Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2126/20.5T8AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: INCOMPETÊNCIA INTERNACIONAL
CONEXÃO SUBJECTIVA
CONEXÃO OBJECTIVA
NECESSIDADE
Nº do Documento: RP202205042126/20.5T8AVR.P1
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A incompetência internacional resulta da impossibilidade de incluir a relação jurídica plurilocalizada na previsão de uma das normas de recepção do artigo 63.º do CPCivil.
II - O critério da necessidade [art. 62º, c), CPC] trata-se de um caso excecional e subsidiário de competência, por meio do qual se tem em vista evitar que o direito fique sem garantia judiciária.
III - Para a verificação da facti species do referido critério não basta que que haja um entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa um elemento ponderoso de conexão pessoal ou real, sendo ainda necessário, a par desse elemento, que, ou o direito só possa tornar-se efectivo por meio de acção proposta em território português, ou que que se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, sendo que, quer a comodidade quer a rapidez não são critérios integrantes do citado princípio da necessidade.
IV - Os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer de uma acção cuja causa de pedir tem subjacente um contrato de mútuo e onde se pede a restituição da quantia mutuada quando, tal relação negocial ocorreu no Canadá, e todas as partes, sendo de nacionalidade portuguesa, têm residência nesse país, quando dos autos não resulta qualquer indício que demonstre que o direito invocado pela recorrente - restituição da quantia mutuada - não possa ser exercido pela mesma em território canadiano e que, sendo Canadá é um Estado de Direito Democrático, com quem Portugal tem boas relações diplomáticas, cujo sistema de justiça oferece garantias semelhantes às do sistema de justiça nacional, do que se sabe não está em guerra nem aí existem grandes convulsões sociais.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2126/20.5T8AVR.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro-Juízo Central Cível de Aveiro-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção


Sumário:
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I-RELATÓRIO

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
AA, viúva, residente em ..., Canadá, por si e em representação da herança aberta por óbito de BB, instaurou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra:
CC, residente em ..., Canadá e
DD, residente em ..., Canadá.
Formulando os seguintes pedidos:
a) Seja reconhecido o crédito dos autores sobre o primeiro réu, CC, no valor de €59.664,64, acrescido de juros convencionados de 15%, calculados sobre o capital em dívida desde 2007, até efectivo pagamento;
b) Seja condenado o primeiro réu no pagamento de tal valor, através da entrega em numerário ou pela dação em pagamento do seu quinhão hereditário ou bens obtidos em partilha;
c) Seja condenado o segundo réu a reconhecer o acordo de dívida celebrado pelo seu irmão e primeiro réu com os autores e, em consequência, abster-se de partilhar bens da herança sem considerar este débito.
Como fundamento alega, em síntese, o seguinte:
- A autora e seu falecido marido emprestaram, em Dezembro de 1997, ao primeiro réu, 60.874,92 dólares canadianos (equivalente a 41.258,68€), empréstimo que ocorreu no Canadá, onde residem, assim como o primeiro réu;
- Acordaram autora e marido e primeiro réu que o empréstimo venceria juros anuais à taxa de 15% sobre o capital mutuado;
- Em 2003 “executaram a promissória” nos termos da lei canadiana, estabelecendo, posteriormente, negociações entre as partes, reconhecendo, em 4 de Janeiro de 2007, que o primeiro réu não conseguiria suportar o pagamento da dívida, mais acordando em que o pagamento se procederia através de bens que o primeiro réu viesse a receber por herança ou por doação de seus pais, acordo que exararam em documento escrito, assinado no dia em causa.
- Em Janeiro de 2007 a dívida ascendia a 88.100,87 dólares canadianos (equivalente a €59.664,68);
- O primeiro réu não cumpriu com o acordo, tendo os progenitores do réu falecido em 2012 (pai) e 2016 (mãe), ambos residentes em ..., sendo a herança titular de prédios rútico e urbanos sitos em ..., que identifica.
- A autora interpelou o réu para cumprir o acordo celebrado, sem sucesso.
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Devidamente citado, o primeiro réu apresentou contestação em que se defendeu por excepção e por impugnação.
Por excepção invocou a incompetência territorial alegando que a acção deveria ter sido proposta no Canadá, lugar da residência do réu, por aplicação do disposto no artigo 71º do CPC.
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A autora foi notificada para exercer o contraditório, o que fez.
Em resposta à incompetência alegada pelo réu, referiu que, apesar de autora e réus residirem no Canadá e de o acordo que é invocado na PI ter sido celebrado nesse país, os efeitos do mesmo produzem-se em Portugal, onde seria aberta a sucessão por óbito dos pais do réu e onde este deveria cumprir com a sua obrigação.
Por conseguinte e por aplicação do disposto no artigo 70 do CPC, a acção deveria ser proposta no tribunal do foro da situação dos bens, o que a autora fez.
Conclui pela improcedência da acção.
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Conclusos os autos foi proferida decisão que declarou o tribunal internacionalmente incompetente para conhecer do presente litígio, determinando, em consequência, a absolvição dos réus da instância.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso, rematando com as seguintes conclusões:
I - Vem o presente recurso da decisão proferida pelo tribunal de Aveiro que, apesar de ter admitido o processo, mandado citar os Réus, por rogatória, (despacho de 12/2 a fls.... na sequência de um requerimento nosso) junto dos serviços judiciários do Canadá, vem, depois da respostas às exceções invocadas pelo Réu devidamente citado, por banda da Autora, decidir no sentido da incompetência internacional do tribunal para conhecer do litígio em questão, absolvendo os Réus da Instância.
II- Entendeu que não se aplicam no caso sob Júdice nenhum dos fatores mencionados no artigo 62 do CPC, de forma a considerar internacionalmente competente o Tribunal português.
III- Para melhor compreensão, e em súmula, o assunto em crise refere- se a um contrato de mútuo, entre cidadãos portugueses, com morada no Canadá, sem que nele tenha sido atribuído pacto de jurisdição, cidadãos esses, com interesses em Portugal, cujo incumprimento do contrato inicial, foi por ambos admitido em acordo escrito que se juntou aos autos devidamente traduzido, e onde prometeram dar em pagamento o eventual acervo hereditário que o devedor houvesse de auferir após a morte de seus pais, herança essa, aberta em Portugal.
IV- Tivesse tal acordo sido reconhecido, autenticado e apostilhado, e não seria necessário interpor a presente acção pois se procederia à execução coerciva, face a bens localizados em Portugal, para a qual a ordem jurídica Portuguesa teria a competência exclusiva.
V- Como não foi autenticado, e houve necessidade de viabilizar o contrato por uma acção declarativa prévia, a Senhora Juiz, não encontra no acordo a necessária conexão, nos termos do artigo 62 alínea c) do Código de processo civil.
Não podemos concordar com tal entendimento e inconformados colocámos o assunto sob a vossa douta apreciação.
Com efeito,
VI- As regras de atribuição de competência internacional visam antes de mais aproximar a causa do tribunal que melhor estiver em condições vara, mais justa e celeremente, a julgar.
VII- Pelo menos por via de regra, e salvo circunstâncias excepcionais, a decisão sobre competência afere-se pelo modo factual-rectius causa petendi-como o autor delineia o pedido.
Vlll- Para verificação desse pressuposto processual é indiferente que a verificação fáctica expendida pela autora possa ou não, a final, ser julgada procedente em resultado de ter sido alvo de impugnação por banda do réu.
IX- Para que os tribunais portugueses sejam competentes, no seu conjunto, para julgar um qualquer litígio ocorrido no mundo, é necessário que entre o litígio e a organização judiciária portuguesa haja um elemento de conexão considerado pela lei suficientemente relevante para servir de fator de competência internacional para julgar esse litígio.
X- Esses fatores ou critérios de atribuição traduzem-se em circunstâncias que integram os conteúdos de regras ou princípios que definem quando é que o Estado portugueses se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional.
XI- Assim, para além dos casos em que é reservada a competência exclusiva dos tribunais portugueses (art. 63.º do CPC), enuncia o art° 62.º do CPC como fatores de competência internacional aos tribunais portugueses, os critérios ou princípios de coincidência, na alínea a), na causalidade, na alínea b) e da necessidade, na alínea c)
XII- Esses fatores são autónomos (e não cumulativos) funcionando cada um em completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastantes para desencadear a competência dos tribunais portugueses reza o artigo 62 alínea c) o seguinte: “Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão pessoal ou real”.
Vejamos agora no caso em crise:
XIII- Na verdade o único factor que aqui pode ser considerado é o previsto na alínea c) do artigo 62 do CPC, pois,
XIV- desde logo há uma grande conexão, pois ambos os cidadãos envolvidos são portugueses.
E,
Como poderá o direito invocado tornar-se efetivo sem que seja proferida uma sentença em tribunais portugueses?
XV- Qualquer decisão dos tribunais Canadianos não pode ser automaticamente executada em tribunais portugueses, que serão os únicos exclusivamente competentes se tivermos de executar coercivamente a decisão, perante património situado em Portugal.
XVI- Passaria sempre por uma revisão de sentença estrangeira a interpor em Portugal, o que criaria ao Autor uma maior dificuldade em efetivar o seu direito, tornando a justiça injusta, por morosa.
XVI- No acordo que queremos ver reconhecido, mais não foi do que prometida, uma dação em pagamento sobre eventuais bens que o devedor, ora recorrido, viesse a herdar, após a morte de seus pais, em Portugal,
XVII- Tais factos não serão suficientes indicadores de conexão? A efetivação do acordado passa sempre pelos tribunais portugueses, os quais serão os únicos que poderão executar o acordo efetuado, pois nunca o poderia ser no Canadá.
XVIII- O facto de na petição se pedir a condenação no pagamento, é a forma adequada de alegar factos visando comprovar o eventual incumprimento, e legitimar a imediata condenação na dação pretendida, pois o acordo não tem de "per si "força executiva.
XIX- Alem do mais, os Réus foram citados, constituíram mandatário, reagiram, tendo sido cumpridos todos os princípios basilares do direito Português.
XX- Ora, no entendimento da Recorrente não é o tribunal canadiano que se situa melhor colocado para julgar o litígio em questão, pois o que se pretende é efetivar o cumprimento de um empréstimo, considerado não cumprido, através da entrega de bens que se situam em Portugal obtidos pelo devedor em herança aberta em Portugal.
XXI- A Mma Senhora Juiz não subsumiu o caso em nenhuma das alíneas previstas no artigo 62.º do CPC, nomeadamente a alínea c) o que em nosso entender, esteve mal.
Pois que sem dúvida,
XXII- Um dos fitos da atribuição da competência-vg-a internacional é a de conceder a causa ao tribunal que-vg-por virtude da maior proximidade com o circunstancialismo factual e melhor conhecimento da legislação aplicável-em superiores condições esteja para, mais conscienciosa e rapidamente, e, assim, mais justamente decidir.
XXIII- A Senhora Juiz a quo violou o disposto no artigo 62.º do CPC e a jurisprudência expendida no Acórdão do STJ de 28/06/2018, acórdão do Tribunal da relação de Coimbra de 17/09/2019 e ainda o acórdão da relação do Porto de 26/04/2021.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido é, ou não, internacionalmente competente para dirimir o presente litígio.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para dilucidar a questão supra enunciada importa ter presente a factualidade supra referida no relatório supra e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Como acima se referiu é apenas uma a questão a decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido é, ou não, internacionalmente competente para dirimir o presente litígio.
Na decisão recorrida propendeu-se para o entendimento da incompetência internacional.
Deste entendimento dissente a recorrente por considerar estar verificada a facti species da al. c) do artigo 62.º do CPCivil.
Quid iuris?
Como refere Manuel de Andrade[1], a competência internacional: “É a competência dos tribunais portugueses no seu conjunto, em face dos tribunais estrangeiros. Verdadeiramente, do que se trata aqui é dos limites da jurisdição do Estado Português; de definir quando é que este se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional”.
Também Miguel Teixeira de Sousa[2], escreve: “As regras sobre a competência internacional não são, consideradas em si mesmas, normas de competência internacional, porque não se destinam a aferir qual o tribunal concretamente competente para apreciar o litígio, mas apenas a definir a jurisdição na qual se determinará, então com o recurso a verdadeiras regras de competência, qual o tribunal competente para essa apreciação. Dada esta função, as normas de competência internacional podem ser designadas normas de recepção, pois que visam somente facultar o julgamento de um certo litígio plurilocalizado pelos tribunais de uma jurisdição nacional. É esta a estrutura da generalidade das regras contidas nos arts. 65º, nº1…
[…] Para orientar a escolha da jurisdição competente para resolver o conflito plurilocalizado não existem na comunidade internacional regras fixas e, menos ainda, uniformes.
Apenas se pode esperar que–parafraseando o imperativo categórico kantiano–cada Estado actue de tal forma que os critérios definidores da sua competência internacional possam valer simultaneamente como princípios de uma legislação universal.
Quer isto dizer que cada Estado pode determinar quais os elementos de conexão que considera relevantes para abrir a sua jurisdição ao julgamento de litígios plurilocalizados”.
Na verdade, os tribunais portugueses não se encarregam de julgar todo e qualquer litígio que ocorra em qualquer parte do mundo.
Para serem competentes, no seu conjunto, “é necessário que entre o litígio e a organização judiciária portuguesa haja um elemento de conexão considerado pela lei suficientemente relevante para servir de factor de atribuição de competência internacional para julgar esse litígio”.[3] Esses factores ou critérios de atribuição traduzem-se em circunstâncias que integram o conteúdo de regras ou princípios que definem quando é que “o Estado português se arroga o direito e se impõe o dever de exercitar a sua função jurisdicional”.[4]
Do disposto no artigo 37.º, nº 2 da Lei 62/2013, de 26/08, decorre que “A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais.”, decorrendo do disposto no artigo 38.º do mesmo diploma legal que esta se fixa no momento em que a ação é proposta (princípio da perpetuatio fori ou jurisdictionis), sendo irrelevantes as modificações de facto, salvo nos casos especialmente previstos na lei, ou de direito ocorridas na pendência da acção, exceto se for suprimido o órgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente carecia para o conhecimento da causa.
Como assim, preceitua o artigo 59.º do CPCivil que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique alguma das circunstâncias mencionadas nos artigos 62.º e 63.º, ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º, sem prejuízo do que se achar estabelecido em regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais.
No caso concreto, não oferece dúvida, que não se aplicam regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, nem se mostra alegado que entre as partes foi celebrado qualquer pacto atributivo de jurisdição, sendo assim a causa dirimida, conforme decidido pelo Tribunal a quo, exclusivamente pelo disposto no artigo 62.º do CPCivil, ou seja quando:
al. a)- a ação deva ser proposta em Portugal, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (critério da coincidência);
al. b)- tenha sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram (critério da causalidade);
c)- não poder o direito invocado tornar-se efectivo senão por meio de ação proposta em território português, ou constituir para o autor dificuldade apreciável a sua propositura no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica nacional haja algum elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (critério da necessidade).
Portanto, decorre do plasmado neste inciso que basta a verificação de alguma das descritas circunstâncias ou factores (princípio da autonomia ou da independência) para que ao tribunal português seja atribuída a competência, sendo certo que esta se fixa, como supra se referiu, no momento em que a acção se propõe.
Afastado (e bem) pelo tribunal a quo a aplicabilidade dos disposto nas alíneas a) e b) do citado artigo 62.º do CPCivil, decisão com a qual a recorrente se conformou, em causa está tão só a verificação do critério da necessidade previsto na alínea c) deste preceito legal.
Como já noutro passo se referiu, consagra esta alínea o critério ou princípio da necessidade que constitui caso excepcional e subsidiário de alargamento da competência dos tribunais portugueses, visando evitar que o direito a exercitar fique desprovido de garantia judiciária, ou seja, que ocorra uma situação objectiva de denegação de justiça, incluindo a impossibilidade absoluta e relativa, que tanto podem ser jurídica ou prática ou a dificuldade em tornar efectivo o direito por meio de acção instaurada em tribunal estrangeiro.[5]
Como se evidencia dos autos a causa de pedir radica no incumprimento de um contrato de mútuo.
É verdade que todas as pessoas envolvidas nessa relação negocial são nacionalidade portuguesa.
Acontece que isso não basta para que se verifique a facti species da al. c) do artigo 62.º.
Exige-se mais:
a)- que a restituição da quantia mutuada só possa tornar-se efectivo por meio de acção proposta em tribunal português;
b)- que se verifique para a apelante uma dificuldade apreciável na propositura da acção no Canadá.
No que se refere ao primeiro elemento ele não se verifica, pois que os tribunais canadianos podem julgar a presente causa, aliás, nem é alegado o contrário, ou seja, o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, não está ameaçado na sua praticabilidade e exercício
Efectivamente, nestes autos, não há qualquer indício que demonstre que o direito invocado pela recorrente–restituição da quantia mutuada-não pode ser exercido pela mesma em território canadiano, onde ocorreu a relação negocial e onde todas as partes têm a sua residência.
De igual modo, em causa não está um tipo de direito que não seja reconhecido naquela jurisdição e que, por esse motivo, impeça a apelante de aí deduzir a sua pretensão.
Alega a recorrente que qualquer decisão dos tribunais canadianos não pode ser automaticamente executada em tribunais portugueses, que serão os únicos exclusivamente competentes se tivermos de executar coercivamente a decisão, perante património situado em Portugal, o que passaria, passaria sempre por uma revisão de sentença estrangeira a interpor em Portugal, o que criaria ao Autor uma maior dificuldade em efetivar o seu direito, tornando a justiça injusta, por morosa.
Acontece que, quer a comodidade quer a rapidez não são critérios integrantes do citado princípio da necessidade.
Para além disso, e como bem se refere na decisão recorrida, é a própria recorrente que, no pedido que formula, peticiona, inclusive a condenação do réu no pagamento através de numerário [veja-se a alínea b) do pedido].
Por outro lado, e no que tange ao segundo dos apontados requisitos (dificuldade apreciável na propositura da acção), devendo ocorrer uma dificuldade manifesta, não sendo razoável, em termos de sacrifício exigível e à luz do princípio da boa fé, impor ao titular do direito a instauração no estrangeiro.[6]
Ora, o Canadá é um Estado de Direito Democrático, com quem Portugal tem boas relações diplomáticas, cujo sistema de justiça oferece garantias semelhantes às do sistema de justiça nacional, sendo que, que se saiba, não é um Estado que esteja em guerra nem aí existem grandes convulsões sociais.
Acresce que, no caso concreto, a apelante não alegou qualquer facticidade susceptivel de integrar o referido conceito.
Não se verificam, pois, qualquer dos factores atributivos da competência internacional directa, constantes do artigo 62.º do CPC, preceito que consagra os princípios da coincidência (alínea a), da causalidade (alínea b) e da necessidade (alínea c).
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Em consequência, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da acção em causa, pelo que a solução para o caso espécie não podia deixar de ser, como foi, a absolvição dos Réus da instância (artigos 96.º, alínea a) e 99.º, n.º 1, do CPCivil).
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pela apelante e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta pelo Autor totalmente improcedente por não provada, e consequentemente confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pela Autora recorrente (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil)
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Porto, 04 de Maio de 2022.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais (dispensei o visto)
Jorge Seabra (dispensei o visto)
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[1] In “Noções Elementares de Processo Civil”, 1976, pág. 92,
[2] in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”–Edições Lex–2ª edição–págs. 93/94.
[3] João de Castro Mendes, in Apontamentos das suas Lições de Direito Processual Civil, redigidos por Armindo Ribeiro Mendes, Volume I, pág. 263.
[4] Manuel de Andrade obra cita pag. 198.
[5] Cfr, neste sentido, João de Castro Mendes, in obra citada, págs. 269 e 270, e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, in obra citada, pág. 133, e José Alberto dos Reis, in obra citada, pág. 200, e Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 1º, págs. 139 e 144.
[6] Cfr. Lebre de Freitas, ob. cit. 1º, 133.