Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
32/17.0T8GDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
MODIFICAÇÃO IRRELEVANTE
DANOS PRÓPRIOS
FURTO
CLAÚSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DEVER DE INFORMAÇÃO
VALOR
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
Nº do Documento: RP2018022132/17.0T8GDM.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTO N.º669, FLS.33-45)
Área Temática: .
Sumário: I - Não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual.
II - O Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL nº 72/2008, de 16.04, prevê expressamente no seu artigo 131º a licitude de cláusula de valor em novo ou valor como novo enquanto forma de determinação da prestação contratual da seguradora, constituindo, assim, uma derrogação autorizada ao princípio indemnizatório que rege em matéria de seguros de danos.
III - A presença num contrato de seguro celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais, de dispositivos que não tenham sido devidamente comunicados ou informados, não correspondendo, pois, ao consenso real das partes, implica que a respetiva cláusula se deva ter como inexistente e como tal excluída do respetivo contrato.
IV - Quando a cláusula é excluída, o contrato singular, por via de regra, manter-se-á, havendo no preenchimento da lacuna negocial daí resultante que recorrer às regras supletivas, se houver normas supletivas aplicáveis; se as não houver, haverá que se integrar o contrato atendendo à vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso (vontade conjetural ou hipotética), ou, em última análise, recorrer aos ditames da boa-fé, quando outra seja a solução por eles imposta.
V - Se, em contrato de seguro de danos próprios, não foi convencionada a cobertura do dano da privação do uso do veículo seguro, também não poderá pretender-se indemnização desse dano como decorrência do atraso do devedor/segurador no pagamento da prestação convencionada a seu cargo em caso de sinistro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 32/17.0T8GDM.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Gondomar - Juízo Local Cível, Juiz 3
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2ª Adjunta Desª. Maria de Fátima Andrade
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
B… intentou a presente ação declarativa com processo comum contra C…, SA., alegando, para tanto, ter celebrado com esta, em 9 de setembro de 2012, contrato de seguro nas modalidades de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel pelos danos causados a terceiros e de seguro facultativo por danos próprios, com as coberturas, entre outras, de furto ou roubo, respeitantes ao seu veículo automóvel com a matrícula .. – NE - ...
Acrescenta que, em 30 de agosto de 2016, o seu veículo veio a ser furtado, tendo, de imediato, dado conhecimento desse facto à ré, a qual, no entanto, não procedeu até à data ao pagamento do montante estipulado no contrato de seguro.
Conclui pedindo a condenação da ré no pagamento das seguintes quantias:
a) €32.219,50, relativa ao valor da viatura, consignado aquando da celebração do contrato de seguro, acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos até efetivo pagamento;
b) €1.680,00, a título de indemnização pela privação do uso da viatura;
c) €10.000,00, a título de danos não patrimoniais sofridos.
Impetra ainda que seja decretada a ineficácia das cláusulas de desvalorização eventualmente aplicáveis ao contrato de seguro automóvel que celebrou com a ré, em resultado de esta não ter cumprido o dever de informação relativamente às mesmas.
A ré contestou admitindo a celebração do contrato de seguro, mas com o conteúdo correspondente às cláusulas nele apostas, acrescentando que todas elas foram comunicadas ao autor.
Acrescentou ainda não assistir ao autor direito a qualquer indemnização pelo dano de privação em virtude de não ter sido contratada essa cobertura, concluindo pela improcedência da ação em tudo quanto exceda o pagamento de €17.339,50.
Foi proferido despacho saneador em termos tabelares; definiu-se o objeto do litígio e fixaram-se os temas da prova.
Realizou-se audiência final, vindo a ser proferida sentença que, julgando a ação parcialmente procedente, decidiu:
a) condenar a ré no pagamento da quantia de €17.339,50;
b) considerar excluída do contrato de seguro celebrado a condição 7, alínea b) por não cumprimento do dever de informação;
c) absolver a ré do demais peticionado.
Não se conformando com o assim decidido, veio o autor interpor o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES:
I. Vem o presente recurso interposto da sentença dos autos em referência e é o mesmo apresentado na firme convicção de que a prova produzida, a matéria de facto e a matéria de Direito sujeitas à apreciação do douto Tribunal a quo mereciam outra apreciação.
II. O presente recurso tem por objecto a totalidade da sentença que absolveu, em parte, a Recorrida do pagamento de uma indemnização ao Recorrente.
Matéria de facto
III. O Recorrente impugna a forma como foi decidida a matéria de facto.
IV. O Recorrente considera incorretamente julgados os factos na sentença sob a alínea D’.
V. Os meios de prova que impõem decisão diversa da recorrida são os Documentos 2 a 4 da Petição Inicial.
VI. À luz do disposto nos artigos 483.º, n.º 1, 562º e 563°, do Código Civil a douta sentença do Tribunal recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção integralmente procedente, condenando a Recorrida no pedido. Sem prescindir,
Matéria de Direito
VII. Na eventualidade – que por mera cautela de patrocínio se equaciona – de não se julgar procedente a impugnação da decisão da matéria de facto, o Tribunal a quo, deveria em face da factualidade por si julgada provada, ter proferido decisão distinta quanto à matéria de Direito.
VIII. O tribunal a quo, decidiu pela exclusão da alínea b) da cláusula especial 07, porquanto não foram cumpridos os deveres de informação exigidos pelo regime das cláusulas contratuais gerais.
IX. Porém, apesar de considerar tal cláusula excluída do contrato de seguro, não se coibiu de decidir pela condenação da Recorrida no exato valor que esta se prontificou a liquidar ao Recorrente, mediante a aplicação da referida cláusula no cálculo do valor indemnizatório.
X. Ou seja, a decisão do tribunal a quo, apesar de reconhecer o mérito do pedido do Recorrente, quanto ao pedido de exclusão da referida cláusula, não determinou qualquer efeito jurídico em consequência de tal exclusão.
XI. Decidindo da forma como decidiu, o tribunal a quo, está a beneficiar o infrator.
XII. Eliminada, como foi a referida alínea b), deveria o tribunal a quo, ter recorrido às balizas interpretativas do texto das demais cláusulas, à finalidade do contrato de seguro em causa e às expectativas do segurado dentro do âmbito do risco em causa e que seria de esperar por parte do segurado e sobre o qual terá incidido a sua decisão de contratar.
XIII. Deveria ter atendido, o tribunal recorrido, à posição do destinatário normal, que celebrou um seguro automóvel, com uma cobertura adicional de danos próprios, que contemplava o pagamento do valor, em caso de perda total, até os dois anos de antiguidade, desse veículo em novo.
XIV. Sem que lhe fosse comunicado e informado que, entre os dois e os quatro anos de antiguidade da viatura segura, o valor indemnizatório em caso de furto/roubo, sofreria uma desvalorização automática de 1%/mês desde a data de 1.ª matrícula até à data do sinistro.
XV. Estaria legitimamente criada a expectativa jurídica na pessoa do destinatário normal, que o seguro contratado, contemplaria, durante o período de quatro anos, desde a data da 1ª matrícula, o pagamento do valor, em caso de perda total, desse veículo em novo.
XVI. O tribunal a quo, não atentou, conforme demonstrado em audiência de julgamento, às inexplicáveis diferenças entre os coeficientes de desvalorização contemplados nas condições do Grupo 3 e as existentes na Condição Especial 07.
XVII. Porquanto ficou demonstrado que, na prática, a aplicação dos coeficientes do Grupo 3, que, segundo a Recorrida, proporcionaria ao segurado uma indemnização inferior àquela obtida pela aplicação da Condição Especial 07, veio a revelar-se, pelos próprios documentos juntos pela Recorrida, comportar um coeficiente de desvalorização bastante inferior ao da Condição Especial 07.
XVIII. O tribunal a quo, fez uma incorreta interpretação e aplicação do Princípio do Indemnizatório no caso em apreço.
XIX. O Recorrente contratou o seguro aqui em apreço, com uma cláusula do veículo em novo, pelo que, não pode agora o Recorrente, numa altura de infortúnio, ver a sua legítima espectativa ser posta em causa tanto pela Recorrida, como pelo próprio tribunal a quo.
XX. Porquanto, o denominado seguro de valor em novo corresponde à derrogação do princípio segundo o qual a indemnização será medida pelo valor do bem à data do sinistro (art. 439.º, 1 do C. Comercial).
XXI. Assim deveria, o tribunal a quo, ter condenado a Recorrida ao pagamento da quantia de €32.219,50 (trinta e dois mil, duzentos e dezanove euros e cinquenta cêntimos) ao Recorrente, conforme peticionado nos presentes autos.
XXII. O tribunal a quo, andou igualmente mal, ao determinar a falta de fundamentação legal para o pedido de indemnização pela privação do uso realizada pelo Recorrente.
XXIII. Este dano é exigível e deveria ter sido tido em consideração pelo tribunal a quo, porque foram dados como provados os prejuízos que o Autor sofreu, pela privação da sua viatura.
XXIV. Pelo que, no que ao dano da privação do uso, deveria o tribunal a quo, ter condenado a Recorrida ao pagamento da quantia de €1.680,00 (mil seiscentos e oitenta euros), acrescida do montante diária peticionado até transito em julgado da sentença.
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Notificada a ré apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil[1].
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pelo apelante, são as seguintes as questões solvendas:
determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto;
decidir se, por força do contrato de seguro que celebrou com a ré, assiste ao autor direito ao valor em novo do seu veículo automóvel em resultado do furto de que foi alvo;
saber se o autor terá direito a indemnização pela privação do uso do seu veículo.
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III - FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
A) O autor adquiriu em 07-09-2012 uma viatura de marca Renault, modelo …, com matrícula .. – NE - .., em estado novo.
B) Aquando da aquisição da referida viatura decidiu contratar um seguro automóvel na C… - Companhia de Seguros SA.
C) Para tal, deslocou-se a um mediador da ré, D… (Agente Principal C… Seguros) com sede na Rua …, n.º …, …. - …, Gondomar.
D) Entre o autor, como segurado, e a ré, como seguradora, foi celebrado o contrato de seguro do ramo responsabilidade civil automóvel, titulado pela apólice nº ……….., designado de C… + Auto, com a cobertura adicional de «danos próprios», nela incluída, como condição especial 06, a de «furto ou roubo».
E) Tal contrato de seguro, tem como «Coberturas e Garantias» não só as gerais da apólice, mas também as que figuram no elenco das «Condições Particulares» relativas a essa modalidade de seguro automóvel.
F) E das quais, decorrem, entre outras: «Garantias» e «Capitais»: Furto ou Roubo €32.219,50.
G) O autor sempre liquidou os prémios de seguros respetivos.
H) No dia 30 de Agosto de 2016, enquanto o autor se encontrava em Vila Nova de Gaia, a sua viatura, aqui segurada foi alvo de um furto, não tendo até à presente data, sido recuperada.
I) Perante o desaparecimento da sua viatura, o autor imediatamente comunicou o furto à PSP.
J) Assim, como o participou à sua companhia de seguros, aqui ré.
L) Decorridos 60 dias, sem que a viatura tivesse aparecido, o autor contactou com o seu mandatário, para que interpelasse a ré, para pagamento da quantia de €32.219,50, valor do capital seguro da viatura, o que ocorreu em 07/11/2016.
M) A ré respondeu, no sentido de assumir o furto, como cobertura pela apólice de seguro contratada.
N) Veio a ré, nessa mesma resposta, informar o autor que apenas iria liquidar a quantia de €17.339,50, porquanto ao contrato de seguro automóvel celebrado entre autor e ré, lhe eram aplicáveis condições especiais relativas a “Extensão Danos Próprios Valor em Novo”.
O) Aquando do envio, por parte da ré, das comunicações de renovação do contrato de seguro automóvel, de 23-07-2013, 28-07-2014, 2-09-2015 e 7-09-2015, vinha referido que: «O valor seguro do veículo e o regime de indemnização em caso de Perda Total mantêm-se inalterados, em conformidade com a Cláusula Especial especificamente contratada».
P) As referidas comunicações, foram remetidas com um quadro que contemplava os prémios, capitais seguros e respetivos valores, constando capital seguro do veículo de €31.000,00 acrescido do capital seguro dos extras no montante de €1.219,50.
Q) Consta do escrito, com a epígrafe «condições particulares», cobertura especial 07, «extensão danos próprios», a qual na respetiva cláusula 2ª previa o seguinte:
“1. O Segurador, quando contratada a presente Condição Especial, e em caso de perda total do veículo seguro, decorrente de sinistro coberto pelas Condições Especiais de “Danos Acidentais Sofridos pelo Veículo”, “Incêndio, Raio ou Explosão” e “Furto ou Roubo”, pelas quais se encontre abrangido, garante o pagamento, consoante o caso, de uma indemnização calculada em função dos seguintes critérios:
a) Veículos até dois anos de antiguidade
Valor em novo do veículo seguro, determinado em obediência à definição constante na presente Condição Especial;
b) Veículos com a antiguidade compreendida entre dois e quatro anos
Valor de catálogo do veículo seguro, deduzido de 1% desse valor por cada mês decorrido desde a data de registo da 1ª matrícula, inscrita no livrete, até à data do sinistro.
(…)
4. Esta condição especial é contratada em complemento das Condições Especiais “Danos Acidentais Sofridos pelo Veículo”, “Incêndio, Raio ou Explosão” e “Furto ou Roubo”, e cessará, automaticamente, quando alguma destas cessar”.
R) Naquelas «condições gerais e especiais» consta como anexo B, uma tabela de desvalorização com 6 grupos diferentes.
S) Com data de 23.07.2013, e para vigorar a partir de 07.09.2013, a ré enviou ao autor a carta de renovação da apólice que este recebeu e junta com a petição.
T) Nela o capital seguro foi previsto em €31.000.
U) Conforme a tabela de desvalorização, acima referida, aplicada, do grupo 3.
V) O capital pelos extras foi fixado em €1.219,50.
X) E o prémio seguro pelos danos próprios foi fixado em €373,17.
Z) Com data de 02.09.2015, e para vigorar a partir de 07.09.2015, a ré enviou ao autor a carta de renovação da apólice, que este recebeu, que se mostra junta como doc. nº 2, e aqui se dá por reproduzida.
A)’ Nela o capital seguro foi previsto em €31.000.
B)’ Conforme a tabela de desvalorização, acima referida, aplicada, do grupo 3.
C)’ O capital pelos extras foi fixado em €1.219,50.
D)’ E o prémio seguro pelos danos próprios foi fixado em € 260,46.
E)’ O qual foi pago pelo autor.
F)’ A ré enviou ao autor a carta, por comunicação eletrónica, de 08.11.2016: «Para a cobertura contratada e estando perante a perda total do veículo o cálculo da indemnização é efetuado com base no número de meses do veículo à data da ocorrência, 1% ao mês, para o sinistro em assunto estamos com uma desvalorização de 48%, matrícula de 9/12 e sinistro em 8/16, conforme documento em anexo. Assim e tendo por base o capital de Danos Próprios de Eur.: 31.000,00, menos 48%, o capital a indemnizar é de Eur.: 16.120,00 ao qual acresce os extras do veículo que não sofrem desvalorização no valor de Eur.: 1.219,50.
Pelo acima exposto encontra-se à disposição do nosso comum cliente o valor de Eur.: 17.339,50, mediante a entrega da documentação já anteriormente solicitada».
G)’ O autor recusou-se, porém, a receber a quantia ali oferecida.
H)’ O valor do veículo seguro naquela data não excedia os €17.339,50.
I)’ O autor viu-se privado da sua viatura, pelo furto de que foi alvo.
J)’ O autor trabalha como vigilante noturno.
L)’ Reside em Gondomar.
M)’ Tal atividade é prestada durante as noites, com horário de entrada às 00:00 e saída por volta das 5:00 de quinta e domingo.
N)’ Ao ver-se privado da sua viatura, teve que recorrer a “boleia” de amigos e utilização de transportes públicos.
O)’ Por sua vez, o autor tem um filho que reside com a sua mãe, e pelo facto de não dispor da sua viatura ora furtada, tem que, novamente recorrer a boleias de amigos para ir buscar o seu filho.
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O Tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos:
1.º- Aí, junto dos colaboradores, foram-lhe apresentadas várias propostas de seguros automóveis, sendo que, lhe foi referido, que a viatura adquirida pelo autor, era uma viatura “alvo” de frequentes furtos na zona norte do país (artigo 4.º da petição inicial).
2.º- Ao que, aqueles o aconselharam vivamente a contratar um seguro automóvel, com cobertura de responsabilidade civil acrescida de danos próprios, onde se incluíam, entre outras, a cobertura por furto ou roubo (artigo 5.º da petição inicial).
3.º- Foi o autor informado que a ré, possuía uma modalidade do referido seguro que, permitiria assegurar um valor indemnizatório, em caso de perda total e/ou furto ou roubo, do valor da viatura inicialmente delimitado, durante um período de 4 anos (artigo 6.º da petição inicial).
4.º- Tal opção foi a contratada pelo autor, tendo em vista a segurança que lhe era oferecida que, durante os primeiros 4 anos do contrato de seguro, em caso de perda total, ou furto/roubo da sua viatura, ver-se-ia ressarcido, do valor segurado daquela, que no caso aqui em apreço, se fixou em €32.219,50 (artigo 9.º da petição inicial).
5.º- Antes de celebrar o contrato foram comunicadas e entregues, para além do mais por escrito, ao autor as condições gerais e especiais da apólice de seguro (artigo 8.º da contestação).
6.º- Aquele ao assumir, que tinha contratado um seguro automóvel, que lhe permitiria adquirir uma viatura nova semelhante à que segurou, em caso de perda total/furto/roubo, aquando do sinistro encetou diligências para que pudesse adquirir uma nova viatura par fazer face às suas necessidades de deslocação (artigo 71.º da petição inicial).
7.º- Quando confrontado com o valor indemnizatório proposto pela ré €17.339,50, percebeu que, com tal quantia não lhe seria possível adquirir uma nova viatura igual à que tinha segurado e pago os prémios de seguro respetivos (artigo 72.º da petição inicial).
8.º- Os seus locais de trabalho são na zona de … e … em Vila Nova de Gaia (artigo 74.º da petição inicial).
9.º- Tendo ficando confinado na sua habitação com o menor ou dando breves passeios pela zona onde reside (artigo 78.º da petição inicial).
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO
IV.1 – Erro na apreciação e valoração da prova
No presente recurso o apelante visa, desde logo, a reapreciação da matéria de facto relativamente à materialidade vertida na alínea D´ dos factos provados, que entende ter sido incorretamente julgada.
Na referida alínea considerou-se provado que “[o] prémio seguro pelos danos próprios foi fixado em €260,46”[2].
Preconiza o recorrente que deve antes considerar-se provado que o valor do seguro foi fixado em €437,88.
Questão que imediatamente se coloca é a de saber qual o efetivo relevo dessa impugnação para a decisão do presente pleito.
Como é consabido, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, visa, em primeira linha, alterar o sentido decisório sobre determinada materialidade que se considera incorretamente julgada. Mas este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal recorrido considerou provada ou não provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que, afinal, existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu. O seu efetivo objetivo é, portanto, conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante.
Se, por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer - conforme vem sendo recorrentemente entendido[3] -, que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente.
Alinhando por igual visão das coisas, entendemos que da preconizada alteração não se extrai qualquer consequência jurídica com reflexo na decisão das concretas questões que delimitam objetivamente o âmbito do presente recurso.
Com efeito, a essencial questão que se discute traduz-se em dilucidar se, à luz do contrato de seguro firmado entre as partes, o autor possui título (entendida a expressão no seu sentido civilístico, isto é, enquanto fundamento ou causa da titularidade de determinado direito) que legitime o pedido que formula de condenação da ré no pagamento do valor em novo do veículo seguro e do dano da privação do seu uso em consequência da verificação de um dos riscos contratualmente ajustados, não se vislumbrando (nem o apelante o concretiza) em que medida a pretendida modificação factual possa relevar na decisão dessa questão.
Consequentemente, não há, pois, que apreciar o referido segmento impugnatório, porquanto o seu conhecimento se revela desnecessário para o assinalado efeito.
Improcedem, pois, as conclusões III a VI.
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IV.2 – Da reclamada atribuição do valor em novo do veículo seguro em consequência da verificação de um dos riscos contratualmente ajustados
Como emerge do quadro factual apurado, autor e ré celebraram, em 9 de setembro de 2012, contrato de seguro titulado pela apólice nº ………….., nos termos que constam de fls. 25 a 27 e 77 a 159 dos autos.
Procedendo à exegese do respetivo clausulado, verifica-se que tal contrato de seguro reveste uma natureza mista quanto as suas coberturas de risco: a) de responsabilidade civil automóvel emergente dos riscos da circulação do veículo automóvel com a matrícula .. – NE - .. – seguro obrigatório; b) de coberturas facultativas – seguro facultativo: choque, colisão, capotamento, furto, roubo, etc.
Portanto, esse contrato assume natureza de seguro automóvel de danos próprios (também impropriamente designado por seguro contra todos os riscos, isto porque nenhum contrato de seguro cobre todos os riscos), o qual abrange assim os prejuízos sofridos pelo veículo seguro, ainda que o seu condutor seja responsável pelo evento, incluindo várias coberturas excluídas do âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel regulado pelo DL nº 291/07, de 21.08.
Na aferição do respetivo conteúdo, torna-se mister atender ao objeto do seguro e aos riscos cobertos, sendo que a definição destes resultará de os mesmos serem indicados na apólice composta por condições gerais, especiais e particulares.
Como se referiu - e deflui, aliás, da cláusula 2ª do Capítulo I das condições gerais do ajuizado contrato -, o mesmo destinou-se, primariamente, a cumprir a obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel fixada no art. 4º do DL nº 291/2007, de 21.08, sendo certo que, em conformidade com as respetivas condições particulares, a ré igualmente assumiu, como coberturas facultativas, os riscos aí previstos, contando-se entre eles, no que ao caso releva, o risco de “furto ou roubo” nos termos da condição especial 06, estipulando-se um capital seguro de €32.219,50 (€31.000,00 a título de capital seguro propriamente dito e €1.219,50 referente ao capital pelos extras).
Reza, com efeito, a cláusula 1ª da citada condição especial, que o “segurador (…) garante, dentro dos limites fixados na apólice, os danos sofridos pelo veículo seguro em consequência da subtração ilegítima do veículo seguro, por motivo de roubo, furto ou furto de uso, tentado ou consumado, que se traduzam no desaparecimento, na destruição, na danificação ou deterioração do veículo, na subtração de peças fixas ou indispensáveis à sua utilização e na subtração de acessórios (…)”.
Perante as descritas proposições contratuais, tendo o demandante logrado demonstrar (cfr. pontos H) e L)) que o seu veículo automóvel foi furtado no dia 30 de agosto de 2016 (portanto, durante a vigência do contrato de seguro) estaria verificado o condicionalismo necessário para reclamar da ré seguradora o pagamento do montante estipulado para o caso de ocorrência do sinistro (cfr. arts. 99º e 102º, nº 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo DL nº 78/2008, de 16.04 - doravante LCS).
Ora, o âmbito dessa prestação, além de poder ser limitado ou excluído em certos casos, pode ser fixado por regras contratuais, já que neste domínio impera a autonomia privada (cfr. art. 11º da LCS).
Neste conspecto, as partes convencionaram incluir a cobertura «extensão danos próprios» nos termos definidos na condição especial 07, que na respetiva cláusula 2ª estipula:
“1. O Segurador, quando contratada a presente Condição Especial, e em caso de perda total do veículo seguro, decorrente de sinistro coberto pelas Condições Especiais de “Danos Acidentais Sofridos pelo Veículo”, “Incêndio, Raio ou Explosão” e “Furto ou Roubo”, pelas quais se encontre abrangido, garante o pagamento, consoante o caso, de uma indemnização calculada em função dos seguintes critérios:
a) Veículos até dois anos de antiguidade
Valor em novo do veículo seguro, determinado em obediência à definição constante na presente Condição Especial[4];
b) Veículos com a antiguidade compreendida entre dois e quatro anos
Valor de catálogo do veículo seguro, deduzido de 1% desse valor por cada mês decorrido desde a data de registo da 1ª matrícula, inscrita no livrete, até à data do sinistro”.
A transcrita disposição contratual de determinação da prestação corresponde ao que se vem denominando de cláusula de valor em novo ou valor como novo, nos termos da qual, a seguradora, em caso de sinistro, paga uma quantia correspondente ao valor em novo da coisa segura, sem dedução do valor novo pelo velho.
As vantagens de uma cláusula desse tipo são assinaláveis, nomeadamente, por permitir mitigar a litigância sobre o quantum da prestação da seguradora, convenção essa que, dependendo das circunstâncias, pode ser entendida como presunção de um valor de danos ou como determinação a forfait da quantia a pagar.

A aludida cláusula consubstancia, assim, uma derrogação ao princípio indemnizatório que rege em matéria de seguros de danos (natureza de que comunga o ajuizado contrato) que se mostra consagrado no art. 128º da LCS, o qual deve, pois, ser entendido como supletivo, como, aliás, resulta indelevelmente dos nºs 1 e 2 do art. 131º do mesmo diploma legal onde se prevê a licitude desse tipo de convenção contratual.
Consequentemente, considerando que aquando da ocorrência do sinistro o identificado veículo do autor contava quatro anos de antiguidade, por aplicação da alínea b) da transcrita cláusula 2ª, teria este direito a receber a quantia de €17.339,50 [(€31.000,00 – (€31.000,00 x 48%)) + €1.219,50].
No entanto, o tribunal a quo, convocando o regime das cláusulas contratuais gerais consagrado no DL nº 446/85, de 25.10 (doravante LCCG), considerou excluída do contrato firmado entre as partes essa alínea b), por inobservância por banda da ré seguradora dos deveres de informação e comunicação.
Nessa decorrência, veio a fixar como quantitativo a pagar pela demandada o montante de €17.339,50, por corresponder ao valor de mercado do veículo automóvel na data da ocorrência do sinistro (cfr. alínea H´ dos factos provados).
É exatamente neste ponto que se situa o âmago do objeto do presente recurso, posto que o apelante considera que, na ausência da referida regra contratual, o valor da indemnização deverá ser calculado em consonância com o critério enunciado na alínea a) da citada cláusula 2ª e não nos termos que foram considerados pelo decisor de 1ª instância.
Quid juris?
No caso vertente não é posto em crise que o ajuizado contrato foi celebrado com recurso a cláusulas padronizadas, previamente elaboradas, que o autor enquanto tomador do seguro subscreveu, justificando-se, por isso, atender ao aludido regime das cláusulas contratuais gerais e às respetivas particularidades no domínio dos seguros[5].
De facto, as cláusulas inseridas num contrato de seguro, nomeadamente as que definem o âmbito do dever de indemnizar, em princípio, serão válidas, desde que não infrinjam as normas cogentes estabelecidas na LCCG.
Precisamente por entender que, in casu, não foram observados os deveres de comunicação e informação consagrados nos arts. 5º e 6º da LCCG, o juiz a quo, em conformidade com o disposto no art. 8º, als. a) e b) desse diploma legal, decidiu, no dispositivo do ato decisório sob censura, considerar excluída do contrato a mencionada alínea b) da cláusula 2ª da condição especial 07.
A este propósito a doutrina, na sua quase totalidade, entende que a sanção de “exclusão” cominada nesse art. 8º conduz a que a cláusula se deva considerar inexistente ou não escrita.
Desde logo, SOUSA RIBEIRO[6] sustenta que o não cumprimento da obrigação de informar tem por consequência a exclusão das cláusulas dos contratos singulares, “o que parece corresponder à figura da inexistência, mais do que à da nulidade”.
Fundamenta esse posicionamento, esclarecendo que o art. 4º da LCCG, ao enfatizar que as cláusulas se incluem no contrato pela aceitação, lembra que são necessárias declarações de vontade das partes, para a inclusão das cláusulas no contrato.
No caso dos contratos de adesão, o aderente sofre de um défice de informação, podendo não conhecer muitas das cláusulas do contrato. Assim, a “comunicação do conteúdo, condição da sua cognoscibilidade, torna-se (...) indispensável para que, através da aceitação, as cláusulas contratuais gerais ganhem existência, no quadro de um concreto contrato”[7].
Prossegue, afirmando que a “qualificação contratual das cláusulas contratuais gerais transformar-se-ia numa pura declaração retórica, sem qualquer correspondência real, se o aderente ficasse vinculado a cláusulas que nem sequer tinha tido oportunidade de conhecer”; e que só existindo tal oportunidade, podem as cláusulas contratuais gerais ser reconduzidas à estrutura bilateral do contrato, “ganhando aí eficácia vinculante também imputável (...) à vontade negocial da contraparte”[8].
Em conclusão, este autor considera que, não tendo oportunidade de conhecer as cláusulas, a vontade de aceitá-las, que resulta da declaração negocial do aderente, é meramente formal e não real, pelo que não se deve aceitar tal declaração, tudo se passando, relativamente à cláusula afetada, como se ela não tivesse sido incluída no contrato e, assim, nele fosse inexistente.
No mesmo sentido se pronuncia OLIVEIRA ASCENSÃO[9], considerando que as cláusulas não são sequer inválidas, pois “não chegam a ser conteúdo contratual”, pelo que serão inexistentes.
Também GALVÃO TELLES[10] é da opinião que tais cláusulas se têm por não escritas e que as afeta uma “autêntica inexistência jurídica”. Inexistência é, de igual modo, a expressão utilizada por ARAÚJO BARROS[11], que faz notar que a violação dos deveres em causa é uma situação similar à falta de consciência na declaração, que também é cominada com a inexistência.
Idêntico posicionamento tem sido acolhido na jurisprudência pátria, de que constituem exemplo, inter alia, o acórdão do STJ de 11.04.2000[12], o acórdão da Relação de Lisboa de 18.06.2009[13] e o acórdão desta Relação de 18.04.2005[14].
Na esteira desta visão das coisas, igualmente entendemos que a presença num contrato celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais, de dispositivos que não tenham sido devidamente comunicados ou informados, não correspondendo ao consenso real das partes, implica, pois, que a respetiva disposição contratual se deva ter como inexistente.
Como assim, sendo inexistente a cláusula em causa, a questão que urge solucionar prende-se com as consequências que daí derivam para o ajuizado contrato, mormente no que tange à forma de determinação da prestação da seguradora em resultado do sinistro verificado.
A regra geral é a que consta do art. 292º do Código Civil, que determina que o contrato se mantém em vigor, na parte não afetada pelo vício, exceto quando se mostre que o contrato não teria sido concluído sem a parte viciada. Temos aqui uma manifestação do denominado princípio da conservação dos negócios jurídicos.
No específico domínio da LCCG vigora o disposto no seu art. 9º, no qual também se prevê a manutenção do contrato, defendendo-a até de modo mais intenso do que no regime de redução estabelecido no Código Civil, na medida em que, por princípio, quando a cláusula é excluída, o contrato mantém-se independentemente da vontade do aderente.
Deste modo, o princípio básico será o do maior aproveitamento possível dos contratos singulares, sendo que nas áreas desguarnecidas pela exclusão da disposição contratual viciada, haverá que recorrer, sucessivamente:
- às regras supletivas aplicáveis;
- às regras da integração dos negócios jurídicos.
Caso estas soluções de recurso sejam insuficientes ou conduzam a resultados contrários à boa-fé, então, e só então, o contrato singular será nulo nos termos do nº 2 do citado art. 9º. Dito de outro modo, quando a cláusula é excluída, o contrato singular, por via de regra, manter-se-á, havendo no preenchimento da lacuna negocial daí resultante que recorrer às regras supletivas, se houver normas supletivas aplicáveis; se as não houver, haverá que se integrar o contrato atendendo à vontade que as partes teriam tido se houvessem previsto o ponto omisso (vontade conjetural ou hipotética), ou, em última análise, recorrer aos ditames da boa-fé, quando outra seja a solução por eles imposta.
Portanto, em conformidade com o enunciado regime, havendo norma supletiva que regule a situação lacunar, a mesma só não será aplicável se gerar “um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa-fé”.
Ora, in casu, tal regra supletória mostra-se contemplada no art. 128º da LCS, sendo que, ao invés do entendimento sufragado pelo apelante, não existem nos autos elementos que, de forma consistente (desde logo porque não logrou demonstração a materialidade vertida nos nºs 3 e 4 dos factos não provados, cujo sentido decisório não foi alvo de impugnação em sede recursória), permitam legitimar a pretensão por este aduzida de receber o valor em novo do veículo seguro, não podendo, naturalmente, prevalecer-se de uma disposição contratual (concretamente a al. a) da cláusula 2ª da condição especial 07) que, na economia do contrato, está prevista para uma situação de facto diversa da ocorrida no caso em apreço, posto que tem o seu âmbito de aplicação limitado ao período temporal referente aos dois primeiros anos de antiguidade do veículo seguro.
Por via disso, em conformidade com o disposto no art. 9º da LCCG, considerando-se excluído o referido segmento da citada cláusula, o ajuizado contrato transformar-se-á em seguro de valor real à data do sinistro, por aplicação da regra supletiva constante do art. 128º da LCS, não se vislumbrando que essa solução gere, in concreto, qualquer desequilíbrio gravemente atentatório dos ditames da boa-fé.
Não merece, assim, censura a sentença recorrida que, depois de afirmar não ter ficado provada qualquer situação de sobresseguro, condenou a ré seguradora numa prestação pecuniária correspondente ao valor venal do veículo na data da ocorrência do sinistro.
Improcedem, por conseguinte, as conclusões VII a XXI.
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IV.3- Da indemnização do dano de privação do uso
Uma última questão que é trazida à apreciação deste tribunal de recurso prende-se em saber se, em matéria de seguro de danos, com responsabilidade meramente contratual da seguradora, deve (ou não) ter-se por afastada a indemnização pela privação do uso da coisa segura.
Na sentença recorrida, o tribunal a quo considerou que não seria devida qualquer indemnização a esse título por entender que no contrato de seguro celebrado entre as partes não foi contemplada a cobertura do dano da privação do uso do veículo.
O apelante discorda desse segmento decisório, argumentando que a privação do uso do seu veículo decorre do incumprimento do dever contratualmente assumido pela ré de pagar uma indemnização ocorrendo furto ou roubo do mesmo, integrando-se tal prejuízo na categoria de dano emergente.
Vejamos.
É certo que do substrato factual apurado (cfr. alíneas H´, J´, L´, M´, N´e O´) resulta que o autor, em resultado do furto do seu veículo, viu-se impedido de o usar e fruir, sendo que a ré, malgrado a ocorrência desse sinistro, ainda não lhe entregou qualquer quantia (apesar de, como se provou [alíneas F´e G´], ter colocado à disposição do demandante a importância de €17.339,50 que este, todavia, recusou receber).
Já se deu nota que o ajuizado contrato de seguro assume natureza de seguro de danos (próprios).
Neste tipo de seguro, dada a sua concreta configuração (cfr. art. 130º da LCS), a responsabilidade da seguradora deriva do próprio contrato, encontrando-se esta obrigada, face ao tomador do seguro, nos precisos termos convencionados quanto ao âmbito de cobertura do mesmo, não sendo, nessa medida, devida indemnização por danos que não estejam contratualmente cobertos [15].
Daí que, contrariamente ao entendimento sufragado pelo apelante, a seguradora não assume o dever de reconstituir a situação que existiria se não tivesse ocorrido o sinistro, assumindo tão-somente o dever de entregar ao tomador do seguro uma quantia correspondente ao valor do dano, até ao limite do capital seguro, já que, neste domínio, vigora o princípio indemnizatório (cfr. art. 128º da LCS).
Tal solução é a que resulta hoje expressamente consagrada na LCS que, nos nºs 2 e 3 do seu art. 130º, estabelece que a possibilidade de o segurado obter o ressarcimento de lucros cessantes ou o valor de privação de uso do bem somente ocorrerá caso tenha sido convencionada tal prestação no próprio contrato de seguro.
De facto, como emerge da exegese dos referidos preceitos, o regime supletivo legal é o da não cobertura dos lucros cessantes, regime que vale para o dano da privação de uso do bem seguro, sem prejuízo de as partes no contrato de seguro, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, poderem estipular regime diverso (convenção de cobertura daquele dano da privação do uso).
Tudo dependerá, pois, do teor do contrato de seguro de coisas, por força de lei especial aplicável, que, como tal, não pode ser afastada pela lei geral em matéria obrigacional.
Assim, no silêncio do contrato valerá o regime supletivo legal especial aplicável, afastando a indemnização pela privação do uso da coisa segura, assim como por lucros cessantes, restringindo-se o dano a atender ao valor do interesse seguro ao tempo do sinistro, em decorrência do aludido princípio indemnizatório[16].
Ora, no caso dos autos, na falta de previsão contratual para o dano da privação do uso da coisa segura (teria de haver convenção ex ante quanto ao valor da privação de tal uso), restará, então, aplicar o dito regime supletivo legal especial, afastando a reparação a esse título.
Nesta perspetiva, a privação em que se encontra o apelante reporta-se, vista a natureza do vínculo contratual de seguro, tal como pactuado, apenas à específica prestação convencionada a cargo da ré seguradora (no aludido montante de €17.339,50), que é, inequivocamente, uma obrigação pecuniária (e não uma obrigação de indemnização em sentido próprio), não havendo sequer lugar à condenação no pagamento de quaisquer juros, posto que, como se referiu, esta se prontificou, em devido tempo, a cumprir a sua prestação debitória[17], a qual, no entanto, não foi satisfeita por causa imputável ao próprio demandante que, assim, incorreu em situação de mora creditoris (o que, por conseguinte, releva para os efeitos do disposto no art. 814º, nº 2 do Cód. Civil).
Improcedem, assim, as conclusões XXII a XXIV.
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V - DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante (art. 527º, nºs 1 e 2), sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.

Porto, 21.02.2018
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
Fátima Andrade
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Registando-se que a matéria vertida na mencionada alínea corresponde à materialidade que emerge do documento que se mostra junto a fls. 45 dos autos (apresentado pelo próprio autor) que não foi alvo de qualquer impugnação, tendo o respetivo teor sido acolhido igualmente nas alíneas Z), A´), B`) e C´) dos factos provados.
[3] Cfr., inter alia, acórdãos da Relação de Coimbra de 27.05.2014 (processo nº 1024/12) e de 24.04.2012 (processo nº 219/10), acórdão da Relação de Lisboa de 14.03.2013 (processo nº 933/11.9TVLSB-A.L1-2), acórdãos da Relação de Guimarães de 15.12.2016 (processo nº 86/14.0T8AMR.G1) e de 13.02.2014 (processo nº 3949/12.4TBGMR.G1) e acórdão desta Relação de 17.03.2014 (processo nº 7037/11.2TBMTS-A.P1), todos acessíveis em www.dgsi.pt. No mesmo sentido se pronuncia ABRANTES GERALDES, Recursos, pág. 297, onde escreve que “de acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
[4] Ou seja, de acordo com a definição constante da cláusula 1ª da referida Condição Especial, “[p]reço de venda ao público do veículo seguro, em Portugal, no mês e ano da sua primeira matrícula, considerando todos os impostos e encargos aplicáveis e sem quaisquer descontos comerciais, acrescido dos valores dos extras não integrados de origem, se se pretender inclui-los no seguro”.
[5] Cfr., sobre essas particularidades, MOITINHO DE ALMEIDA, Cláusulas contratuais gerais e contrato de seguro, in Contrato de Seguro – Estudos, 2009, págs. 77-113.
[6] In O Problema do Contrato – As cláusulas contratuais gerais e o princípio da liberdade contratual, 1999, pág. 378.
[7] Ob. citada, pág. 378.
[8] Ob. citada, pág. 379 e seguinte.
[9] In Cláusulas Contratuais Gerais, Cláusulas Abusivas e o Novo Código Civil, pág. 11.
[10] In Manual dos Contratos em Geral, 2002, pág. 322.
[11] In Cláusulas Contratuais Gerais, 2010, págs. 64, 94 e 110.
[12] CJSTJ, Ano VIII, tomo 1º, pág. 152.
[13] Proferido no processo nº 626/1998.L1-2, disponível em www.dgsi.pt.
[14] Prolatado no processo nº 0551491, acessível em www.dgsi.pt.
[15] O mesmo não sucede, como é consabido, nos seguros de responsabilidade civil obrigatórios, dado que neste tipo de seguro o terceiro lesado não se encontra vinculado às regras estabelecidas nas apólices e demanda a seguradora com base em responsabilidade extracontratual.
[16] Cfr., neste sentido - que constitui, aliás, entendimento jurisprudencial claramente majoritário - e por todos, acórdãos da Relação de Lisboa de 28.06.2007 (processo nº 3814/2007) e de 25.06.2009 (processo nº 1515/05.0TBMTJ), acórdãos da Relação de Coimbra de 23.05.2006 (processo nº 1324/06) e de 18.12.2013 (processo nº 282/12.5TBOHP), acórdãos desta Relação de 13.06.2013 (processo nº 4438/11.OTVNG) e de 28.10.2013 (processo nº 2965/12.0TBMTS), de 23.06.2015 (processo nº 4393/13.1TBMAI.P1), de 14.03.2016 (processo nº 4876/12.0TBSTS.P1) e de 7.02.2017 (processo nº 842/14.0TJPRT.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 30.03.2017 (processo nº 122/15.3T8VRM.G1) e de 10.10.2013 (processo nº 598/12.OTBVCT),todos disponíveis em www.dgsi.pt.
[17] Registando-se, outrossim, que os autos não evidenciam qualquer violação de deveres acessórios de conduta que impendessem sobre a ré no cumprimento da obrigação (cfr. art. 762º, nº 2 do Cód. Civil) e de cujo inadimplemento pudesse resultar a sua responsabilidade contratual.