Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
148/20.5PDPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: PRAZO
NOTIFICAÇÃO
ERRO DA SECRETARIA
NÃO PREJUÍZO DO SUJEITO PROCESSUAL
Nº do Documento: RP20220702148/20.5PDPRT-A.P1
Data do Acordão: 07/02/2022
Votação: DECISÃO SINGULAR
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: DECISÃO INDIVIDUAL
Decisão: DEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A regra estabelecida no n.º 6 do art. 157.º do CPC, aplicável no processo penal por força do disposto no art. 4.º, do CPP, no sentido de que a parte não pode ser prejudicada por erro ou omissão da secretaria judicial, implica que o acto da parte não possa “em qualquer caso” ser recusado se tiver sido praticado nos termos e prazos indicados pela secretaria.
II - No caso concreto a alusão, na notificação efetuada pela secretaria, ao inicio da contagem do prazo de recurso a partir daquela notificação, quando o prazo de recurso estava em curso, é de molde a suscitar dúvidas sobre a contagem daquele prazo e de induzir em erro sobre a contagem do mesmo, de tal modo que pode afirmar-se a existência de um nexo causal entre a notificação ao arguido nos referidos termos e a interposição de recurso num prazo compatível com aquela notificação e não com a notificação efetuada na leitura da sentença.
III - O princípio da tutela jurisdicional efetiva e o direito de acesso aos tribunais impõe que a tramitação processual subsequente deva ser conformada considerando o erro praticado e documentado no processo de modo a evitar prejuízo para a parte.

(Sumário da exclusiva responsabilidade da Relatora)
Reclamações: Reclamação n.º 148/20-5PDPRT-A.P1

I.

No processo comum singular n.º 148/20.5PDPRT que corre termos na comarca do Porto, Juízo local criminal do Porto, o arguido AA, veio reclamar do despacho do tribunal a quo que não lhe admitiu o recurso por si interposto, com o fundamento na sua intempestividade e cujo teor é o seguinte:
«Referência 32065741 (interposição de recurso):
«Compulsados os presentes autos, designadamente o teor da ata da audiência de julgamento, datada de 28.2.2022, constata-se que o arguido requereu a sua dispensa à leitura da sentença, atenta a sua situação prisional, pretendendo ser notificado da sentença a proferir, na pessoa da sua Defensora oficiosa, pretensão que foi diferida (cfr., referência 433960624).
Por outro lado, resulta do teor das referências n°s 434005667, 434364488 e 434364557, que, em 10.3.2022, foi proferida a sentença dos autos, tendo, nessa data, a referida Defensora do arguido sido notificada da sentença e procedeu-se ao respetivo depósito da sentença.
Assim sendo, atenta a data da interposição de recurso (26.4.2022) e o disposto no art. 411°, 1, al. b) do CPP, o recurso interposto mostra-se extemporâneo, razão pela qual não admito o mesmo.
Notifique.»
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É deste despacho que o arguido/reclamante, vem reclamar, com os seguintes fundamentos:
1.- Notificado da Sentença proferida, através de notificação remetida ao Estabelecimento Prisional onde se encontra em cumprimento de pena, veio o aqui arguido apresentar as suas motivações de recurso.
2.- Acontece que foi o mesmo não admitido (…)
3.- Salvo o sempre devido respeito por melhor e douto entendimento, não pode o aqui arguido concordar com a não admissão do seu recurso.
4.- É que pese embora a sentença tenha sido depositada no dia 10 de março de 2022, a verdade é que no dia 14 de março, foi remetido o EP, pedido de notificação pessoal do arguido (referência 434455216), onde o mesmo é notificado da douta sentença, sendo igualmente notificado de “tem o prazo de 30 dias, a contar da presente notificação, para exercer o direito de recurso da referida sentença"
5- Ora, daqui resulta que o prazo para a apresentação de recurso, passa a fazer-se nos termos do artigo 411.° n.° 1 alínea a) do Código do Processo Penal. Isto é, o prazo para a apresentação do recurso conta-se a partir da notificação da decisão.
6.- Isto porque, mesmo que se diga que o Arguido se considera notificado na pessoa da sua defensora, a verdade é que a secretaria do tribunal procedeu à notificação pessoal do arguido, concedendo-lhe novo prazo.
7.- Ora, diz-nos o artigo 157º nº 6 do CPC, aplicável ex vi artigo 4º do CPP, que "Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, cm qualquer caso, prejudicar as partes."
8.- Este erro da secretaria, gerou no arguido a convicção de que o prazo para a apresentação das suas motivações de recurso, se iniciaria com aquela notificação.
9.- sendo que uma decisão oposta, como aquela que foi proferida no despacho que não admitiu o recurso apresentado coloca em causa os princípios da confiança e boa-fé processual. 10.- - Tanto assim é que, em Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21 de Março de 2017 em que foi relator o Sr. Desembargador António Sobrinho http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/8209558c355d881f802581710055e0ba?OpenDocument se considerou que “ao ao praticar esse acto de notificação também em relação à arguida não pode daí extrair-se que se trata de acto processual facultativo, inócuo ou discricionário, sem repercussão jurídico-processual.”
10.- No mesmo acórdão fundamenta-se que tendo ocorrido essa notificação “não deixou de se criar no destinatário, em termos de homem médio, a expectativa e a confiança jurídicas de que, não sendo um acto inócuo ou inútil, aproveitariam àquele os efeitos processuais daí decorrentes, como seja o prazo de reacção à decisão judicial comunicada.
Na verdade, estão em causa os princípios da confiança e da boa-fé processual.
Quer os actos jurisdicionais, quer os actos da secretaria judicial não podem ter natureza facultativa, virtual ou inofensiva, mormente em sede de notificações aos sujeitos processuais, que tais comunicações e suas consequências estão dependentes de normas legais e são susceptíveis de criar nos seus destinatários legítimas expectativas jurídicas, como seja, no caso em apreço, o direito ao recurso
11.- Concluindo-se que “considerar-se que o acto de notificação à arguida traduz um erro de secretaria, o mesmo não a pode prejudicar - cfr. artº 157º, 6, do Código de Processo Civil ex vi artº do Código de Processo Penal (CPP) beneficiando do prazo mais longo para efeitos de recurso.”.
12. Assim, tudo ponderado, deve o Recurso interposto ser admitido, por temporâneo.

Termina pedindo que seja atendida a presente reclamação, ordenando-se a subida imediata e nos próprios autos do recurso interposto.
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Apreciando.
A questão posta é a de saber se o recurso interposto pelo arguido é tempestivo.

Para responder a esta questão impõe-se determinar o termo inicial do prazo de interposição do recurso pelo arguido. Saber se o mesmo se conta da data em que ocorreu o depósito da sentença na secretaria, como entendeu o tribunal a quo, ou se da data posterior em que a sentença foi pessoalmente notificada ao arguido, como pretende o reclamante.
Como resulta do teor da ata da audiência de julgamento, datada de 28.02.2022, o arguido requereu a sua dispensa à leitura da sentença, atenta a sua situação prisional, pretendendo ser notificado da sentença a proferir, na pessoa da sua Defensora oficiosa.
Sobre esse requerimento do arguido recaiu despacho com o seguinte teor: “Para a leitura da sentença, designo o dia 10 de março de 2022, pelas 13:35 horas, ficando o arguido dispensado de comparecer, atento o motivo invocado.”
Em 10.3.2022, data da leitura de sentença a Defensora do arguido esteve presente na leitura e nessa data procedeu-se ao depósito da sentença.
No dia 14.03.2022 foi enviado ao E.P um e-mail para notificação ao arguido, aqui reclamante, que tinha como assunto: Notificação da sentença. O pedido de notificação que o acompanhava solicitava que se providenciasse pela notificação do arguido AA, nos termos e para os efeitos a seguir mencionados:
«- De todo o conteúdo da sentença proferida, cuja cópia se junta para lhe(s) ser entregue neste ato.
- De que tem o prazo de 30 dias, a contar da presente notificação, para exercer o direito de recurso da referida sentença, devendo para o efeito contactar com o seu mandatário/defensor.»
O arguido, aqui reclamante, foi notificado em 17.03.2022 da sentença no E.P. O recurso foi interposto em 26.4.2022.
Vejamos.

Desconsiderando, para efeitos de raciocínio, a notificação efetuada ao arguido no EP, e especialmente os termos em que foi efetuada, a solução do caso derivaria do disposto no artigo 332º, n.º 5, e 373º, n.º 3, do CPP. O arguido esteve presente à audiência, mas ausente da leitura da sentença, pelo que se consideraria notificado desta “depois de ter sido lida perante o defensor[1]nomeado ou constituído”. No caso o arguido seria representado para todos os efeitos legais pelo seu defensor, incluindo para os efeitos da notificação da sentença penal, fixando-se o início do prazo legal para o recurso na data da notificação do defensor [2];[3].
Tendo em atenção estes dispositivos e o disposto no artigo 411º, n.º 1, al. b) o prazo de recurso contar-se-ia a partir da data do depósito da sentença. Foi esta a posição do tribunal a quo, e é a que corresponde à solução legal e neste pressuposto o recurso seria claramente extemporâneo, já que o depósito foi efetuado a 10.03.2022 e o recurso interposto a 26.04.2022.
Acontece, que o arguido foi pessoalmente notificado no EP, no dia 17.03.2022, nos seguintes termos: - De todo o conteúdo da sentença proferida, cuja cópia se junta para lhe(s) ser entregue neste ato. - De que tem o prazo de 30 dias, a contar da presente notificação, para exercer o direito de recurso da referida sentença, devendo para o efeito contactar com o seu mandatário/defensor.

Confortado com esta notificação pretende o reclamante que ao ser pessoalmente notificado nestes termos, o prazo para a apresentação de recurso, passa a fazer-se nos termos do artigo 411º, n.º 1 alínea a) do Código do Processo Penal; isto é, a partir da notificação da decisão, já que mesmo que se diga que o Arguido se considera notificado na pessoa da sua defensora, com a notificação pessoal do arguido a secretaria concedeu-lhe novo prazo. Mais alega que o erro da secretaria gerou no arguido a convicção de que o prazo para a apresentação das suas motivações de recurso se iniciaria com aquela notificação; e que decisão oposta, como aquela que foi proferida no despacho que não admitiu o recurso, coloca em causa os princípios da confiança e boa-fé processual.
Nos contornos concretos do caso, havendo[4] alguma notificação a ser feita ao arguido ao abrigo do artigo 113º, n.º 10, do CPP, seria apenas para conhecimento do teor da sentença, mas a notificação foi efetuada nos termos que já vimos, claramente em erro, quanto ao início do prazo para recorrer.

Há, assim, que atentar no disposto no artigo 157.º, n.º 6, do CPC[5] aplicável ao processo penal, por força do seu artigo 4º “Os erros e omissões dos atos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.”.

Como se escreve no Acórdão do Tribunal Constitucional de 26.09.2019[6] «O n.º 6 do artigo 157.º estabelece uma cláusula geral impeditiva do cerceamento dos direitos processuais das partes por conta de erros imputáveis à secretaria. Aliás, para que possa dizer-se equitativo e modelado para garantir uma tutela jurisdicional efetiva, nenhum processo pode prescindir do respeito pelos princípios da boa fé e da leal cooperação na relação entre as partes, e entre estas e o tribunal (…).»

E no mesmo Acórdão do TC escreve-se que o preceito radica na tutela da confiança. Ao vincular o Estado a conformar a sua atuação de modo a evitar que os seus erros prejudiquem as partes, promove-se a confiança na atuação das secretarias dos tribunais e salvaguarda-se a confiança que nessa atuação tenha sido depositada pelas partes.

Sobre este preceito escrevem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7] em anotação ao art. 157º do CPC “O n.°6 estabelece a regra de que a parte não pode ser prejudicada por erro ou omissão da secretaria judicial. Esta regra implica, por exemplo, que o ato da parte não pode, “em qualquer caso”, ser recusado ou considerado nulo se tiver sido praticado nos termos e prazos indicados pela secretaria, embora em contrariedade com o legalmente estabelecido (veja-se, designadamente, o art. 191-3).

Por sua vez, Carlos Lopes do Rego escreve[8] em anotação ao artigo 161, n.º 6, do Código anterior, com a mesma redação do atual “… será lícito inferir da regra constante deste 6 que - tendo a parte confiado em indicação dada de modo processualmente relevante e documentada nos autos por algum funcionário da secretaria não poderá resultar prejudicada pelo facto de se vir ulteriormente a julgar tal informação consubstanciava alguma ilegalidade. Como se afirma no ac. do STJ (in BMJ 470, pág.532) as partes têm que contar com a diligência e eficácia dos serviços judiciais, confiando neles e não desvirtuando o papel que cada agente judiciário tem no processo, idóneo para produzir o resultado que a todos interessa - cooperar com boa numa administração da justiça.”

Em consonância no Ac. do STJ de 30.11.2017[9], decidiu-se, que “Os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.(…)Na dúvida deve entender-se que a parte não pode ser prejudicada por actos praticados pela secretaria judicial, como estatui o artigo 157.º, n.º 6, do Código de Processo Civil vigente e preceituava identicamente, o anterior n.º 6 do artigo 161.º do CPC”. (…) Esta norma constitui emanação do princípio da segurança jurídica e da protecção da confiança e do princípio da transparência e da lealdade processuais, indissociáveis de um processo justo e equitativo. (…) A regulação dos prazos processuais implica com a realização da garantia constitucional do acesso aos tribunais. (…) A regra estabelecida pelo n.º 6 do artigo 157.º do Código de Processo Civil, aplicável no processo penal por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal, no sentido de que a parte não pode ser prejudicada por erro ou omissão da secretaria judicial, implica, por exemplo, que o acto da parte não pode “em qualquer caso” ser recusado ou considerado nulo se tiver sido praticado nos termos e prazos indicados pela secretaria, embora em contrariedade com o legalmente estabelecido (…).

A notificação em causa foi efetuada no âmbito de um processo-crime e é directamente relevante para o desenvolvimento normal do processo, pois se trata de notificação da sentença, contendo a indicação do início do prazo de recurso.

A alusão ao prazo do recurso, mormente a alusão à contagem daquele prazo a contar daquela notificação, especialmente porque ocorre quando o prazo do recurso estava em curso, o que tem grande relevância, é de molde a suscitar dúvidas sobre a contagem daquele prazo e suscetível de induzir em erro sobre a contagem do mesmo. E se é suscetível de induzir em erro, como é, pode afirmar-se a existência de um nexo causal entre a notificação ao arguido nos termos em que foi feita e a interposição do recurso num prazo compatível com aquela notificação e não com a notificação efetuada na leitura da sentença.

Assim, entendemos atenta a disposição em análise, o princípio da tutela jurisdicional efetiva e o direito de acesso aos tribunais que a tramitação processual subsequente deve ser conformada considerando o erro praticado e documentado no processo de modo a evitar prejuízo para a parte.
No caso, entender que o prazo para recorrer corria indiferente ao conteúdo da notificação efetuada ao arguido implicaria, objetivamente, uma limitação injustificada do direito a recorrer, afrontando o preceito constitucional do art. 20º da CRP.

Assim, tendo a notificação ao arguido sido efetuada no dia 17.03.2022, contando o prazo de 30 dias para interpor recurso a partir dessa notificação [salvaguardo o período de férias de Páscoa], o recorrente interpôs o recurso (26.04.2022) atempadamente.

Assim, o despacho reclamado não pode manter-se.
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Decisão.

Pelos fundamentos expostos, atende-se a reclamação apresentada, devendo o Tribunal a quo proferir despacho de admissão de recurso, a não haver outros fundamentos que a tal obstem.
*
Sem custas.
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Notifique.
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Porto, 02 de Julho de 2022.
Maria Dolores da Silva e Sousa
[Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto]
_____________
[1] O defensor que assistiu à leitura e foi notificado da sentença foi o mesmo que participou na audiência de julgamento e acompanhou integralmente a produção da prova.
[2] Cf. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República e da CEDH, 4ª edição atualizada, UCE, pp. 961 e 962.
[3] Cf. Como paradigma do caso concreto, exceto a notificação ao arguido, a hipótese tratada no Acórdão do tribunal constitucional, n.º 483/2010, acedido aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20100483.html
[4] Visto que “o arguido requereu a sua dispensa à leitura da sentença, atenta a sua situação prisional, pretendendo ser notificado da sentença a proferir, na pessoa da sua Defensora oficiosa.
[5] Anterior artigo 161º, n.º 6, do mesmo diploma.
[6] Cfr. Acórdão do TC n.º 500/2019, de 26.09.2019, acedido aqui: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190500.html
[7] Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º. Artigos 1º a 361º, pág. 316, 3ª edição.
[8] Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, 2ª edição, 2004, Almedina, p. 173
[9] Acedido aqui: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/05c4bc7bcc41f1c380258264003680f2?OpenDocument
Decisão Texto Integral: