Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
143/18.4GCAGD.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: IMPUGNAÇÃO AMPLA DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA PELA RELAÇÃO
CONVICÇÃO DO JULGADOR
Nº do Documento: RP20230419143/18.4GCAGD.P1
Data do Acordão: 04/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: JULGADO PARCIALMENTE PROVIDO O RECURSO INTERPOSTO PELA ASSISTENTE.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A reapreciação das provas gravadas só poderá abalar a convicção acolhida pelo tribunal recorrido, caso se verifique que a decisão sobre matéria de facto:
a) não tem qualquer fundamento nos elementos probatórios constantes do processo; ou
b) se os meios concretos de prova produzidos em julgamento não permitirem, racionalmente, sustentar suficientemente a decisão da matéria de facto.
II - No recurso da decisão da matéria de facto interessa apurar se os meios probatórios sindicados sustentam a convicção adquirida pelo tribunal a quo, de harmonia e em coerência com os princípios que regem a apreciação da prova, e não obter uma nova convicção do tribunal ad quem em resultado da apreciação de toda a prova produzida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 143/18.4GCAGD.P1
Data do acórdão: 19 de Abril de 2023
Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Desembargador 2º adjunto: Manuel Soares

Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro - Juízo Local Criminal de Águeda


Sumário:
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Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente a assistente AA.

I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal singular foi proferida a sentença absolutória datada de 12 de Julho de 2022 que terminou com a absolvição da arguida BB das acusações pública e particular - e dos pedidos de indemnização civil formulados nos autos -, por:
a) dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelo art. 153º e 155º, n.º 1, al. a) do Código Penal;
b) um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do mesmo texto legal; e
c) um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, ainda do mesmo Código.
2. Inconformada com tal absolvição, a assistente interpôs recurso da sentença, culminando a respetiva motivação com a formulação das seguintes conclusões – na sua versão aperfeiçoada, após o convite judicial dirigido nesse sentido -:
“A recorrente não se conforma com a sentença, uma vez que a prova produzida em audiência não poderia dar lugar aos factos ali dados por provados e não provados. Com efeito, além dos factos dados como provados na sentença, o Tribunal a quo deveria ter julgado ainda provado que:
Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. dos factos provados a arguida dirigindo-se à Assistente disse: “és uma puta”, “és uma ladra” e ainda “ um dia destes eu fodo-te”;
É essa a decisão que se mostra conforme com as declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 9:52 a minuto 15:00, em conjugação com o depoimento da testemunha CC, igualmente gravado, com início às 11 horas e 45 minutos, e com final às 12 horas e 4 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, minuto 4:00 a 10:05, e da testemunha DD, depoimento gravado com início às 14 horas e 33 minutos e com final às 14 horas e 42 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 02:05 a 08:05.
Efetivamente, os depoimentos da assistente e das supra referidas testemunhas, mostram-se coincidentes quanto ao tempo, lugar e circunstâncias em que ocorreram os factos, bem como quanto às expressões dirigidas pela arguida à assistente, pelo que com base desde logo nestes depoimentos, deveria ter sido dado como assente a factualidade constante da acusação particular.
Com as acções supra descritas, a arguida quis, e objectivamente conseguiu, não só ameaçar como também injuriá-la, atingindo-a na sua honra e consideração (o que também conseguiu).
É essa a decisão que se mostra conforme com as declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 31:14 a minuto 33:23, em conjugação com prova indicada no ponto anterior.
Tais expressões, “és uma puta”, “és uma ladra”, “ um dia destes eu fodo-te”, “deixa estar que eu faço justiça por minhas mãos”, “és uma grande puta” e “és uma ladra de merda, foste fazer queixa de mim à GNR, agora vais levar e vais levar bem”, proferidas pela Arguida, tinham a finalidade de, por um lado, causar temor na Assistente e de a atingir na sua honra e consideração, sendo tal conduta inaceitável e criminalmente relevante.
Mesma prova dos pontos anteriores 2 e 3.
A Arguida actuou de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito conseguido de ameaçar a Assistente fazendo-a temer pela sua integridade física e, ainda, de a ofender na sua honra e consideração, bem como na consideração que lhe é devida.
Mesma prova dos pontos anteriores. Com efeito, o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo. A sua demonstração probatória, sobretudo quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, resultando antes da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.
A arguida, ao proferir as expressões supra referidas actuou voluntariamente, sabendo que a sua ação era adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração devida à recorrente, e querendo fazê-lo. E também a consciência da ilicitude da arguida, componente deste elemento subjectivo, deve ser julgada provada pelo preenchimento dos requisitos do tipo de ilícito imputado à arguida.
No dia 18 de setembro de 2018, cerca das 16h30, junto à fonte de água sita na Rua ..., em ..., ..., Águeda, a arguida discutiu com AA, dizendo-lhe “foste fazer queixa de mim à Guarda, agora vais levar e vais levar bem”.
O aditamento de mais este facto, é a decisão que se mostra conforme com o depoimento da assistente, gravado com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, minuto 15:00 a 16:14.
De seguida, segurou na roda de trás do velocípede em que a assistente ali se tinha dirigido transportado à mão para assim carregar garrafões de água, e levantou-o, atingindo AA na cara e no peito, o que a fez desequilibrar, desferiu-lhe vários pontapés, atingindo-a nos joelhos e nas pernas.
É também a decisão que se mostra conforme com o depoimento da assistente, gravado com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, minuto 16:15 a 25:40, em conjugação com Exame médico-legal de fls. 14 a 16.
Quando AA se encontrava de cócoras, a arguida desferiu-lhe um murro, que a atingiu na face do lado esquerdo, e quando esta se levantou, a arguida pegou no chinelo que calçava e desferiu-lhe várias pancadas, atingindo-a no braço esquerdo.
Decisão que se mostra conforme com o Depoimento da assistente, gravado com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, minuto 24:13 a 31:13, em conjugação com o Exame médico-legal de fls. 14 a 16.
Apesar de não ter presenciado os factos passados neste dia, a testemunha CC, cujo depoimento se encontra gravado, com início às 11 horas e 45 minutos, e com final às 12 horas e 4 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, corrobora a presença da arguida e assistente na data e local em causa, afirmando ter visto a assistente com a cara vermelha ou pisada, “não foi capaz de precisar bem”, segundo é referido na sentença, mas porque, como a própria refere em declarações, já não vê muito bem, o que segundo as regras da experiência comum é normal atendendo à idade da testemunha, não tendo esta qualquer dúvida de que a assistente tinha de alguma forma a cara marcada (minuto 10:05 a 13:50).
Como consequência direta e necessária da conduta da arguida, a assistente AA recebeu tratamento médico-hospitalar e sofreu as seguintes lesões:
- na face - equimose de 1 por 0.5 cm, na parte inferior do olho esquerdo; no membro superior direito - rubor de cor avermelhada e arredondado, de 0.5 cm de diâmetro, na parte anterior e média do antebraço;
- no membro superior esquerdo - equimose de cor negra, de 4 por 5 cm, na parte externa e inferior do cotovelo, equimose arredondada de 1 cm de diâmetro, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte interna e média do antebraço e outra típica de unhada, de 1 por 1 cm, na parte média e anterior do antebraço;
- no membro inferior direito - equimose arrendondada de 3 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte lateral e externa do joelho; equimose de cor negra, de 4 por 2 cm, na parte superior e interna da perna; equimose arredondada de 0.5 cm de diâmetro, de cor negra, na parte lateral e interna da perna; e
- no membro inferior esquerdo - equimose arredondada de 4 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte média e anterior do joelho.
Facto cuja prova resulta do Exame médico-legal de fls. 14 a 16 e do depoimento da assistente, gravado com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, minuto 29:23 a 31:13.
Tais lesões determinaram em condições normais, 10 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e não resultaram, em condições normais, quaisquer consequências permanentes.
Facto cuja prova resulta do Exame médico-legal de fls. 14 a 16.
Ainda nessa ocasião, a arguida disse, em tom de voz elevado e com foros de seriedade para a ofendida: ”anda desgraçada, que eu hei-de-te matar!”, “foste à GNR fazer queixa de mim, vais levar e vais levar bem”.
O aditamento deste facto, é a decisão que se mostra conforme com o depoimento da assistente, gravado com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, minuto 33:24 a minuto 35:35.
A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da ofendida/assistente e de lhe causar dores e ferimentos, bem sabendo que, atuando como atuou, atingiu a saúde e a integridade física daquela.
Mesma prova dos pontos anteriores 6, 7, 8, 9, 10 e 11.
Com efeito, como supra referido, o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo. A sua demonstração probatória, sobretudo, quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, resultando antes da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.
A arguida, ao desferir as pancadas, pontapés e murros que desferiu contra a assistente, actuou voluntariamente, sabendo que a sua ação era adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à integridade física da recorrente, e querendo fazê-lo.
Em virtude do conteúdo intimidatório das expressões mencionadas, a ofendida sentiu-se assustada e receosa, chegando a temer pela sua vida.
Declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 32:07 a minuto 33:23.
Ao agir da forma supra descrita, a arguida agiu com o propósito de atingir a liberdade de determinação da ofendida, causando-lhe medo, inquietação e desassossego, o que conseguiu.
Mesma prova dos pontos anteriores.
Como já referido, o dolo, o conhecimento e vontade de praticar o facto com consciência da sua censurabilidade, em qualquer das modalidades previstas no art. 14º do C. Penal, é sempre um facto da vida interior do agente, um facto subjectivo. A sua demonstração probatória, sobretudo, quando não existe confissão, não pode ser feita directamente, resultando antes da conjugação da prova de factos objectivos – em particular, dos que integram o tipo objectivo de ilícito – com as regras de normalidade e da experiência comum.
A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mesma prova dos pontos anteriores. Como supra explanado, a consciência da ilicitude da arguida, resulta provada pelo preenchimento dos requisitos do tipo de ilícito imputado à arguida.
A demandante sentiu-se profundamente vexada, humilhada e ofendida na sua honra e consideração, tanto para mais que duas pessoas estimadas pela demandante presenciaram o momento.
É essa a decisão que se mostra conforme com as declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 9:52 a minuto 15:00, e minuto 31:14 a 31:52.
A demandada bem sabia que as expressões por si proferidas iriam ser conhecidas de todas as pessoas da terra – ..., povoação pequena onde ambas vivem.
É essa a decisão que se mostra conforme com as declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 9:52 a minuto 15:00, e minuto 31:14 a 31:52.
Ainda hoje a demandante revive a situação, o que a deixa profundamente incomodada e constrangida.
É essa a decisão que se mostra conforme com as declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 9:52 a minuto 11:06, em conjugação com o depoimento da testemunha EE, filha da assistente, cujo depoimento se encontra gravado com início pelas 15 horas e 6 minutos e termo pelas 15 horas e 15 minutos – cfr. Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 40:35 a minuto 42:11.
Por via do medo que a demandante sente, ainda hoje só sai de casa para o estritamente necessário;
É essa a decisão que se mostra conforme com as declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 31:52 a minuto 33:23, em conjugação com o depoimento da testemunha EE, filha da assistente, cujo depoimento se encontra gravado com início pelas 15 horas e 6 minutos e termo pelas 15 horas e 15 minutos – cfr. Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 38:44 a minuto 42:11.
A demandante deixou de ter uma noite descansada, por via do medo que sente da demandada;
É essa a decisão que se mostra conforme com o depoimento da testemunha EE, filha da assistente, cujo depoimento se encontra gravado com início pelas 15 horas e 6 minutos e termo pelas 15 horas e 15 minutos – cfr. Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 40:33 a minuto 40:55.
A demandante viu-se obrigada a alterar o seu dia-a-dia, não mais fazendo os seus passeios higiénicos e alterando as suas rotinas para evitar cruzar-se com a demandada, com medo do que esta lhe possa fazer.
É essa a decisão que se mostra conforme com as declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 31:52 a minuto 33:23, em conjugação o depoimento da testemunha EE, filha da assistente, cujo depoimento se encontra gravado com início pelas 15 horas e 6 minutos e termo pelas 15 horas e 15 minutos – cfr. Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 38:44 a minuto 40:33.
A demandante sentiu dores, ficou emocionalmente muito perturbada, vexada, triste e envergonhada, inclusivamente por ter ficado ainda alguns dias com marcas visíveis na face, razão pela qual se sentia retraída e com vergonha de sair de casa.
É essa a decisão que se mostra conforme com o Exame médico-legal de fls. 14 a 16 e as declarações da assistente, AA, gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso naquele tribunal, com início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, de minuto 24:13 a 25:40, minuto 29:23 a 31:13, em conjugação com o depoimento da testemunha EE, filha da assistente, cujo depoimento se encontra gravado com início pelas 15 horas e 6 minutos e termo pelas 15 horas e 15 minutos – cfr. Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 38:44 a minuto 42:11.
Em resumo, os factos descritos em I - das conclusões resultam provados: - das declarações da assistente, AA, as quais foram “gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso” naquele tribunal, com “início pelas 10 horas e 37 minutos e o seu termo pelas 11 horas e 41 minutos”, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04- 05-2022, minuto 9:52 a 35:35;
- conjugadas com os depoimentos das testemunhas CC, cujo depoimento se encontra igualmente gravado, com início às 11 horas e 45 minutos, e com final às 12 horas e 4 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, minuto 4:00 a 13:50; DD, depoimento gravado com início às 14 horas e 33 minutos e com final às 14 horas e 42 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 02:05 a 8:05; e EE, filha da assistente, cujo depoimento se encontra gravado com início pelas 15 horas e 6 minutos e termo pelas 15 horas e 15 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 38:44 a 42:11; e
- do exame médico-legal de fls. 14 a 16.
O Tribunal recorrido violou, portanto, o disposto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, pois não conjugou devidamente todos os factos apresentados em sede de audiência de discussão e julgamento, com as regras da experiência.
De facto, é referido na sentença que não foi atribuída credibilidade ao depoimento da assistente. Este pode ser classificado de emotivo, mas, salvo melhor e seguramente mui douta opinião, não poderá de forma alguma ser considerado titubeante – aquela nunca hesitou ou vacilou sobre as circunstâncias e forma como os factos se passaram nem exagerado ou efabulado – as suas declarações são coincidentes desde o inquérito, e não relatou outros factos que não tenham sido posteriormente confirmados pelas testemunhas inquiridas, descrevendo toda a conversa tida com a arguida, nomeadamente as acusações e expressões que dirigiu àquela, versão que é corroborada pelas testemunhas CC e DD, que se mostram coincidentes quanto ao tempo, lugar e circunstâncias em que ocorreram os factos, bem como quanto às expressões dirigidas pela arguida à assistente, pelo que com base desde logo nestes depoimentos, deveria ter sido dado como assente a factualidade constante da acusação particular.
Ainda quanto aos factos ocorridos no dia 17-09-2018 pelas 18 horas, a Meritíssima Juíza a quo refere que a testemunha CC “depois altera o discurso e refere que a arguida se dirigiu diretamente à assistente”, o que não é verdade. O que se passa é que este momento dos factos é dividido em duas partes, como aquela bem e detalhadamente relata: numa primeira parte, a arguida estava a falar sozinha com a testemunha CC, até que foi surpreendida pela assistente que se aproximou pelas costas, passando nessa segunda parte a haver uma troca de palavras direta entre as duas, arguida e assistente, não havendo nisto qualquer contradição ou “modificação do discurso”.
Efetivamente, o depoimento desta testemunha mostra-se tranquilo, desinteressado, claro e credível, tendo aquela relatado e concretizado com detalhe a forma como os mesmos ocorreram, o que tudo conjugado com as regras da experiência comum, nada tem de contraditório, sendo perfeitamente normal que após ter sido surpreendida pela assistente, a arguida tenha entrado numa troca de palavras com esta, o que é corroborado pelo depoimento da testemunha DD, também supra transcrito, que conforme consta da sentença recorrida “referiu que ia a passar na estrada, a cerca de 50 m da casa da D. CC e que ouviu a arguida dizer: “ladra, puta, roubaste um cartão à irmã”, “que foi direita à assistente” e que aquelas “Estavam a berrar uma com a outra”. Não existem pois versões variadas ou díspares.
A Meritíssima Juíza do Tribunal a quo refere também não ter dado credibilidade ao depoimento da assistente “quanto ao sucedido no dia 18.9.2018, junto à fonte”, devido, designadamente, a “pequenos pormenores como o facto de ter falado com a testemunha FF não foi confirmado por esta (referiu que passou pela assistente de carro mas nem sequer parou, que não falou com ela e nem se apercebeu de nada)”.
No entanto durante o depoimento desta testemunha, gravado com início às 14 horas e 43 minutos e com final às 14 horas e 56 minutos, conforme ata da audiência de discussão e julgamento do dia 02-06-2022, minuto 14:54 a 15:10 e minuto 17:03 a 17:15, esta testemunha refere ter problemas de esquecimento, devido a uma doença.
Portanto, o depoimento desta testemunha – melhor identificada a fls. 58 quando prestou declarações nos autos – agora com 76 anos e que diz ter problemas de esquecimento devido a uma doença de que padece, pode não ter sido coincidente com o da assistente, não porque aquela esteja a faltar à verdade, mas antes porque este, como o próprio refere, já não está bem recordado do que se passou, não tendo na audiência de julgamento sido utilizados auxiliares de memória da testemunha – leitura de actos processuais de inquérito – fundamentais na compreensão de situações passadas há algum tempo.
Aliás, segundo as regras da experiência comum, é de esperar que os depoimentos prestados por pessoas de idade avançada, como é o caso da assistente e das testemunhas supra referidas, reportados a factos que ocorreram cerca de quatro anos antes, possam ter algumas imprecisões, ou pequenas contradições, nada que coloque em causa que os factos em questão se verificaram e a sua imputação à arguida.
A sentença refere também que nessa ocasião, a assistente terá ido ter com o irmão, GG, e que “Esta testemunha referiu que a irmã se aproximou do local onde o mesmo estava a trabalhar uma terra, dizendo: “Ó GG, a BB bateu-me. Deu-me um empurrãozito”. Que não lhe viu qualquer ferimento nem com a roupa desalinhada, apesar da mesma estar a chorar”.
Omite no entanto a decisão qual a razão de aquele não lhe ter visto qualquer marca ou ferimento. Como referido pela assistente nas declarações que prestou e que foram supra identificadas, “ele vem ai de testemunha, mas ele nem para mim olhou, senhora Doutora…”, o que é confirmado por aquele GG, cujo depoimento se encontra gravado, com início às 14 horas e 56 minutos, e com final às 15 horas e 6 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 02-06-2022, minuto 30:22 a minuto 30:45, referindo não lhe ter dado qualquer atenção por estar de relações cortadas com a irmã há 5 anos. Aliás, o facto de estar de relações cortadas com a assistente, transparece ao longo de todo o depoimento desta testemunha, que revela pouca vontade de relatar o episódio.
Apesar de não ter presenciado os factos passados neste dia, a testemunha CC, cujo depoimento se encontra gravado, com início às 11 horas e 45 minutos, e com final às 12 horas e 4 minutos, conforme Ata da Audiência de Discussão e Julgamento do dia 04-05-2022, do minuto 10:05 a 13:50, corrobora a presença da arguida e assistente na data e local em causa, afirmando ter visto a assistente com a cara vermelha ou pisada, “não foi capaz de precisar bem”, segundo é referido na sentença, mas porque, como a própria refere nas declarações que supra se transcreveram, já não vê muito bem, o que segundo as regras da experiência comum é normal atendendo à idade da testemunha, não tendo esta qualquer dúvida de que a assistente tinha de alguma forma a cara marcada.
As declarações da assistente, na sua globalidade, mostram-se coerentes, consistentes e congruentes, convergindo com os depoimentos das testemunhas supra referidas, que na generalidade confirmaram o que a assistente referiu quanto à intervenção que tiveram com aquela, sendo ainda suportadas pelo exame médico-legal de fls. 14 a 16, concretamente quanto às lesões apresentadas pela assistente e nexo de causalidade com a agressão de que foi vítima.
O relato factual feito pela assistente corresponde ao que de essencial sempre disse nos autos, desde a queixa, às demais declarações prestadas, ainda que seja diferente do relatado na acusação – a assistente nunca disse por exemplo que ia montada na bicicleta, o que é natural, até porque já tinha 79 anos à data dos factos – sendo irrelevante, para descredibilizar o seu depoimento, qualquer contradição entre as suas declarações e a acusação, apenas podendo relevar a ocorrência daquela quando em contradição com os factos provados.
Do supra exposto resulta que em todo o processo de afastamento da credibilidade do depoimento da assistente constante da decisão recorrida, se surpreende, salvo melhor e seguramente mui douta opinião, uma evidente violação das regras da experiência, uma vez que aquele se baseou em juízos de lógica profundamente discutível, sendo certo que a correcta valoração daquelas declarações e dos referidos depoimentos conduz a conclusões fácticas diametralmente opostas.
De todo o supra exposto resulta que a sentença sob recurso fez uma incorreta apreciação da prova, incorrendo em erro de julgamento, violando o disposto no art. 127º e 374º do C. P. Penal e em consequência, impõe-se a modificação da decisão recorrida, nos termos do disposto nos artigos 410º, nº 2, 412º, nºs. 3 e 4 e 431º, alíneas a) e b), todos do C. P. Penal.
Face à factualidade que deve ser julgada provada nos termos supra expostos, outra não pode ser a conclusão senão a de que se mostram preenchidos os elementos indispensáveis à condenação da arguida pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de injúrias, um crime de ofensa à integridade física simples e de um crime de ameaça, bem como no pagamento dos pedidos de indemnização contra si formulados pela assistente.
A decisão recorrida viola o disposto nos artigos 26.º, 14.º, nº1, 129º, 143º, nº1, 153.º, nº1 e 181.º, nº1, do Código Penal.”

2. O recurso foi liminarmente admitido na primeira instância, com efeito devolutivo subindo nos próprios autos.
3. Apenas o Ministério Público apresentou uma resposta ao recurso, concluindo o seguinte:
“A recorrente pretende tão-somente atacar a forma como o tribunal a quo formou livremente a sua convicção, pugnando por entendimento diverso relativamente aos factos dados como não provados.
Devidamente analisada a fundamentação da sentença recorrida, a mesma não merece qualquer reparo no que concerne aos factos dados como provados e não provados, uma vez que manifestam a prova produzida em sede de audiência de julgamento, e procede à correcta avaliação da prova produzida.
A Mm.ª Juiz a quo fundamentou escrupulosamente a razão pela qual deu como não provados os factos ora em crise.
A Mm.ª Juiz a quo fez uma análise crítica e conjugada de toda a prova produzida e deu como não provados os factos constantes na sentença, com base nas regras da experiência comum e da lógica, e no respeito pelos princípios da oralidade e o da imediação, que asseguram o princípio basilar do julgamento em processo penal, o princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador, previsto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
A Mm.ª Juiz a quo fez constar na sentença, não só os factos que considerou provados e não provados, como também enumerou, exaustivamente, os motivos de facto (e de direito) da sua decisão, valorando crítica e racionalmente as provas carreadas para os autos, de acordo com as regras da razão e da experiência comum, ficando com a convicção de que a arguida não praticou os factos pelos quais vinha acusada e que deu como não provados.
Os depoimentos transcritos pela recorrente não conseguem abalar a decisão proferida pelo tribunal a quo, porquanto da leitura da sentença, são claros os motivos pelos quais foram dados como não provados os factos que a ora recorrente pretende que sejam dados como provados.
A questão não está no que a assistente e as testemunhas disseram, está na forma como os seus depoimentos foram feitos, e no que do confronto entre os vários depoimentos, conjugados com a demais prova carreada para os autos, foi apreendido pelo tribunal a quo, que deixou bem claro na sentença o processo lógicopelo qual decidiu dar como não provados os factos em causa.
O tribunal a quo com a decisão proferida não violou qualquer normativo legal e nenhuma censura se pode dirigir à decisão recorrida, que fundamentou as razões da valoração que efectuou, identificou a prova que relevou na formação da sua convicção e indicou os aspectos que conjugadamente levaram a concluir no sentido de considerar não demonstrada a factualidade da acusação, para além de ter assinalado de forma lógica e racional os fundamentos que no seu entendimento justificam a falta de credibilidade que reconheceu aos depoimentos prestados.
Pelo que, negando provimento ao recurso interposto pelos assistentes e confirmando a sentença recorrida farão Vossas Excelências, como sempre,(…) Justiça.”

4. O Ministério Público[1] junto deste Tribunal emitiu parecer, extraindo-se do seu teor as seguintes passagens, relativas ao mérito do recurso:
“Acompanhando a súmula efectuada pela assistente “… os factos constantes das acusações pública e particular podem ser divididos em três momentos:
… Um primeiro momento, o dia 17/09/2018, pelas 14h30.
O segundo momento é relativo ao sucedido nesse mesmo dia, por volta das 18h, em frente a casa da vizinha CC, testemunha nos autos.
O terceiro momento é o sucedido no dia 18 de setembro de 2018, cerca das 16H30, junto à fonte de água sita na Rua ..., em ..., ..., Águeda”.
Reconhecendo a própria recorrente que, em relação ao primeiro momento que se vem de indicar, “… o depoimento da assistente, no que refere ao local e circunstâncias da prática dos factos, efetivamente não coincide com o que vinha descrito na acusação, pelo que, não havendo qualquer testemunha que os comprove, se aceita que os mesmos tenham sido dados por não provados”, verifica-se que a matéria impugnada e que importará conhecer em sede recursiva se reporta aos outros dois eventos constantes dos autos (acusação pública e/ou particular) como tendo ocorrido no final da tarde do dia 17 de Setembro de 2018, em frente à casa da testemunha CC, em ..., e cerca do meio da tarde do dia imediatamente subsequente, junto à fonte de água sita na Rua ..., na mesma localidade.
Ora em relação a todo o depoimento da assistente, regista-se que o tribunal a quo não considerou o mesmo, por entender que a versão apresentada pela ofendida/assistente não se mostrou merecedora de credibilidade, uma vez que aquela “…apresentou-se em julgamento com um discurso titubeante, exagerado e efabulado, não coincidente, sequer, com a descrição factual que é feita no libelo acusatório e sem suporte na demais prova testemunhal produzida”.
Salvo o muito e devido respeito, afigura-se que o tribunal a quo terá sido mais sensível ao “clima de animosidade” existente entre a assistente e a arguida[2] , do que ao facto de a assistente ser uma pessoa de idade já avançada que, não obstante a manifesta emoção com que prestou declarações, conseguiu articular de forma clara e precisa os factos de que alega ter sido vítima[3], as circunstâncias de tempo e lugar em que os mesmos terão ocorrido, num relato que se apresenta, nos seus traços essenciais, correspondente ao que havia já prestado em sede de instrução.
Mas se assim é, mais importa referir que o tribunal recorrido terá valorado de forma que igualmente se tem como não adequada os elementos resultantes da prova testemunhal produzida assim como os elementos resultantes dos registos médico-legais constantes dos autos, sendo que estes, em momento algum ou por qualquer forma, foram impugnados.
Com efeito, dos autos consta não só que após o “incidente” ocorrido no dia 18 de Setembro de 2018, a assistente “… foi transportada pelos Bombeiros Voluntários ... para receber tratamento médico, em virtude de a mesma se encontrar maldisposta e com várias dores no corpo provenientes das agressões, já no hospital foi observado pela Dra. HH, ficando este registado com o nº de urgência ...84”[4] 3, como mais consta o relatório do exame de clínica médico-legal a que a mesma assistente foi submetida no Gabinete Médico-Legal e Forense do Baixo Vouga, no qual se descrevem e caracterizam as consequências que, em termos físicos, a assistente sofreu em resultado daquele mesmo episódio, e.g., em termos de equimoses na face, membros superior esquerdo e membros inferiores, assim como (também ao nível do membro superior esquerdo) “… escoriação superficial e avermelhada… e outra típica de unhada… na parte média e anterior do antebraço…”, lesões essas que são perfeitamente compatíveis com o relato da assistente e dificilmente explicáveis de outro modo, o que imporia que o tribunal se pronunciasse, pelo menos, relativamente à quanto ao nexo de causalidade estabelecido – ou, pelo menos, admitido – naquele exame.
Tais elementos deveriam ter sido ponderados conjuntamente com o depoimento da testemunha CC, em cuja casa[5] a assistente procurou auxílio imediatamente após o episódio que se vem referindo, não só na parte em que a mesma atesta que “A AA tinha a cara vermelha ou pisada, não sei dizer assim, a cara. O resto não sei, não vi o resto. Mas assim na cara, ou pisado ou vermelho, também não vejo assim muito bem, ou pisado ou vermelho”, mas também (ou, quiçá, primacialmente) na parte em que a mesma, pese embora as dúvidas com que, com alguma insistência, foi confrontada quando depôs, não hesitou em dizer e manter que viu a arguida a passar na rua em frente à respectiva casa – “A subir a ladeira, eu abri assim o portãozinho e ela ia assim a subir a ladeira para o Lugar…” – nos momentos a seguir ao da materialização daquele mesmo episódio, vinda da zona onde tudo terá ocorrido, não podendo a mesma vir de outro local, pois a estrada por onde vinha não tinha saída, atento o respectivo sentido de marcha…
E se assim sucede em relação ao episódio que terá ocorrido no dia 18 de Setembro, sempre ressalvado o devido respeito, afigura-se que o tribunal a quo terá igualmente andado menos bem também na avaliação dos factos que terão ocorrido no dia imediatamente anterior, ou seja, na tarde do dia 17 de Setembro de 2018, nas proximidades da casa (ou em frente à casa) da testemunha CC.
Com efeito, a versão dos factos apresentada pela ofendida/assistente é, nos seus traços essenciais, corroborada não só pela testemunha CC, como também pela testemunha DD, inexistindo nos autos, tanto quanto é possível descortinar, algum motivo que alicerce, de forma que seja compreensível por um terceiro não envolvido nos mesmos, o facto de os respectivos depoimentos não terem sido ponderados de outra forma[6] [7].
Na verdade, a este propósito, na sentença recorrida mais não se lê que “Ora, conforme facilmente se constata as versões são tão variadas e díspares quantas as pessoas que as relatam não sendo, por isso, possível determinar o que é que a arguida disse, como e a quem (se à assistente directamente, se à testemunha CC)”, e que “…, da conjugação de todos estes elementos probatórios não resultou, com segurança e para lá de qualquer dúvida, o comportamento adoptado pela arguida nos diversos momentos, razão pela qual e valendo em processo penal o princípio constitucional in dubio pro reo, se deram tais factos por não provados”.
Crendo-se que mesmo a forma (tão genérica) como é referenciado o princípio do in dubio pro reu não permite alcançar, com a segurança que se tem como exigível, em relação a que concretos factos o tribunal ficou em dúvida após a produção da prova, da audição total do registo da prova produzida – e não apenas dos segmentos indicados pela recorrente – e ressalvado, naturalmente, o maior respeito por distinto e melhor entendimento, afigura-se que os elementos probatórios constantes dos autos – declarações da ofendida/assistente, depoimento das testemunhas ouvidas (em particular das testemunhas CC e DD), assim como os registos relativos ao exame de clínica médico-legal efectuado na pessoa assistente – imporiam conclusões distintas daquelas que foram alcançadas pelo tribunal recorrido quanto à responsabilidade criminal (e, consequentemente, também cível) da arguida BB.
Por assim ser e com base também nos elementos do mesmo constantes, para os quais o signatário se permite remeter, formula-se parecer no sentido de que o recurso interposto pela assistente AA merece provimento quanto às questões que suscita.”

5. Notificado do teor do parecer, a arguida apresentou resposta, nas quais produziu as seguintes conclusões:
“A fundamentação da sentença recorrida não merece qualquer reparo no que concerne aos factos dados como provados e não provados, uma vez que manifestam a prova produzida em sede de audiência de julgamento, e procede à correcta avaliação da prova produzida.
O tribunal a quo fundamentou a razão pela qual deu como não provados os factos ora em análise.
O Tribunal a quo fez uma análise crítica e conjugada de toda a prova produzida e deu como não provados os factos constantes na sentença, com base nas regras da experiência comum e da lógica, e no respeito pelos princípios da oralidade e o da imediação, que asseguram o princípio basilar do julgamento em processo penal, o princípio da livre apreciação da prova por parte do julgador, previsto no artigo 127.º, do Código de Processo Penal.
A Douta Sentença consta não só os factos que considerou provados e não provados, como também enumerou, exaustivamente, os motivos de facto (e de direito) da sua decisão, valorando crítica e racionalmente as provas carreadas para os autos, de acordo com as regras da razão e da experiência comum, ficando com a convicção de que a arguida não praticou os factos pelos quais vinha acusada e que deu como não provados.
Os depoimentos transcritos pela recorrente não conseguem abalar a decisão proferida pelo tribunal a quo, porquanto da leitura da sentença, são claros os motivos pelos quais foram dados como não provados os factos que a ora recorrente pretende que sejam dados como provados.
A questão não está no que a assistente e as testemunhas disseram, está na forma como os seus depoimentos foram feitos, e no que do confronto entre os vários depoimentos, conjugados com a demais prova carreada para os autos, foi apreendido pelo tribunal a quo, que deixou bem claro na sentença o processo lógico pelo qual decidiu dar como não provados os factos em causa.
O tribunal a quo com a decisão proferida não violou qualquer norma legal e nenhuma censura se pode dirigir à decisão recorrida, que fundamentou as razões da valoração que efetuou, identificou a prova que relevou na formação da sua convicção e indicou os aspetos que conjugadamente levaram a concluir no sentido de considerar não demonstrada a factualidade da acusação, para além de ter assinalado de forma lógica e racional os fundamentos que no seu entendimento justificam a falta de credibilidade que reconheceu aos depoimentos prestados.
Termos em que deverá manter-se na íntegra a douta decisão recorrida.”

6. A arguida respondeu ao parecer, sustentando a confirmação da decisão recorrida.
7. A assistente recorrente manifestou concordância com o parecer.
8. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].

Questão a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [8] e a jurisprudência [9] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir a impugnação da decisão da matéria de facto descrita no relatório e, em conformidade com a decisão, extrair as necessárias consequências jurídicas.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Para aferir o mérito do recurso importa recordar, primeiramente, a fundamentação da decisão da matéria de facto impugnada.
A – Decisão recorrida:
«Fundamentação de Facto:
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da mesma:
1. No dia 17.9.2018, cerca das 18h, a arguida encontrava-se à entrada da casa da vizinha CC, sita na Rua ... e ao sair, dirigindo-se para sua casa, na companhia do marido, disse para este: “deixa estar que eu faço justiça pelas próprias mãos”.
2. A arguida não tem antecedentes criminais.
3. A arguida é doméstica e não tem qualquer fonte de rendimento própria.
4. Vive com o marido, o qual está desempregado.
5. O casal vive em casa própria, pagando de empréstimo a quantia mensal de € 200,00.
6. A arguida não sabe ler nem escrever.
7. A arguida e a assistente vivem ambas em ....
*
Foram estes os factos provados, mais nenhum outro se provou com interesse para a decisão da causa, designadamente não se provou que:
- no dia 17.9.2018, pelas 14h30, quando a assistente ia despejar o lixo, a arguida dirigiu-se-lhe, em tom de voz elevado e com foros de seriedade, dizendo-lhe: “um dia destes aperto-te o pescoço e ficas estendida numa valeta”.
- nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. a arguida disse à assistente: “és uma puta, és uma ladra, um dia destes eu fodo-te”.;
- a expressão referida em 1. tenha sido dirigida à assistente;
- no dia 18.9.2018, cerca das 16h30, junto à fonte de água sita na Rua ..., em ..., ..., Águeda, a arguida discutiu com AA dizendo-lhe: “és uma grande puta, és uma ladra de merda, foste fazer queixa de mim, agora vais levar e vais levar bem.
- de seguida, a arguida segurou na roda da frente do velocípede que a assistente levava e rodou-o, fazendo cair ao chão AA, depois deu-lhe com a roda da frente na zona abdominal, desferiu-lhe vários pontapés, atingindo-a nos braços e nas pernas.
- Quando AA logrou levantar-se do chão, a arguida desferiu-lhe um murro, que a atingiu na face do lado esquerdo, pegou no chinelo que calçava e desferiu-lhe várias pancadas, atingindo-a no braço esquerdo.
- Como consequência directa e necessária da conduta da arguida, a assistente AA recebeu tratamento médico-hospitalar e sofreu as seguintes lesões:
- na face - equimose de 1 por 0.5 cm, na parte inferior do olho esquerdo; . no membro superior direito - rubor de cor avermelhada e arredondado, de 0.5 cm de diâmetro, na parte anterior e média do antebraço; . no membro superior esquerdo - equimose de cor negra, de 4 por 5 cm, na parte externa e inferior do cotovelo, equimose arredondada de 1 cm de diâmetro, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte interna e média do antebraço e outra típica de unhada, de 1 por 1 cm, na parte média e anterior do antebraço;
- no membro inferior direito - equimose arredondada de 3 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte lateral e externa do joelho; equimose de cor negra, de 4 por 2 cm, na parte superior e interna da perna; equimose arredondada de 0.5 cm de diâmetro, de cor negra, na parte lateral e interna da perna; e
- no membro inferior esquerdo - equimose arredondada de 4 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte média e anterior do joelho.
- Tais lesões determinaram em condições normais, 10 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e não resultaram, em condições normais, quaisquer consequências permanentes.
- -Ainda nessa ocasião, a arguida disse, em tom de voz elevado e com foros de seriedade para a ofendida: “anda desgraçada, que eu hei-de-te matar!”, “foste à GNR fazer queixa de mim, vais levar e vais levar bem”.
- A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da ofendida/assistente e de lhe causar dores e ferimentos, bem sabendo que, atuando como atuou, atingiu a saúde e a integridade física daquela.
- Em virtude do conteúdo intimidatório das expressões mencionadas em 1, 2 e 7 desta acusação, a ofendida sentiu-se assustada e receosa, chegando a temer pela sua vida.
- Ao agir da forma supra descrita, a arguida agiu com o propósito de atingir a liberdade de determinação da ofendida, causando-lhe medo, inquietação e desassossego, o que conseguiu.
- A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
- por via do comportamento da arguida a assistente sentiu-se verdadeiramente em perigo, temendo pela sua integridade física, medo esse que ainda hoje subsiste e prevalece;
- a demandante sentiu-se profundamente vexada, humilhada e ofendida na sua honra e consideração, tanto para mais que duas pessoas estimadas pela demandante presenciaram o momento.
- a demandada bem sabia que as expressões por si proferidas iriam ser conhecidas de todas as pessoas da terra – ..., povoação pequena onde ambas vivem.
- ainda hoje a demandante revive a situação, o que a deixa profundamente incomodada e constrangida.
- por via do medo que a demandante sente, ainda hoje só sai de casa para o estritamente necessário;
- a demandante deixou de ter uma noite descansada, por via do medo que sente da demandada;
- a demandante viu-se obrigada a alterar o seu dia-a-dia, não mais fazendo os seus passeios higiénicos e alterando as suas rotinas para evitar cruzar-se com a demandada, com medo do que esta lhe possa fazer.
- a demandante sentiu dores, ficou emocionalmente muito perturbada, vexada, triste e envergonhada, inclusivamente por ter ficado ainda alguns dias com marcas visíveis na face, razão pela qual se sentia retraída e com vergonha de sair de casa.
- por via do comportamento da arguida o Centro Hospitalar do Baixo Vouga despendeu em tratamentos à assistente a quantia de 62.50.
*
A convicção do tribunal para dar tais factos como provados alicerçou-se na ponderação e análise crítica da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, tendo por base, naquele ponto em particular, a consentaneidade nos depoimentos da assistente e da testemunha AA.
Quanto à situação pessoal, profissional e económica da arguida foram valoradas as declarações da própria.
Foi ainda valorado o certificado de registo criminal da arguida junto aos autos a fls. 310.
*
No que se refere aos factos não provados resultou da ausência de prova ou da insuficiência quanto aos mesmos.
Na verdade e no que tange aos demais factos constantes da acusação pública e da acusação particular, os mesmos foram dados por não provados porquanto o tribunal não atribuiu credibilidade ao depoimento da assistente. Esta apresentou-se em julgamento com um discurso titubeante, exagerado e efabulado, não coincidente, sequer, com a descrição factual que é feita no libelo acusatório e sem suporte na demais prova testemunhal produzida. Vejamos: quanto ao sucedido no dia 17.9.2018 pelas 14h30 a assistente referiu que se encontrava no seu quintal quando a arguida passou para casa da sua irmã e que lhe disse “qualquer dia, aperto-te o pescoço”. Depois de instada e de se ter insistido sobre se a arguida lhe teria dito mais qualquer coisa, é que a assistente acabou por referir “qualquer dia apareces morta numa valeta”. Por seu turno, na acusação, refere-se que tais factos ocorreram quando a assistente se deslocou ao contentor do lixo (e não quando estava no seu quintal). Relativamente ao sucedido no mesmo dia, por volta das 18h, em frente a casa da vizinha CC, a assistente referiu que a arguida já lá se encontrava, a falar com a vizinha e que a ouviu dizer: “ela é uma ladra, roubou a irmã, é uma puta, roubaste-me o carro”. E que a assistente lhe respondeu: “Olha, eu não sou como tu, tu já respondeste no tribunal de Águeda. Hás-de provar que eu roubei a minha irmã”. Na acusação referia-se que a arguida se tinha dirigido directamente à assistente, apelidando-a de “puta”, “ladra, “um dia destes eu fodo-te” e não a terceira pessoa, como a assistente relatou em julgamento.
Já quanto aos factos ocorridos no dia 18.9.2018 a assistente referiu que estava sozinha na fonte quando a arguida se aproximou dizendo: “Ai foste fazer queixa de mim à GNR? Agora levas e levas bem.” Que, de seguida, a arguida levantou a bicicleta que a assistente trazia, pelo meio e que a atingiu com a roda de trás. Depois corrigiu e referiu ter sido com a roda da frente. Disse que a roda lhe acertou no peito e na cara. Que se desequilibrou para trás, tendo sido sustada por um muro que ali existe. Contudo, referiu que caiu de cócoras para a frente (sem conseguir explicar tal movimento) e que enquanto estava nessa posição, que a arguida lhe desferiu um murro na cara, do lado esquerdo, que lhe acertou no olho. Que, seguidamente, lhe deu pontapés nos joelhos e nas pernas. Que, seguidamente, a assistente se levantou e que a arguida veio atrás de si, com um chinelo na mão e lhe desferiu várias pancadas no braço esquerdo (mas já sem certeza). Que foi ter com um seu irmão que andava ali próximo, a gritar e que passou pelo Sr. FF e que este lhe disse: “Ai, você vai toda pisada”. Já só no final do seu depoimento é que a assistente ainda acrescentou, instada directamente, que a arguida lhe disse: “Ó desgraçada, eu hei-de-te matar”.
Ora, quanto ao sucedido à porta de casa da testemunha CC, esta referiu que estava a conversar com a arguida quando a assistente se aproximou e que aquela começou a empurrar esta, que falou de uma queixa apresentada sobre uma fogueira e que disse: “é uma ladra”. Depois altera o discurso e refere que a arguida se dirigiu directamente à assistente dizendo: “és uma puta que andavas a foder no meio dos pinhais”. E que no dia seguinte viu a assistente com a cara vermelha ou pisada, já não foi capaz de precisar bem.
Por seu turno, a testemunha DD referiu que ia a passar na estrada, a cerca de 50 m da casa da D. CC e que ouviu a arguida dizer: “ladra, puta, roubaste um cartão à irmã”, que foi direita à assistente com as mãos para a agredir e que a assistente se refugiou em casa da D. CC.
Ora, conforme facilmente se constata as versões são tão variadas e díspares quantas as pessoas que as relatam não sendo, por isso, possível determinar o que é que a arguida disse, como e a quem (se à assistente directamente, se à testemunha CC).
Quanto ao sucedido no dia 18.9.2018, junto à fonte, a descrição factual feita pela assistente é, por si só, muito pouco credível. E pequenos pormenores como o facto de ter falado com a testemunha FF não foi confirmado por esta (referiu que passou pela assistente de carro mas nem sequer parou, que não falou com ela e nem se apercebeu de nada), assim como o depoimento do seu irmão – GG – também não se mostrou compatível com as suas declarações. Esta testemunha referiu que a irmã se aproximou do local onde o mesmo estava a trabalhar uma terra, dizendo: “Ó GG, a BB bateu-me. Deu-me um empurrãozito”. Que não lhe viu qualquer ferimento nem com a roupa desalinhada, apesar da mesma estar a chorar. E também a forma como relatou o sucedido é diferente daquela que consta da acusação.
Ou seja, da conjugação de todos estes elementos probatórios não resultou, com segurança e para lá de qualquer dúvida, o comportamento adoptado pela arguida nos diversos momentos, razão pela qual e valendo em processo penal o princípio constitucional in dubio pro reo, se deram tais factos por não provados.
(…)”

B - Da impugnação da decisão da matéria de facto
§ 1 – A assistente recorrente impugna um conjunto de factos considerados não provados, entendendo que os mesmos resultaram do julgamento por força de certos meios concretos de prova.
De jure
Para a devida apreciação do mérito da impugnação em apreço, julga-se útil recordar os critérios legais de apreciação da prova e as regras que condicionam a impugnação das decisões em matéria de facto, tendo por base um alegado erro de julgamento.
A valoração da prova produzida em julgamento é realizada de acordo com a regra geral prevista no art. 127º do Código de Processo Penal, segundo a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal - nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo -.
Esta regra concede ao julgador uma margem de liberdade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Essa liberdade não é, pois – de todo - absoluta, estando condicionada pela prudente convicção do julgador e temperada pelas regras da lógica e da experiência. A formação dessa convicção não se resume, pois, a uma mera opção voluntarista sobre a certeza de um facto, exigindo uma atividade intelectual de análise crítica da prova baseada nos critérios legais, beneficiando da imediação com a prova e tendo sempre presente que a dúvida inultrapassável fará operar o princípio in dubio pro reo. Tal impossibilita que o julgador possa formar a sua convicção de um modo puramente subjetivo e emocional.
Para os cidadãos – e os Tribunais superiores – poderem controlar a formação dessa convicção, o nº 2 do artigo 374º do Código de Processo Penal exige que a sentença deverá conter “uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal”, podendo o rigor dessa fundamentação ser aferido, também, com recurso à documentação da prova. Como decorre claramente da fundamentação da decisão da matéria de facto, acima reproduzida, a sentença recorrida satisfez plenamente tais exigências, podendo, por conseguinte, ser sindicada a convicção do Tribunal a quo em relação às provas produzidas em julgamento.
A livre apreciação da prova – ou, melhor, do livre convencimento motivado - não pode ser confundida com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação subjetiva e arbitrária da prova: a lei exige um convencimento lógico e motivado, assente numa avaliação das provas com sentido de responsabilidade e bom senso – que a decisão recorrida evidencia -.
O princípio da livre apreciação da prova não equivale ao livre arbítrio.
Tendo o tribunal a quo procedido a uma análise crítica dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, tal permitiu à recorrente impugnar o processo de formação da convicção da julgadora e este Tribunal só poderá revogar a decisão da matéria de facto recorrida, quando tal convicção não tiver sido formada em consonância com as regras da lógica e da experiência comum na análise dos meios concretos de prova produzidos em julgamento, o que poderá ser aferido com base na análise da fundamentação da decisão e verificação da sua conformação, ou não, com a prova produzida em julgamento.
Na verdade, “o recurso em matéria de facto não se destina a um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância”.
A reapreciação das provas gravadas só poderá abalar a convicção acolhida pelo tribunal recorrido, caso se verifique que a decisão sobre matéria de facto:
a) não tem qualquer fundamento nos elementos probatórios constantes do processo; ou
b) se os meios concretos de prova produzidos em julgamento não permitirem, racionalmente, sustentar suficientemente a decisão da matéria de facto.
No recurso da decisão da matéria de facto interessa apurar se os meios probatórios sindicados sustentam a convicção adquirida pelo tribunal a quo, de harmonia e em coerência com os princípios que regem a apreciação da prova, e não obter uma nova convicção do tribunal ad quem em resultado da apreciação de toda a prova produzida.
Embora a decisão da matéria de facto possa ser sindicada por iniciativa da recorrente interessada, mediante prévio cumprimento dos requisitos previstos no artigo 412.º, 3 e 4, do Código de Processo Penal, através de impugnação com base em alegados erros de julgamento, a reapreciação da prova é balizada pelos pontos questionados pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de impugnação especificada imposto por tal preceito legal, cuja “ratio legis” assenta precisamente no modo como o recurso da matéria de facto foi consagrado no nosso sistema processual penal, incumbindo ao interessado especificar:
a) os pontos sob censura na decisão recorrida; e
b) as provas concretas que, em seu entender, impunham desfecho diverso nessa matéria, por contraposição ao juízo formulado pelo julgador - por referência ao consignado na ata, nos termos do estatuído no artigo 364º, 2, do Código de Processo Penal e com indicação/transcrição das concretas passagens da gravação em que apoia a sua pretensão - e as provas que devem ser renovadas.
Do exposto conclui-se que o objeto do recurso em apreço exige que se apure se os probatórios sindicados sustentam a convicção adquirida pelo tribunal a quo, de harmonia e em coerência com os princípios que regem a apreciação da prova, e não de obter uma nova convicção do tribunal “ad quem” assente na apreciação da globalidade da prova produzida.
Assentes estes pressupostos genéricos cumpre, pois, descer ao caso concreto.
Concretizando:
Factos que a assistente pretende ver considerados provados:
- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. dos factos provados a arguida dirigindo-se à Assistente disse: “és uma puta”, “és uma ladra” e ainda “um dia destes eu fodo-te”;
- Com as acções supra descritas, a arguida quis, e objectivamente conseguiu, não só ameaçar como também injuriá-la, atingindo-a na sua honra e consideração (o que também conseguiu).
- A arguida, ao proferir as expressões supra referidas actuou voluntariamente, sabendo que a sua ação era adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à honra ou consideração devida à recorrente, e querendo fazê-lo.”
Para sustentar a sua tese recursória, a assistente invoca extratos da prova produzida oralmente em julgamento.
De acordo com as suas próprias declarações produzidas em julgamento - e reproduzidas na motivação de recurso – a arguida estava a conversar com outra senhora, a D. CC, dizendo que a ora assistente tinha roubado à irmã (da assistente) o carro, uma casita, o cartão de multibanco e dinheiro e que era uma ladra e uma puta, indo para os pinhais.
Procedeu-se à audição integral de tais declarações e constata-se que, efetivamente, em passagem alguma a assistente referiu expressamente que a arguida se tenha dirigido diretamente a si, imputando-lhe alguma dessas expressões ofensivas, apenas o tendo feito nos termos descritos na motivação de recurso, atrás aludida, ou seja, dizendo que a arguida concretizou tais afirmações na sua presença.
Porém, além disso, a recorrente também invoca o depoimento da testemunha CC (a D. CC referida nas suas próprias declarações), que começou por confirmar aquelas declarações da assistente, acrescentando ainda que a arguida ainda lhe disse que a ora assistente é uma fraca “que foi-me acusar de uma fogueira que eu fiz”. Foi nesse momento que surgiu a ora assistente e se dirigiu à arguida, dizendo-lhe “Fui eu fui, fui que a acusei, e agora? Se quiseres leva-me para tribunal.”.
Em resposta a essa interpelação é que a arguida se dirigiu então à ora assistente, dizendo-lhe “és uma ladra” (…) iniciando-se então uma discussão entre as duas, no âmbito da qual a arguida lhe disse que roubou o dinheiro e o cartão multibanco à irmã, ao que a assistente retorquiu, dizendo que a ora arguida roubou o cheque à mulher do II, acabando a arguida a dizer que (a ora assistente) era uma puta, dirigindo-se ainda a esta.
Nestes termos, confirmou as expressões “és uma ladra” e “és uma puta”.
Compulsada a fundamentação da convicção do tribunal, constata-se que na sua análise o depoimento da testemunha CC foi algo desvirtuado, ao ser mencionado que esta referiu ter estado a conversar com a arguida, tendo esta dito, referindo-se à assistente, “é uma ladra”, quando a assistente se aproximou, tendo depois alterado o discurso, referindo que a arguida se dirigiu diretamente à assistente dizendo: “és uma puta que andavas a foder no meio dos pinhais”.
Ora, tendo-se procedido à audição integral do depoimento em causa – e, também, as declarações da assistente - constata-se que a testemunha não teve duas versões da mesma descrição, antes aludindo a dois momentos distintos: no primeiro, a arguida estava a tecer considerações ofensivas relativamente à assistente, ainda sem reparar que esta se encontrava a aproximar-se. Quando a assistente escutou o que a arguida estava a dizer a seu respeito, envolveram-se as duas numa discussão, no âmbito da qual a arguida lhe dirigiu as frases que foram concretizadas pela testemunha “és uma puta” e “és uma ladra”, não tendo referido as demais constantes da acusação, sendo ainda certo, perante o modo “revoltado” como a assistente relatou o sucedido, que se sentiu profundamente vexada, humilhada e ofendida na sua honra e consideração, tanto para mais que duas pessoas estimadas pela demandante presenciaram o momento e que a demandada bem sabia que as expressões por si proferidas iriam ser conhecidas de todas as pessoas da terra – ..., povoação pequena onde ambas vivem.., o que resulta forçosamente da produção pública de tais afirmações injuriosas num meio tão pequeno.
De resto, compreende-se que uma pessoa idosa como a assistente e notoriamente emocionada a prestar as suas declarações, não tenha tido o rigor descritivo de uma testemunha não envolvida na discussão que se seguiu e, por outro, tenha sentido alguma inibição em relatar os termos da discussão, em que a própria assistente imputou à arguida ter roubado um cheque a outra pessoa.
Assim sendo, conclui-se que o depoimento da testemunha CC teve um conteúdo real que não foi integralmente apreendido pelo tribunal da primeira instância e que, devidamente aferido, impõe a alteração da decisão da matéria de facto, transitando para os factos provados o seguinte:
- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1. dos factos provados a arguida dirigiu-se à assistente, dizendo-lhe “és uma puta” e “és uma ladra”.
- Com tal ação, atuando voluntariamente, a arguida quis injuriá-la, o que objetivamente conseguiu, atingindo-a na sua honra e consideração.
- A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
- A demandante sentiu-se profundamente vexada, humilhada e ofendida na sua honra e consideração, tanto para mais que duas pessoas estimadas pela demandante presenciaram o momento.” - A demandada bem sabia que as expressões por si proferidas iriam ser conhecidas de todas as pessoas da terra – ..., povoação pequena onde ambas vivem.

Seguidamente, impugnando ainda a factualidade considerada não provada, a assistente recorrente pretende que sejam também considerados provados os factos seguidamente reproduzidos:
- No dia 18 de setembro de 2018, cerca das 16h30, junto à fonte de água sita na Rua ..., em ..., ..., Águeda, a arguida discutiu com AA, dizendo-lhe “foste fazer queixa de mim à Guarda, agora vais levar e vais levar bem”.
- De seguida, segurou na roda de trás do velocípede em que a assistente ali se tinha dirigido transportado à mão para assim carregar garrafões de água, e levantou-o, atingindo AA na cara e no peito, o que a fez desequilibrar, desferiu-lhe vários pontapés, atingindo-a nos joelhos e nas pernas.
- Quando AA se encontrava de cócoras, a arguida desferiu-lhe um murro, que a atingiu na face do lado esquerdo, e quando esta se levantou, a arguida pegou no chinelo que calçava e desferiu-lhe várias pancadas, atingindo-a no braço esquerdo.
- Como consequência direta e necessária da conduta da arguida, a assistente AA recebeu tratamento médico-hospitalar e sofreu as seguintes lesões:
- na face - equimose de 1 por 0.5 cm, na parte inferior do olho esquerdo; no membro superior direito - rubor de cor avermelhada e arredondado, de 0.5 cm de diâmetro, na parte anterior e média do antebraço;
- no membro superior esquerdo - equimose de cor negra, de 4 por 5 cm, na parte externa e inferior do cotovelo, equimose arredondada de 1 cm de diâmetro, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte interna e média do antebraço e outra típica de unhada, de 1 por 1 cm, na parte média e anterior do antebraço;
- no membro inferior direito - equimose arredondada de 3 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte lateral e externa do joelho; equimose de cor negra, de 4 por 2 cm, na parte superior e interna da perna; equimose arredondada de 0.5 cm de diâmetro, de cor negra, na parte lateral e interna da perna; e
- no membro inferior esquerdo - equimose arredondada de 4 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte média e anterior do joelho.
- Tais lesões determinaram em condições normais, 10 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e não resultaram, em condições normais, quaisquer consequências permanentes.
- Ainda nessa ocasião, a arguida disse, em tom de voz elevado e com foros de seriedade para a ofendida: ”anda desgraçada, que eu hei-de-te matar!”, “foste à GNR fazer queixa de mim, vais levar e vais levar bem”.
- A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da ofendida/assistente e de lhe causar dores e ferimentos, bem sabendo que, atuando como atuou, atingiu a saúde e a integridade física daquela.
- A arguida, ao desferir as pancadas, pontapés e murros que desferiu contra a assistente, actuou voluntariamente, sabendo que a sua ação era adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à integridade física da recorrente, e querendo fazê-lo.
- Em virtude do conteúdo intimidatório das expressões mencionadas, a ofendida sentiu-se assustada e receosa, chegando a temer pela sua vida.
Como meios concretos de prova que imponham decisão diversa, a assistente recorrente invoca as suas próprias declarações prestadas na audiência de julgamento do dia 4 de Maio de 2022, minutos 15:00 a 16:14, 16:15 a 25:40, 24:13 a 31:13 – que expressaram o sucedido -, em conjugação com exame médico-legal de fls. 14 a 16 – que documenta as lesões - e o depoimento da testemunha CC, no segmento documentado no dia 4 de Maio de 2022, do minuto 10:05 a 13:50, que corrobora a presença da arguida e assistente na data e local em causa, já separadas, afirmando ainda ter visto a assistente com a cara vermelha ou pisada.
Por seu turno, a decisão recorrida desvalorizou as declarações da assistente, não lhes conferindo credibilidade, classificando o seu discurso como “titubeante, exagerado e efabulado, não coincidente, sequer, com a descrição factual que é feita no libelo acusatório e sem suporte na demais prova testemunhal produzida”. A assistente referiu “que estava sozinha na fonte quando a arguida se aproximou dizendo: “Ai foste fazer queixa de mim à GNR? Agora levas e levas bem.” Que, de seguida, a arguida levantou a bicicleta que a assistente trazia, pelo meio e que a atingiu com a roda de trás. Depois corrigiu e referiu ter sido com a roda da frente. Disse que a roda lhe acertou no peito e na cara. Que se desequilibrou para trás, tendo sido sustada por um muro que ali existe. Contudo, referiu que caiu de cócoras para a frente (sem conseguir explicar tal movimento) e que enquanto estava nessa posição, que a arguida lhe desferiu um murro na cara, do lado esquerdo, que lhe acertou no olho. Que, seguidamente, lhe deu pontapés nos joelhos e nas pernas. Que, seguidamente, a assistente se levantou e que a arguida veio atrás de si, com um chinelo na mão e lhe desferiu várias pancadas no braço esquerdo (mas já sem certeza). Que foi ter com um seu irmão que andava ali próximo, a gritar e que passou pelo Sr. FF e que este lhe disse: “Ai, você vai toda pisada”. Já só no final do seu depoimento é que a assistente ainda acrescentou, instada directamente, que a arguida lhe disse: “Ó desgraçada, eu hei-de-te matar”. (…) a descrição factual feita pela assistente é, por si só, muito pouco credível. E pequenos pormenores como o facto de ter falado com a testemunha FF não foi confirmado por esta (referiu que passou pela assistente de carro mas nem sequer parou, que não falou com ela e nem se apercebeu de nada), assim como o depoimento do seu irmão – GG – também não se mostrou compatível com as suas declarações.
Esta testemunha referiu que a irmã se aproximou do local onde o mesmo estava a trabalhar uma terra, dizendo: “Ó GG, a BB bateu-me. Deu-me um empurrãozito”. Que não lhe viu qualquer ferimento nem com a roupa desalinhada, apesar da mesma estar a chorar. “
Porém, escutadas todas as declarações e depoimentos acima mencionados, conclui-se que, contrariamente à convicção expressada pelo tribunal “a quo”, as declarações da assistente foram caracterizadas por manifesta coerência, apresentando por vezes um discurso característico de certas pessoas idosas com menos instrução e perturbadas pelo que vivenciaram, com momentos de desabafos laterais aos factos em causa e imprecisões de linguagem.
Além do mais, contrariamente ao referido na fundamentação da decisão recorrida, não resulta das declarações da assistente ter sido atingida pela roda traseira da sua bicicleta quando esta estava a ser agarrada pela arguida, tendo sempre referido ter a arguida agarrado a bicicleta pela roda traseira e a meio, pelo quadro, para impulsionar o velocípede contra a assistente, atingindo-a com a roda da frente no rosto.
De resto, a sua descrição das agressões de que foi vítima – conforme descrito no libelo acusatório - é perfeitamente compatível com as lesões descritas no relatório do exame de clínica médico-legal a que a mesma assistente foi submetida no Gabinete Médico-Legal e Forense do Baixo Vouga (para onde foi transportada de ambulância logo a seguir, tal como se encontra documentado nos registos hospitalares), no qual se descrevem e caracterizam as consequências que, em termos físicos, a assistente sofreu em resultado daquele mesmo episódio - equimoses na face, membros superior esquerdo e membros inferiores, assim como (também ao nível do membro superior esquerdo) “… escoriação superficial e avermelhada… e outra típica de unhada… na parte média e anterior do antebraço…” – e as consequências psicológicas das mesmas (dores, forte perturbação emocional, vexame, tristeza e vergonha), bem como a mudança de comportamento durante alguns dias (enquanto teve marcas visíveis na cara, sentiu-se retraída e com vergonha de sair de casa).
Contrariamente ao concluído pelo tribunal “a quo”, a circunstância da testemunha FF não ter confirmado ter parado e falado com a assistente logo após a agressão não pode conduzir a uma desvalorização da credibilidade da versão manifestada pela assistente, pois esta testemunha assumiu, no seu depoimento, que tem problemas de memória, por razões de saúde.
Do mesmo modo, o depoimento do irmão da assistente, GG, também não pode ser invocado para descredibilizar as declarações da assistente, por não ter visto as lesões no corpo da sua irmã, nem a sua roupa desalinhada – apesar de a ter escutado a dizer “Ó GG, A BB bateu-me (…)” -, uma vez que as lesões estão documentadas no relatório de perícia médico-legal, na documentação hospitalar e essa testemunha ter admitido nunca olhar para a sua irmã, por estarem desavindos há muitos anos.
Finalmente, contrariamente ao concluído pelo tribunal da primeira instância, é perfeitamente natural que uma pessoa projetada contra uma parede, de costas, possa tombar para a frente, sendo também nesta parte verosímeis as declarações da assistente.
Pelo exposto, o conjunto da prova produzida permite conferir credibilidade à descrição dos factos efetuada pela assistente em julgamento, tendo-se provado os seguintes factos, que transitam, então, para a factualidade provada:
“- No dia 18 de setembro de 2018, cerca das 16h30, junto à fonte de água sita na Rua ..., em ..., ..., Águeda, a arguida discutiu com AA, dizendo-lhe “foste fazer queixa de mim à Guarda, agora vais levar e vais levar bem”.
- De seguida, segurou na roda de trás do velocípede em que a assistente ali se tinha dirigido transportado à mão para assim carregar garrafões de água, e levantou-o, atingindo AA na cara e no peito, o que a fez desequilibrar, desferiu-lhe vários pontapés, atingindo-a nos joelhos e nas pernas.
- Quando AA se encontrava de cócoras, a arguida desferiu-lhe um murro, que a atingiu na face do lado esquerdo, e quando esta se levantou, a arguida pegou no chinelo que calçava e desferiu-lhe várias pancadas, atingindo-a no braço esquerdo.
- Como consequência direta e necessária da conduta da arguida, a assistente AA recebeu tratamento médico-hospitalar e sofreu as seguintes lesões:
- na face - equimose de 1 por 0.5 cm, na parte inferior do olho esquerdo; no membro superior direito - rubor de cor avermelhada e arredondado, de 0.5 cm de diâmetro, na parte anterior e média do antebraço;
- no membro superior esquerdo - equimose de cor negra, de 4 por 5 cm, na parte externa e inferior do cotovelo, equimose arredondada de 1 cm de diâmetro, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte interna e média do antebraço e outra típica de unhada, de 1 por 1 cm, na parte média e anterior do antebraço;
- no membro inferior direito - equimose arrendondada de 3 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte lateral e externa do joelho; equimose de cor negra, de 4 por 2 cm, na parte superior e interna da perna; equimose arredondada de 0.5 cm de diâmetro, de cor negra, na parte lateral e interna da perna; e
- no membro inferior esquerdo - equimose arredondada de 4 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte média e anterior do joelho.
Tais lesões determinaram em condições normais, 10 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e não resultaram, em condições normais, quaisquer consequências permanentes.
A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da ofendida/assistente e de lhe causar dores e ferimentos, bem sabendo que, atuando como atuou, atingiu a saúde e a integridade física daquela.
A arguida, ao desferir as pancadas, pontapés e murros que desferiu contra a assistente, actuou voluntariamente, sabendo que a sua ação era adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à integridade física da recorrente, e querendo fazê-lo.
A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A demandante sentiu dores, ficou emocionalmente muito perturbada, vexada, triste e envergonhada, inclusivamente por ter ficado ainda alguns dias com marcas visíveis na face, razão pela qual se sentia retraída e com vergonha de sair.”
Contrariamente ao alegado pela recorrente, não se provou que ”Ainda nessa ocasião, a arguida disse, em tom de voz elevado e com foros de seriedade para a ofendida: ”anda desgraçada, que eu hei-de-te matar!”, “Em virtude do conteúdo intimidatório das expressões mencionadas, a ofendida sentiu-se assustada e receosa, chegando a temer pela sua vida.” “Ao agir da forma supra descrita, a arguida agiu com o propósito de atingir a liberdade de determinação da ofendida, causando-lhe medo, inquietação e desassossego, o que conseguiu.”Em virtude do conteúdo intimidatório das expressões mencionadas, a ofendida sentiu-se assustada e receosa, chegando a temer pela sua vida.”, nem que “Ao agir da forma supra descrita, a arguida agiu com o propósito de atingir a liberdade de determinação da ofendida, causando-lhe medo, inquietação e desassossego, o que conseguiu”.Ainda hoje a demandante revive a situação, o que a deixa profundamente incomodada e constrangida.” “Por via do medo que a demandante sente, ainda hoje só sai de casa para o estritamente necessário;” “A demandante deixou de ter uma noite descansada, por via do medo que sente da demandada;” “A demandante viu-se obrigada a alterar o seu dia-a-dia, não mais fazendo os seus passeios higiénicos e alterando as suas rotinas para evitar cruzar-se com a demandada, com medo do que esta lhe possa fazer.”
Na verdade, em passagem alguma das suas declarações a assistente manifestou verdadeira certeza relativamente à ameaça de morte como, em momento algum dos eventos, a assistente revelou ter sentido verdadeiramente receio pelas palavras que lhe foram dirigidas pela arguida – aliás, bem pelo contrário, sempre que a assistente escutou algo mais semelhante a uma ameaça, sempre retorquiu de forma que só pode ser classificada de desafiadora, nunca mostrando receio.
Do mesmo modo, a assistente queixou-se mais das suas limitações físicas próprias da idade, que a impedem de se deslocar como antigamente, ao mesmo tempo que desvalorizou o comportamento da arguida como fator de inibição de sair de casa e de restabelecer as suas rotinas depois de terem sarado as lesões. De sublinhar, ainda, que o tom quase de provocação que a assistente empregava nos seus confrontos verbais com a arguida revelam uma evidente falta de receio desta.
Assim sendo, o depoimento da testemunha EE, filha da assistente, também não se revela suficiente para atribuir uma relação de causa-efeito entre o comportamento agressivo da arguida e as mudanças nos hábitos de vida da sua mãe (depoimento gravado no dia 2 de Junho de 2022, entre o minuto 38:44 e o minuto 40:33).
Por conseguinte, confirma-se a decisão da matéria de facto na passagem em que considera não provados os seguintes factos:
- A demandante deixou de ter uma noite descansada, por via do medo que sente da demandada;
- A demandante viu-se obrigada a alterar o seu dia-a-dia, não mais fazendo os seus passeios higiénicos e alterando as suas rotinas para evitar cruzar-se com a demandada, com medo do que esta lhe possa fazer.
*
Das consequências jurídico-penais das alterações introduzidas na decisão da matéria de facto:
À arguida estava imputada, entre o mais, a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, n.º 1, do mesmo texto legal.

A - Do crime de injúria
O artigo 181º, n.º 1, do Código Penal estatui o seguinte:
«Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.».
O bem jurídico protegido por esta norma é a honra e a consideração, a que o próprio texto legal faz direta referência.
Para a verificação deste tipo de crime, devem estar reunidos três elementos objetivos: que o agente impute factos (mesmo que sejam suspeitas) ou dirija palavras a outrem; que esses factos ou palavras se traduzam numa ofensa à honra e consideração da pessoa a quem se dirigem; e que a conduta do agente seja concretizada dolosamente.
Ficou provado que a arguida se dirigiu à assistente dizendo-lhe “és uma puta” e “és uma ladra” e que, com tal ação, atuando voluntariamente, a arguida quis injuriá-la, o que objetivamente conseguiu, atingindo-a na sua honra e consideração, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Ora, tais expressões, “és uma puta” e “és uma ladra” são reconhecida e objetivamente lesivas da honra e consideração de qualquer pessoa; mais ainda, se tiverem sido proferidas num contexto que não permite concluir pela atribuição de outro sentido a tais palavras que não seja o de ofender a honra e consideração da pessoa a quem são dirigidas.
Quanto ao tipo subjetivo, face à factualidade dada como provada, não existem quaisquer dúvidas de que se encontra preenchido o mesmo, pois provou-se que a arguida teve a manifesta intenção de, com aquelas afirmações, ofender a honra e consideração da assistente, o que conseguiu, tendo a arguida agido de forma deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A arguida agiu, assim, com dolo direto na prática do crime de injúrias, nos termos do art.º 14º, n.º 1, do Código Penal.
Deste modo, verificado o cabal preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de injúria, pelo qual a arguida vem acusada, e inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou de culpa, a arguida cometeu, em autoria material, sob a forma consumada e com dolo direto, o mesmo, nos termos do disposto no artigo 181.º, n.º1 do Código Penal.

B - Do crime de ofensas à integridade física simples
Comete este crime quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa (artigo 143º, 1, do Código Penal).
O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a integridade física da pessoa humana.
Trata-se de um crime material e de dano, cujo tipo legal abrange um determinado resultado que é a lesão do corpo ou saúde de outrem, fazendo-se a imputação objetiva deste resultado à conduta ou à omissão do agente de acordo com as regras gerais.
O tipo legal do artigo 143.º do Código Penal exige o dolo, quanto às ofensas no corpo ou na saúde do ofendido, em qualquer das suas modalidades, sendo irrelevante a sua motivação (tal apenas poderá relevar em sede de determinação da medida da pena).
Deste modo, lesão corporal será aquela que corresponde a uma alteração anatómica ou patológica, uma perturbação ilícita da integridade corporal morfológica ou do funcionamento normal do organismo ou das suas funções psíquicas[10].
Ora, no caso em apreço, fez-se prova que a arguida causou ofensa no corpo da assistente lesada, atingindo AA na cara e no peito com uma bicicleta, o que a fez desequilibrar, desferiu-lhe ainda vários pontapés, atingindo-a nos joelhos e nas pernas e, quando já se encontrava de cócoras, a arguida desferiu-lhe um murro, que a atingiu na face do lado esquerdo, e quando esta se levantou, a arguida pegou no chinelo que calçava e desferiu-lhe várias pancadas, atingindo-a no braço esquerdo. Como consequência direta e necessária da conduta da arguida, a assistente AA recebeu tratamento médico-hospitalar e sofreu as seguintes lesões:
- na face - equimose de 1 por 0.5 cm, na parte inferior do olho esquerdo; no membro superior direito - rubor de cor avermelhada e arredondado, de 0.5 cm de diâmetro, na parte anterior e média do antebraço;
- no membro superior esquerdo - equimose de cor negra, de 4 por 5 cm, na parte externa e inferior do cotovelo, equimose arredondada de 1 cm de diâmetro, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte lateral e externa do cotovelo, escoriação superficial e avermelhada de 1 por 1 cm, na parte interna e média do antebraço e outra típica de unhada, de 1 por 1 cm, na parte média e anterior do antebraço;
- no membro inferior direito - equimose arrendondada de 3 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte lateral e externa do joelho; equimose de cor negra, de 4 por 2 cm, na parte superior e interna da perna; equimose arredondada de 0.5 cm de diâmetro, de cor negra, na parte lateral e interna da perna; e
- no membro inferior esquerdo - equimose arredondada de 4 cm de diâmetro, de cor arroxeada na parte média e anterior do joelho.
Tais lesões determinaram em condições normais, 10 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral.
A arguida agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da ofendida/assistente e de lhe causar dores e ferimentos, bem sabendo que, atuando como atuou, atingiu a saúde e a integridade física daquela.
A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Quanto ao tipo subjetivo, face à factualidade dada como provada, não existem quaisquer dúvidas de que se encontra preenchido o mesmo, pois provou-se que a arguida ao desferir as pancadas, pontapés e murros que desferiu contra a assistente, atuou voluntariamente, sabendo que a sua ação era adequada a produzir um resultado consubstanciado na ofensa à integridade física da recorrente, tendo agido de forma deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
A arguida agiu, assim, com dolo direto na prática do crime de ofensas à integridade física, nos termos do art.º 14º, n.º 1, do Código Penal.
Deste modo, verificado o cabal preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos desse tipo legal de crime pelo qual a arguida também vinha acusada, e inexistindo quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou de culpa, a arguida cometeu o mesmo em autoria material, sob a forma consumada e com dolo direto.
*
C - Dos dois crimes de ameaça agravada
Não se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de ameaça agravada, uma vez que:
a) não se provou que a arguida tenha ameaçado de morte a assistente; e
b) apenas resultou provado que a arguida disse à assistente, imediatamente antes de a agredir “foste fazer queixa de mim à Guarda, agora vais levar e vais levar bem”, entende-se que esta afirmação não consubstancia uma ameaça ao ponto de provocar medo ou inquietação, ou prejudicar a sua liberdade de determinação, tanto que esse resultado não aconteceu, tanto que nenhum desses resultados se verificou, não tendo a arguida ainda agido com a intenção de obter algum desses resultados.
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Deste modo, tendo presentes as alterações introduzidas na decisão da matéria de facto, com os reflexos na tipificação das condutas provadas da arguida, importa agora proceder à aplicação da sanção, procedendo à escolha das penas e determinar a sua medida, correspondendo à jurisprudência constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no processo n.º 93/02.6TAPTB-G1-A.S1, de 21/1/2016, publicado no DR, I-Série, de 22 de Fevereiro de 2016.
*
O crime de injúria cometido pela arguida é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.
O crime de ofensa à integridade física é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
A escolha da pena terá de ter em vista as finalidades consagradas no artigo 40º do Código Penal. A prevalência no problema da escolha da pena não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo elas que justificam, em perspetiva político-criminal, todo o movimento de luta contra a pena de prisão. A prevenção geral sempre sob a forma de conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, surge como limite à atuação das exigências de prevenção especial de socialização.
Por seu turno, a determinação da medida concreta da pena, dentro da moldura legal abstrata, faz-se atendendo ao grau de culpa documentado nos factos e às exigências de prevenção geral e especial que, no caso, se mostrem relevantes, tomando em linha de conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, deponham a favor ou contra o arguido.
Com efeito, de harmonia com o disposto no artigo 71º, n.º 1, do Código Penal, importa ponderar que a culpa constitui o limite inultrapassável da pena, atento o princípio de inviolabilidade da dignidade pessoal, e que a prevenção deve ser entendida num sentido positivo, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida .
Assim, é perfeitamente uniforme e pacífico o entendimento de que ao sentido pedagógico e ressocializador das penas acresce a finalidade de restabelecer a confiança coletiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, sem que possa ser excedida a medida da culpa .
No caso concreto em apreço, considerando os parâmetros acima concretizados, importa ter presente, em especial, a ausência de antecedentes criminais da arguida, nascida em .../.../1963, para optar pela pena não privativa da liberdade (a pena de multa) para sancionar os dois crimes.
O crime de injúria cometido pela arguida é punido, assim, com pena de multa entre 10 e 120 dias.
O crime de ofensa à integridade física é punido com pena fixada entre 10 e 360 dias de multa (artigo 47º, 1, do Código Penal).
Quanto aos fatores concretos de ponderação da pena concreta, importa valorar com eficácia agravante da pena:
a) a intensidade dolosa (dolo direto) na prática dos dois crimes – de reduzida eficácia agravante da pena -;
b) a violência empregue nas agressões físicas (quanto à pena a aplicar ao crime de ofensa à integridade física) que resultaram em diversas lesões físicas e psicológicas - com média eficácia agravante da pena -;
c) A pluralidade de expressões ofensivas utilizadas para injuriar a ofendida – de média eficácia agravante da pena respetiva -;
E, como atenuantes, apenas, o analfabetismo e a inserção familiar da arguida – com muito reduzida eficácia atenuante das penas - e a ausência de antecedentes criminais, esta com média eficácia atenuante das penas.
Ponderando tudo quanto ficou exposto, fixa-se as seguintes penas:
a) Quanto ao crime de injúria: 60 dias de multa, à taxa diária mínima (ponderando a sua situação económico-financeira muito frágil – ausência de rendimentos – provada);
b) Quanto ao crime de ofensa à integridade física: 140 dias de multa à taxa diária mínima;
Estabelece o artigo 77º do Código Penal que quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. A pena a aplicar tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Por seu turno, o limite mínimo corresponde à mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Tendo a arguida cometido os dois crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, a mesma deve ser condenada numa única pena de multa que, no caso em apreço, se situa entre 140 e 200 dias de multa.
Nestes termos, considerando os factos supra enunciados e, bem assim, a personalidade da arguida neles evidenciada e a pluralidade de bens jurídicos ofendidos com a prática dos crimes, considera-se adequada a pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária mínima (que é de cinco euros, nos termos do disposto no artigo 47º, nº 2, do Código Penal).

- Dos enxertos cíveis
A assistente, também na qualidade de demandante, deduziu dois pedidos cíveis porquanto se sentiu atingida na sua honra e consideração, na sua integridade física e na sua liberdade.
Assim, pelos danos sofridos peticiona:
a) a quantia de €400.00 (pelos danos sofrido pelo crime de injúria), e juros de mora vincendos; e
b) €2.000,00 (pelos danos sofridos pelos crimes de ameaça agravada e ofensa à integridade física simples) e juros de mora vincendos desde a notificação.
O Centro Hospitalar do Baixo Vouga, EPE deduziu, a fls. 290, um pedido de indemnização civil contra a arguida/demandada, peticionando o pagamento da quantia de €62,50 e de juros de mora legais vincendos, desde a notificação, até integral pagamento, relativo ao tratamento hospitalar prestado à ofendida, na sequência do comportamento da arguida.

Cumpre apreciar e decidir.
Importa recordar que nos termos do disposto no artigo 129º do Código Penal, “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil.”
Desde cedo a jurisprudência entendeu que tal norma só determina que a indemnização seja regulada “quantitativamente e nos seus pressupostos” pela lei civil, remetendo para os critérios da lei civil relativos à determinação concreta da indemnização, não tratando de questões processuais, que são reguladas pela lei adjetiva penal. [11]
Nos termos do disposto no artigo 483º, nº 1 do Código Civil, “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Os danos podem ser patrimoniais – regendo, quanto ao seu montante, o princípio geral contido no artigo 562º do Código Civil, que dispõe o seguinte “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Tendo a demandada agredido a assistente, causando lesões que foram objeto de assistência hospitalar por parte da demandante Centro Hospitalar do Baixo Vouga, EPE, cujo valor foi fixado em € 62,50, a demandada terá de indemnizar esta nesse montante – acrescido de juros de mora vencidos e vincendos até integral pagamento (arts. 805º, 1 e 806º, 1, ambos do Código Civil) -.
Quanto aos danos não patrimoniais cuja indemnização foi peticionada pela assistente demandante, importa ter presentes os seguintes citérios legais:
Da leitura do n.º 3 do artigo 496.º do Código Civil resulta claro que a indemnização por danos não patrimoniais (rectius, indemnização compensatória ou, noutros casos, indemnização punitiva) é calculada de acordo com os seguintes critérios:

a) Equidade: critério orientador de todos os restantes;
b) Grau de culpabilidade do agente (primeiro critério previsto no artigo 494.º);
c) Situação económica do agente (segundo critério previsto no artigo 494.º);
d) Situação económica do lesado (terceiro critério previsto no artigo 494.º);
e) Demais circunstâncias do caso (quarto critério previsto no artigo 494.º, o qual é, em rigor, uma cláusula aberta, que dá ampla liberdade à justiça do caso concreto, a cargo do labor jurisprudencial).
A equidade, correspondente à justiça distributiva, é a pedra angular da determinação do montante da indemnização punitiva, à luz da qual todos os outros critérios devem ser ponderados.
Aplicando tais critérios ao caso concreto, tendo presente a gravidade dos danos morais provados emergentes da prática do crime de ofensa à integridade física e do crime de injúria e tendo ainda presente, em especial, a muito débil situação económica da demandada -, considera-se ajustado fixar as seguintes indemnizações:
a) Pelos danos morais emergentes do crime de ofensa à integridade física: €500,-- (quinhentos euros);
b) Pelos danos morais emergentes do crime de injúria: €200, - (duzentos euros).
A tais quantias acrescem juros de mora contados à taxa legal desde a data do presente acórdão (tendo em conta que se trata de danos não patrimoniais) até efetivo e integral pagamento – acórdão do STJ, nº 4/2002, in DR, 1ª série, de 27/06/2002.
*
Assim sendo, por tudo quanto ficou exposto, o recurso é julgado parcialmente provido.
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Das custas
Sendo o recurso da assistente julgado apenas parcialmente provido, sem oposição da arguida, apenas a recorrente suportará o pagamento das custas do recurso, nos termos do disposto no artigo 515º, 1, b), do Código de Processo penal, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam por unanimidade os juízes ora subscritores, do Tribunal da Relação do Porto, em julgar parcialmente provido o recurso interposto pela assistente AA e, em consequência:
a) Alteram a decisão da matéria de facto nos termos acima concretizados;
b) Revogam a absolvição da arguida da acusação pelos crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal e de injúria, p. e p. pelo art. 181º, ainda do mesmo Código; e
a. Condenam a arguida BB:
a) pela autoria material, com dolo direto e sob a forma consumada, de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,-- (cinco euros);
b) pela autoria material, com dolo direto e sob a forma consumada, de um ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €5,-- (cinco euros);
c) procedendo ao cúmulo jurídico das penas atrás fixadas, condenam a arguida BB na pena única de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,-- (cinco euros)
c) Revogam a absolvição da demandada BB dos pedidos de indemnização civil; e
a. Condenam a demandada BB a pagar
ao demandante Centro Hospitalar do Baixo Vouga, EPE, a importância de €62,50 (sessenta e dois euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos desde a notificação e vincendos até integral pagamento;

b. Condenam a demandada BB a pagar à demandante AA as seguintes importâncias:
i. Pelos danos morais emergentes do crime de ofensa à integridade física: €500,-- (quinhentos euros), importância a que acrescem de juros de mora vincendos a partir desta data;
ii. Pelos danos morais emergentes do crime de injúria: €200,-- (duzentos euros) importância a que acrescem de juros de mora vincendos a partir desta data;
c. Absolvem a demandada do demais peticionado pela demandante AA;
d. De resto, negam provimento ao recurso, confirmando o acórdão recorrido.
d) Revogam a decisão em matéria de custas fixada na sentença recorrida e, em sua substituição:
a. Condenam a arguida no pagamento das custas criminais, fixando a taxa de justiça em 2 (duas) unidades de conta;
b. Condenam a demandante AA e a demandada BB no pagamento das custas cíveis na proporção do respetivo decaimento;
e) Custas do recurso a cargo da assistente recorrente, pelo decaimento parcial, fixando a taxa de justiça no mínimo legal.

Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.


Porto, em 19 de Abril de 2023.
Jorge M. Langweg
Maria Dolores Silva e Sousa
Manuel Soares

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[1] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto Dr. Jorge Dias Duarte.
[2] Cfr. expressa referência detectável “em fundo” quase no final da audiência de julgamento, se não está o signatário em erro, em breve troca de palavras entre a Mm.ª Juiz e a procuradora da República e/ou uma das mandatárias intervenientes no mesmo julgamento.
[3] Destaque-se que apesar de se ter verificado indevida interpretação da forma como a mesma relatava ter sido atingida pela bicicleta que a arguida terá empunhado e empurrado contra si, a ofendida manteve sempre que a arguida a atingiu com a roda da frente daquela bicicleta, para o que agarrou a mesma pelo quadro e pela roda traseira!
[4] Cfr. auto de notícia que está na génese dos autos, lavrado pela GNR, com data de 18 de Setembro de 2018.
[5] Casa que, à data, era a primeira casa quando se vinha da fonte
[6] Referem-se aqui estas duas testemunhas, pois para além de uma das demais testemunhas ter assumido que tem problemas de memória, por motivos de (falta de) saúde, o irmão da assistente, assume que “nem olhou para ela, por estarem desavindos há vários anos” o que, se crê, não terá sido também devidamente ponderado pelo tribunal recorrido…
[7] Na verdade, o princípio da livre valoração da prova impõe que a análise da prova produzida se faça de acordo com as regras da experiência comum, assim implicando um juízo não arbitrário e/ou meramente subjectivo da prova produzida, sendo que, para além de se convencer relativamente aos factos, o tribunal tem de convencer os destinatários das respectivas decisões da bondade das mesmas, assim afirmando o Tribunal Constitucional que a prova produzida tem de ser alvo de “… uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita ao julgador objectivar a apreciação dos factos, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” – cfr. Acórdão n.º 1165/96 (disponível em tribunalconstitucional.pt).
[8] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[9] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[10] Simas Santos e Leal Henriques, Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 2º. Volume, pág. 225, citando “Ofensas Corporais – Introdução ao Estudo Médico-Legal”, Colóquio de 1 de Março de 1983.
[11] Neste sentido, entre muitos outros, os acórdãos do STJ, de 12-12-1984, in BMJ nº 342, pág. 227; de 06-03-1985, in BMJ nº 345, pág. 213; de 13-02-1986, proferido no processo nº 38028; de 06-01-1988, in BMJ nº 373, pág. 264; de 12-01-1995, in CJSTJ, 1995, tomo I, pág. 181.