Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
19/22.0PEPRT- M.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO AFONSO LUCAS
Descritores: COMPETÊNCIA DO JUIZ DE INSTRUÇÃO
NULIDADE DA DECISÃO INSTRUTÓRIA
Nº do Documento: RP2023050919/22.0PEPRT-M.P1
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: DECISÃO SUMÁRIA
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - A competência para a apreciação e decisão sobre a arguição de nulidade da própria decisão instrutória de pronúncia, suscitada nos termos e com os fundamentos do disposto no artigo 309º, n.º 1, do Código de Processo Penal, incumbe ao juiz de instrução que proferiu a decisão instrutória cuja validade processual é posta em causa.
II - Em tal caso, não se mostra esgotado o poder jurisdicional do juiz de instrução, pois não se pode considerar que se mostrem decididas todas as questões relacionadas com a decisão instrutória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 19/22.0PEPRT–M.P1
Referência : 16872319

Tribunal de origem:
Juízo de Instrução Criminal do Porto, Juiz 1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto
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Nos termos do art. 417º/6/d) do Cód. de Processo Penal, passa a proferir–se decisão sumária.
Na verdade, entende-se que a solução relativa à questão suscitada pelo recurso interposto é objecto de entendimento jurisprudencial uniforme e reiterado.
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I. Enquadramento processual do recurso.

São as seguintes as incidências processuais relevantes para contextualizar a presente decisão :

1, Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra, além de outros, o arguido (ora recorrente) AA (imputando–lhe a prática, em concurso real e sempre em co–autoria, de um crime de roubo agravado na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 210º/1/2/b), 204º/2/f) g), 22º/1, 23º/2 e 73º/1, todos do Cód. Penal, e de um crime de roubo agravado desqualificado pelo valor, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 210º/1/2/b), 204º/2/g)/4, ambos do Cód. Penal) ;

2, Nomeadamente pelo mesmo arguido AA foi oportunamente requerida a abertura de instrução, e, efectivada tal fase processual, com debate instrutório, veio a ser exarada decisão instrutória, no âmbito da qual veio a ser proferida pronúncia cujo segmento decisório é o seguinte:
«Assim e porque os autos continuam a fornecer indícios da prática pelos arguidos dos crimes referidos na acusação (nada se conhecendo quanto aos demais, por forçado disposto no artigo 307°, 4, do CPP) determino a PRONUNCIA de AA E BB, com os sinais dos autos, pelos factos e respetiva incriminação constantes da acusação, cujos termos, de acordo com o disposto no art. 307° do CPP, aqui considero como integralmente reproduzidos. » ;

3, Notificado desta decisão instrutória de pronúncia, veio o arguido AA a apresentar nos autos, em 20/02/2023, requerimento nos seguintes termos :
- «O aqui defensor do A. vem expor e requerer o seguinte, nos termos do art.º 309º n.º1 d CPP :
1º. Na douta decisão pública de acusação pelo MP em momento algum se refere à Lei do Cibercrime, Lei n." 109/2009, de 15 de Setembro.
2º O aqui A., não é imputado na acusação qualquer crime - exclusivamente de catálogo _ previsto naquele diploma, em sede de disposições materiais penais.
Nem pode,
3º. Ser utlizado para além de - vd., art.º 11 deste corpo legal - para além das normas materiais penais especialmente previstas nesta norma do art.º 11, n.º1 al. a).
4º. Nem o crime foi cometido por via informático - art.º 11, n.º1 al. b). Pelo menos na discrição da douta acusação pública.
5º. Pela alínea c) deste n.º do art.º 11 está desaplicado ex vi por causa do Ac. 268/2022 do TC - quanto aos metadados.
Como aponta,
6º. O Ac. da Relação do Porto, n.º 5011/22.2JAPRT-A.Pl, de 07/12/2022, do Relator Pedro Vaz Pato, datado de, consultável in dgsi.pt:
- Tendo o acórdão do Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 4º, 6º e 9º da Lei nº 32/2008, de 17 de julho (Lei relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto de oferta de serviços de comunicações electrónicas), não podemos tentar tornear esse acórdão, "deixando entrar pela janela" aquilo a que ele "fechou a porta"; ou seja, não podemos recorrer a outras normas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram a essa declaração de inconstitucionalidade.
II – Não é, por isso, legalmente possível recorrer para esse efeito aos regimes dos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal (relativo às comunicações em tempo real, não à conservação de dados de comunicações pretéritas), da Lei n. o 4172008, de 18 de agosto (relativo à protecção contractual no contexto das relações entre empresas fornecedoras de serviços de comunicações electrónicas e seus clientes, campo distinto do da investigação criminal) e da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro (Lei do Cibercrime).
III – Não podem os tribunais substituir-se ao legislador suprindo omissões de onde resultam graves inconvenientes para a investigação criminal.
Continua este Aresto:
As exigências em causa, que levam à declaração de inconstitucionalidade, são aplicáveis a todos os dados de tráfego. O mesmo deverá dizer-se, pelos mesmos motivos, da hipótese de aplicação do regime decorrente das Lei n.º 109/2009 de 15 de setembro (Lei do Cibercrime), regime que poderá ser considerado o regime geral em relação ao qual é especial o decorrente da Lei nº 32/2008, de 17 de julho (pode ver-se, neste sentido, o acórdão da Relação de Évora de 14 de julho de 2020, proc. a. o 9/20.8GAMTL-A.E1, relatado por Maria de Fátima Bernardes, in dgsi.pt). Afirma-se, a este respeito, também no já citado acórdão da Relação de Coimbra de 12 de outubro de 2022: «Desparecendo a especialidade, não nos é lícito recorrer à generalidade»; tal representaria «defraudar o espírito do legislador».
7º. Assim, o despacho de pronúncia é nulo nos termos do art.º 310° n.º1 do CPP pois acrescenta à acusação pública a aplicação da Lei do Cibercrime sem que tenha dado oportunidade de contraditório às partes no debate instrutório dessa sua intenção nem fundamenta qual a norma específica que aplica da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, sendo que esta Lei restrita a crimes de catálogo, e que pelo art.º 187º do CPP não poderia ser aplicado pois os crimes pelo qual o aqui A., veio acusado/pronunciado, já tinham sido alegadamente cometidos. Nem aplicou o art." 303° do CPP.
8º. Devendo ser decretada a nulidade do despacho de pronúncia.
Questão de constitucionalidade
9º. O defensor do aqui A., informa o Tribunal que está a colocar de modo concreto, adequado e cristalino uma questão de interpretação normativa de dimensão constitucional ao Tribunal, requerendo pronúncia expressa ao Tribunal art." 205° da CRP.
Assim,
10.º Recoloca-se a questão colocada no nosso requerimento de abertura de instrução: apenas com a novidade de ser também extensiva ao art.º 11º n.º1 als. a), b) e c) da Lei do Cibercrime Lei n," 109/2009, de 15 de Setembro – que se presume que seja a norma a aplicar - com remissão para as normas 11 ° a 17º da Lei n. 109/2009, artigo 18° e no 19° dessa Lei, e por fim o catálogo de crimes do n. 1 do artigo 187° do Código de Processo Penal, por remissão expressa da Lei 109/2009, como pressuposto de aplicação do regime processual contido nesse artigo 18° e no 19° dessa Lei para os crimes previstos na alo b) do artigo 18°.
a) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo 4.0 da Lei nº 3212008, de 17 de julho, conjugada com o artigo 6.º da mesma lei, por violação do disposto nos n.ºs 1 e 4 do artigo 35.º e do n." 1 do artigo 26.º, em conjugação com o n." 2 do artigo 18.º , todos da Constituição;
b) Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 9.0 da Lei nº) 32/2008, de 17 de julho, relativa à transmissão de dados armazenados às autoridades competentes para investigação, detecção e repressão de crimes graves, na parte em que não prevê uma notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja susceptível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros, por violação do disposto no n." 1 do artigo 35.º e do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o n.º 2 do artigo 18.°, todos da Constituição.
Estando referido Acórdão em vigor, sendo válido e eficaz na ordem jurídica portuguesa, com efeitos retroactivos.
Porque no presente caso, há provas que foram obtidas através de uso de metadados ainda que com o fundamento da lei do cibercrime que se concretizaram em indícios que sustentaram a investigação durante o inquérito, o arguido em interrogatório negou a comissão do crime pelo qual vem acusado, logo inexistem provas indiciárias que possam sujeitar o mesmo a julgamento.
11º. Mormente como chegaram à identidade e residência do A.?
12º. De modo que, se requer a aplicação retroactiva in favoris do aqui arguido (pois as normas que agora deixaram de existir no ordenamento jurídico português deixaram de existir, e tiveram aplicação directa concreta no presente caso em inquérito) e uma decisão de não pronúncia pois inexistindo prova contra o arguido art.º 308º n.º1 última parte do CPP a decisão deverá ser de não pronúncia, visto que a probabilidade de absolvição é enorme face à total ausência de provas indiciárias.
13º. A efectiva comprovação do inquérito está feita no sentido de uma conclusão de que faltam provas válidas que sustentem uma acusação no sentido sujeitar o aqui arguido ao julgamento, e um juízo de prognose de maior probabilidade de condenação.
Todavia, por mera cautela de mandato,
Questão de dimensão interpretativa normativa constitucional, requerendo ao Tribunal pronúncia expressa sobre a mesma em despacho autónomo.
14º. Argui-se a inconstitucionalidade interpretativa com aplicação concreta e directa in cas«das normas supra citadas nos artsº 9° a 13 deste requerimento, devendo Vª Exa afastar a aplicação das mesmas – pois já não existem no ordenamento jurídico nacional em sede extensiva de interpretação – e retirar as devidas consequências legais, reformulando caso seja esse o caso a eventual ponderação e decisão nos presentes autos instrutórios .
15º. Devendo todas as provas proibidas serem retiradas do processo.

4. Pela Juiz de Instrução foi determinado que os autos fossem com vista ao Ministério Público quanto ao requerimento apresentado, vindo nessa sequência o Ministério Público a propugnar pelo indeferimento do requerido, promovendo em conclusão nos seguintes termos:
«Em face do exposto, sem prejuízo de se mostrar esgotado o poder jurisdicional do Tribunal para se pronunciar quanto a eventuais nulidades e não olvidando que o despacho que o arguido pretende sindicar, também por este via, é pura e simplesmente irrecorrível, não lhe assiste qualquer razão, não se compreendendo a invocação de um normativo que se debruça sobre a questão da alteração substancial de factos, quando nem sequer se verifica uma situação de alteração não substancial! »

5. Veio então pela mesma Juiz de Instrução a ser proferido, em 28/02/2023, o seguinte despacho :
«Promoção que antecede:
Visto.
Nada a ordenar.
Sendo certo que se encontra esgotado o poder jurisdicional, porque foi junto requerimento, notifique o requerente da mesma.»

6. É deste singelo despacho que ora vem recorrer o arguido AA – por requerimento de recurso apresentado em 13/03/2023 – o que faz extraindo das respectivas alegações as seguintes conclusões:
1ª - O art.º 310º n.º 3 do CPP comtempla expressamente a recorribilidade do despacho que desatende a arguição da nulidade invocada nos termos do art.º 309º n.º 1 e 2 do CPP.
2ª - É uma opção do legislador.
3ª - Não se poderá concluir que só as arguições que o Tribunal a quo considere justificáveis são recorríveis, dessa forma nenhuma seria recorrível.
4ª - O A., concluí que existido tal arguição alicerçada nos termos do art.º 309º n.º 1 e 2 do CPP, o despacho que recaia sobre o mesmo, é recorrível, sendo um despacho de mérito ou adjectivo - como sucede in casu, o que a Lei não distingue não deve o intérprete distinguir.
5ª - O aqui arguido invocou legal e tempestivamente nos termos do art.º 309º n.º 1 e n.º 2 do CPP a nulidade expressamente prevista, perante a autoridade judicial competente.
6ª - O Tribunal a quo, desatendeu tal arguição com o fundamento que o poder jurisdicional estar esgotado, sem invocar quaisquer normas que justifiquem tal decisão. No seguimento da promoção do MP.
7ª - Tal conclusão é nula por nulidade de fundamentação. Nulidade apenas invocável em recurso.
8ª - Com efeito, o Tribunal pode e devia perante a Lei decidir sobre tal arguição e não se encontrava de todo, esgotado o seu poder jurisdicional, na óptica do aqui A.
9ª - O Art.º 309 prevê especificadamente tal peça processual.
10ª - Pelo que o A., conclui que se deve revogar tal despacho por outro que ordene a reformulação do despacho desatendido e se pronuncie sobre a nulidade invocada.
11ª - Sobre a temática da lei do cibercrime, Lei n.º 109/2009 que tem normas materiais criminais, crimes especialmente previstas, o Tribunal a quo não cuidou de justificar a sua invocação.
12ª - Pelo que invocamos a arguição de nulidade para o Tribunal recorrido clarificar tal aplicação de normas e em que termos o fez.
13ª - Contrariamente ao invocado pelo MP, não invocamos esta Lei n.º 109/2009 no nosso RAI.
14ª - Vd., O Ac., da Relação do Porto, n.º 5011/22.2JAPRT-A.P1, de 07/12/2022, do Relator Pedro Vaz Pato, consultável in dgsi.pt:
I - Tendo o acórdão do Tribunal Constitucional declarado a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, dos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho (Lei relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto de oferta de serviços de comunicações electrónicas), não podemos tentar tornear esse acórdão, “deixando entrar pela janela” aquilo a que ele "fechou a porta"; ou seja, não podemos recorrer a outras normas para obter o mesmo efeito que resultaria da aplicação das normas declaradas inconstitucionais sem que essas outras normas contenham aquelas garantias que faltam a estas e que levaram a essa declaração de inconstitucionalidade.
II - Não é, por isso, legalmente possível recorrer para esse efeito aos regimes dos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal (relativo às comunicações em tempo real, não à conservação de dados de comunicações pretéritas), da Lei n.º 4172008, de 18 de agosto (relativo à protecção contractual no contexto das relações entre empresas fornecedoras de serviços de comunicações Cibercrime). electrónicas e seus clientes, campo distinto do da investigação criminal) e da Lei n.º 109/2009, de 15 setembro (Lei do Cibercrime).
III- Não podem os tribunais substituir-se ao legislador suprindo omissões de onde resultam graves inconvenientes para a investigação criminal.
15ª - O Tribunal recorrido lança mão desta Lei, que não é referida no despacho de acusação.
16ª - Foi essencialmente esse o nosso fundamento do nosso requerimento de arguição de nulidade. A temática foi bem suscitada e correctamente fundamentada pelo A. e não foi concretizada de modo vago como o MP aponta.
17ª - De modo que recaiu em nulidade de pronúncia o compósito despacho de pronúncia mais despacho que recaiu sobre as alegadas nulidades, ora recorrido, que se arguiu expressis verbis nos termos do art.º 379º n.º 1 al., c) do CPP.
18ª - Questões de constitucionalidade – invocadas de forma específica e adequada requerendo-se acórdão específico sobre as questões, gerando um dever de pronúncia sobre o Tribunal art.º 205º da CRP.
19ª - Em sede de questão de constitucionalidade, a arguida omissão de pronúncia cria de igual modo dúvidas de constitucionalidade e assim, face ao dever geral de fundamentação que decorre amplu sensu do dever de fundamentação, das sentenças decorre, assim, do art.º 205, no 1, da C.R.P., que as Sentenças/despachos devem ser fundamentadas - gerando assim uma interpretação inconstitucional quando se interprete que podem ser totalmente omissas quanto a questão da identificação das normas invocadas para sustentar a tese de esgotamento de poder jurisdicional - ex vi art.º 379º n.º 1 al., c) do CPP.
20 - Em sede de questão de constitucionalidade, imputa também como inconstitucional a conclusão de que tendo sida tempestivamente arguida a nulidade do art.º 309º n.º 1 e 2 do CPP, o poder jurisdicional se encontra esgotado por violação do princípio da legalidade e da confiança jurídica, e direito do A., em se defender, vd., arts., 2º, 18º e 32º n.º 1 da CRP.
21ª - Em último ponto, imputa como inconstitucional a interpretação do art.º 310º n.º 3 do CPP no sentido de que o despacho que desatende a nulidade arguida nos termos do art.º 309º n.º 1 e 2 do CPP não é recorrível.
Por violação dos direitos de defesa, legalidade e confiança jurídica do A, respectivamente arts., 32.º n.º 1, e 18 da CRP.
22ª - Requer que recai Acórdão expresso sobre as questões isoladas, e adequadamente colocadas ao Tribunal ad quem, gerando um dever de pronúncia nos termos do art.º 205º da CRP.
Termos em que deve ser Revogado o ora recorrido despacho por Acórdão que reenvie os autos ao Tribunal a quo para pronúncia e fundamentação sobre a arguida nulidade de fundamentação, e por o poder jurisdicional não estar esgotado.

7, O recurso, em 14/03/2023, foi admitido, exarando do mesmo passo a Juiz de Instrução as seguintes considerações em sustento da decisão recorrida :
«O arguido vem apresentando de forma contínua recursos e requerimentos de caráter dilatório, obstando ao normal prosseguimento dos autos, sendo que sem a organização do presente traslado, os autos principais ainda estavam neste tribunal, sem possibilidade de julgamento.
A decisão de pronúncia não é recorrível e está esgotado o poder jurisdicional; o despacho sindicado afirma o que já tinha sido dito em anterior despacho e teve como escopo transmitir ao arguido a posição do M°Pº sobre requerimento que juntou.
O arguido junta requerimentos e recursos sucessivos, tais peças têm que ser apresentadas ao juiz e tudo o que pode ser dito, pois que tais peças originam uma espécie de "limbo" processual (a instrução encerrou) é isso mesmo: esgotou o poder jurisdicional.»

8, Ao recurso respondeu o Ministério Público, em 31/03/2022, propugnando pela improcedência do recurso – referindo, além do mais e na única parte de tal resposta que verdadeiramente releva para a presente decisão, que «ao contrário do alegado pelo recorrente, no sentido de o Tribunal dever pronunciar-se quanto às nulidades invocadas em momento ulterior ao da prolação da decisão instrutória, é por demais evidente que, a partir do momento em que se mostre proferida a decisão instrutória, fica esgotado o poder jurisdicional conferido ao juiz na fase de instrução» ;

9, Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 12/04/2023, no parecer que emitiu, termina referenciando que «A nossa posição sobre tão intrincado recurso apenas pode coincidir com aquela expressada na resposta do Ministério Público que acima transcrevemos. Pelo exposto afigura-se-nos que o recurso deverá ser rejeitado ou, caso assim não se entenda, o mesmo deverá improceder».

10, Em resposta ao parecer assim emitido, e ao abrigo do disposto no art. 417º/2 do Cód. de Processo Penal, veio o arguido/recorrente reiterar os fundamentos da sua pretensão recursória, referenciando em especial o seguinte:
«Independentemente desse ponto - da aceitação do recurso – se o legislador previu na lei que o A., tem que arguir a nulidade em 8 dias, face ao despacho de pronúncia, explicitando o itinerário processual, que o A., cumpriu, não se compreende o argumento do esgotamento do poder jurisdicional do JIC.
De modo, que se requer que seja concluído que o A., concretizou correctamente o itinerário processual e que o poder jurisdicional do JIC não se esgotou. (…)
A questão de se recorrer do despacho de pronúncia ou do despacho que desatendeu a arguição de nulidade, o nosso requerimento de recurso é claro de que despacho se recorre, mas claro com referência à nulidade do despacho de pronúncia invocado.».

Cumpre decidir.
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II. Apreciação do recurso.

A primeira nota que cumpre clarificar é a de que a decisão material de que ora se recorre é só uma : aquela, datada de 28/02/2023, pela qual a Juiz de Instrução (JIC), após proferida a decisão instrutória de pronúncia nos autos, não se pronunciou quanto à nulidade do mesmo despacho de pronúncia oportunamente suscitada pelo arguido ao abrigo e com fundamento no disposto no art. 309º/1 do Cód. de Processo Penal, por considerar esgotado o seu poder jurisdicional nos autos.
Donde, desde já se consigna que são absolutamente irrelevantes, para afeitos da presente decisão, todas as considerações efectuadas, designadamente pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso, à existência ou não de fundamento material que sustente a nulidade invocada – isto é, são irrelevantes todas as considerações efectuadas quanto a verificar–se ou não, na decisão instrutória, uma situação de pronúncia por «por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução», cfr. art. 309º/1 do Cód. de Processo Penal.
Tal discussão situa–se a jusante da questão que aqui cumpre apreciar e decidir, e que é tão apenas a de saber da sustentabilidade do despacho que decidiu não chegar sequer a conhecer liminarmente do mérito da arguição da nulidade em causa.
É certo, diga–se, que também o arguido/recorrente ocupa substancial parte do seu requerimento de recurso discorrendo sobre a verificação de tal nulidade. Porém, e nessa parte, não pode deixar de subscrever–se o esclarecimento a propósito prestado na sua resposta ao parecer emitido pelo PGA, qual seja o de que tais referências, no âmbito do presente recurso, visam apenas contextualizar a sua pretensão recursória, pois que esta última se reporta à decisão de não apreciação sobre aquela nulidade – e não a qualquer decisão (que não existe) sobre a verificação material dessa mesma invalidade.

Isto bem clarificado, analisemos antão a pretensão recursória.

A primeira vertente em que o arguido/recorrente assenta tal pretensão tem a ver com saber se se verifica a invocada nulidade da decisão recorrida por falta de fundamentação.
Assim, é inquestionável que o artigo 205º/1 da Constituição da República Portuguesa consagra que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”, inserindo–se tal exigência nas garantias de defesa em processo criminal a que alude o art. 32º/1 do mesmo diploma fundamental – vindo neste âmbito o dever de fundamentação plasmado, em conformidade, desde logo no art. 97º/5 do Cód. de Processo Penal, onde se estipula que «Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
Ora, o artigo 118º/1 do Cód. de Processo Penal estabelece que «a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei»; quando assim não suceder, o acto ilegal é meramente irregular, nos termos do nº2 do mesmo preceito.
A norma em causa enuncia assim o princípio da tipicidade ou da legalidade, pelo qual só algumas das violações das normas processuais é que têm como consequência a nulidade do respectivo acto.
A falta de fundamentação do despacho ora recorrido (sendo certo não estarmos perante uma decisão que configure uma sentença, sendo assim absolutamente deslocada a invocação do art. 379º do Cód. de Processo Penal, que reporta em exclusivo às invalidades processuais de tal específico acto processual decisório) não é cominada no art. 97º do Cód. de Processo Penal, nem em outro qualquer preceito, com nulidade (absoluta ou relativa), pelo que a mesma constitui uma irregularidade, por força do nº 2 do art. 118º do mesmo Código.
Nos termos do art. 123º/1 do Cód. de Processo Penal «Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do ato a que se refere e dos termos subsequentes que possa afetar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio ato ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes, a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum ato nele praticado.».
Donde, e só por esta liminar razão, não tendo in casu a irregularidade processual sido tempestivamente arguida, nos termos deste art. 123º/1 do Código de Processo Penal, sempre se deveria ter a mesma por sanada.

Seja como for, sempre se aditará, muito sinteticamente, que a fundamentação das decisões varia em função do tipo concreto de cada acto e das circunstâncias em que ele é praticado, cabendo, na avaliação da suficiência da respectiva fundamentação, ponderar–se se os respectivos destinatários, perante o teor desse acto e das suas circunstâncias, estão em condições de perceber, com critérios de razoabilidade, o motivo pelo qual se decidiu num sentido e não noutro, de forma a conformar-se com o decidido ou a reagir-lhe pelos meios legais.
Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22/01/2019 (proc. 186/13.4PAPNI.C1)[1], «Se um destinatário normal, perante o teor do ato e das suas circunstâncias, está em condições de perceber o motivo pelo qual se decidiu num sentido e não noutro, então a decisão, independentemente de se concordar ou não com ela, está fundamentada».
No caso, pese embora a sua acentuada singeleza e carácter quase telegráfico, a verdade é que o despacho recorrido não deixa de assinalar o fundamento pelo qual decide (rectius, não decide) quanto ao requerimento oportunamente apresentado pelo arguido : considera haver–se esgotado o seu poder jurisdicional, isto é, a sua competência material própria, enquanto juiz de instrução, para apreciar da questão naquele requerimento suscitada – não sendo outro o sentido unívoco de tal fundamento.
E, mais importante, constata–se que o arguido/recorrente dificuldade alguma revela na imediata apreensão e na plena compreensão do sentido daquela decisão e seu respectivo fundamento, ainda que desornado – pois que reage ao mesmo pela forma adequada e propugnando a sindicância daquela invocada falta (por esgotamento) de poder jurisdicional.
Assim como apreensível é também tal sustento decisório para a presente instância de recurso.
É, assim, possível reconduzir racionalmente a razão que determinou que o tribunal a quo adoptasse aquela decisão ora recorrida.
Sempre inexistiria, portanto, a alegada falta de fundamentação – apesar de se conceder no seu carácter assaz prosaico. Aquilo a que a alegação do recorrente se reporta é, afinal, a uma discordância quanto à sustentação material dessa fundamentação – mas isso, só por si, implicando desde logo a apreensão desta última, não determina qualquer falta de fundamentação do despacho recorrido.

Em suma, não se verifica a invocada nulidade no despacho recorrido.


Adentremos, pois, no segmento substancial e fundamental do recurso interposto, e que se traduz em saber se se mostra esgotado o poder jurisdicional do JIC para apreciar e decidir o requerimento em que foi suscitada pelo arguido a nulidade processual prevista no art. 309º/1 do Cód. de Processo Penal.

No caso, a ponderação aqui necessária deve ter presente o disposto nos arts. 309º e 310º do Cód. de Processo Penal.
Estipula o primeiro de tais preceitos o seguinte:
«1 - A decisão instrutória é nula na parte em que pronunciar o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento para abertura da instrução.
2 - A nulidade é arguida no prazo de oito dias contados da data da notificação da decisão.»
Por seu turno, dispõe o citado art. 310º do Cód. de Processo Penal:
«1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, formulada nos termos do artigo 283.º ou do n.º 4 do artigo 285.º, é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais, e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 - O disposto no número anterior não prejudica a competência do tribunal de julgamento para excluir provas proibidas.
3 – É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.

Ou seja, pese embora actualmente, e com esta redacção do art. 310º do Cód. de Processo Penal (introduzida pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto[2]) se hajam dissipado as dúvidas sobre a intenção do legislador em restringir o recurso da decisão instrutória de pronúncia tale quale a acusação ou o RAI formulados a montante, mesmo no que tange às nulidades e questões prévias e incidentais ali decididas, a verdade é que tal irrecorribilidade é questão diversa da situação prevista no nº 3 do mesmo art. 310º, onde expressamente se mantém salvaguardada a recorribilidade da decisão que indeferir a arguição de nulidade emergente do disposto no artigo 309º do mesmo diploma, ou seja, quando o tribunal pronuncie o arguido por factos que constituam alteração substancial dos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente ou no requerimento de abertura de instrução.
Apelando a quanto resulta do supra enunciado princípio da legalidade em matéria de invalidades processuais, e ao regime estipulado para as mesmas, temos que a nulidade da decisão instrutória que pronunciar por factos que constituam alteração substancial (caracterizada em conformidade com o disposto no art. 1°/1/f) do Cód. de Processo Penal) daqueles descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no RAI, e como resulta do nº 2 do art. 310º do Cód. de Processo Penal (cfr. também art. 120º/2, parte final, do mesmo Código), é sanável, de modo que para produzir os efeitos que a lei assinala às nulidades (art. 122° do Cód. de Processo Penal), carece de ser arguida pelos interessados no prazo de 8 dias a contar da notificação da decisão.

In casu, e como vimos, o objecto do recurso do arguido traduz–se na circunstância de, havendo por si sido em tempo oportuno apresentado requerimento suscitando a verificação da nulidade assim configurada da decisão instrutória de pronúncia, nos termos e com os concretos fundamentos ali expostos – e de cujo mérito, reitera–se, não cumpre nesta sede e neste momento cuidar –, o tribunal a quo (isto é, o Juiz de Instrução que proferiu aquela decisão de pronúncia), considerando encontrar–se esgotado o seu poder jurisdicional com a prolação daquela decisão instrutória, não haver apreciado e decidido quanto à requerida arguição de nulidade.

E julga–se que assiste efectivamente razão ao recorrente.

Na verdade, a apreciação e decisão sobre a arguição de nulidade da própria decisão instrutória de pronúncia, suscitada nos termos e com os fundamentos do disposto no art. 309º/1 do Cód. de Processo Penal, incumbe exactamente ao Juiz de Instrução que proferiu a decisão instrutória cuja validade processual é posta em causa.
Conforme dispõe o art. 17º do Cód. de Processo Penal, a propósito da Competência do juiz de instrução, que «Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código».
Ora, o primeiro argumento, que claramente logo indica ser do próprio JIC a competência para a apreciação da nulidade da sua decisão de pronúncia que venha a ser arguida em termos similares aos dos presentes autos, é o da inserção sistemática das disposições relativas à nulidade em causa e respectiva arguição – pois que se verifica mostrarem–se as mesmas inseridas ainda em sede do regime processual reportado à fase da Instrução (isto é, no âmbito do Título III do Livro VI do Cód. de Processo Penal). Outro significado daqui não pode extrair–se senão o de, como escreve Paulo Pinto de Albuquerque, em “Comentário do Cód. de Processo Penal à luz da CRP e da CEDH”, ed. 2007, pág. 90, esclarecer que «a competência do juiz de Instrução inclui a fase ulterior ao despacho instrutório até á remessa do processo para julgamento», o que só deve suceder com o objecto processual definido e delimitado – tanto mais que, em fase de julgamento, o regime que regula a excepcionalidade de ocorrência de alterações de factos, e previsto nos arts. 358º e 359º do Cód. de Processo Penal, reporta–se precisamente ao despacho de pronúncia, se o houver.
Nesta sequência, e em complemento daquelas que vimos serem as atribuições processuais genericamente previstas no art. 17º do Cód. de Processo Penal para o juiz de Instrução, refira–se que adita o art. 290º/1 do mesmo Cód. de Processo Penal que «O juiz [de instrução] pratica todos os actos necessários à realização das finalidades referidas no n.º 1 do artigo 286.º», isto é, aqueles necessários à «comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento».
O que implica que a submissão da «causa a julgamento» só deverá ocorrer quando se mostre estabilizado o respectivo objecto acusatório, in casu definido pela pronúncia, uma vez que haja lugar à mesma – sem prejuízo da sindicância recursória, a jusante, da decisão que proceda a tal estabilização por via de indeferimento da nulidade suscitada nos termos do art. 309º do Cód. de Processo Penal.
Assim, de forma alguma pode considerar–se, como o fez a decisão recorrida, encontrar–se esgotado o poder jurisdicional do juiz de Instrução com a prolação da decisão instrutória.
Isso será assim quanto às questões de fundo substantivas – a sindicância instrutória da suficiência dos indícios probatórios, e a valoração jurídico–penal destes, por exemplo –, mas não para as questões formais e procedimentais, nestas incluindo, à cabeça, a ocorrência de nulidade da própria decisão de pronúncia, máxime esta expressamente salvaguardada no art. 309º do Cód. de Processo Penal.
Ou seja, sendo suscitada a nulidade da própria decisão instrutória de pronúncia nos termos prevenidos no art. 309º do Cód. de Processo Penal, não se pode considerar que se mostrem decididas todas as questões relacionadas com a decisão instrutória.
A sustentação ou reparação da decisão instrutória objecto de arguição de nulidade consubstancia, claramente, uma questão necessária à completude das finalidades da fase de instrução, e deve por isso, naturalmente, ser efectuada por quem proferiu aquela decisão.
E assim é também por outra ordem de argumentos, relacionados com a harmonia e estabilidade processual que, claramente, o legislador processual penal pretende clarificada antes da fase de julgamento.
Assim, mal se compreenderia que estivesse no intuito do dito legislador processual penal que, impondo a caracterização da nulidade aqui em causa como sanável e apenas susceptível de arguição e apreciação no caso de ser suscitada no curto prazo de 8 dias a contar «da data da notificação da decisão» de pronúncia, como previsto no nº2 do art. 309º do Cód. de Processo Penal, viesse depois a pretender que fosse o juiz de julgamento, oportunamente e após percorridos os trâmites da distribuição para nova fase processual e novo tribunal, a apreciar uma nulidade que poderia determinar a inutilidade, por invalidação, de todos esses actos processuais desde a pronúncia e um retrocesso processual.
Não é, pois, concebível, dentro dos princípios da harmonia e coerência processual, que coubesse ao juiz de julgamento sustentar ou reparar uma decisão relativa a uma pretensa nulidade cometida em sede de decisão instrutória, pois bastaria pensar nos efeitos que tal reparação teria, caso o seu entendimento fosse ao encontro ao do arguente de tal nulidade, para a ulterior tramitação dos próprios autos, determinando o retorno dos autos à fase de Instrução para prolação de nova decisão instrutória.

A competência que assim se considera permanecer na esfera própria do JIC que proferiu a decisão de pronúncia impugnada nos termos do art. 309º do Cód. de Processo Penal, é pressuposta desde logo por Maia Gonçalves, no seu “Código de Processo Penal Anotado”, quando, em anotação ao art. 310º, escreve «Quanto aos demais despachos (que não pronunciarem o arguido ou que o pronunciarem por factos de que não foi acusado pelo MP, ou seja aqueles descritos pelo assistente no requerimento para abertura de instrução) segue-se a regra geral da admissibilidade do recurso, o mesmo sucedendo, consequente- mente, quanto ao despacho que desatender a arguição da nulidade cominada no art. 309.º» – sublinhado agora aposto.
Também Pedro Soares Albergaria, em “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal – Tomo III”, ed. 2021, pág. 1301, escreve que «A lei fulmina de nula a decisão que pronunciar por factos que constituam alteração substancial [art. 1.°/1/f)] dos descritos na acusação do MP ou do assistente ou no RAI. (…) Se deferir a arguição, o JI declarará nula a decisão de pronúncia e prolatará a que couber expurgada dos factos que alterem substancialmente os descritos na acusação do MP ou do assistente ou no RAI (art. 122.°). Se a indeferir, caberá recurso (art. 310.º/3) a subir nos autos e de modo diferido (arts. 406.°/1 e 407.9/3).» – sublinhados agora apostos.

Também a jurisprudência dos tribunais superiores, designadamente ao apreciar precisamente questões reportadas a recursos interpostos de decisões proferidas por juiz de Instrução apreciando a arguição da nulidade em causa, pressupões, como é de evidente lógica, que a competência para tal decisão sobre a arguição da nulidade compete ao mesmo JIC.
Neste sentido, podem referir–se a Decisão do Presidente do Tribunal da Relação de Coimbra de 05/06/2000 (proc. 70/2000)[3], o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-06-2007 (proc. 0615391)[4], a Decisão do Vice–Presidente do Tribunal da Relação de Évora de 25/02/2012 (proc. 123/10.8TARDD-A.E1)[5], a Decisão Sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 30/05/2012 (proc. 1342/09.5TACBR-A.C1)[6], o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/02/2020 (proc. 143/19.7GAPMS.C1)[7], e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09/02/2021 (proc. 20/08.7TAFCR.C1)[8].
Ainda que a propósito da arguição de vícios de nulidade processual de diversa índole, mas sempre reportados à própria decisão instrutória, e sempre expressamente pressupondo a competência do JIC para a apreciação da respectiva e subsequente arguição (como é óbvio em momento subsequente à prolação da mesma decisão instrutória), refira–se também o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 482/2014, de 28-07-2014 (pub. no D.R.-II Série, nº143), no qual se decidiu – com sublinhados agora apostos – o seguinte : «Não julga inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de ser irrecorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente á decisão instrutória, que aprecie a [arguição de] nulidade da mesma decorrente da omissão de pronúncia sobre questões suscitadas pelo arguido no seu requerimento de abertura da instrução ; não julga inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de ser irrecorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente á decisão instrutória, que aprecie a [arguição de] nulidade da pronúncia decorrente da insuficiência da mesma relativamente aos elementos exigidos no artigo 283.º, n.º 3, alínea b), aplicável ex vi do artigo 308.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ; julga inconstitucional a norma do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal no sentido de ser irrecorrível a decisão do juiz de instrução, subsequente á decisão instrutória, que aprecie a [arguição de] nulidade insanável decorrente da violação das regras de competência material do Tribunal de Instrução Criminal».

Em face do exposto, considera–se, ao contrário do exarado na decisão recorrida, que a apreciação e decisão sobre o requerimento de arguição de nulidade, nos termos do art. 309º do Cód. de Processo Penal, do despacho de pronúncia dos autos, incumbe ainda ao Juiz de Instrução que a proferiu.
Aliás, mal se compreende, no caso concreto, que considerando esgotada a sua competência material para sequer apreciar a requerida arguição de nulidade, a JIC haja, como passo imediato à apresentação do requerimento que a arguiu, enviado o processo com vista ao Ministério Público para se pronunciar quanto ao mesmo.

E, em tais termos, cumpre – dando provimento ao recurso – revogar aquela decisão, determinando–se dever ser antes proferida decisão que proceda a tal apreciação e decisão.
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III. Decisão.
Em face de tudo o exposto, decide-se conceder provimento ao recurso do arguido AA, revogando–se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que aprecie e decida sobre o requerimento apresentado pelo mesmo arguido no dia 20/02/2023.

Sem custas.
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Comunique-se de imediato, com cópia, a presente decisão ao tribunal recorrido, tendo ali por referência também o processo nº 19/22.0PEPRT.P1.
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Porto, 9 de Maio de 2023
Pedro Afonso Lucas


(Texto elaborado pelo signatário, e revisto integralmente – sendo a assinatura autógrafa substituída pela electrónica aposta no topo da primeira página)
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[1] Relatado por Orlando Gonçalves, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[2] A redacção anterior deste preceito era a seguinte:
«1 - A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
2 – É recorrível o despacho que indeferir a arguição da nulidade cominada no artigo anterior.»
[3] Relatado por Carlos Leitão, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[4] Relatado por Luís Teixeira, acedido em www.dgsi.pt/jtrp.nsf
[5] Relatado por António Ribeiro Cardoso, acedido em www.dgsi.pt/jtre.nsf
[6] Relatado por Luís Teixeira, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[7] Relatado por João Novais, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf
[8] Relatado por Jorge Jacob, acedido em www.dgsi.pt/jtrc.nsf