fundo de Garantia Automóvel a pagar, solidariamente, à Autora B…, Ld.ª. as seguintes quantias:
- 5.500,00€ pela perda total do veículo;
- 1.433,00€ a título de danos emergentes;
- 2.405,51€ pelos objectos transportados;
- 8.400,00€ pela privação de uso do veículo, perfazendo o montante total de 17.738,51€, quantia a que acresce juros de mora, à taxa legal, desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
- Absolver o Réu D… dos pedidos contra ele formulados.
- Condenar a Ré C… e o Réu Fundo de Garantia Automóvel e a Autora, no pagamento das custas processuais, na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixa em 45% para aqueles e 55% para a Autora.
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Não se conformando com a sentença proferida, o “Fundo de Garantia Automóvel” e “B…, Ldª” interpuseram recurso de apelação.
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Por decisão deste Tribunal foi decidido “ao abrigo do disposto no artigo 662º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Civil, anular a decisão de facto, determinando-se a sua ampliação de modo a permitir ao tribunal recorrido verter na decisão de facto os factos aí referidos, respondendo, de novo, ao ponto 9 dos factos considerados provados e à alínea a), dos factos considerados não provados, após realização das diligências instrutórias referidas e com observância do princípio do contraditório, sem prejuízo de serem alterados outros itens da decisão de facto que se mostrem necessários.”.
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Em obediência à referida decisão, foi determinada a realização de perícia ao veículo de matrícula “..-..-TU”, com vista a aferir o valor do mesmo à data do acidente (29-12-2017).
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Juntos aos autos os esclarecimentos prestados pelo perito nomeado, procedeu-se à reabertura da audiência de discussão e julgamento para prolação de alegações finais, após comunicação dos factos complementares.
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Foi proferida nova sentença, tendo sido decidido:
a) Condenar o Réu D… e o Réu Fundo de Garantia Automóvel a pagar, solidariamente, à Autora B…, Ldª. as seguintes quantias:
- 4.097,54€ pela perda total do veículo;
- 1.433,00€ a título de danos emergentes;
- 2.405,51€ pelos objetos transportados;
- 1.450,00€ pela privação de uso do veículo,
perfazendo o total de 9.386,05€ (nove mil, trezentos e oitenta e seis euros e cinco cêntimos), quantia a que acresce juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral e efetivo pagamento;
e absolvendo-os do demais peticionado.
b) Absolver a Ré C… dos pedidos contra ela formulados.
c) Condenar o Réu D… e o Réu Fundo de Garantia Automóvel e a Autora, no pagamento das custas processuais, na proporção dos respetivos decaimentos.
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Não se conformando com a sentença proferida, o recorrente “Fundo de Garantia Automóvel” veio interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

“I. Provada a propriedade do veículo a favor da R. C…, presume-se a direcção efectiva e o interesse na sua utilização pela referida R. - facto 2 da matéria de facto provada da sentença recorrida;

II. Donde, não tendo a R. C… provado a utilização abusiva e contrária ao seu interesse, encontram-se preenchidos os requisitos que determinam a sua condenação no pedido formulado pela A., ao abrigo do disposto no artigo 503.º, n.º 1 do CC;

III. Resulta provado nos autos que o veículo SC, circulava sem seguro válido - facto 8 da matéria de facto provada da sentença recorrida;

IV. O que impõe a condenação da R. C…, na qualidade de proprietária que omitiu a sua obrigação de celebração do contrato de seguro e que deu azo à sua invalidade, dando, assim, causa à intervenção do FGA;

V. A condenação do FGA deve ser acompanhada da condenação dos responsáveis civis, no caso o condutor e a proprietária do veículo SC, sob pena de preterição do litisconsórcio necessário passivo.

VI. Termos em que deve a sentença recorrida ser revogada, e substituída por outra, que aplique o Direito aos factos, em harmonia com o supra exposto, e, em consequência, condene a R. C…, solidariamente com o recorrente e o R. D….

VII. O Tribunal recorrido, ao decidir como decidiu, violou o preceituado nos artigos os artigos 483.º, 500.º, 503.º e 54.º e 62.º n.º 1 do Dec. Lei 291/2007, de 21/8.
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Não se conformando com a sentença proferida, a recorrente B…, Ld.ª veio interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações conclui da seguinte forma:

“I. O presente recurso tem como fundamento os três seguintes aspetos:
a) Impugnação do valor comercial atribuído ao veículo da Autora considerado como provado sob o ponto 11 do elenco da matéria de facto provada;

b) A consideração como excessivamente onerosa a reparação natural dos danos provocados no veículo da Autora (cfr. artigos 562º e 566º do CC) e, consequentemente, o valor atribuído à Autora a título de indemnização por equivalente;

c) O raciocínio utilizado na consideração do período de tempo a ter em conta na atribuição da indemnização pela privação do uso do veículo pela Autora.

A) DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO CONSTANTE DO PONTO 11 DO ELENCO DOS FACTOS PROVADOS:
II. Considerou o Tribunal a quo como provado que o veículo da Autora tinha, à data do sinistro, o valor comercial de €4.247,54 (quatro mil duzentos e quarenta e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos).

III. Para tal, a Mmª Juiz atendeu aos depoimentos das testemunhas E… e Engenheiro F…, como ao relatório pericial ordenado por este Douto Tribunal da Relação, nos termos do disposto no artigo 411º do CPC, o qual se encontra junto aos autos em 05/03/2021 e com esclarecimentos de 17/05/2021,

IV. meios de prova que, conforme se alegou, se revelaram débeis e incongruentes entre si, pelo que, conforme dispõe o n.º 1 do artigo 640º do CPC, desde já indicamos a matéria de facto que consideramos incorretamente julgada:
“11-O veículo identificado em 1. tinha, àquela data, o valor comercial de 4.247,54€, sendo o valor chassis cabine de 1.454,60€ e a caixa de carga com toldo de abertura com amortecedores (sistema hidráulico) no valor de 2.792,64€.”

V. Ora, relativamente ao depoimento da testemunha E…, este referiu expressamente que, não obstante o indicado no Boletim de Perda Total de fls. 2 e 3 do documento junto pelo FGA na sessão de julgamento do dia 05/11/2019 e constante no Citius sob a referência n.º 109082610, não foi o responsável pelo valor venal indicado à Autora nem tão pouco pelas pesquisas que estiveram na base do mesmo, tendo tido como única função a avaliação dos concretos danos do veículo da Autora (cfr. Faixa 20191203105847_3797179_2870313, aos 9 minutos e 29 segundos).

VI. Assim sendo, ainda que esta testemunha tenha avançado com um valor comercial para o veículo da Autora (€3.500,00), a verdade é que o mesmo não deveria de ter sido valorizado pelo Tribunal a quo em virtude do supra exposto, raciocínio igualmente aplicável relativamente às considerações por este expostas no que concerne à comparação entre os valores de mercado do veículo da Autora e dos veículos constantes das pesquisas em sites online anexas ao boletim de perda total, pelas quais confessou igualmente não ter sido o responsável (cfr. Faixa 20191203105847_3797179_2870313, aos 14 minutos e 10 segundos)

VII. Por outro lado, relativamente à testemunha Eng. F…, este confirmou ter sido o responsável pelas pesquisas supra aludidas, bem como pela validação das propostas de perda total apresentadas pelo Réu FGA à Autora, concluindo que o valor comercial do veículo desta se fixava em €5.496,00 (cinco mil quatrocentos e noventa e seis euros).

VIII. Sucede que nenhum dos veículos constantes dessas pesquisas têm características iguais ou semelhantes às do veículo da Autora, que é uma carrinha da marca Renault, modelo …, com cabine simples (3 lugares e maior área de carga) e caixa de carga dotada de sistema hidráulico, constatação que foi desde logo feita pela testemunha G… (Faixa 20191105112328_3797179_2870313, aos 6 minutos e 34 segundos),

IX. sendo antes carrinhas de cabine dupla (6 lugares e menor área de carga), de caixa aberta ou com sistema de refrigeração e com uma cilindrada inferior à do veículo da Autora (veja-se as pesquisas constantes de fls. 20 a 37 do documento junto no Citius em 05/11/2019 sob a referência n.º 109082610, bem como o depoimento da testemunha G…, aos 5 minutos e 50 segundos, da Faixa 20191105112328_3797179_2870313).

X. Por outro lado, e conforme foi confirmado por ambas as testemunhas supra referidas, tais veículos nunca foram vistos presencialmente nem tão pouco testados, pelo que as informações constantes dos anúncios online, designadamente a antiguidade, a quilometragem e o estado de conservação não foram efetivamente confirmados, pelo que desconhecem as testemunhas se os valores anunciados estão ou não desvalorizados pela existência de anomalias mecânicas ou técnicas (cfr. Faixa 20191203105847_3797179_2870313, testemunha E…, a partir dos 33 minutos e 05 segundos e Faixa 20191203115318_3797179_2870313, testemunha Eng. F…, aos 27 minutos e 45 segundos) .

XI. Não colhe aqui igualmente o argumento de que tais anúncios são fiáveis por demonstrarem a matrícula (veja-se o depoimento da testemunha Eng. F…, aos 27 minutos e 45 segundos, da Faixa 20191203115318_3797179_2870313), pois da análise feita das fotografias dos anúncios constantes de fls. 20 a 36 do documento junto ao Citius em 05/11/2019 com a referência n.º 109082610, facilmente se conclui que todos os anúncios ocultam as matrículas das viaturas, aliás, da anotação constante de um dos anúncios refere-se mesmo que todas as informações foram prestadas por rotina informática, carecendo de confirmação.

XII. A este respeito, refira-se que de dois dos anúncios juntos consta já, aliás, o alerta por parte dos vendedores/proprietários para a existência de avarias em sistemas estruturantes do veículos, designadamente na caixa de velocidades e no motor, o que tem uma influência direta nos valores anunciados (cfr. fls. 20 e 36 do documento junto ao Citius em 05/11/2019 com a referência n.º 109082610).

XIII. Note-se que as testemunhas supra nomeadas nunca fizeram qualquer referência à existência de tais alertas por parte dos vendedores/proprietários das viaturas anunciadas, mesmo quando confrontadas por essa possibilidade face à falta de confirmação, in loco, das informações anunciadas, o que demonstra uma certa má-fé por parte das mesmas, no interesse do Réu FGA.

XIV. Mais importa referir que, na avaliação do valor comercial feita pelo Eng. F…, jamais foi tido em consideração o sistema hidráulico de abertura do toldo lateral, o que se exigia por ser uma característica diferenciadora e que acrescenta efectivamente valor à viatura da Autora, mas, ainda assim, considerou que o valor comercial da Autora se fixava em €5.496,00 (cinco mil quatrocentos e noventa e seis euros), valor com o qual a Autora legitimamente não concordou em fase pré-judicial.

XV. Por outro lado, e em virtude do decidido pelo Douto Tribunal da Relação do Porto em cumprimento do disposto no artigo 411º do CPC, ordenou a Mmª Juiz do Tribunal a quo a realização de uma perícia ao veículo da Autora, a qual, considerando já o sistema de abertura do toldo supra referido, considerou que o valor comercial do veículo da Autora circunscrevia-se à irrisória quantia de €4.247.96 (quatro duzentos e quarenta e sete euros e noventa e seis cêntimos),

XVI. ou seja, uma quantia considerável e incompreensivelmente inferior à avançada pelo Réu FGA, designadamente pela testemunha Eng. F…, o qual referiu o valor de €5.496,00 (cinco mil quatrocentos e noventa e seis euros) com base nas viaturas com as características e anomalias já referidas e sem nunca ter em conta esta característica especial do veículo da Autora.

XVII. Não consegue a Autora compreender a discrepância de tais valores, a não ser pela inexistência de veículos iguais nem tão pouco semelhantes aos da Autora em grande quantidade (veja-se os depoimentos das testemunhas E…, a partir dos 33 minutos e 05 segundos da Faixa 20191203105847_3797179_2870313, do Eng. F…, a partir dos 3 minutos e 51 segundos da Faixa 20191203115318_3797179_2870313 e, por último, do legal representante da Autora, aos 02 minutos e 47 segundos da Faixa 20191203035638_3797179_287013), ainda que tal raridade devesse, de acordo com as regras da experiência comum, valorizar a viatura da Autora e não o contrário.

XVIII. Ora, todos os aspetos supra referidos parecem-nos ter sido completamente ignorados pelo Tribunal a quo, desde logo a razão de ser desta discrepância entre o valor comercial avançado pela testemunha Eng. F…, considerando as circunstâncias já explicadas, e o valor resultante da perícia entretanto efetuada,

XIX. pelo que, atentas as debilidades e discrepâncias verificadas, somos a entender que não resulta dos autos uma prova cabal e suficiente para a Mmª Juiz considerar como provado o valor comercial do veículo da Autora, entendendo-se por via disso que a decisão correta seria a de deixar de constar o ponto 11 da matéria de facto provada, o que ora se requer.

XX. Consideramos, pois, que dos meios de prova até então referidos e salvo melhor opinião dos Venerandos Desembargadores, resulta tão somente que: das pesquisas online juntas aos autos não constam quaisquer veículos com características iguais ou, pelo menos semelhantes às do veículo da Autora, das quais se destaca o sistema hidráulico de abertura do toldo lateral; o valor comercial constante do relatório pericial entretanto elaborado encontra-se desvalorizado em cerca de €1.000,00 (mil euros) face ao valor comercial avançado pelo Réu Fundo de Garantia Automóvel, não obstante este não ter sequer considerado o extra referido anteriormente; por conseguinte, não se conseguiu apurar o valor comercial de um veículo igual ou semelhante ao da Autora

B) DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO CONSIDERADA SOB A EPÍGRAFE “DANOS CAUSADOS NO VEÍCULO DA AUTORA”:
XXI. Entendeu a Mmª Juiz conceder à Autora, em virtude dos danos por esta sofridos no seu veículo, a quantia de €4.097,54 (quatro mil e noventa e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos),

XXII. o que fez considerando, por um lado, o valor previsto para a reparação do veículo da Autora (cfr. facto n.º 10 do elenco das matéria de facto provada) e, por outro lado, o valor comercial do veículo à data do sinistro constante do ponto n.º 11 dos factos provados e sobre o qual já nos pronunciamos em cima.

XXIII. Para tal conclusão, não obstante a Mmª Juiz esclarecer que a esta matéria é aplicável, não o DL n.º 291/2007, de 21 de agosto, mas sim os artigos 562º e 566º do CC, dos quais constam os princípios reguladores da responsabilidade civil, fundamentando tal posição com vários arestos neste sentido, a verdade é que não foi esse entendimento que veio a aplicar

XXIV. É pacífico na jurisprudência que a aplicabilidade do DL n.º 291/2007, de 21 de agosto deve restringir-se à fase pré-judicial, permitindo assim às seguradoras uma regularização rápida, simplificada e amigável dos danos resultantes dos sinistros, podendo o lesado aceitar ou, discordando, recorrer à via judicial para a determinação da espécie e quantum da indemnização de acordo com as regras e princípios da responsabilidade civil.

XXV. Chegados à fase judicial, vigora então o princípio da reparação natural previsto no artigo 562º do CC, o qual prevê que, quem estiver obrigado a reparar um dano, deve constituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação,

XXVI. princípio esse que só é afastado quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 25/06/2020, proferido no âmbito do Proc. n.º 1136/18.7T8PTL.G1 e relatado por Alcides Rodrigues.

XXVII. Assim sendo, e de acordo com as regras da distribuição do ónus da prova previstas no artigo 343º do CC, à Autora cabe demonstrar os danos sofridos e o valor da sua reparação e, por sua vez, aos Réus cabe fazer prova da exceção.

XXVIII. No caso vertente nos presentes autos, o que está em causa é somente o juízo da excessiva onerosidade e não a possibilidade ou eficácia da reparação, pois, quanto a estas, existia um orçamento para reparação, sendo, por isso, a reparação possível humana e tecnicamente.

XIX. Tal onerosidade, para proceder, tem que mostrar-se como um sacrífico incomportável ou manifestamente desproporcionado para os Réus comparativamente ao interessa da lesada, neste caso da Autora e aqui Recorrente, o que, na nossa modesta opinião, não sucedeu.

XXX. Conforme demonstramos nos pontos 1 a 20 das presentes conclusões, somos do entendimento que, face às discrepâncias, imprecisões e debilidades dos meios de prova testemunhal (E… e Eng. F…) e pericial, o valor comercial do veículo da Autora não resultou cabalmente demonstrado e provado nos presentes autos,

XXXI. pelo que, não se provando o valor comercial do veículo da Autora e, consequentemente, o seu valor patrimonial, aspeto crucial nesta matéria, não ficou assim demonstrada a excessiva onerosidade da reparação natural, devendo, por esse motivo, o Tribunal a quo que aplicar o disposto no artigo 562º do CC e condenar os Réus na reparação natural conforme peticionado pela Autora, sob pena de violação de tal disposição, o que efetivamente sucedeu.

XXXII. De facto, a Mmª Juiz decidiu, socorrendo-se clara e ostensivamente dos critérios previstos no DL n.º 291/2007, de 21 de agosto , designadamente do disposto no n.º 3 do artigo 41º dessa diploma, decidiu condenar os Réus no pagamento do valor venal da viatura considerado no ponto dos factos provados, devidamente deduzido do valor do salvado que fixou arbitrariamente em €150,00 (cento e cinquenta euros), violando assim o disposto nos artigo 562º e 566º do CC, bem como fazendo tábua rasa da jurisprudência maioritária dos nossos tribunais.

XXXIII. Dizemos arbitrariamente porque nenhuma prova foi feita em sede de audiência de julgamento a respeito do valor do salvado e, não obstante tal valor constar de fls. 18 do documento junto pelo Réu FGA em 05/11/2019, datado de 16/01/2018, a verdade é que o mesmo tinha somente a validade de trinta dias, não podendo ser, além dos motivos já expostos, nesta data considerado.

SEM PREJUÍZO, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA E PORQUE A CAUTELA DE PATROCÍNIO ASSIM O EXIGE, SEMPRE HÁ A REFERIR QUE:
XXXIV. Sem conceder, não podemos deixar de referir que não ignoramos que o Tribunal a quo, face à debilidade do depoimento testemunhal, tenha efetivamente considerado o valor comercial resultante da perícia elaborada como o mais próximo da realidade, face à especial aptidão técnica e científica para a apreciação de uma matéria específica.

XXXV. No entanto, a verdade é que, para o juízo da excessiva onerosidade, não basta atender-se ao valor comercial, mas sim ao valor patrimonial, ou seja, ao “valor que subjetivamente tem para pessoa prejudicada, decorrente do uso que o lesado lhe atribui e da livre disposição para a satisfação das suas necessidades.”- veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 03/03/2015, no âmbito do Proc. n.º 58/13.2TBCLC.C1 e relatado por Carlos Moreira, mas também o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 11/07/2017, proferido no âmbito do Proc. n.º 2093/14.4TBBRG.G1 e relatado por Elisabete Valente, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.

XXXVI. A prova desse valor patrimonial, atenta a sua crucialidade para o juízo da excessiva onerosidade, cabe aos Réus (cfr. n.º 2 do artigo 342º do CC), sob pena da consideração do valor da reparação natural, conforme demanda o artigo 562º do CC.

XXXVII. No entanto, e mesmo que entendam V. Exas. que a prova desse valor cabe efetivamente à Autora, a verdade é que esta produziu essa prova, demonstrando que o valor da sua viatura era superior ao valor do mercado, pois, se assim não fosse, jamais esta teria recusado as propostas do Réu FGA, submetendo-se às delongas do Tribunal, bem como às despesas associadas.

XXXVIII. Tal prova encontra-se, desde logo, nos depoimentos quer da testemunha E… e Eng. F…, bem como do legal representante da Autora, quando referiram a escassez de veículos iguais aos da Autora,

XXXIX. bem como quando este último descreveu as características especiais da sua viatura, pela Autora implementadas para facilitar o exercício da sua atividade, referindo que a mesma, não obstante a quilometragem que já apresentava, satisfazia inteiramente as suas necessidades.

XL. Por considerar que o valor patrimonial ainda o justificava é que a Autora continuava a dar uma manutenção assídua à sua viatura, o que se demonstrou pela mudança da caixa de velocidade meses antes do sinistro (cfr. resposta do Sr. Perito ao ponto 5º da Resposta III constante do relatório pericial junto aos autos em 05/03/2021), bem ainda, pela expressa declaração da testemunha G… e do Legal Representante da Autora quando referiram que aquele veículo servia na perfeição as necessidades da Autora, socorrendo-se dele diariamente.

XLI. Para a prova deste valor patrimonial mais contribuiu, por último, o depoimento da testemunha G… quando, a instâncias da Dra. H…, advogada do Réu FGA, referiu que, antes de comprar a sua viatura, este pôde observar que as viaturas como a sinistrada custavam, em média, mais €5.000,00 (cinco mil euros) do que as viaturas de cabine dupla.

XLII. Face ao exposto, entendemos que, mesmo admitindo a excessiva onerosidade, a verdade é que se impunha sempre a consideração o valor patrimonial do veículo da Autora para a fixação da indemnização nos termos do n.º 2 e 3 do artigo 566º do CC, sob pena de violação de tal normativo, o que in casu não aconteceu.

C) DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE DIREITO SOB A EPÍGRAFE “DANO DA PRIVAÇÃO DO USO DO VEÍCULO”:
XLIII. A este respeito, decidiu o Tribunal a quo condenar os Réus no pagamento de somente 29 dias de privação do uso, à taxa diária de €50,00 (cinquenta euros), o que perfaz a quantia de €1.450,00 (mil quatrocentos e cinquenta euros).

XLIV. Tal condenação é, para nós, completamente incompreensível, pois, por um lado, é a clara aplicação do disposto n.º 2 do artigo 42º do DL 291/2007, de 21 de agosto, diploma que, conforme a Mmª Juiz expressamente refere na Douta Sentença ora em crise, não tem qualquer aplicação na fase em que nos encontramos, entendimento que sufragamos,

XLV. e porque, por outro lado, não obstante citar o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/07/2017, segundo o qual a privação se mantém enquanto o responsável não reparar ou indemnizar pela perda total de veículo, uma vez que só com a reparação ou a indemnização cessa o dano e só aí se pode deixar de falar em privação do uso, a verdade é que considera somente o período de 29 dias de paralisação, quando, em boa verdade, a Autora não se mostra ainda, à presente data, ressarcida dos danos sofridos, pois o seu veículo continua paralisado.

XLVI. A mesma surpresa face a tal condenação surge quando a Mmª Juiz afirma que, mesmo que o responsável pela indemnização proponha um valor a título de reparação do dano, o lesado tem sempre o direito de não o aceitar, por entender que o mesmo não repara integralmente o dano que teve no seu património, e ainda assim só considera o período de tempo até à proposta do Réu FGA no valor de €5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), a qual a Autora legitimamente não aceitou.

XLVII. Ou seja, não obstante a Mmª Juiz citar argumentos a favor daquilo que é peticionado pela Autora, acaba por condenar somente os Réus no pagamento de 29 dias de paralisação, condenação com a qual não podemos deixar de manifestar a nossa total discordância, atendendo à seguinte factualidade:
i. O Réu FGA, após realização de peritagem ao veículo da Autora, comunicou à Autora que o seu veículo se encontrava numa situação de perda total, considerando como valor venal do veículo a quantia de €3.381,00 e como valor do salvado a quantia de €150,00, valores com os quais a Autora discordou- cfr. facto n.º 16 do elenco da matéria provada;
ii. A Autora, inconformada, reclamou de tais valores, pelo que o Réu FGA veio posteriormente apresentar uma proposta majorada, no valor de €5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros) - cfr. factos n.º 17 e 18 do elenco da matéria de facto considerada provada;
iii. A Autora sabia que a sua viatura era integralmente reparável, pois obteve um orçamento para a sua reparação;
iv. Por esse motivo, a Autora intentou a presente ação, peticionando a reparação da sua viatura, conforme dispõe o artigo 562º do Código Civil;
v. A presente ação foi proposta em 26/06/2018, ou seja, somente e sensivelmente 4 (quatro) meses após a apresentação da proposta majorada pelo Réu FGA, o que demonstra que a intenção da Autora era efetivamente ver ressarcido o seu dano;
vi. O veículo da Autora tem características específicas e não é um veículo vulgar ou usual, pelo que é difícil apurar-se o valor comercial da mesma,
vii. motivo pelo qual entendeu o Douto Tribunal da Relação que, ao abrigo do artigo 411º do CPC, deveria a Mmª Juiz promover a realização de uma perícia, o que veio a suceder;
viii. Tal perícia, não obstante partir dos pressupostos corretos, o que não sucedia com as pesquisas de mercado até então apresentadas pelo Réu FGA, revelou-se totalmente discrepante com o valor até então avançado pelo Réu FGA, o que não se compreende;
ix. Por outro lado, a Autora demonstrou que o valor patrimonial da sua viatura é superior ao valor do mercado, quer pelas suas características raras quer pelo seu bom estado de conservação e manutenção.

XLVIII. Face ao exposto, parece-nos claro que a posição assumida pela Autora perante o valor que lhe foi apresentado numa fase pré-judicial não se revelou injustificada nem meramente dilatória,

XLIX. pelo que, não se encontrando ainda a Autora reparada integralmente dos danos que sofreu, impunha-se que fossem os Réus condenados nos termos peticionados, isto é, nos períodos de 30/12/2017 a 08/01/2018 e desde 20/01/2018 até à data da instauração da ação, bem como desde a citação até à integral e efetiva reparação, não constituindo tal condenação qualquer abuso de direito nem tão pouco um enriquecimento sem causa, considerando que o prejuízo se mantém ainda à presente data.

L. Isto porque, a privação do uso de um veículo automóvel constitui um ilícito por impedir o Autor do gozo pleno e exclusivo do seu direito de uso, fruição e disposição do veículo sinistrado, talqualmente dispõe o Artigo 1305.º do CC,

LI. e ao ter ficado privado da utilização do seu veículo, a Autora sofreu uma lesão no seu património e que à presente data ainda se continua a verificar, lesão essa que tem expressão monetária, devendo por isso ser equitativamente indemnizado nos termos do disposto no Artigo 566.º do CC,

SUBSIDIARIAMENTE, E CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA.
LII. Pelo hiato de tempo já decorrido desde o sinistro até à presente data, uma vez que o valor acumulado da indemnização pela privação de uso ascenderá presentemente a um valor elevado, tanto em relação ao valor devido pela perda total do veículo sinistrado, como em relação ao preço de um veículo novo nos últimos anos em que foi o mesmo foi produzido, deve o valor da indemnização a atribuir ter como limite máximo este último valor, talqualmente entendeu o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão proferido no processo n.º 188/14.3T8PBL.C1.S1 da Relatora Exma. Sra. Dra. Maria da Graça Trigo.

SEM PRESCINDIR,
LIII. E não obstante a Sentença proferida em 10/02/2020 ter sido anulada pelo Douto Tribunal da Relação do Porto, a verdade é que não podemos deixar de realçar a dualidade de critérios existente entre aquela e a da qual ora se recorre, senão vejamos:
o Na Sentença proferida em 10/02/2020, entendeu a Mmª Juiz que, condenando os Réus no valor de €5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros), ou seja, exatamente na quantia que havia já sido proposta pelo Réu FGA na fase pré-judicial, a recusa da Autora não se mostrava injustificada, pelo que havia que considerar os períodos de 30/12/2017 a 08/01/2018 e desde 20/01/2018 até à data da instauração da ação, bem como desde a citação até à integral e efectiva reparação;
o Já na Sentença da qual ora se recorre, condenando a Mmª Juiz num valor inferior ao que havia sido proposto pelo Réu FGA, entende já que só há a ter em conta 29 dias de paralisação, pois a Autora podia já ter aceitado um valor até superior em 07/02/2018, raciocínio que não se compreende e que coloca até em causa o princípio da paz e segurança jurídica e que só se explica pela aplicação, errónea e violadora do disposto no artigo 562º e 566º do CC, do artigo 42º/2 do DL 291/2007, de 21 de agosto.
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Foram apresentadas contra-alegações.
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Colhidos que se mostram os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do recurso, cumpre decidir.
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2. Factos
2.1 Factos Provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. No dia 29.12.2017, pelas 13h:15m, G… conduzia o veículo da marca Renault, modelo …, com a matrícula ..-..-TU, propriedade da Autora, na Rua …, …, Vagos, no sentido … - ….
2. Na mesma via pública, em sentido contrário, circulava o veículo da marca Seat, modelo …, com a matrícula ..-..-SC, propriedade de C… e conduzido por D….
3. Ao chegar à ponte da …, o veículo identificado em 2, despistou-se e invadiu a hemifaixa destinada à circulação de sentido contrário, tendo embatido de frente com o veículo referido em 1.
4. Na sequência do embate referido em 3, o veículo da Autora foi embater no rail de proteção da esquerda, atento o sentido de marcha, local onde ficou imobilizado.
5. No local, a via caracteriza-se por ser uma reta e o piso, nas circunstâncias de tempo supra descritas, encontrava-se molhado,
6. (…) limite de velocidade permitido no local é de 90km/hora.
7. O veículo referido em 2 circulava a 100km/hora.
8. À data do embate, a responsabilidade civil pelos danos causados a terceiro emergentes da circulação rodoviária do veículo identificado em 2, não se encontrava transferida para qualquer seguradora.
9. Em consequência do embate descrito em 3 e 4, o veículo da Autora ficou com a parte da frente e lateral amolgadas e estragadas, o que implicou a paralisação do mesmo.
10. A reparação dos danos referidos em 9, sem desmontagem, foi estimada em 25.098,16€.
11. O veículo identificado em 1 tinha, àquela data, o valor comercial de 4.247,54€, sendo o valor chassis cabine de 1.454,60€ e a caixa de carga com toldo de abertura com amortecedores (sistema hidráulico) no valor de 2.792,94€,
12. (…) não sendo possível a recuperação da caixa de carga com toldo do veículo.
13. No veículo identificado em 1 eram transportados vários produtos alimentares no valor de 1.732,89€ (valor sem iva), várias caixas de acrílico no valor de 289,93€ que ficaram destruídos e, ainda, uma balança que ficou danificada e cuja reparação importa o valor de 382,60€.
14. A Autora alugou um veículo entre 09.01.2018 e 19.01.2018, tendo despendido o montante de 1.353,00€.
15. A Autora despendeu o montante de 80,00€ pela solicitação do auto de participação de acidente de viação.
16. A 17.01.2018 o Fundo de Garantia Automóvel remeteu à Autora comunicação dando conhecimento do resultado da peritagem e que considerava o veículo perda total, indicando os valores apurados: “valor venal do veículo: 3381,00€” e “valor atribuído ao salvado: 150,00€” (cf. documento de fls. 9, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido).
17. No dia 07.02.2018, o Fundo de Garantia Automóvel informou à Autora que assumia a responsabilidade indemnizatória do sinistro referido em 3 (cf. documento de fls. 9-verso, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido)
18. (…), tendo informado que estava na disponibilidade de pagar uma indemnização pela perda total do veículo pelo montante máximo de 5.500,00€.
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3. Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar e decidir:
Das conclusões formuladas pelos recorrentes as quais delimitam o objecto do recurso, tem-se que as questões por resolver são as seguintes:
- Do recurso interposto por B…, Ldª:
- Da impugnação da matéria de facto;
- Da excessiva onerosidade da restituição natural;
- Da indemnização pela privação do uso do veículo.

- Do recurso interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel:
- Âmbito dos responsáveis pelo acidente.
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4. Conhecendo do mérito dos recursos:
4.1 Do recurso interposto por B…, Ldª.
4.1.1. Da impugnação da Matéria de facto
A apelante, em sede recursiva, manifesta-se discordante da decisão que apreciou a matéria de facto, questionando a factualidade dada como provada sob o ponto 11, do qual consta “11-O veículo identificado em 1. tinha, àquela data, o valor comercial de 4.247,54€, sendo o valor chassis cabine de 1.454,60€ e a caixa de carga com toldo de abertura com amortecedores (sistema hidráulico) no valor de 2.792,64€.”.

Vejamos, então.
No caso vertente, mostram-se cumpridos os requisitos da impugnação da decisão sobre a matéria de facto previstos no artigo 640.º do Código de Processo Civil, nada obstando a que se conheça da mesma.
Entende-se actualmente, de uma forma que se vinha já generalizando nos tribunais superiores, hoje largamente acolhida no artigo 662.º do Código de Processo Civil, que no seu julgamento, a Relação, enquanto tribunal de instância, usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes que tem a 1ª instância (artigo 655.º do anterior Código de Processo Civil e artigo 607.º, n.º 5, do actual Código de Processo Civil), em ordem ao controlo efectivo da decisão recorrida, devendo sindicar a formação da convicção do juiz, ou seja, o processo lógico da decisão, recorrendo com a mesma amplitude de poderes às regras de experiência e da lógica jurídica na análise das provas, como garantia efectiva de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto; porém, sem prejuízo do reconhecimento da vantagem em que se encontra o julgador na 1ª instância em razão da imediação da prova e da observação de sinais diversos e comportamentos que só a imagem fornece.
Como refere A. Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 224 e 225, “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.”.
Importa, pois, por regra, reexaminar as provas indicadas pela recorrente e, se necessário, outras provas, maxime as referenciadas na fundamentação da decisão em matéria de facto e que, deste modo, serviram para formar a convicção do Julgador, em ordem a manter ou a alterar a referida materialidade, exercendo-se um controlo efectivo dessa decisão e evitando, na medida do possível, a anulação do julgamento, antes corrigindo, por substituição, a decisão em matéria de facto.
Reportando-nos ao caso vertente constata-se que a Senhora Juiz a quo, após a audiência e em sede de sentença, motivou a sua decisão sobre o referido ponto nos seguintes meios de prova:
“C- Motivação da matéria de facto
A convicção do Tribunal sobre a matéria de facto provada baseou-se, essencialmente, no acordo das partes em sede de articulados e nos documentos oferecidos pelas mesmas, assim como na prova produzida em audiência de discussão e julgamento, analisada e conjugada criticamente, à luz das regras de experiência comum e de acordo com as regras da repartição do ónus da prova.
Concretizando:
(…)
No que se refere ao valor comercial do veículo, foi inquirida a testemunha F…, engenheiro mecânico em funções no Fundo de Garantia Automóvel e de E…. Pelo Eng. F…, com assertividade e objetividade, foi explicado que para obter o valor do mercado é habitual recorrer às tabelas do Eurotax, mas os veículos com mais de 12 anos não são cotados naquelas, pelo que é feita pesquisa no mercado de veículos o mais semelhante possível.
Foi esta testemunha quem efetuou as pesquisas juntas aos autos, tendo afirmado que não conseguiu encontrar no mercado veículo com as mesmas características do veículo da Autora, pelo que foram pesquisados veículos próximos e até utilizados critérios mais valiosos (menos quilómetros, cabine dupla, caixa isotérmica e mais recentes). Encontram-se juntos aos autos as pesquisas efetuadas (fls. 148 e 165), de onde é possível aferir as características dos veículos em causa.
Neste ponto, foi particularmente esclarecedor o depoimento de E… que explicou os principais critérios utilizados: idade do veículo e quilometragem, que no caso concreto foi obtida por estimativa, atendendo aos quilómetros indicados à data da última inspeção e as informações dadas pelo proprietário, tendo-se considerado que o veículo tinha 420.000 km.
Assim, tendo por consideração as pesquisas que fez no mercado, através de sítios de venda on-line, e aqueles critérios fundamentais, a testemunha F… explicou que o valor comercial do veículo da Autora, à data do sinistro, se situaria entre 3.400,00€ e 5.500,00€. Acrescentou, ainda, que se estivesse em causa um seguro de danos próprios, atenta a idade do veículo (185 meses) e o valor em novo do mesmo, de acordo com as tabelas de desvalorização utilizadas pelas seguradoras, o veículo teria, àquela data, o valor de 2.800,00€ - critério que, contudo, não pode ser utilizado para a avaliação do veículo da Autora.
Foi, entretanto, realizada perícia com vista a aferir o valor do veículo à data do acidente, tendo o perito nomeado pelo Tribunal apresentado relatório pericial (junto aos autos a 05.03.2021 e com esclarecimentos de 17.05.2021 - que não mereceram qualquer reparado das partes), onde, dando conta das dificuldades já relatadas em audiência de julgamento, concluiu que o valor de mercado do veículo em causa seria em 29.12.2017 de 4.247,54€, “o que resulta do valor chassis cabine ter sido de 1.454,60€ e a caixa de carga com toldo de abertura com amortecedores acrescentar um valor 2792,94€”.
Assim, porque devidamente fundamentado e sendo a conclusão contida nos valores já apontados em audiência de julgamento, além de ter em consideração a circunstância do veículo de caixa aberta ter um toldo com sistema hidráulico que permite ser utilizado como montra e cobertura, é de fixar o valor comercial do veículo à data do sinistro no valor apontado no relatório pericial junto aos autos.
Mais se esclareceu naquele relatório que não é possível “efetuar só a substituição do toldo sem a caixa de carga na sua totalidade”, sendo que “os danos que a mesma apresenta acarretam a consideração de ter havido uma perda total, técnica, pois não é possível a sua recuperação”.
Razão pela qual, se deu a factualidade vertida em 11 e 12 como demonstrada.
(…)”.
Tendo presentes estes elementos probatórios e demais motivação, ouvidos que foram a gravação dos depoimentos mencionados prestados em audiência, vejamos então se, no segmento colocado em crise, a referida análise crítica corresponde à realidade dos factos ou se a matéria em questão merece, e em que medida, a alteração pretendida.
Entende a apelante que os depoimentos das testemunhas E…, Engenheiro F… e G…, constituem meios probatórios que determinam uma decisão de facto diferente da ínsita no referido ponto 11.
Adiantamos, desde já, que se nos afigura não lhe assistir razão.
Como bem atestou o tribunal recorrido, os depoimentos prestados pelas testemunhas E… e Eng. F…, foram esclarecedores, sendo, ainda, certo que o depoimento prestado pela testemunha G… que é filho do sócio gerente da empresa aqui apelante, com claro interesse no desfecho da presente lide, não se revela fiável.
De resto, no que se refere à consideração do valor comercial do veículo, os autos devem suportar-se na perícia que consta dos autos.
Existindo uma prova pericial, bem sabemos, que a mesma terá primazia perante a prova testemunhal.

Ora, o valor comercial que foi atribuído pelo Tribunal a quo ao veículo em causa (4.247,54€) assenta nas conclusões finais do relatório pericial que se encontra junto aos autos, sendo certo que, não se vislumbra da transcrição dos depoimentos indicados pela recorrente qualquer elemento que permita concluir pela incorrecção ou desadequação das conclusões apresentadas pelo perito no referido relatório pericial.
Como é sabido a finalidade da perícia é a percepção de factos ou a sua valoração de modo a constituir prova atendível. O perito é um auxiliar do juíz, chamado a dilucidar uma determinada questão com base na sua especial aptidão técnica e científica para essa apreciação. O juízo técnico e científico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador; o julgador está amarrado ao juízo pericial, sendo que sempre que dele divergir deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação - a este propósito, cf. o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 08.03.2018, proferido no processo 468/15.0T8PDL, disponível em www.dgsi.pt.
No caso vertente, a prova pericial foi realizada por perícia singular, sendo certo que o relatório pericial está devidamente fundamentado, com os critérios e métodos da apreciação, com base nos conhecimentos técnicos e científicos idóneos que, de resto, não mereceram reclamação de nenhuma das partes.
Quer isto significar, que o relatório de que a recorrente agora apela foi o mesmo que por ela foi aceite e considerado como prova bastante.
De resto, embora a apelante se afaste e não concorde com o valor comercial do veículo automóvel dado como provado, não carreia para os autos qualquer prova capaz de abalar o mesmo.
Afigura-se-nos, assim, que o raciocínio probatório adoptado pelo tribunal a quo é justificado e consubstancia um exercício correcto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova produzidos.
Parece-nos, por isso, não existirem motivos que justifiquem a alteração, devendo manter-se a resposta dada ao facto provado sob o ponto impugnado.
Em face do que vem de ser exposto, improcede a impugnação da matéria de facto apresentada.
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A matéria de facto que fica em definitivo julgada provada é assim a atrás mencionada.
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4.1.2 Da excessiva onerosidade da reconstituição natural
A apelante pugna, ainda, pela desadequação do montante de indemnização atribuído pelo veículo sinistrado.
Vejamos então.
No que a esta matéria respeita, importa, desde logo, referir que como consabido, no âmbito da actuação do seguro obrigatório automóvel, regulamentado pelo Decreto Lei 291/2007, de 21 de Agosto, as seguradoras e, bem assim, o Fundo de Garantia Automóvel, encontram-se legalmente obrigados a declarar a “perda total” quando se verifiquem os requisitos mencionados no artigo 41.º do aludido diploma legal.
Deste normativo extrai-se como objectivo principal aplacar situações em que o custo da reparação do veículo - correspondente à reconstituição natural - se revela manifestamente desproporcional ao interesse do lesado, sendo excessivamente onerosa para o devedor.
A concretização do conceito de manifesta desproporcionalidade assenta em elementos práticos, como sendo o valor da reparação, atestada pelo relatório de peritagem - convertido nestes casos em boletim de perda total, e o valor venal do veículo, o qual se constrói por indagação junto do mercado automóvel - isto para os veículos com mais de 12 anos, porque no caso de veículos mais novos a pesquisa é realizada nas tabelas do Eurotax - sobre o preço que aí é praticado em relação a veículos semelhantes ao sinistrado, nomeadamente no que se refere à marca, modelo, ano, quilometragem, tipo de combustível, etc.
Afigura-se-nos, ainda, tal como fez o tribunal a quo, ser relevante determinar qual a medida do interesse do lesado de forma a evitar que a reparação do veículo seja excessivamente onerosa para o devedor.
Diga-se ainda, que a autora, aqui apelante não logrou demonstrar que o valor patrimonial do seu veículo é superior ao valor de mercado. Razão pela qual, deve prevalecer o critério do valor venal do veículo.
Como bem se refere na sentença alvo de recurso: “Não se trata de uma situação em que a reparação é apenas mais onerosa. Esta é flagrantemente desproporcionada em relação ao valor do veículo. “
A autora, aqui apelante invoca, todavia, que a sentença se socorreu dos critérios previstos no Decreto Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, designadamente do seu artigo 41.º. e, ainda, que o Tribunal não considerou o valor patrimonial do veículo.
Analisemos cada um dos referidos pontos separadamente.
No que se refere à aplicação do conceito de perda total do veículo conforme promana do aludido diploma legal, somos de parecer que tal alegação não é exacta.
Com efeito, o tribunal a quo é claro no sentido de repudiar a aplicação do referido conceito, nos seguintes termos:
“Perante uma situação de perda total, o valor de indemnização corresponderá ao valor venal do veículo antes do sinistro, deduzido do valor do salvado caso este permaneça na posse do seu proprietário (cf. artigo 41.º, n.º 3 do Decreto-Lei 291/2007). Contudo, é de destacar que tem sido entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores que o citado normativo não derroga as regras e princípios gerais da responsabilidade civil (estabelecendo, apenas, os procedimentos a adotar pelas empresas de seguros com vista à regularização rápida, simplificada e amigável dos danos resultantes de sinistros, podendo o lesado aceitar ou, discordando, recorrer à via judicial para determinação da espécie e quantum da indemnização de acordo com as regras e princípios da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar).
Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 16.09.2014, no processo n.º 1594/11.0TBFIG.C1, relatado por Teles Pereira, disponível em www.dgsi.pt, “este regime não visou substituir as regras gerais indemnizatórias - não se sobrepôs aos artigos 562º e 566º do CC - quanto ao princípio indemnizatório geral da reconstituição da situação anterior ao dano, mesmo que alcançada pela equivalência de um valor em dinheiro como elemento reparador da lesão (a entrega de um valor em dinheiro visa nestes casos, fundamentalmente, fornecer ao lesado meios para ele próprio suprimir o dano). (…) Este mecanismo pressupõe uma resolução extra-judicial do litígio e visa, cremos que notoriamente, fornecer critérios mínimos orientadores da seguradora em vista dessa evitação de um litígio com expressão judicial”.
Na verdade, o artigo 41.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, não parece adequado nas hipóteses de acidente com veículos automóveis com apreciável uso, desatualização e desgaste, sendo que “atender (nestes casos) estritamente ao valor de mercado do bem (no sentido do seu valor de venda) seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada pelo preço de mercado”.
Fala-se, pois, na necessidade de atender, não ao valor comercial ou venal, mas ao valor patrimonial do veículo sinistrado.
Socorrendo-nos das palavras do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.05.2020, relatado por Filipe Caroço, disponível em www.dgsi.pt, “importa ter em atenção fatores subjetivos, como os respeitantes ao devedor e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, bem como as condições do lesado, e o seu justificado interesse específico na reparação do objeto danificado. Nesta sede, o valor a ter em conta é o valor patrimonial do veículo, correspondendo este ao valor que o veículo representa dentro do património do lesado, ou seja, o valor necessário para o lesado adquirir um veículo com as características do veículo sinistrado, adequado a satisfazer as mesmas necessidades e interesses. Tal valor não é, então, o valor venal do veículo mas o valor patrimonial, o valor que o veículo representa dentro do património do lesado; o valor que ele tem efetivamente - tal como estava antes do sinistro - dentro do património do autor (e não o valor que ele obteria se naquele mesmo estado o vendesse).”.
Não podemos, pois, perder de vista que está em causa indemnizar o lesado, eliminando da sua esfera o dano sofrido, correspondendo a realidades distintas o valor do bem e a concreta utilidade por ele propiciada, sendo que no caso de veículos, o verdadeiro dano é essa utilidade, “a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”, de acordo com o artigo 562º do Código Civil. É, desde logo, evidente que um veículo com vários anos de uso e grande desgaste vale pouco dinheiro, mas satisfazia as necessidades do seu proprietário.
De referir, no entanto, que ao lesado cabe demonstrar, segundo as regras de repartição do ónus da prova, o valor patrimonial do veículo sinistrado.”.
Todavia, não o logrou realizar. Considerando-se por isso, que o valor comercial representa o valor patrimonial do veículo.
Ainda, o tribunal recorrido não se queda pela ideia de perda total, indo mais longe, afirmando que:
“A excessiva onerosidade terá de ser decidida “no caso concreto, atendendo e confrontando os interesses do lesado e do lesante e determinando até que ponto é que é exigível ao lesante suportar o custo das reparações, por tal corresponder a um interesse digno de tutela do lesado na integridade do seu património. (…) Neste sentido não nos repugna sequer considerar que há aqui um certo paralelo com o abuso de direito e que é quando a exigência de reparação natural se apresenta abusiva, confrontando o benefício comparativamente reduzido do lesado e o sacrifício do lesante, que tal exigência não deve ter tutela legal” - cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.09.2014, já citado. Não se trata, pois, de realizar uma simples operação aritmética em função dos valores envolvidos, importando considerar os interesses do lesado cujo ressarcimento está em causa. A própria letra do artigo 566.º, n.º 1, do Código Civil aponta para uma onerosidade grave, violadora da boa fé ou do princípio da desproporcionalidade. Tem, assim, de resultar demonstrada uma manifesta, diga-se mesmo flagrante, desproporção entre o interesse do lesado e o custo que a reconstituição natural, isto é, reparação, representa para o responsável - prova que cabe aos Réus.
Ora, no caso concreto, resultou provado que a reparação do veículo ascende os 25.000,00€ (sem desmontagem), tendo-se demonstrado que o valor comercial do veículo, à data do acidente de viação, correspondia a 4.247,54€ (já considerando que a caixa de carga se encontra equipada com toldo de abertura com sistema hidráulico).
Caberia, como já tivemos oportunidade de referir, à Autora demonstrar que o valor patrimonial do seu veículo é superior ao seu valor de mercado, o que não fez. “Não fazendo ela esta prova, impera o valor venal do veículo” – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.05.2020, supra citado. Note-se, por um lado, que o valor do orçamento da reparação trata-se de uma estimativa, sem desmontagem do veículo. Resulta, assim, evidente que, atento o valor já bastante elevado da reparação, os danos do veículo são de tal forma substanciais que não se pode ignorar que a sua estrutura possa estar comprometida e os custos da reparação sejam efetivamente superiores aos orçamentados.
Por outro lado, não tendo resultado demonstrado o valor patrimonial do veículo, temos de atender ao valor comercial do veículo sinistrado que, à data do acidente de viação, correspondia a 4.247,54€.
Aferindo-se, do diferencial existente entre estes valores, uma situação configurável como de excessiva onerosidade da reparação da viatura, a que se refere o artigo 566.º, n.º 1, in fine, do Código Civil.
Não se trata, assim, de uma situação em que a reparação é apenas mais onerosa. Esta é flagrantemente desproporcionada em relação ao valor do veículo. Há, assim, uma manifesta desproporção entre o interesse da Autora, lesada, e o custo que essa reparação natural importa para os responsáveis (muito superior ao custo de adquirir um veículo semelhante no mercado), sendo desajustado, ultrapassando mesmo os limites de uma legítima indemnização, condenar os responsáveis no valor correspondente ao orçamento de reparação.
Cremos, ainda assim, que a consideração de perda total não pode servir para que não seja restituída a situação em que o lesado estaria se não fosse a lesão, o que só se conseguirá pela aquisição de um bem que proporcione as mesmas utilidades que o veículo sinistrado proporcionava à Autora.
É, assim, de reconhecer a perda total do veículo com a matrícula ..-..-TU, propriedade da Autora, concedendo-lhe uma indemnização pelo valor comercial do veículo deduzido o valor do salvado, que se encontra na posse da mesma.
Pelo que, entendemos conceder à Autora a indemnização a título de perda do veículo no valor de 4.097,54€ (quatro mil, noventa e sete euros e cinquenta e quatro cêntimos), considerando o desconto do valor do salvado (150€) no valor comercial do veículo.”
Esta decisão afigura-se-nos correcta e justa, não merecendo reparo.
Mas, vejamos agora, a consideração na alegação da apelante de que a sentença recorrida olvidou o valor patrimonial do veículo.
Não concordamos, também, com este argumento, na medida em que o valor que deve ser considerado é o valor de substituição do veículo.
Neste sentido, cremos ser insofismável que o valor constante da perícia é o valor de mercado, era assim o valor de um veículo com características iguais ao danificado, isto é, pelo valor que ele o poderia adquirir.
Este valor, valor venal que o Fundo de Garantia Automóvel entende ser o correspondente a um veiculo de substituição, era muito inferior ao valor da reparação, o qual é de 25.098,16€. Ou seja, um excesso de mais de 120%.
E a apelante não prova, como, aliás, lhe competia, que o valor de substituição do veículo fosse superior ao valor comercial considerado.
Assim, como não existem outros factos, o valor a considerar é o valor resultante da perícia e perante ele o valor da reparação é manifestamente excessivo, já que com ele o lesado poderia, na lógica das coisas, comprar um veículo com características semelhantes às do seu, satisfazendo com ele as mesmas necessidades que o anterior satisfazia.
Repisamos que é a apelante que tem que alegar e provar que o valor de substituição do veículo é superior ao seu valor comercial anterior ao acidente e tem que provar qual é esse valor.
Ora, pese embora a autora, aqui apelante, tenha alegado factos que podem contribuir para um aumento do valor do veículo relativamente ao seu valor comercial, o certo é que não quantificou esse valor, tendo tais factos sido alegados apenas como forma de demonstrar o bom estado geral do veículo e que a reparação é justificável.
Todavia, face à alegação do Fundo de Garantia Automóvel de que a reparação é excessivamente onerosa, a recorrente teria que demonstrar que o valor de substituição do veículo é superior ao valor venal indicado pelo réu para que se pudesse concluir que a reparação do mesmo não é excessivamente onerosa, conclusão essa que teria que se retirar a partir da comparação entre o valor de reparação e o valor de substituição, o que manifestamente não sucedeu.
Afigura-se-nos, por isso, também ser de manter neste ponto a decisão recorrida.
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4.1.3 - Do Dano da privação do uso do veículo.
Pugna, por fim, a apelante pela falta de adequação do período temporal tido em consideração para fixação do montante correspondente ao dano da privação do uso do veículo.
Vejamos então.
Adiantamos, desde já, que, neste ponto, a sentença proferida também não merece reparo.
Com efeito, admitir a concessão da indemnização pela privação do uso para o período que a recorrente refere consubstanciaria uma excessiva onerosidade para o devedor e, consequentemente um injusto enriquecimento do lesado.
Ora, tal como considerou a sentença recorrida, estamos perante uma situação de perda total (a qual está indiscutivelmente provada), e por essa razão, o termo final do cômputo do dano da privação do uso, coincide com o dia em que é disponibilizada a indemnização para ressarcir essa mesma perda. - cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 16.03.2015, disponível em www.dgsi.pt.
Significa isto, que deve existir um limite temporal razoável ao dever de indemnizar pela paralisação do veículo.
Vejamos, então, o quadro jurídico aqui em apreço.
De harmonia com o estabelecido no artigo 562.º do Código Civil quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Está, destarte, consagrado o princípio da restauração natural como objectivo fundamental da obrigação de indemnização.
O aludido princípio sofre, porém, excepções, elencadas no artigo 566.º do mesmo diploma.
Assim, ao invés da restauração natural, a lei permite que a indemnização seja fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Ora, é o último grupo de casos acima aflorado que aqui importa analisar.
As razões subjacentes à aludida regra legal radicam no princípio da boa-fé.
Na verdade, entende-se que nas situações em que a reconstituição natural importe um sacrifício avultado para o devedor, quando o interesse do credor, comparado com o referido sacrifício, não assume a mesma dimensão, não está o devedor obrigado à restauração natural.
Seguindo Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, pág. 813, “a reconstituição natural deve, (...), considerar-se meio impróprio ou inadequado, quando for excessivamente onerosa para o devedor, isto é, quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável.”.
Por outro lado, e quando estamos perante o dever de reparar bens aos quais é possível atribuir um valor venal e o custo da reparação é superior a esse valor venal, está em causa a prevenção de um enriquecimento indevido do credor, também ele contrário ao princípio da boa-fé.
Por fim, importa também apelar para a circunstância de que o responsável final pelo pagamento da indemnização, nos casos em que o apelante intervém, é o responsável civil, as mais das vezes - como é o caso - uma pessoa singular sem poder económico para fazer face às indemnizações que são pagas.
No caso vertente, ficou, sem dúvida, provada matéria que claramente demonstra que a reconstituição natural era excessivamente onerosa para o devedor.
Por isso, o tribunal a quo mandou indemnizar o autor pelo valor de 4.097,54 € pela perda do veículo e não pelo valor peticionado pela Autora, aqui apelante, o qual ascendia a 25.000,00€.
A matéria de facto assente permite concluir que a reparação do veículo era económicamente inviável, estando-se claramente perante uma situação que se denomina de perda total.
Ora, a apelante teve conhecimento desse facto em 17.01.2018 (facto provado 13).
Sucede que o dano decorrente da paralisação apenas deve ser reparado pelo responsável na medida em que lhe seja imputável e se afigure razoável exigir essa reparação.
Não sendo razoável exigir agora uma indemnização com base em paralisação a partir do momento em que se figure e determine que a reparação do veículo é inviável, já que, não pode desde aí colocar-se a questão da renovação desse mesmo veículo.
Na verdade, se o responsável deve ressarcir o lesado dos danos decorrentes da paralisação, esse dever cessa quando a paralisação deixe de ser imputada ao lesante em termos de culpa e de nexo de causalidade adequada.
E neste caso, nenhuma culpa se pode imputar ao ora recorrente pelo decurso do período de tempo que o autor aguardou para ordenar a reparação e, face ao montante do dano, pode mesmo falar-se em interrupção do nexo de causalidade adequada.
Neste sentido, escreveu-se no acórdão da Relação de Coimbra, de 22-6-1977, in CJ, 1997, Tomo 3, pág. 738, que “a paralisação do veículo sinistrado e prejuízo inerente, existem quer haja ou não reparação, incumbindo ao lesante a obrigação de indemnizar o prejuízo nos termos do art. 564º do Código Civil. A medida da indemnização, na ausência de reparação, não pode ficar ao arbítrio das conveniências do lesado: há que limitá-la ao tempo necessário à decisão e realização das diligências necessárias à sua substituição.”.
Assim sendo, afigura-se-nos que é inexigível pagar ao lesado o correspondente a um período de paralisação a partir de 17.01.2018, tendo em conta a data em que a Apelante tomou conhecimento da inviabilidade da reparação e foi colocado à sua disposição montante superior ao valor fixado na perícia.
Ademais, não acompanhamos o alegado pela recorrente quanto à falta de segurança jurídica pela diferença do decidido relativamente a esta matéria na sentença proferida em 10.02.2020 e a sentença alvo de recurso.
Com efeito, a sentença referida em primeiro em nenhum momento transitou em julgado, não podendo, por isso, representar qualquer certeza jurídica, sendo, ainda, certo que a referida matéria foi alvo de alteração na decisão, agora, alvo de recurso em virtude da prova produzida.
Afigura-se-nos, assim, ser de improceder a pretensão recursiva da autora, aqui apelante, mantendo-se inalterada, também neste segmento, a decisão recorrida.
Impõe-se, por isso, a improcedência desta apelação.
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4.2. Do recurso interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel
- Dos responsáveis pelo acidente
Pugna o aqui recorrente Fundo de Garantia Automóvel que C… seja, igualmente, considerada responsável pelo acidente de viação descrito nos autos.
Vejamos então.
No caso vertente, resultou provado que o veículo que deu causa ao acidente, não obstante ser conduzido pelo Réu D…, é propriedade de C…, tendo a Autora deduzido os pedidos também contra esta.
Ora, provada que ficou a responsabilidade aquiliana por parte de D…, condutor do veículo, cumpre ajuizar sobre a responsabilidade objectiva, baseada no risco, por parte da sua proprietária (que, recorde-se, não conduzia o veículo no momento do acidente, não podendo ser-lhe imputado qualquer facto ilícito e culposo de onde resulte a obrigação de indemnizar).
Estabelece o artigo 503º, n.º 3 (1ª parte) do Código Civil que “aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte”.
A previsão citada faz recair sobre o condutor por conta de outrem uma presunção de culpa pelos danos acusados no exercício da condução de veículos. E como se definiu no Assento do STJ de 14/04/83 (hoje com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência) aquele normativo estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo, por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular ou titulares do direito à indemnização.
Porém, como também tem sido entendido com certa uniformidade na jurisprudência, só a existência de uma relação de comissão faz presumir a culpa do condutor, sendo certo que essa relação de comissão tem de ser encontrada fora de aplicação do artigo 503º, nº 1, pois as expressões aí referidas - “direcção efectiva” e “interesse próprio” - são apenas elementos balizadores dessa norma, ou seja, somente dizem respeito à responsabilidade pelo risco e apenas servem para determinar esta e não a responsabilidade por culpa, mesmo que presumida.
Convém, a propósito citar o Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 20-10-94, publicado in Boletim do Ministério da Justiça 456/19, que tem força obrigatória geral, no que respeita à uniformização de jurisprudência (face ao estabelecido no art. 732º- A do CPC) - que veio estabelecer que "o dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor quando se aleguem e provem factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500º n.º 1, do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo".
Sucede que a verificação de tal relação de comissão, não assenta no simples facto de alguém conduzir um veículo por “conta de outrem” ou “sob a direcção e interesse de outrem”, pois que, como se referiu, as expressões “direcção efectiva” e “interesse próprio” constantes do artigo 503º, n.º 1 são tão sómente elementos balizadores dessa norma, ou seja, só dizem respeito à responsabilidade pelo risco e só servem para determinar esta e não a responsabilidade por culpa, ainda que presumida que deverá aferir-se através de factos tipificadores alegados e provados pelo lesado. A existência da relação de comissão, por isso, não se basta com a mera constatação de o proprietário e o condutor do veículo serem pessoas diferentes e este o conduzir “com conhecimento e autorização daquele” ou “sob o interesse e direcção daquele".
Como bem se defendeu no Acórdão da Relação do Porto de 8.10.2002, acessível em http://www.dgsi.pt/trp, o artigo 503.º, n.º 3 do Código Civil, estabelece uma presunção de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, isto é, do comissário, presunção válida mesmo entre ele e os titulares do direito à indemnização. Mas o condutor de um veículo só deve ser considerado comissário quando tenha sido encarregado de uma comissão, traduzindo-se esta na realização de actos de carácter material ou jurídico e se integram numa tarefa ou função confiada a uma pessoa diversa do interessado. E uma comissão implica uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, agindo este mediante ordens ou instruções daquele. Não se tendo provado que o condutor do veículo agia por conta do proprietário e mediante ordens ou instruções deste não se pode concluir que o condutor era comissário e, assim, a presunção de culpa do n.º 3 do artigo 503º tem necessariamente de se afastar.
Saliente-se que para se concluir pela existência de uma situação de comissão torna-se necessário que se alegue e que se apure factualidade que a caracterize como tal, pois que, sendo de presumir a coincidência entre a qualidade de proprietário e a direcção efectiva de um veículo, não é legítimo e nem se pode concluir que o terceiro que conduz um veículo automóvel o faz, necessariamente, como comissário do seu dono, cabendo ao lesado a demonstração dessa relação de comissão.
Ora, no caso em apreço, alega o apelante que se está perante uma relação de comissariado, pelo que o tribunal “a quo” julgou mal ao não considerar também responsável pelo acidente a proprietária do veículo, de matrícula ..-..-SC.
Sucede, porém, que na matéria de facto considerada provada não releva factualismo que vá ao encontro do defendido pelo apelante, pois que, na parte que interessa, apenas se provou que o veículo, causador dos danos, de matrícula ..-..-SC, pertencente a C.., era conduzido na altura por D….
Não decorre, com efeito, dos factos, que não foram alegados, que o condutor daquele veículo, agisse como comissário, ou seja, mediante ordens ou instruções daquela, numa relação de subordinação ou dependência. E só em virtude desta circunstância que se compreende que o comitente responda independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia, também, a obrigação de indemnizar e desde que o facto danoso tenha sido praticado, por ele, no exercício da função que lhe foi confiada.
Acresce que se é possível, através de presunções naturais, concluir que o proprietário tem a direcção efectiva do veículo e que a utilização deste se faz no seu próprio interesse, por ser normal e corrente que assim seja, já não é lícito partir daí, em segunda presunção, para a conclusão de que o terceiro que o conduz é comissário daquele – cf. Acórdão da Relação do Porto de 13.02.2001, acessível em http://www.dgsi.pt/trp..
Não se verifica, assim, uma relação de comissão, no caso dos autos, em que apenas se provou que o veículo conduzido por D… era propriedade de C…, sendo certo que o Fundo de Garantia Automóvel não se encontra impedido de exercer o seu direito de regresso em ação própria verificados os respectivos pressupostos.
A respeito deste ponto, o Tribunal a quo baseou, de forma exaustiva, a sua argumentação nos seguintes termos:
“(…)
In casu, o veículo propriedade da Ré C… era, no momento do sinistro, conduzido por D…, tendo por certo que nos movemos fora do contexto de uma relação de comissão (posto que nada foi alegado e a comissão não se presume), importa averiguar a direção efetiva do veículo e se o mesmo foi utilizado no interesse da Ré C….
Neste ponto, a jurisprudência dos nossos tribunais superiores tem sido unânime em considerar que o proprietário responde pelos danos causados pelo condutor, salvo se se provar que não tinha a sua direção efetiva e o condutor agia num interesse próprio – ónus que cabe ao proprietário (8 assim, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2014, relatado por AZEVEDO RAMOS, disponível em www.dgsi.pt.).
Tal significa que a propriedade faz presumir a direcção efectiva e a utilização no interesse do titular do direito de propriedade, por constituir a faculdade de uso da coisa caracterização nuclear da posição jurídica do proprietário (cf. artigo 1305.º do Código Civil). Contudo, pretendendo o condutor afastar tal presunção, importa que este demonstre quem de facto tem o poder de direção do veículo e dele se aproveita (não sendo descabido que no caso de um casal, possa não ser o proprietário a ter esse mesmo poder real/domínio sobre o veículo em causa, que corresponderá a uma real possibilidade de determinar o modo como a viatura é dirigida, assim controlando o seu funcionamento (9 cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.02.2021, relatado por JOÃO VENADE, disponível em www.dgsi.pt.).
De referir, ainda, que tem sido entendimento da jurisprudência de que o empréstimo de um veículo, ou seja, o seu comodato, não é suficiente para estabelecer a perda de direção efetiva e de interesse entre o proprietário e a utilização do veículo. Apenas “cortando” o elo de ligação do proprietário ao veículo, como nos casos de usufruto ou locação ou em que o condutor do veículo o utilizava abusivamente, contra vontade ou ordens do proprietário, o dono do veículo não responderá pelos riscos próprios da sua utilização, recaindo a responsabilidade sobre o seu detentor (neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.03.2010, relatado por PAULO SÁ, disponível em www.dgsi.pt).
Desta forma, o proprietário, na medida em que retira e aproveita as vantagens do veículo, deve assumir a responsabilidade pelo risco da sua utilização, mesmo nas situações em que empresta o seu veículo a outro que tem um acidente, pois a condução é feita sob a sua direção e no seu interesse (10 Assim, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.09.2012, relatado por ARTUR DIAS, disponível em www.dgsi.pt.) - trata-se de uma responsabilidade assente em princípios de solidariedade e de justiça distributiva (11 Assim, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.10.2019, relatado por OLIVEIRA ABREU, disponível em www.dgsi.pt.), em ordem a tutelar as necessidades dos terceiros lesados.
Daqui resulta que, não havendo culpa, efetiva ou presumida, do condutor interveniente no acidente, nem se provando que o acidente se deveu a culpa do lesado ou resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, encontramo-nos no âmbito da responsabilidade pelo risco (12. Refere-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2019, relatado por GRAÇA AMARAL, disponível em www.dgsi.pt, “Não apurada a existência de culpa (efectiva ou presumida) na produção do acidente, há que fazer intervir a responsabilidade pelo risco por parte do proprietário do veículo que detém a direcção efectiva do mesmo” (sublinhado nosso). No mesmo sentido, veja-se o Acórdão do mesmo Tribunal de 28.03.2019, relatado por Ilídio Sacarrão Martins, disponível em www.dgsi.pt, onde se defendeu que “Não se aplicando a presunção de culpa em causa, justifica-se a aplicação da responsabilidade pelo risco…”.).
Todavia, no caso concreto, resultou demonstrado a responsabilidade subjetiva do condutor do veículo na produção do acidente, isto é, concluímos supra o acidente se deveu à atuação culposa do Réu D….
Nesta medida, cremos que a Ré C… não poderá ser considerada responsável (objetiva) pelos danos provenientes do acidente de viação que foi provocado pela atuação culposa do condutor D…, ainda que se considere que a aquela, na qualidade de proprietária, tinha a direção efetiva do veículo e interesse na sua utilização (13 Independentemente de ser solidariamente responsável pelo pagamento ao Fundo de Garantia Automóvel, caso este tenha satisfeito a indemnização ao lesado – cf. artigo 54.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto.).
Na verdade, apenas na hipótese de ausência de culpa do condutor, porquanto a própria atividade de circulação de veículos automóveis tem associado um perigo objectivo (14 Nas palavras de DÁRIO MARTINS DE ALMEIDA, citado no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05.03.2019, “basta que o veículo esteja em movimento na estrada para já constituir um risco. E daí que, não estando provada a culpa do condutor, o acidente cabe logo, em princípio, na esfera do risco.”) (encontrando-se tal risco sempre presente num acidente de circulação rodoviário) (15 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21.01.2018, relatado por MOREIRA DO CARMO, disponível em www.dgsi.pt.), tal bastaria para que o acidente coubesse, em princípio, na esfera do risco.
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 17.10.2019, relatado por OLIVEIRA ABREU, disponível em www.dgsi.pt, “Quando não se encontra fundamento no instituto da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, afastada que está a culpa do condutor do veículo interveniente no acidente ajuizado, cabe aferir se a obrigação de indemnizar se fundamenta em facto danoso gerador de responsabilidade objectiva, porque incluído na zona de riscos a cargo de pessoa diferente do lesado.” (16 No mesmo sentido, veja-se Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2019, já citado).
Tal corresponde ao entendimento de que a responsabilidade por facto ilícito e culposo absorve a responsabilidade pelo risco (17 Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.12.2018, relatado por FÁTIMA GOMES, disponível em www.dgsi.pt.). Desde logo, porque se a ocorrência do acidente de viação é imputada exclusivamente à atuação do Réu condutor do mesmo, não cremos que seja de imputar aos riscos próprios do veículo (no fundo, há uma espécie de corte do nexo de causalidade entre os riscos próprios do veículo e a ocorrência do acidente – o acidente é imputável à atuação culposa do condutor e não aos riscos próprios do veículo, não é um efeito destes).
Reitere-se que, neste entendimento, é indiferente estarmos perante culpa efetiva ou presumida do condutor. “Culpa efectiva, provada, e culpa presumida são uma e a mesma coisa, designadamente para afastar a indemnização devida pela responsabilidade pelo risco” – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.10.2019, supra citado.
Por outro lado, é de destacar que não resulta da factualidade provada quaisquer circunstâncias que, além dos factos relevantes para efeitos da culpa de D…, possam levar o Tribunal a equacionar a concorrência do risco próprio do veículo com a responsabilidade por facto ilícito e culposo do condutor (como seja a ocorrência do rebentamento do pneu, algum problema do sistema de travagem ou pneus que tenha levado o veículo a perder aderência ao piso, ou mesmo as situações relativas ao condutor do automóvel que estejam relacionadas com o risco da própria máquina [binómio máquina-condutor] como sejam as situações de desmaio do condutor, etc.) (18 Cremos que só nesta hipótese ou naquela em que não exista responsabilidade civil por facto ilícito do condutor do veículo, dever-se-á equacionar da responsabilidade civil pelo risco – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20.09.2018, relatado por MARIA LUÍSA RAMOS e do Supremo Tribunal de Justiça de 19.12.2018, relatado por FÁTIMA GOMES, ambos disponível em www.dgsi.pt.).
Assim, resultando demonstrado que é o condutor que, pela sua atuação, provoca o acidente, não podemos falar no controle do risco ou controlo dos potenciais danos, aliada ao princípio da justiça distributiva, no qual assenta a responsabilidade pelo risco (19 Recorde-se, nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.03.2014, relatado por MANUEL CAPELO, disponível em www.dgsi.pt, “Na base desse juízo está a ideia de que na responsabilidade pelo risco não está já em causa o valorar as circunstâncias da dinâmica do acidente, que antes de decidiu ter-se produzido sem culpa de nenhum dos condutores mas antes, e exclusivamente, de acordo com as circunstâncias concretas do caso determinar se houve agravamento dos normais e típicos riscos de circulação por referência às características das viaturas”. 20 “não obstante o espírito humanista e de solidariedade presida à responsabilidade pelo risco com vista à reparação do dano, a tendência não é para alargar essa responsabilidade objetiva, sem culpa, mas para responsabilizar quem teve culpa ou quem a poderia ter evitado, assim prevenindo a responsabilização de alguém que, para além de não ter qualquer culpa na prática do facto, não tinha sequer o controlo do perigo inerente ao funcionamento do veículo e a possibilidade de o prevenir e, por qualquer modo o influenciar” – cf. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.12.2019, relatado por FILIPE CAROÇO, disponível em www.dgsi.pt.). Salvaguarde-se que tal não respeita à aplicação do artigo 505.º do Código Civil, norma que prevê a exclusão da responsabilidade pelo risco quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, uma vez que quando aqui se fala em terceiro se faz referência a alguém alheio ao veículo em causa e, portanto, não será o condutor do mesmo.
Diga-se, por fim, que mesmo a exigência de litisconsórcio prevista no artigo 62.º, n.º 1, do Decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto, é relativa ao Fundo de Garantia Automóvel e ao responsável civil - sendo, pois, evidente que este tanto pode ser o proprietário do veículo ou o condutor do mesmo que não seja seu proprietário – sem prejuízo do Réu Fundo ficar sub-rogado nos direitos do lesado perante, também, o proprietário. Todavia, não é nesta ação que o fundo pretende ser reembolsado, importando apenas apurar a responsabilidade pelo pagamento da indemnização à Autora.
Entendemos, em suma, que a responsabilidade da ocorrência do veículo deve ser atribuída unicamente, a título de culpa, ao condutor do veículo.”.
Afigura-se-nos, na sequência, aliás, do atrás exposto que a referida argumentação é válida e não merece censura.
Cremos, pois, que por tais motivos ser de manter, também neste ponto, a decisão recorrida.
Impõe-se, por isso, a improcedência desta apelação.
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Sumariando em jeito de síntese conclusiva:
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5. Decisão
Nos termos supra expostos, acordamos neste Tribunal da Relação do Porto, em:
- Julgar improcedente o recurso de apelação interposto por B…, Ld.ª, confirmando a decisão recorrida.
- Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Fundo de Garantia Automóvel, confirmando a decisão recorrida.
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Custas dos recursos de apelação a cargo dos respectivos apelantes.
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Notifique.

Porto, 15 de Dezembro de 2021
Os Juízes Desembargadores
Paulo Dias da Silva
João Venade
Paulo Duarte Teixeira

(a presente peça processual foi produzida com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas e por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)