Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
171/14.9YRPRT
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: PROCESSO DE INVENTÁRIO
SUSPENSÃO POR FALTA DE PRESTAÇÃO DE HONORÁRIOS
DESPACHO DO NOTÁRIO
APOIO JUDICIÁRIO
Nº do Documento: RP20150108171/14.9YRPRT
Data do Acordão: 01/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Viola o disposto nos artigos 20º, nº1, 18º, nº1 e 13º da CRP, o despacho do notário que suspende a tramitação de um processo de inventário no qual o requerente goza do benefício de apoio judiciário, enquanto a primeira prestação de honorários e outras despesas do processo, não se mostrem pagos pelo IGFEJ.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº171/14.9YRPRT
Entidade recorrida: Cartório Notarial de B…
Relator: Carlos Portela (596)
Adjuntos: Des. Pedro Lima Costa
Des. José Manuel de Araújo Barros

Acordam na 3ª Secção (2ª Cível) do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório:
C…, residente na Rua …, .., .º andar, Habitação .., ….-…, …, V. N. de Gaia, veio requerer no Cartório Notarial de B…, Vila Nova de Gaia, inventário para partilha dos bens do casal comum, dele e de seu marido D…, devidamente identificado nos autos, casamento esse que antes havia sido dissolvido por divórcio.
Na sequência do requerimento inicial que então apresentou, a mesma não pagou a primeira das prestações de honorários notariais que eram devidas, tendo juntado comprovativo da concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e demais encargos.
Foi então proferido pela Exma. Notária – Dr.ª B…, o seguinte despacho:
“Apreciado o requerimento e os documentos juntos ao processo, determina-se a sua suspensão, nos termos do disposto na alínea c) do nº1 do artigo 269º e nº1 do artigo 272º com as consequências previstas no artigo 275º, todos do Código de Processo Civil, até efectivo pagamento dos honorários notarias, previstos na alínea a) do nº6 do artigo 18º da Portaria nº278/2013 de 26 de Agosto, com os seguintes fundamentos:
Tendo sido apresentado pela requerente comprovativo de protecção jurídica para a interposição de acção de inventário e dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo nestes autos de inventário datado de 20/12/2013 e requerimento invocando o deferimento tácito da pretensão pelo decurso do prazo (30 dias) sem notificação da decisão à requerente, verifica-se a impossibilidade de cobrança dos referidos honorários, nas condições previstas no nº2 do artigo 26º da Portaria 278/2013, de 26 de Agosto, uma vez que não está ainda criado o Fundo que suportará tais encargos, nem se sabe quando tal será possível.
Oficie-se ao Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, com conhecimento ao Ministério da Justiça e à Ordem dos Notários, em cumprimento da informação dada pela Ordem dos Notários por email de 10 de Outubro de 2013, no sentido de apurar da possibilidade daquele instituto suportar os custos com honorários e despesas do processo até á criação do referido Fundo, circunstância em que será desbloqueada a suspensão do processo. O valor da primeira prestação de honorários é de 306$00 a que acresce IVA à taxa de 23% (artigo 18º da Portaria 278/2013), não tendo ainda valor previsível das despesas processuais.
Notifique-se á requerente na pessoa do seu patrono.”
Inconformada com o teor deste despacho, dele veio recorrer a Requerente, concluindo do seguinte modo as suas alegações:
A) É ilegal o despacho que ordenou a suspensão da instância, com fundamento na invocação de que o Notário aguarda que o IGFEJ lhe pague os honorários e despesas para que o processo de inventário possa ter tramitado, em processo de inventário em que a Recorrente e Requerente beneficia de Protecção Jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
B) A regra da aplicabilidade do CPC a tudo o que não esteja especialmente regulado no RJPI não tem aplicação para os casos de suspensão de instância por determinação do Juiz, por existir norma própria para as situações de suspensão de instância – art.º 16º - permitidas ao Notário.
C) Os casos de suspensão da instância em processo de inventário são limitados às questões de facto e de direito que pela sua natureza ou complexidade não possam ser decididas em processo de inventário, ou pendência de causa prejudicial, determinando-se nesse caso a remessa das partes para os meios judiciais comuns.
D) O art.º 84º do RJPI determina que aplicam-se as regras de interesse público do sistema de Acesso ao Direito, como emanação do direito fundamental constitucional da igualdade, previsto no artº 13º da CRP e de que a ninguém pode ser negado o acesso à justiça por motivos de insuficiência económica, nos termos do art.º 20º da CRP.
E) A suspensão da instância determinada – além do mais sine die - traduz-se assim em verdadeira denegação de justiça, já que a Lei nº 23/2013 cometeu em exclusivo aos Cartórios Notariais, a competência exclusiva, pública, de tramitação dos processo de inventário.
F) É ilegal o despacho recorrido que se fundamenta numa “Comunicação da Direcção da Ordem dos Notários”, que não é lei, não podendo o Notário ignorar que as recomendações, directivas, circulares ou outras, provenientes da Direcção da Ordem dos Notários não têm qualquer natureza vinculativa.
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Após ter proferido despacho a siderar o recurso tempestivo e legal e a admitir o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito meramente devolutivo, a Exma. Notária proferiu despacho de sustentação, mantendo o despacho recorrido.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso como próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais e nada obstando ao seu conhecimento, cumpre apreciar e decidir o recurso em apreço.
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II. Enquadramento de facto e de direito:
Por força do que dispõem os artigos 5º, nº1 e 7º, nº1 da Lei nº41/2013 ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais postas em vigor por este último diploma legal.
Ora como é por demais sabido, o objecto do presente recurso e sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo teor das conclusões vertidas pela Apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do NCPC).
Já antes vimos qual é o conteúdo das mesmas das quais resulta que a questão que nos é colocada é a de saber se existe fundamento para que o processo de inventário seja declarado suspenso enquanto não forem pagos os honorários notariais que são devidos.
E para este efeito deve ser tida em consideração a factualidade antes melhor descrita no ponto I. deste acórdão.
São pois estes os factos aos quais deve agora ser aplicado o correspondente direito.
Trilhando o caminho cujo objectivo último foi retirar dos tribunais muito do processado que só a estes antes cabia, entendeu por bem o legislador atribuir a competência para a tramitação dos processos de inventário aos cartórios notariais.
Assim e para tanto, acabou por publicar a Lei nº23/2013 de 5 de Março pela qual foi aprovado o regime jurídico do processo de inventário (RJPI).
Ora nos autos, todos já vimos que pela requerente e ora apelante foi requerido inventário para partilha subsequente ao seu divórcio.
Sabemos que a tramitação do inventário implica o pagamento de custas, as quais abrangem os honorários notariais e as despesas (cf. art. 15º, nº 1, da Portaria n.º 278/2013, de 26/8).
Isto e muito naturalmente porque o notário é um profissional liberal, retribuído pela prática dos actos notariais que pratica (cf. os artigos 1º, nº2 e 17º, nº1 do Estatuto do Notariado, aprovado pelo D.L. nº26/2004 de 4 de Fevereiro).
Exerce a sua actividade em instalações próprias, os cartórios notariais, estando obrigado à prestação de serviços que se querem ser “de elevada qualidade e prontidão” (cf. art.º5º, nºs 1 e 2 do mesmo Estatuto).
Deve assim “prestar os seus serviços a quantos os solicitem, salvo se tiver fundamento legal para a sua recusa” (cf. art.º23º, nº1, alínea c) do Estatuto).
Uma das situações expressamente previstas como sendo de recusa está consagrada no nº3 do art.º19º segundo o qual: “o notário pode exigir, a título de provisão, quantias por conta dos honorários ou despesas, sob pena de recusa da prática do acto, com excepção dos testamentos.”
Por outro lado e agora nos termos do art.º 67º nº1 do RJPI, cabe não esquecer que as custas devidas pela tramitação do inventário são pagas pelos herdeiros, pelo meeiro e pelo usufrutuário de toda a herança ou de parte dela, na proporção do que recebam, respondendo os bens legados subsidiariamente pelo seu pagamento.
Já o nº2 do art.º83º remete para portaria do membro do governo responsável pela área da justiça a regulação dos honorários notariais devidos pelo processo de inventário, o respectivo regime de pagamento e a responsabilidade pelo seu pagamento.
No que respeita ao apoio judiciário, estipula-se no art.º 84.º que é aplicável ao processo de inventário, com as necessárias adaptações, o regime jurídico do apoio judiciário e que nos casos de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, o regime de pagamento dos honorários e a responsabilidade pelos mesmos são regulados por portaria do membro do governo responsável pela área da justiça.
Recorde-se que a portaria supra referida é a Portaria nº278/2013, de 26 de Agosto.
Ora no art.º15º da aludida portaria estabelece-se que as custas pela tramitação do processo de inventário abrangem os honorários notariais e as despesas.
Mais, no art.º18.º consagra-se que “são devidos honorários ao notário pelos serviços prestados no âmbito do processo de inventário” (n.º 1), os quais estão explicitados nos anexos I e II da portaria (n.º 2) e devem ser pagos pelo requerente do processo de inventário, em três prestações: a 1.ª no momento da apresentação do requerimento inicial, a 2.ª nos 10 dias posteriores à notificação para a conferência de interessados e a 3.ª após a decisão homologatória da partilha pelo juiz (nº6).
Após o pagamento o requerente do inventário terá direito de regresso relativamente aos demais responsáveis pelas custas devidas pela tramitação do inventário (nº2 do art.º 19.º).
O não pagamento da 1.ª prestação determina a invalidação electrónica da referência de pagamento gerada pelo sistema e a consequente invalidação do requerimento de inventário (nº4 do art.º 20.º e nº3 do art.º 5.º).
O notário tem também o direito de ser reembolsado das despesas que realize e comprove devidamente, designadamente as que estão indicadas nas alíneas a) a h) do art.º 21.º da Portaria.
O responsável pelo seu pagamento é o requerente do inventário, sem prejuízo do direito de regresso relativamente aos demais responsáveis pelas custas (art.º 22.º). Aquele será notificado para proceder ao pagamento da despesa, antes da realização do ato a que ela respeita, com a cominação de este não ser praticado (n.º 2 do art.º 21.º).
Se não for possível determinar previamente o montante da despesa, o notário, após a realização do ato, notifica o responsável para proceder ao seu pagamento no prazo de 10 dias (n.º 3 do art.º 21.º).
Já no que toca ao apoio judiciário, determina o nº2 do art.º 26.º da Portaria que “nos casos de dispensa de pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, os honorários notariais são suportados integralmente por fundo a constituir pela Ordem dos Notários mediante afectação de percentagem dos honorários cobrados em processo de inventário.”
Porém, havendo bens legados, estes respondem pela proporção de honorários e despesas notariais que cabe a cada parte devendo ser ressarcidos em primeiro lugar os montantes devidos em despesas e seguidamente os honorários notariais, sendo, se necessário, o remanescente suportado pelo fundo referido (n.º 3 do art.º 26.º).
Regressando à situação dos autos e tendo em conta tudo o que antes deixamos exposto, resulta para nós claro que a requerente beneficiando como beneficia de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, não tem de suportar o pagamento dos honorários notariais nem das despesas supra referidas.
Assim, tais honorários serão suportados pelo fundo constituído pela Ordem dos Notários para o efeito.
Por outro lado, há que ter em conta a circunstância da lei não referir que o dito fundo deverá pagar os honorários em prestações, ou seja, em circunstâncias idênticas às que seriam aplicáveis se o requerente não gozasse de apoio judiciário.
Aliás, resulta evidente a dificuldade prática de tal solução, desde logo em relação à primeira prestação, de cujo pagamento depende a validação da apresentação do requerimento de inventário (cf. o nº3 do art.º 5.º).
De resto, do disposto no nº3 do art.º 5.º da supra citada Portaria, segundo o qual “independentemente da forma de apresentação do requerimento de inventário, o mesmo só se considera apresentado na data em for efectuado o pagamento da 1.ª prestação dos honorários do notário, ou em que foi entregue o documento comprovativo do pedido de apoio judiciário”, parece resultar a dispensa, no caso de apoio judiciário, de qualquer pagamento ao notário (inclusive pelo aludido fundo) para que o processo prossiga.
Assim, o processo de inventário só parará quando, tendo havido decisão desfavorável ao pedido de apoio judiciário, o requerente não proceder ao pagamento da 1.ª prestação.
Isto atento, o previsto no nº4 do art.º 5.º da Portaria segunda o qual: “caso o pedido de apoio judiciário não seja decidido favoravelmente, o processo prossegue após o pagamento da 1.ª prestação de honorários”.
Ora perante o acabado de dizer, não tem pois a nossa adesão o despacho recorrido.
E a tal conclusão não obsta o facto da Sr.ª Notária ter diligenciado junto do IGFEJ e na sequência do e-mail de 10.10.10.213, emanado da Ordem dos Notários no sentido daquele Instituto poder suportar os custos dos honorários e despesas do processo até á criação do supra referido Fundo.
Isto, porque salvo melhor opinião não tem fundamento legal a orientação sugerida pela mesma Ordem dos Notários e que recomenda “que intentados processos de inventário com recurso ao regime do Apoio Judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de custas, os Notários devem dar conhecimento desse facto ao IGFEJ, acompanhado da respectiva nota de honorários referentes à primeira prestação e de todas as despesas que comprovadamente tenham de efectuar, para que antes da realização de qualquer ato devido no processo, o Instituto pague de imediato os valores solicitados e, na sequência, devem informar o Ministério da Justiça e a Ordem dos Notários.”
Também não vemos justificação para entender que “este procedimento deverá ser seguido até que a Ordem dos Notários, o Ministério da Justiça e o IGFEJ outorguem um protocolo para a simplificação de todo o processo.”
Tudo porque na mesma comunicação apenas se mencionam projectos de alteração legislativa e futuros protocolos a celebrar.
Por isso, tem pois razão a requerente e ora apelante quando neste seu recurso vem defender que a decisão recorrida afronta o direito de acesso à justiça, independentemente da insuficiência de meios económicos, direito este que encontra consagração no art.º20º, nº1 da Constituição da República Portuguesa e que vincula directamente todas as entidades, públicas e privadas (art.º18º, nº1 da CRP).
E também quando afirma que a mesma decisão ofende o princípio da igualdade, consagrado no art.º13º da CRP, na medida em que limita o acesso à justiça por parte do menor representado pela requerente, em virtude da sua situação económica.
Por outro lado, não pode estar nem está minimamente em causa o direito da Sr.ª Notária de se ver remunerada pela sua actividade profissional.
No entanto e salvo melhor opinião, tal direito não está de todo na dependência da ordenada suspensão da instância.
Isto porque os honorários e as despesas que estão em causa poderão lograr pagamento no futuro, seja ainda na pendência, seja mesmo após o termo do inventário pelo fundo supra referido ou por quem, nos termos legalmente previstos vier a assumir esse encargo.
O que não pode é condicionar-se o direito da requerente em ver prosseguir este “seu” processo de inventário à futura criação de uma entidade que possa assegurar o pagamento dos honorários e das despesas que no caso sejam devidas.
Não há pois, qualquer fundamento legal que justifique a decisão recorrida, a qual e por isso deverá ser revogada.
Procede assim o recurso aqui interposto.
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Sumário (art.º663º, nº7 do NCPC):
Viola o disposto nos artigos 20º, nº1, 18º, nº1 e 13º da CRP, o despacho do notário que suspende a tramitação de um processo de inventário no qual o requerente goza do benefício de apoio judiciário, enquanto a primeira prestação de honorários e outras despesas do processo, não se mostrem pagos pelo IGFEJ.
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III. Decisão:
Pelo exposto julga-se a presente apelação procedente e, em consequência da revogação do despacho recorrido, determina-se o prosseguimento do processo de inventário aqui em apreço.
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Custas do presente recurso a cargo dos interessados (cf. os artigos 67º, nºs 1 e 2 do RJPI e 527º, nº1, parte final do NCPC).
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Notifique.

Porto, 8 de Janeiro de 2015
Carlos Portela
Pedro Lima Costa
José Manuel de Araújo Barros