Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
503/14.0TBVFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CAIMOTO JÁCOME
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO DO PLANO
CRÉDITO DA SEGURANÇA SOCIAL
Nº do Documento: RP20141201503/14.0TBVFR.P1
Data do Acordão: 12/01/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Com a introdução do PER no CIRE, a satisfação dos direitos dos credores deixou de ocupar o lugar privilegiado que vinha tendo, passando, com a Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, que alterou o paradigma, a integrar o objectivo principal o da possibilidade de recuperação ou revitalização do devedor, em detrimento da figura da sua liquidação.
II - Num processo de revitalização intentado por pessoa singular (trabalhador por conta própria), na medida em que o plano de recuperação aprovado viola normas aplicáveis ao seu conteúdo, nomeadamente as condições de regularização da dívida à Segurança Social, regulada nos termos do art. 190.º e ss., do CRCSP, e do art. 81.º, do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro, deveria o tribunal a quo, nos termos do artº 215.º, do CIRE, ter recusado oficiosamente a homologação do mesmo, pois que a devedora não demonstrou poder oferecer garantias idóneas suficientes, susceptíveis de assegurar o pleno cumprimento do plano (pagamento em prestações), violando o art. 203.º, do CRCSP.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 503/14.0TBVFR.P1 - APELAÇÃO

Relator: Caimoto Jácome(1494)
Adjuntos: Macedo Domingues
Oliveira Abreu

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1- RELATÓRIO

B…, com os sinais dos autos, veio requerer o processo especial de revitalização(PER), ao abrigo do estatuído no artº 17º-A e seguintes, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), aprovado pelo DL nº 53/2004, de 18/03, cuja última alteração foi dada pela Lei nº 16/2012, de 20/04, que aditou aqueles normativos relativos ao PER.
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A administradora judicial provisória juntou a lista provisória de créditos (fls. 88-89, da qual constam apenas três credores, a saber, C…, S.A., D… e Autoridade Tributária), convertida em definitiva (fls. 91).
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Concluídas as negociações, foi aprovado um plano de recuperação conducente à revitalização da requerente, tendo votado favoravelmente os credores C…, S.A., e D…, alegadamente representativos de 89,47% dos votos.
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A requerente devedora juntou aos autos (fls. 108-109) o plano de recuperação conducente à revitalização da devedora, aqui dado como reproduzido.
Nesse plano consta, além do mais, um mapa de credores (cinco), entre os quais o Instituto da Segurança Social, IP (ISS,IP), que, aliás, não figurava na referida lista provisória de credores, o mesmo sucedendo com as credoras E… e F…, e o plano de pagamento, aprovado pela maioria dos credores (artº 17º-F, do CIRE).
No plano de pagamento proposto, está previsto, relativamente ao ISS,IP, o pagamento da quantia devida pela requerente (€ 6.452,69), em 10 prestações mensais de € 679,81 (com acréscimo de uma taxa de juro de 5,353%), vencendo-se a primeira no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença que homologar o plano de recuperação/revitalização.
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Mostra-se junto aos autos (fls. 112-113) um ofício dirigido pela Autoridade Tributária ao Ministério Público, no qual a AT emite voto desfavorável ao plano de recuperação apresentado.
Ouvida, a administradora judicial provisória veio informar (fls. 116) que não considerou aquele voto desfavorável por intempestivo.
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Foi proferida sentença, em 31/07/2014, que homologou o plano de recuperação/revitalização aprovado nestes autos, com o seguinte teor (sic):
Ao abrigo do disposto nos art.ºs 17.º- F, n.º 5, e 212.º do CIRE, inexistindo motivos para a recusa do plano de recuperação aprovado pelos credores nos termos constantes das informações prestadas sobre a votação, homologo, por sentença, o referido plano de revitalização da devedora requerente B…, por respeitar as formalidades e as exigências legais.
Custas pela requerente (art.º 17.º-F, n.º 7, do CPC).
Notifique, publicite e registe (art.º 17-F.º, n.º 6, do CIRE).”.
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Inconformado, o Instituto da Segurança Social, IP, credor reclamante no PER, apelou desta decisão, tendo, na sua alegação, formulado as seguintes conclusões.
1. Vem o presente recurso interposto da douta Sentença de fls. … e ss., proferido nos autos de Processo Especial de Revitalização supra identificados, que homologou Plano de Revitalização apresentado nos autos.
2. Porém, o ora apelante entende que o plano ora em análise viola normas aplicáveis ao seu conteúdo, nomeadamente as condições de regularização da dívida à Segurança Social, regulada nos termos do art. 190.º e ss., do CRCSP, e do art. 81.º, do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro, pelo que nos termos do art. 215.º, do CIRE, deveria o ilustre tribunal a quo ter recusado oficiosamente a homologação do mesmo.
4. A devedora não demonstrou poder oferecer garantias idóneas suficientes, susceptíveis de assegurar o pleno cumprimento do plano, violando o art. 203.º, do CRCSP.
6. E, ainda, o referido plano prevê a modificação e redução dos créditos da Segurança Social sem que tal tenha sido autorizado por este credor.
7. Sucede que após as alterações legais introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011 – doravante LOE2011) não é possível, sem o acordo do Estado (i. é, da Fazenda Nacional ou da Segurança Social), homologar um plano de Recuperação que comporte redução, extinção ou moratória de créditos fiscais ou da segurança social.
8. Anteriormente à LOE2011 considerava-se que o Estado, um credor entre os demais, devia respeitar a deliberação tomada pela maioria dos credores, alicerçando-se tal entendimento na especialidade do CIRE relativamente à LGT (lex specialis derrogar legi generali), no princípio da igualdade dos credores (par conditio creditorum) e da primazia da vontade dos credores na escolha da melhor forma de satisfação dos seus interesses no processo falimentar.
9. Com o aditamento do n.º 3, do art. 30.º, da LGT, pela LOE2011, ficou arredada a interpretação até então predominante que a lei especial – o CIRE – derroga a lei geral – a LGT – passando então a entender-se maioritariamente que o CIRE não pode arredar as normas tributárias em vigor relativas ao perdão e redução de créditos tributários.
10. Sendo o crédito do ora recorrente admitido, tanto na jurisprudência como na doutrina, como sendo de natureza tributária, é-lhes aplicável as normas tributárias, nomeadamente a natureza indisponível do crédito tributário, cuja redução ou extinção tem de respeitar os princípios de igualdade e legalidade tributárias.
11. Ora, conforme nos ensinam Carvalho Fernandes e João Labareda “são não negligenciáveis todas as violações imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza”.
12. Pelo Exposto, e inexistindo o acordo do ora recorrente, a homologação do plano de recuperação deve ser oficiosamente recusado, nos termos do art. 215° do CIRE, por o referido plano não se harmoniza com o grau de disponibilidade dos créditos públicos, violando, de forma não negligenciável, normas imperativas aplicáveis ao seu conteúdo.
13. Nestes exactos termos que temos vindo a acompanhar pronunciou já o Tribunal da Relação do Porto, por Douto Acórdão de 15-05-2012, proferido no âmbito do processo n.º 70/11.6TBSTS-D.P1, em que foi relator o Exmo. Juiz Desembargador Ramos Lopes e por Douto Acórdão de 01-10-2012, proferido no âmbito do processo n.º 1384/10.8TBPFR-G.P1, e em que foi relator a Exma. Juiz Desembargadora Ana Paula Carvalho, in www.dgsi.pt.
14. E de igual modo se pronunciou esta Ilustre Relação por Douto Acórdão, de 29/11/2011, proferido no âmbito do proc. n.º 588/08.8TBFND-D.C1, em que foi relator Artur Dias, bem como o douto Acórdão, proferido em 05-12-2012, no âmbito do processo n.º 43/11.9T2AVR-D.C1, em que foi Relator o Exmo. Juiz Desembargador Teles Pereira, in www.dgsi.pt.
15. Por último se refira que igualmente nos termos exposto se tem pronunciado o Supremo Tribunal de Justiça, como são disso exemplo os doutos Acórdãos de 15- 12-2011, em que foi Relator o Exmo. Juiz Conselheiro Silva Gonçalves, de 10-05-2012, em que foi Relator o Exmo. Juiz Conselheiro Álvaro Rodrigues e de 14-06-2012, em que foi Relator o Exmo. Juiz Conselheiro Oliveira Vasconcelos.
16. Nestes termos, e ao ter decidido como decidiu, a Douta Sentença recorrida fez uma incorrecta interpretação do art. 3.º, alínea a), 185.º, 190.º, art. 203.º, art. 211.º e 212.º, todos do CRCSP, o art. 81.º, do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro, o art. 3.º do Decreto-Lei n.º 73/99, de 16 de Março, o art. 30.º, n.º 2 e 3, da LGT e art. 215° do CIRE.
Termos em que, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra que recuse a homologação do plano.

Não houve resposta à alegação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é balizado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4, e 640º, nºs 1 e 2, do CPC).

2.1- OS FACTOS

A matéria de facto a considerar é a que consta do relatório bem como da documentação existente no processo, sendo de realçar, desde já, que:
- O ora recorrente reclamou, e foi-lhe reconhecido, um crédito no valor de € 6.452,69, pese embora não constasse da lista provisória de créditos.
- A devedora apresentou Plano de Recuperação/Revitalização que veio a ser aprovado pela maioria necessária dos votantes.
- Do Plano de Recuperação apresentado pela devedora consta, no plano de pagamento proposto, relativamente ao apelante ISS,IP, o pagamento da quantia devida pela requerente (€ 6.452,69), em 10 prestações mensais de € 679,81, acrescida de uma taxa de juro de 5,353%, vencendo-se a primeira no mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença que homologar o plano de recuperação/revitalização.

2.2- O DIREITO

Estabelece o artº 17°-A, nºs 1 e 2, do CIRE (aditado pela Lei nº 16/2012, de 20/04), que "O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização", e pode "ser utilizado por todo o devedor que, mediante declaração escrita e assinada, ateste que reúne as condições necessárias para a sua recuperação".
O processo especial de revitalização visa, pois, a viabilização ou recuperação do devedor. Num CIRE cujo fim precípuo era a satisfação dos direitos dos credores, o aditamento introduzido pela referida Lei na sua sistemática traduz uma mitigação de tal finalidade e um retorno ou colagem à anterior legislação falimentar na qual se previam figuras tendentes à consecução de tais propósitos (recuperação de empresa).
Este tipo de processo especial surgiu como resposta estratégica à necessidade da criação de uma envolvente favorável à revitalização do tecido empresarial num momento especialmente crítico do seu desenvolvimento, criando o legislador um novo instrumento de apoio à recuperação de empresas, com o intuito de optimização do contexto legal, tributário e financeiro em que as empresas actuam, tendo em vista a revitalização empresarial de unidades economicamente viáveis.
O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, encontrando-se em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo conducente à sua revitalização. É um processo negocial extrajudicial do devedor com os credores, com a orientação e fiscalização do administrador judicial provisório, de molde a lograr-se um acordo com vista à sua revitalização, sendo uma oportunidade para promover a reestruturação da empresa, podendo a final o plano de recuperação ser aprovado ou não aprovado, seguindo s os termos do disposto nos art°s 17°-F e 17º-G, do CIRE (ver, ainda, tramitação subsequente à fase inicial – requerimento e formalidades previstos no artº 17º-C - descrita no art° 17°-D).
Tal como preceituado no artº 17º-F, nº 3, do referido diploma legal, concluindo-se as negociações, o plano de recuperação considera-se aprovado quando venha ele a reunir a maioria dos votos prevista no nº 1, do artº 212º, do CIRE, para a aprovação de um plano de recuperação no âmbito de um processo de insolvência (quórum constitutivo de 1/3 do total dos créditos com direito de voto e quórum deliberativo de 2/3 de totalidade dos votos emitidos e de mais de metade dos votos correspondentes a créditos não subordinados), sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista definitiva ou provisória de créditos, no caso de aquela ter sido impugnada.
Após a votação e aprovação do plano de recuperação, incumbe então ao juiz decidir se deve homologar ou recusar o plano no prazo de dez dias a contar da recepção do mesmo (artº 17º-F, nºs 5 e 6), aplicando-se, para o efeito, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no título IX, em especial o disposto nos artigos 215.º e 216.º, sendo que a decisão do juiz vincula os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações.
A intervenção do juiz neste processo urgente é muito restrita, porquanto o interesse público radica na primazia da vontade dos credores, confiando-se, quase plenamente, nos mesmos, no administrador judicial bem como, de certa forma, no devedor, no sentido de salvaguardarem os abusos prejudiciais para aqueles e para a saúde da economia.
Considera-se pertinente o ponderado no acórdão da Relação de Guimarães, de 04/03/2013 (acessível em www.dgsi.pt), sobre o PER:
“(…) Chegados aqui, e incidindo agora a nossa atenção sobre o conteúdo dos artºs 215º e 216 º, do CIRE, certo é que de ambos decorre o dever de o Juiz recusar a homologação do plano de recuperação aprovado, caso seja confrontado com situações de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda quando v.g. tal lhe tenha sido solicitado por algum credor que demonstre em termos plausíveis, em alternativa, que: a) a sua situação com o plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria sem qualquer plano; b) O plano proporciona a um credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos.
Sucede que, no âmbito do poder/dever que dispõe de recusar a homologação do plano de recuperação, como bem salienta Luís Manuel Teles de Menezes Leitão(2), há-de o juiz ater-se às situações de “violação grave não negligenciável” das regras procedimentais ou de conteúdo do plano, pois que, já as “Violações consideradas menores, que não ponham em causa o interesse do devedor e dos credores afectados, não constituirão causa suficiente para que o juiz possa recusar a homologação do plano”.
Por sua vez, não distinguindo o legislador o que deve entender-se por “vício não negligenciável” que constitua fundamento da recusa de homologação do plano de recuperação, e estando abrangidos pelo artº 215º do CIRE tanto os meros vícios procedimentais com outrossim os de conteúdo, considera-se como que fazendo parte dos não negligenciáveis ou não desculpáveis, todos aqueles que importem forçosamente uma violação de normas imperativas que comportem a produção de um resultado não autorizado pela lei, sendo já porém negligenciáveis todas as outras infracções que atinjam regras de tutela particular que podem ser afastadas com o consentimento do protegido.
Em suma, dir-se-á que o processo especial de revitalização [inspirado no conhecido “capítulo 11” norte-americano], nascido no âmbito do programa revitalizar criado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 11/2012, de 3 de Fevereiro, e tendo como desiderato essencial afirmar-se como uma solução de reestruturação empresarial - ou seja, contribuir para a revitalização de empresas economicamente viáveis mas que se encontrem, pelas mais diversas razões, em situação difícil -, não devendo ser encarado como mais um expediente que veio fazer parte do “problema”, ao invés deve antes ser encarado como um efectivo meio que vem acrescentar algo de novo para a “solução”, maxime para a viabilização e/ou recuperação do devedor.
Ou seja, e dito de uma outra forma, com a introdução do PER no CIRE, a satisfação dos direitos dos credores deixou de ocupar o lugar privilegiado que vinha tendo, passando, doravante [manifesto é que com a Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, se alterou o paradigma, passando a integrar o objectivo principal o da possibilidade de recuperação ou revitalização do devedor, em detrimento da figura da sua liquidação], a recuperação do devedor a consubstanciar, também, um fim atendível no âmbito do CIRE, maxime em sede do PER.
Na verdade, tal como resulta da exposição de motivos da proposta de lei que deu lugar à Lei 16/2012 [Proposta de Lei n.º 39/XII, de 30/12/2011, da Presidência do Conselho de Ministros] o principal objectivo da alteração do CIRE visou direccionar este último diploma para a recuperação de empresas devedoras, “privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial, relegando-se para segundo plano a liquidação do seu património sempre que se mostre viável a sua recuperação”.
E, sendo assim como é (não olvidando ainda o disposto no artº 9º, nº1, do Cód. Civil), tudo aponta e obriga a que, em sede de recusa da homologação [cfr. artº 215º, do CIRE] do plano de recuperação conducente à revitalização do devedor, em razão de violação - não negligenciável - de regras procedimentais, há-de forçosamente o Juiz atender ou pelo menos não menosprezar o favor debitoris, ou seja, ter de alguma forma presente o desiderato do PER em sede de revitalização do tecido empresarial, e isto em oposição a uma anterior filosofia que privilegiava antes a liquidação e o desmantelamento das empresas.”.
Concorda-se com o ajuizado no referido acórdão.
Em suma, com publicação da mencionada Lei nº 16/2012, de 20/04, reorientou-se o CIRE para “a promoção da recuperação, representando uma verdadeira mudança de paradigma do regime insolvencial com vista à prossecução do interesse público de defesa da economia, assente na filosofia de que “cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas”.
Estabelece o nº 2, do artº 192º, do CIRE:
O plano só pode afetar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados.”.
No artº 215º, do CIRE, regula-se a recusa oficiosa da homologação do plano de insolvência, enquanto no artº 216º, do mesmo diploma legal, prevê-se a não homologação a solicitação dos interessados.
Normas procedimentais (artº 215º) são todas aquelas que regem a actuação a desenvolver no processo, que incluem os passos que nele devem ser dados até que a assembleia de credores decida sobre as propostas que lhe foram presentes - incluindo, por isso, as relativas à sua própria convocatória e funcionamento - e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar (Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, pg. 118).
Estando abrangidos pelo artº 215º, do CIRE, tanto os simples vícios procedimentais como os de conteúdo, deve considerar-se como que fazendo parte dos não negligenciáveis ou não desculpáveis, todos aqueles que determinem, por modo inequívoco, violação de normas imperativas, cujo resultado é ilegal, e em todo o caso insusceptível de poder ser suprido com o consentimento do tutelado.
Sustenta o Prof. L. Menezes Leitão (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, normativo em causa) que há-de o juiz ater-se às situações de “violação grave não negligenciável” das regras procedimentais ou de conteúdo do plano, pois que, já as “violações consideradas menores, que não ponham em causa o interesse do devedor e dos credores afectados, não constituirão causa suficiente para que o juiz possa recusar a homologação do plano”.

Feitas estas considerações genéricas (normativas, doutrinais e jurisprudenciais), revertendo ao objecto do recurso, temos que a apelante conclui, no essencial, que, após as alterações legais introduzidas pela Lei n.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro (Lei do Orçamento de Estado para 2011 – doravante LOE2011), não é possível, sem o acordo do Estado (i. é, da Fazenda Nacional ou da Segurança Social), homologar um plano de Recuperação que comporte redução, extinção ou moratória de créditos fiscais ou da segurança social.
Por isso, mais conclui, inexistindo o acordo do ora recorrente, a homologação do plano de recuperação deve ser oficiosamente recusado, nos termos do artº 215°, do CIRE, por o referido plano não se harmoniza com o grau de disponibilidade dos créditos públicos, violando, de forma não negligenciável, normas imperativas aplicáveis ao seu conteúdo.
Assiste razão ao apelante.
Sublinhe-se, desde logo, que a devedora requerente, ora apelada, afirma ser trabalhadora por conta própria, ter a profissão de gaspeadeira e viver sozinha.
Não está demonstrado, sem margem para dúvida, que a requerente seja empresária, se considerarmos a noção de empresa dada no artº 5º, do CIRE.
Ora, como observam Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, nota 8 ao artº 17º-A), “Perante o teor literal do preceito, dir-se-ia que ele abrange qualquer devedor, independentemente das respetivas natureza ou qualidade.
Cremos, todavia, existir um bom par de razões para um entendimento distinto.
Com efeito, a ideia de recuperabilidade do devedor tem constantemente sido ligada pela lei à existência de uma empresa no seu património e, neste sentido, à sua qualidade de empresário.
Foi assim, sem dúvida, na vigência do CPEREF, como o foi enquanto prevaleceu o regime do Decreto-Lei n." 177/86, de 2 de julho. Foi ainda assim com o procedimento especial de conciliação, previsto e regulado no Decreto-Lei n.º 316/98, de 20 de outubro, e é-o agora com o denominado SIREVE - Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial -, cuja disciplina consta do Dec.-Lei n.º 178/2012, de 3 de agosto. E é-o também com o CIRE, como facilmente se induz da própria denominação do Código e também se comprova pelo seu art.° 1.º, quer na respetiva versão originária, quer na "resultante da alteração operada pela Lei n.º 16/2012.
Por outro lado, a principal motivação da criação do processo de revitalização, inserida na revisão do Código, foi, como confessado na exposição de motivos que fundamentou a apresentação pelo Governo à Assembleia da República da Proposta de Lei n.º 39/XII, a promoção da recuperação, «privilegiando-se sempre que possível a manutenção do devedor no giro comercial» - segundo parágrafo, sublinhado nosso -, acrescentando-se, aliás, mais adiante que «a presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e eficientes no combate ao desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas».
Manifestamente, pois, a realidade que preenche o pensamento legislativo é o tecido empresarial, no seu conjunto, e de uma forma muito lata, facilitada, de resto, pelo conceito geral de empresa que, para os efeitos do Código - na global idade deste! -, e agora também do SIREVE (cfr. art.º 2.°, n.º 2, do Dec.-Lei n.º 178/2012), se acolhe no art.º 5.°.
Acode, também, uma outra razão que não se deve ter por despicienda. É que, embora já num enquadramento insolvencial, a lei contempla um procedimento especialmente vocacionado para devedores que não sejam titulares de empresas, previsto e regulado nos art.º 251.° e seguintes, por força do qual não se vê particular utilidade em cumular a possibilidade de recurso, por eles, ao processo de revitalização, com o consequente e, cremos, ineficiente consumo de recursos que este processo implica - judiciais e atinentes à administração provisória, de nomeação e envolvimento obrigatórios.
Temos, pois, por adequada a conclusão de que o processo de revitalização se dirige somente a devedores empresários, justificando-se a correspondente restrição ao significado literal do texto.
Neste sentido, a mais dos pressupostos objetivos do processo de revitalização que se materializam na situação económica difícil ou de insolvência iminente do devedor e da sua recuperabilidade, acresce o pressuposto subjetivo traduzido na exigência de que se trate de um devedor em cujo património se integra uma empresa - devedor empresário.”.
De todo o modo e por outro lado, ponderou-se, com inegável pertinência, a propósito de um caso semelhante, no acórdão desta Relação, de 15/05/2014 (relatado pela Exmª Desem. Teresa Santos, acessível em www.dgsi.pt) além do mais, que:
“Com a entrada em vigor da Lei nº 55-A/2010, de 31/12, (Lei do Orçamento de Estado para 2011), os créditos fiscais deixaram de poder ser afectados pelo plano de insolvência, pois foi acrescentado um n.º 3 àquele art.º 30.º, com o seguinte conteúdo: “O disposto no número anterior prevalece sobre qualquer legislação especial”.
Deste modo, se o legislador estendeu expressamente a aplicabilidade aos processos de insolvência do princípio geral vertido no art.º 30.º, n.º 2 da LGT de que o crédito tributário é indisponível, só podendo ser reduzido ou extinto com respeito pelo princípio da igualdade e da legalidade tributária, resulta cristalino que foi vontade do legislador fazer prevalecer regime geral da LGT sobre o regime especial do CIRE (aplicável aos demais credores, com as limitações acima mencionadas).
Deixou assim, por vontade dos credores, de ser possível reduzir ou extinguir créditos fiscais ou da Segurança Social – visto que os créditos da Segurança Social, independentemente da sua qualificação jurídica, “não há dúvida que são contribuições impostas coactivamente por lei, com a finalidade de financiar o direito à Segurança Social, que constitui um direito constitucional”, constituindo pois “uma espécie do género «tributo»”, caindo no âmbito do n.º 2, parte final, do art.º 3.º da LGT – cfr. Ac. RC de 17.01.2012, (Relator, Alberto Ruço), acessível in www.dgsi.pt.
Resulta, assim evidente que créditos fiscais/ou da Segurança Social não podem ser perturbados senão mediante a vontade do Estado, manifestada através dos seus legítimos representantes. Considerando que as normas de direito tributário têm carácter público e imperativo, vigorando, nesta sede, os princípios da indisponibilidade e da irrenunciabilidade, é ao Estado que compete, de forma soberana, criar e regular a forma de pagamento dos impostos, não podendo os particulares decidir quando, onde e de que forma efectuar tal pagamento. – Neste sentido, cfr. entre muitos outros, os Acórdãos da RC de 20.10.2011, de 28.05.2013 e de 24.09.2013 proferidos nos processos 588/08.8TBFND-D.C1, 249/12.3TBGRD-J.C1 e 36/13.1TBNLS.C1, desta Relação de 28.06.2013 e de 10.07.2013 proferidos nos processos 257/12.4TBMCD-C.P1 e 4944/12.9TBSTS-A.P1 e da RG de 23.04.2013 e de 18.06.2013, proferidos nos processos 2848/12.4TBGMR.G1 e 4021/12.2TBGMR.G1, acessíveis in www.dgsi.pt.
No caso, não se observou o disposto no art.º 215.º do CIRE - no sentido de que o tribunal como guardião da legalidade cabe-lhe sindicar o cumprimento e aplicação das normas relativas ao procedimento de elaboração e aprovação da proposta de plano de revitalização - não pode admitir-se a validade da homologação do plano de recuperação [contra a qual se manifesta o Instituto da Segurança Social, I.P., acrescendo que a decisão do juiz vincula os credores mesmo que não hajam participado nas negociações (art.º 17.º -F n.º 6 do CIRE)] decidida por sentença datada de 01.10.10.2013, ao abrigo do disposto no art.º 214.º do mesmo diploma.
Donde, mostrando-se que, no âmbito do Processo Especial de Revitalização, não é legalmente possível, contra vontade do Estado/ Segurança Social, reduzir ou extinguir créditos tributários e/ou conceder moratória, se deve concluir que o Plano de Recuperação aprovado pelos credores viola claramente o princípio da legalidade, o que configura nulidade claramente justificadora de recusa de homologação do plano aprovado, redundando assim numa “infracção de normas legais imperativas representativa de violação não negligenciável das regras aplicáveis ao seu conteúdo” (art.º 215º, n.º 1, do CIRE).
E, com tais premissas, relevantes no processo de revitalização por remissão do n.º 5 do art.º 17º- F, do CIRE, não podia o Tribunal recorrido ter homologado o plano proposto, como efectivamente o fez.
Ora, a inclusão, num tal Plano, de componentes inadmissíveis por violação das normas legais aplicáveis, afecta-o integralmente, o que obriga à sua não homologação. De forma alguma se pode conceber a sua homologação apenas parcial, isto é, considerar-se que o plano homologado é apenas ineficaz relativamente aos créditos do Instituto da Segurança Social, I.P., não produzindo assim quaisquer efeitos quanto a tal crédito - quando foi o plano, no seu todo que, efectivamente, foi sujeito a deliberação de aprovação maioritária pelos credores - o que, além de não ter cabimento legal, resultaria na inobservância do regime especial deste processo, com ofensa dos reduzidos prazos para a sua tramitação e conclusão, tal como resulta dos art.ºs 17.º-D e 17.º-G do CIRE.
Neste sentido, considera o Acórdão da RG de 23.04.2013, proc. 2848/12.4TBGMR.G1, (Relator, António Santos), acessível in www.dgsi.pt), que: “importa referir que, a violação em sede de plano de revitalização de normas aplicáveis ao respectivo conteúdo, fulmina o mesmo de vício que o atinge in totum, obrigando à sua não homologação (não podendo assim ser parcialmente homologado), por se dever considerar estar ele integralmente inquinado, sendo que, de resto, não existe fundamento legal [antes pelo contrário, considerando v.g. a circunstância de o PER estar sujeito à observância de prazos apertados para a sua tramitação e conclusão, tal como resulta dos artºs 17º-D e 17º-G, ambos do CIRE] que obrigue a que, em tais situações, deva o Juiz proferir decisão que determine o respectivo aperfeiçoamento”.
Conclui-se, assim, dever recusar-se a homologação do plano de recuperação, aprovado pela maioria dos credores, revogando-se, a decisão recorrida.”.
No mesmo sentido, ver, ainda, os acórdãos desta Relação de 10/0772013, 21/10/2013, 30/09/2013 (relatado pelo agora Exmº Desem. 2º adjunto) e 17/02/2014, todos acessíveis em www.dgsi.pt).
Subscreve-se o ajuizado em tais acórdãos, com plena aplicação no caso em apreço.
Pese embora não tenha sido deliberado uma redução ou perdão do crédito da Segurança Social (no final a Segurança Social iria receber € 6.798,10, ou seja, mais € 345,41 de juros), o plano de recuperação/revitalização, não aprovado pelo ISS,IP, prevê o pagamento em dez prestações mensais e, por outro lado, não se evidencia que devedora tenha demonstrado poder oferecer garantias idóneas suficientes, susceptíveis de assegurar o pleno cumprimento do plano (ver artº 203º, do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei nº 110/2009, de 16 de Setembro, e art. 81º, do Decreto Regulamentar nº 1-A/2011, de 3 de Janeiro.).
A decisão da 1ª instância não deve manter-se, pois que o plano de recuperação aprovado evidencia uma violação não negligenciável das normas aplicáveis ao seu conteúdo pelo que se impõe a recusa oficiosa da homologação daquele plano (artº 215º, nº 1, do CIRE).
Procede, assim, o concluído na alegação do recurso.

3- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida que homologou o plano de recuperação acordado no PER, pela requerente apelada.
Custas pela apelada, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Notifique.
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Anexa-se o sumário.

Porto, 01/12 /2014
Caimoto Jácome
Macedo Domingues
Oliveira Abreu
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SUMÁRIO (ARTº 663º, nº 7, do CPC:
I- Com a introdução do PER no CIRE, a satisfação dos direitos dos credores deixou de ocupar o lugar privilegiado que vinha tendo, passando, com a Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, que alterou o paradigma, a integrar o objectivo principal o da possibilidade de recuperação ou revitalização do devedor, em detrimento da figura da sua liquidação.
II- Num processo de revitalização intentado por pessoa singular (trabalhador por conta própria), na medida em que o plano de recuperação aprovado viola normas aplicáveis ao seu conteúdo, nomeadamente as condições de regularização da dívida à Segurança Social, regulada nos termos do art. 190.º e ss., do CRCSP, e do art. 81.º, do Decreto Regulamentar n.º 1-A/2011, de 3 de Janeiro, deveria o tribunal a quo, nos termos do artº 215.º, do CIRE, ter recusado oficiosamente a homologação do mesmo, pois que a devedora não demonstrou poder oferecer garantias idóneas suficientes, susceptíveis de assegurar o pleno cumprimento do plano (pagamento em prestações), violando o art. 203.º, do CRCSP.