Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
977/19.2T8VCD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO E FISCAL
TRIBUNAL COMUM
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
Nº do Documento: RP20200123977/19.2T8VCD.P1
Data do Acordão: 01/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - São da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, ou seja, que tenham por base uma relação jurídica de direito administrativo, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
II - Se, nos termos do requerimento inicial de uma providência cautelar instaurada por um particular contra um Município, a causa de pedir respeita a factos relativos a interesses privados, com aplicação de um regime substantivo civil --- uma ação possessória ou uma ação real --- que o A. se propõe instaurar contra o requerido Município, em que este nem sequer atua, ao menos direta e nuclearmente, na realização de um interesse público legalmente definido, é competente para dela conhecer o tribunal comum e não os tribunais administrativos.
III - A providência cautelar deve ser proposta no tribunal que seja competente, em razão da matéria, para julgar a causa principal de que aquela é dependência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 977/19.2T8VCD.P1 (apelação)
Comarca do Porto – Juízo Local Cível de Vila do Conde – J 2

Relator: Filipe Caroço
Adjuntos: Desemb. Judite Pires
Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B…, NIF ………, residente na Rua …, .., .º Centro, Fração N, ….-… …, Póvoa de Varzim, instaurou procedimento cautelar não especificado contra CÂMARA MUNICIPAL C…, NIPC ………, com sede na …, ….-… Vila do Conde, alegando essencialmente que, declarada a falência da sociedade D…, Lda., nela o Requerente adquiriu o direito à exploração de um edifício, instalações anexas e equipamentos que a falida havia construído e adquirido.
Por dúvidas existentes, o liquidatário judicial encetou diligências no sentido de apurar a titularidade do terreno onde se encontram os bens imóveis e móveis da falida, tendo concluído que aquelas edificações e outros bens se encontravam implantadas num terreno rústico pertencente à Requerida, sendo que, à data da falência, tais instalações e equipamentos encontravam-se a ser utilizadas pela associação sem fins lucrativos E…, com base num contrato de arrendamento pelo qual a falida cedera a sua utilização e fruição pelo prazo de 20 anos mediante o pagamento de renda mensal.
Ainda no decorrer do processo de falência, a massa falida e a E… acordaram na cessação do contrato de arrendamento celebrado entre ambas, tendo sido posteriormente tais bens colocados à venda livres de ónus e encargos.
Tendo sido publicitada a venda do direito à exploração do referido edifício, instalações anexas e bens móveis, na modalidade de proposta em carta fechada, a Requerente apresentou proposta de aquisição daquele direito a 15.11.2010, que mereceu a concordância da comissão de credores, pelo que, após depósito do montante referente à adjudicação, em 16.6.2011 foi outorgada a respetiva escritura pública.
Volvidos 8 anos, o Requerente foi surpreendido com uma comunicação da Câmara Municipal C… dando conhecimento que é pretensão do Município construir naquele terreno e que, por via disso, terá o Requerente de proceder à remoção dos bens que aí se encontrem, tendo-lhe concedido, para o efeito, o prazo de 15 dias.
Todos os bens que ali se encontram implantados/integrados são propriedade do Requerente por força da referida aquisição em sede de liquidação no processo de falência, impondo-se uma medida cautelar na iminência da destruição das instalações do Requerente, de modo a que continue a poder dispor dos seus edifícios e instalações, evitando a sua perda, possibilitando o pleno exercício do direito de propriedade que detém sobre os mesmos e impedindo a Requerida de tomar posse do imóvel e de o demolir para a posterior construção.
Terminou assim o seu articulado:
«Nestes termos e nos mais de Direito (…), deve o presente procedimento cautelar ser julgado procedente, sem a audição prévia da requerida, e, em consequência ser a mesma impedida de tomar posse dos bens propriedade do requerente, que se encontram no prédio urbano, descrito na Código do Registo Predial de Vila do Conde sob o n.° 867/….» (sic)
Realizada a citação, o Município C…, depois de suscitar uma questão relativamente à personalidade judiciária passiva, por exceção, invocou a incompetência material e o erro na forma de processo, alegando essencialmente que o justo receio invocado pelo Requerente advém do facto de lhe ter sido ordenado que, no prazo de 15 dias, promovesse a remoção de bens da sua propriedade que pudesse ter naquele terreno, consubstanciando esta ordem um ato administrativo, ou seja, uma decisão que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visa produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta. A impugnação desse ato (a ação principal) só poderá ser efetuada perante a jurisdição administrativa, nos termos do art.º 1º, nº 1 e 4º, nº 1, al. c), do ETAF.[1]
Argumentou no sentido que o oponente deve ser absolvido da instância por incompetência absoluta do tribunal, ao abrigo dos art.ºs 193º, nºs 1 e 2, 278º, nº 1, al. b), 576º, nº 2 e 577º, al.s a) e b), do Código de Processo Civil.
Prosseguiu depois o oponente o seu articulado com defesa por impugnação e terminou assim:
«a) deve absolver-se o Requerido da instância, por incompetência material do Tribunal ou/e por erro na forma de processo (arts. 193-1-2, 278-1/a/b, 576-2 e 577/a/b, CPC);
b) se assim não for entendido, deve absolver-se o mesmo Requerido do pedido.»
Notificada para o efeito, o Requerente pronunciou-se sobre as exceções da falta de capacidade judiciária passiva e da incompetência material. Quanto a esta última --- a que aqui interessa para resolver a questão da apelação ---, defendeu que, atendendo à causa de pedir, tal qual configurada pelo requerente, como compete, claramente se conclui que a jurisdição dos tribunais comuns é materialmente competente para conhecer do presente litígio.
O Requerente reivindica para si a propriedade dos edifícios e instalações em discussão, alegando factos que, na sua ótica, revelam a titularidade do direito de propriedade em seu benefício e lançando mão do presente procedimento a fim de evitar a sua perda e possibilitar o pleno exercício do direito de propriedade que detém sobre os mesmos, requerendo, nomeadamente, que a Requerida cumpra o seu dever de abstenção e não perturbação do seu direito e impedindo-a de, por qualquer forma, tomar posse do imóvel em apreço, demolindo-o para a posterior construção.
Acrescenta que também os pedidos que formula configuram, em bom rigor, pedidos decorrentes do impreterível reconhecimento da titularidade do direito de propriedade do dever geral de abstenção e não perturbação do seu direito.
Concluiu afirmando que não tem aqui aplicação critério disposto no art.º 4 do ETAF e ainda que as exceções deduzidas devem ser julgadas improcedentes.
Por despacho de 5.9.2019, o tribunal considerou a questão da invocada falta de personalidade jurídica do R. uma mera forma incorreta da sua identificação, devendo considerar-se demandado o Município C…, e conheceu da exceção da incompetência, com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Assim, julgo verificada a excepção dilatória de incompetência material, declarando o presente tribunal incompetente em razão da matéria para a apreciação da presente providência e, consequentemente, absolvo da instância o Município C….
(…).»
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Inconformado com esta decisão relativa à competência material do tribunal, dela interpôs recurso o Requerente, com alegações que fez culminar com as seguintes CONCLUSÕES:
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Defendeu, assim, a revogação da decisão e a sua substituição por outra que declare o Tribunal recorrido materialmente competente para conhecer do pedido.

O Município C… apresentou contra-alegações onde defendeu que a apelação não merece provimento.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II.
O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, sendo que se apreciam apenas as questões invocadas e relacionadas com o conteúdo do ato recorrido e não sobre matéria nova, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil[2]).

Com efeito, está para apreciar e decidir se o Juízo Cível de Vila do Conde, integrante do Tribunal da Comarca do Porto, um tribunal comum, proferiu decisão correta ao declarar-se incompetente em razão da matéria para a apreciação da providência cautelar, por considerar competentes para o efeito os Tribunais Administrativos, absolvendo o Requerido da instância.
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Os factos relevantes são de índole processual e constam do relatório que antecede.
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III.
A competência é um pressuposto processual relativo ao tribunal (medida de jurisdição atribuída a cada tribunal). Fixa-se no momento da instauração da causa, sendo irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei (art.º 38º da Lei da Organização do Sistema Judiciário[3]. A mesma regra existe relativamente à fixação a competência nos Tribunais Administrativos e Fiscais (art.º 5º, nº 1, do ETAF).
Cabe às leis de orgânica judiciária definir a divisão jurisdicional do território português e estabelecer as linhas gerais da organização e da competência dos tribunais do Estado, em conformidade com os art.ºs 209º e seg.s da Constituição da República.
As leis de processo surgem, neste tema, como complemento da LOSJ. Segundo o art.º 60º, nº 1, «a competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições deste Código» e o nº 2 acrescenta que «na ordem interna, a jurisdição reparte-se pelos diferentes tribunais segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território» (cf. ainda art.º 37º, nº 1, da LOSJ).
O art.º 64º, em sintonia com o art.º 40º, nº 1, da LOSJ, determina que «são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (competência residual ou o chamando princípio do residual).
Está em causa a competência (absoluta) em razão da matéria para conhecer de uma questão determinada.
Os Tribunais Administrativos e Fiscais pertencem a ordem diversa dos Tribunais Judiciais, são de categoria diferente, competindo-lhes, na expressão da Constituição da República, julgar as ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (cf. respetivos art.º 209º, nº 1, al. b), e 212º, nº 3, da Constituição da República).
Vem sendo entendido na jurisprudência que, para a determinação do tribunal competente em razão da matéria para o julgamento de uma ação --- e à semelhança da verificação dos demais pressupostos processuais --- deve atender-se à causa de pedir que lhe está subjacente e ao pedido nela formulado, seja quanto aos seus elementos objetivos, seja quanto aos elementos subjetivos: os elementos identificadores da causa (pedido fundado na causa de pedir), tal como o autor a configura[4].
Manuel de Andrade[5], citando Redenti, ensina que a competência do tribunal se afere pelo quid disputatum (quid decidendiun, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum); é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se afere em função do pedido do autor.
A causa de pedir “é o facto concreto de que emerge o direito que o autor se propõe declarar”.[6] Assim, a causa de pedir é o conjunto de factos concretos, a invocar pelo autor, que, subsumidos a normas de direito substantivo, devem ser aptos à produção do efeito que pretende fazer valer.
Havendo que ponderar uma questão de (in)competência em razão da matéria, não entre tribunais judiciais, mas tribunais de ordens jurisdicionais diferentes (tribunal comum/tribunal administrativo), maior é o grau de análise do fundamento que subjaz à ação.
Segundo Vital Moreira e Gomes Canotilho[7], “a competência dos tribunais administrativos e fiscais deixou de ser especial ou excepcional face aos tribunais judiciais, tradicionalmente considerados como tribunais ordinários ou comuns; aqueles são agora os tribunais ordinários da justiça administrativa”.
Definindo o âmbito da jurisdição dos Tribunais Administrativos e Fiscais --- na sequência do respetivo art.º 1º que os identifica como “os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais, nos termos compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto” --- o art.º 4º, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais[8] determina, na parte que aqui mais pode relevar, que «compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objeto questões relativas a:
(…)
c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
(…)».
No essencial, são as relações jurídicas de índole administrativa que determinam a competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais de acordo com as disposições conjugadas do art.º 212º, nº 3, da Constituição da República e dos art.ºs 1º, nº 1, e 4º do ETAF.
Os tribunais judiciais gozam de competência genérica, ou mais apropriadamente, residual, enquanto os tribunais administrativos têm competência limitada aos litígios emergentes de relações jurídicas administrativas, conforme dispõe o artigo 1°, n.° 1, do ETAF, concretizadas no seu artigo 4°. Estão excluídos desta jurisdição os litígios que, apesar de respeitarem a pessoas de direito público, não tenham na sua génese uma relação jurídica administrativa ou fiscal.
O acórdão proferido pelo Tribunal de Conflitos de 14.7.2009[9] refere:
O critério material de distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa – conjunto de relações onde a Administração é, típica e nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público como referido no acórdão deste tribunal no processo nº 26/08, de 21/04/2009 (citando Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, 9ª ed., 103). E a relação jurídica administrativa pode, de um modo geral configurar-se como a definida pela seguinte ordem de critérios:
- a que se estabelece entre duas pessoas colectivas públicas ou entre dois órgãos administrativos, desde que entre ela não haja indícios da sua pertinência ao direito privado;
- aquela em que um dos sujeitos, pelo menos (seja ele público ou privado) actua no exercício de um poder de autoridade, com vista à realização de um interesse público legalmente definido (v Ac. do TC nº 794/96 de 29 de Maio)
- aquela em que este sujeito actua no cumprimento de deveres administrativos de autoridade pública, impostos por motivos de interesse público (v. Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 2002, p. 137) (cfr. Cod. de Processo nos Tribunais Administrativos, Vol I, e ETAF Anotado de Manuel Esteves de Oliveira e outro, pp 25/26)”.
Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 21.1.2010[10], o anterior Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (aprovado pelo Decreto-Lei nº 129/84 de 27 de abril) dispunha, expressamente, no seu art.º 4º que estavam excluídas da jurisdição administrativa e fiscal as ações que tivessem por objeto questões de direito privado, ainda que qualquer das partes fosse pessoa de direito público.
Essa disposição foi posteriormente eliminada no ETAF, tal como foi eliminada a referência aos atos de gestão pública que, no art.º 51º, nº 1, al. h), do anterior ETAF, determinavam a competência dos tribunais administrativos no que toca a ações sobre responsabilidade civil do Estado, dos demais entes públicos e dos titulares dos seus órgãos e agentes por prejuízos decorrentes de atos pelos mesmos praticados.
Isso não significa, porém, que a competência dos tribunais administrativos e fiscais tenha passado a abranger toda e qualquer ação em que sejam partes pessoas de direito público, ainda que as questões abrangidas no litígio sejam questões de direito privado. De facto, ainda que essas questões não tenham sido expressamente excluídas da jurisdição administrativa no ETAF, o certo é que, tal como se referiu e como decorre da Constituição e do art.º 1º do ETAF, apenas são da competência dos tribunais administrativos e fiscais os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais e, por conseguinte, estão excluídos dessa jurisdição os litígios que, apesar de respeitarem a pessoas de direito público, não tenham na sua génese uma relação jurídica administrativa ou fiscal.
Por outro lado, os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira[11] referem a respeito de tais relações que “esta qualificação transporta duas dimensões caracterizadoras:
1- As acções e recursos que incidem sobre relações jurídicas em que, pelo menos, um dos sujeitos é titular, funcionário ou agente de um órgão de poder público (especialmente) da administração;
2- As relações controvertidas são reguladas sob o ponto de vista material, pelo direito administrativo ou fiscal. Em termos negativos, isto significa que não estão aqui em causa litígios de natureza privada ou jurídico civil. Em termos positivos, um litígio emergente da relações jurídico administrativas e fiscais será uma controvérsia sobre relações jurídicas disciplinadas por normas de direito administrativo e/ou fiscal”. No acórdão do STA de 3-11-04 (in www.dgsi.pt.jsta.nsf), invocando-se o Prof. Freitas do Amaral (Lições de Direito Administrativo, edição 1989, Vol. III, págs. 439, 440) definiu-se a relação jurídica administrativa como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.
J. C. Vieira de Andrade, citado no acórdão do Tribunal de Conflitos de 8.3.2017[12], refere que, à falta de uma definição legal do que se deve entender por “relação jurídica administrativa”, deve partir-se do entendimento do conceito constitucional de “relação jurídica de direito administrativo”, com exclusão, nomeadamente, das relações de direito privado em que intervém a Administração.
A relação jurídica administrativa, na sua definição, é aquela em que “um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, atuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.[13] Trata-se, como diz, de uma definição substancial, que se refere apenas ao âmbito nuclear ou do princípio da jurisdição administrativa, mas que não exclui, antes aceita, que por parte do legislador, justificadamente, sejam estabelecidos conceitos que impliquem a diminuição, por subtração, ou que determinem a ampliação, por atribuição, do âmbito da jurisdição administrativa.
Por sua vez, a utilização de um critério material de delimitação da relação jurídica administrativa pressupõe a existência de “(u)m conjunto de relações onde a Administração é, tipicamente ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público”.[14]
A questão da competência ou da incompetência do tribunal em razão da matéria para conhecer de determinado litígio é, naturalmente, independente do mérito ou demérito da pretensão deduzida na ação.
Retomando o caso concreto, observa-se que o Requerente apresenta uma causa de pedir própria do direito substantivo privado e civil para, com base nela, concluir com um pedido cautelar de impedimento do Requerido de tomar posse de determinados bens de que aquele se considera proprietário. No essencial, pretende que seja mantida a sua posse sobre esses bens que o Município C… se prepara para lhe retirar, enquanto não o convencer do seu direito de propriedade e da legitimidade daquela detenção por via da ação principal que se propõe instaurar.
Os termos do requerimento inicial não colocam sequer o Município C… a agir com autoridade pública e no cumprimento da função administrativa, mas como mero proprietário de um terreno rústico, despido de ius imperii e mesmo da intenção de gerir uma coisa pública[15] com a finalidade de realizar um fim específico da autarquia, que o pretende ocupar por lhe pertencer.
O critério dessa distinção é, agora, material e assenta, nomeadamente, nos conceitos de “relação jurídica administrativa” e de “função administrativa” que, de resto, não foi sequer referida no requerimento inicial. Ali apenas se aponta para a violação, pelo Município, dos direitos que se constituíram sobre a superfície do terreno, designadamente o direito do Requerente à exploração do edifício, instalações anexas e bens móveis ali construídos e instalados pela D…, Lda. e, supostamente, pertencentes à massa falida, não integrantes do património do Requerido.
Simultaneamente e de forma, ao menos aparentemente, incongruente com o alegado direito à (mera) exploração dos bens, o Requerente alegou (como observámos) que todos os bens que se encontram implantados/integrados no terreno são sua propriedade por os ter adquirido em sede de liquidação do processo de falência, pretendendo acautelá-lo da destruição das instalações a que o Requerido se propõe, para nele efetuar (outra) construção.
Seja como for, o Requerido coloca-se a si próprio e ao Município na discussão de interesses puramente privados, quer pela natureza dos seus alegados direitos (do Requerente), quer pela índole da ação do Requerido que não aparenta gestão pública, mas apenas a intenção utilizar um bem (o terreno) como proprietário, mas como se sobre ele não existisse qualquer restrição ou oneração, havendo, porém, na sua perspetiva, uma afetação ao interesse do Requerente digna de proteção legal que justifica a defesa provisória da sua posse por via do procedimento cautelar instaurado enquanto uma ação com o mesmo fundamento de direito privado (o direito acautelado) não for proposta e não estiver definitivamente decidida, sem prejuízo da sua caducidade (art.ºs 364º, nº 1 e 373º).
Dados os fundamentos da providência, as suas questões, e o seu pedido, nada naqueles termos está sujeito à aplicação de qualquer regime de direito público que regule substantivamente aquela matéria e seja decisivo par a sua apreciação e decisão de mérito. Não se materializa ali qualquer relação de natureza jurídico-administrativa.
Tudo indica que a ação a propor pelo Requerente será real ou possessória.
Como tem decidido o Tribunal de Conflitos, a providência cautelar tem de ser proposta no tribunal que seja competente, em razão da matéria, para julgar a causa principal de que aquela é dependência.[16]
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SUMÁRIO[17] (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação do Porto em julgar a apelação procedente e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, devendo a instância prosseguir no Tribunal Comum, ou seja, na Comarca do Porto, no Juízo Local Cível de Vila do Conde, por ser o tribunal absolutamente competente, em razão a matéria.
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Custas da apelação pelo recorrido, por nela ter decaído.
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Porto, 23 de janeiro de 2020
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovados pela Lei n.º 13/2002, objeto de diversas alterações, republicado em anexo ao Decreto-lei n.º 214-G/2015, de 02 de outubro e com última alteração dada pela Lei nº 118/2019, de 17 de setembro.
[2] Diploma a que pertencem todas as disposições legais que se citarem sem menção de origem.
[3] Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, com sucessivas alterações, adiante designada por LOSJ.
[4] Cf. acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 18.3.2004, proc. 04B873 e de 13.5.2004, proc. 04A1213, de 10.4.2008, proc. 08B845 e de 6.11.2008, proc. 08B3356, in www.dgsi.pt; acórdãos do Tribunal de Conflitos de 9.11.2010, proc. 017/10 e de 22.9.2011, proc. 030/10, publicado na mesma base de dados, e acórdão da Relação do de 07.11.2000, Colectânea de Jurisprudência, Tomo VI, pág. 184.
[5] Noções Elementares de Processo Civil, vol. I, pág. 88.
[6] Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2°, pág. 375.
[7] Constituição da República Portuguesa, anotada”, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 814, em anotação ao art.º 214º, atual art.º 212º.
[8] Adiante, ETAF, tendo sido a mais recente alteração introduzida pela Lei nº 114/2019, de 12 de setembro.
[9] Proc. 08/09, in www.dgsi.pt.
[10] Proc. nº 2861/09.9TJVNF.P1, in www.dgsi.pt.
[11] Constituição Anotada, 3ª edição, 815.
[12] Proc. 034/16, in www.dgsi.pt.
[13] A Justiça Administrativa, Lições, 2016, 15ª edição, Almedina, página 51.
[14] Ob.cit., pág.s 51 e 52.
[15] Atividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflete o poder de soberania próprio da pessoa coletiva pública e em cujo regime jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, característico do direito público. Nem todos os atos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii ou refletem diretamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas coletivas. Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a atividade do Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente (A. Varela, RLJ, 124º/59).
[16] Acórdão do Tribunal dos Conflitos de 12.2.2012, proc. n.° 018/11, in www.dgsi.pt.
[17] Da exclusiva responsabilidade do relator.