Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7222/18.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO DUARTE TEIXEIRA
Descritores: LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
USO DO PROCESSO PARA FINS REPROVÁVEIS
OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS A MENOR
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO PARA FINS PESSOAIS DO PROGENITOR DEMANDANTE
Nº do Documento: RP202012167333/18.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 12/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Os pressupostos da litigância de má fé têm de ser interpretados com cautela, ponderando de forma ampla o direito de acesso aos tribunais, e tendo em conta as naturais vicissitudes da produção e valoração da prova.
II - A diligência exigível é aferida por confronto com a conduta de um litigante normal e médio, naquela acção concreta.
III - Uma parte que alega serem devidas despesas de saúde do seu filho e que depois junta faturas referentes a despesas pessoais para as comprovar, age como litigante de má fé já que não apenas deduz uma pretensão que sabe ser infundada, como tenta adulterar meios de prova.
IV - A parte usa o processo para fins pessoais manifestamente reprováveis, quando utiliza o incumprimento da obrigação de alimentos para fins pessoais e não para salvaguardar o sustento do seu filho.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 7222/18.6T8VNG.P1
Incumprimento das Responsabilidades Parentais
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Sumário:
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Questão prévia da junção de documentos:
Pretende a apelante juntar uma declaração médica relativa à utilização pelo seu filho de leite com magnésio.
Esse documento visa comprovar que essa despesa é do mesmo e não sua, tal como foi considerado não provado pela decisão em crise.
O apelado não aceita essa junção.
Decidindo
Note-se que a questão da prova documental desses documentos teve lugar em 26.11.2018 quando a requerente juntou esses meios de prova. Depois, ao terem sido impugnados vários documentos a apelante nada requereu, razão pela qual esses factos foram indemonstrados com base nesta sua atitude. Logo é evidente que essa questão nem é nova, nem o documento só agora pôde ser obtido pela parte. Acresce, aliás, que a parte não põe em causa a factualidade provada e não provada pelo que a junção sempre seria inútil, pois, não teria efeitos processuais.
Assim, por não se verificarem as condições do art. 651º, do CPC não se admite essa junção.
Sem custas face à simplicidade do incidente.
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B… intentou, em 26.6.2018, um incidente de incumprimento das responsabilidades parentais contra C…, progenitor do(a) menor/jovem D…, nascido(a) a 1.7.2013, alegando que desde Julho de 2017 este não tem procedido ao pagamento integral da prestação de alimentos devida ao menor, assim como não tem pago a sua comparticipação (50%) do valor das despesas médicas e escolares.
O apelado respondeu, nos termos que constam de fls. 19 a 22 ss, reconhecendo o incumprimento do pagamento integral da prestação, alegando que recomeçou a pagar a totalidade em Agosto de 2018, assim como o fez em Setembro de 2018. Quanto às despesas alegadas, insurge-se contra as mesmas, por não ter sido apresentado qualquer documento comprovativo das mesmas, as quais, por sua vez, não foram devidamente identificadas ou discriminadas pela progenitora.
Face às alegações do requerido/progenitor, foi a requerente/progenitora notificada para juntar aos autos os documentos comprovativos das despesas que alegou ter realizado em prol do menor, o que fez em 26.11.2018 (fls. 32 a 63).
Tendo o progenitor sido notificado dos referidos documentos, veio tomar posição nos termos que constam de fls. 68 a 74,
O Ministério Público promoveu que se declarasse verificado o incumprimento, nos termos que constam de fls. 131.
Após foi proferida sentença que condenou a requerente como litigante de má fé, na multa de 3 UC´s.
O requerido reclamou invocando que a decisão incorreu em omissão de pronuncia porque omitiu a fixação da indemnização requerida.
Após contraditório essa decisão foi reformada a decisão, condenando a requerente no pagamento da indemnização de 500,00 euros.
Inconformada veio a requerente recorrer dessas decisões, recurso esse que foi admitido, como de apelação, com efeito meramente devolutivo, nos termos do artigo 32º n.º 4 do Regime Geral Processo Tutelar Cível (RGPTC), e com subida nos próprios autos, nos termos do artigo 645º n.º 1 a) do CPC.
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2. Foram apresentadas as seguintes conclusões:
1. Em 26/06/2018, a recorrente requereu a declaração do incumprimento das responsabilidades parentais do menor D… por parte do progenitor, aqui recorrido, no valor de 550€ a título das prestações mensais em falta, e a 400€ a título de despesas extraordinárias do menor, relativamente a despesas escolares, medicamentosas e médicas.
2. Por sentença proferida em 24/10/2019, o recorrido foi apenas condenado no pagamento de 92,40€ a título de despesas extraordinárias. Foi ainda a recorrente condenada em 3 UC a título de multa por litigância de má-fé.
3. Ambas as decisões em causa, assentam no facto de a Requerida ter, por lapso, ter junto aos autos faturas sem o NIF do menor, ou faturas que continham outros artigos que não se destinavam ao menor.
4. Quanto às faturas que não continham o NIF do menor, tal deve-se por mero lapso da recorrente, que na qualidade de progenitor assume a total responsabilidade e gestão da vida do menor, incluindo a sua contabilidade e organização das despesas, já que esta quem compra os bens que o menor necessita.
5. Deste modo, é mais do que admissível e comum ao homem médio diligente que quando se dirija ao supermercado compre vários artigos, não tendo que ser todos obrigatoriamente para o menor D…, o que acontece no presente caso.
6. Por isso mesmo, a recorrente ao juntar aos autos diversas faturas, fez questão de realçar com sublinhados aqueles bens que se destinaram ao menor, situação esta que o tribunal, por lapso, não reparou, e deste modo considerou, erradamente, na sentença recorrida que a recorrente estava a peticionar ao progenitor o pagamento de bens como contracetivos, comida para cão… Algo que é manifestamente improcedente, como se referiu, os valores peticionados, encontravam-se sublinhados como facilmente se apura da consulta dos presentes autos.
7. Acresce ainda que se verificam algumas despesas documentadas através de talões que a recorrente, ao efetuar a sua compra, colocou o seu NIF e não o NIF do menor, confusão esta, uma vez mais, que se entende ser bastante admissível e compreensível e que poderia acontecer com qualquer pessoa.
8. No entanto, a recorrente aceita que tais despesas não se considerem provadas por não conterem o NIF do menor, apesar de se destinarem a este!
9. Assim, resumidamente, a recorrente vem sumariamente referir que o total das despesas documentadas corretamente nos presentes autos a ascendem a 513,48€ (quinhentos e treze euros e quarenta e oito cêntimos), que dá na proporção de metade o valor de 256,74€ (duzentos e cinquenta e seis euros e setenta e quatro cêntimos), valor este bastante aquém do que a sentença recorrida declarou o progenitor como devedor.
10. Não se entende, muito menos se pode aceitar, que a sentença recorrida tenha descartado tantas despesas médicas, medicamentosas e escolares cabalmente documentadas!
11. Conforme já referido, de facto a recorrente juntou algumas despesas que não continham o NIF do menor, e o tribunal não reparou que outras faturas corretamente documentadas continham um realce com sublinhado para a indicação dos bens que seriam de considerar, tendo ainda desconsiderado aquelas faturas com NIF do menor em que constava a compra de leite com magnésio.
12. Ora, o tribunal simplesmente proferiu a sentença recorrida, que se considera ser precipitada, nunca recorrendo a princípios processuais basilares, como o principio do inquisitório (artigo 411º do CPC), princípio da cooperação artigo (7º do CPC) e nem dando cumprimento ao dever de gestão processual.
13. Ao abrigo dos referidos princípios, poderia o tribunal recorrido ter ordenado a documentação da recorrente para esclarecer as faturas juntas aos autos, ou até oficiado a pediatra do menor para vir aos presentes autos se teria sido prescrito ao menor o leite de magnésio, e consequentemente, pelo essas despesas teriam sido julgadas como devidas, conforme doc. 1.
14. Não obstante o tribunal não ter notificado a recorrente para vir prestar esclarecimento acerca das faturas juntas, a verdade é que por requerimento datado a 17/12/2018, a recorrente veio precisamente relembrar o tribunal a quo que as faturas anteriormente juntas continham o sublinhado dos bens que relevavam para a causa, tendo procedimento a uma nova junção com maior realce das faturas!
15. Situação esta que o tribunal recorrido ignorou por completo, e proferiu sentença no sentido de alegar que a recorrente juntou despesas como comida de cão ou métodos contracetivos, o que como se demonstrou não corresponde à verdade.
16. Ainda no artigo 21º do RGPTC está previsto que o juiz para fundamentar a sua decisão deve tomar o depoimento das partes, disposição legal essa que se afigurava aqui ser necessária e que foi preterida. E ainda o artigo 40º do mesmo diploma legal prevê que a sentença deve ser proferida deve acautelar os interesses do menor, o que não aconteceu aqui, já que o tribunal nem oficiou por saber se o menor necessitava ou não de leite de magnésio por questões de saúde e alimentares.
17. Quanto à condenação em litigância de má-fé, tal nunca poderá proceder, por todo o anteriormente exposto, já que se demonstrou claramente que diversas disposições legais foram omitidas, e foi ainda completamente desconsiderado que a recorrente não peticionou despesas suas, porquanto as mesmas não estavam sublinhadas nos documentos juntos aos autos – conforme facilmente se afigurará da consulta aos presentes autos.
18. E mais, a pretensão da recorrente foi parcialmente procedente, pelo que apenas não foi totalmente por não se considerarem documentadas e provadas todas as despesas peticionadas. Isso bastará para a condenação da recorrente?!
19. As despesas apenas não foram consideradas por lapso da recorrente, lapso esse que, como já referiu, teria sido facilmente esclarecido caso tivesse sido notificada nesse sentido, não obstante ter relembrado os presentes autos que apenas importavam as despesas que estavam sublinhadas nos talões juntos.
20. Aliás, se fosse intenção da recorrente litigar com dolo ou negligência grave claro que não iria juntar despesas tão facilmente detetáveis como comida de cão ou pílulas!
21. Sendo por isso manifesto que comprar diversos artigos no mesmo momento não poderá resultar numa condenação em litigância de má-fé, muito menos poderá resultar em condenação a confusão de NIF’s ou a sua falta de indicação, sendo que nesses precisos casos a recorrente já declarou que aceita que as referidas despesas nessa situação não sejam consideradas. Pelo que é manifestamente falso o que se lê na página 10 da sentença recorrida: “a requerente ao vir a juízo peticionar despesas que nada têm a ver com despesas médicas, medicamentosas ou escolares e ainda mais graves, que manifestamente não se destinavam ao menor, como é o caso, por exemplo, de contraceptivos orais, fez um uso reprovável do processo, deduzindo pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar.”
22. Sendo forçoso concluir que a recorrente não agiu com dolo nem com negligência grave, não se encontrando reunidos os pressupostos para a sua condenação.
23. Aliás, há vista do Ministério Pública de 09/10/2019, nesse preciso sentido, de não proceder a condenação da recorrente: não basta o erro grosseiro ou culpa grave, é necessário que as circunstâncias induzam o tribunal a concluir que o litigante deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada.
24. Se a circunstância de se dar como provada uma versão factual contrária à alegada pela parte não é suficiente para fundar a condenação desta como litigante de má fé, como acima se disse, muito menos poderá fundar tal condenação a circunstância da parte (apesar de não ter ficado demonstrada a inveracidade do facto por si alegado – e por isso indemonstrada a sua falta de probidade, de boa fé e de cooperação, de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça) não ter carreado ao processo provas destinadas a demonstrar a realidade da matéria alegada. A única consequência que se pode retirar da conduta da recorrente, em juntar faturas com o NIF errado, é não conseguir carrear ao processo meios de prova destinados a demonstrar judicialmente a sua pretensão e consequentemente não ver julgada provada a matéria de facto provada.
(Posteriormente) veio alargar o recurso por si interposto em 18/11/2019 à sentença reformada, mantendo todo o alegado no recurso, mas alargando o seu objecto também à condenação da Recorrente no pagamento de indemnização ao requerido no valor de 500€ (quinhentos euros), a qual não poderá de forma alguma aceitar em virtude de não ter existido qualquer litigância de má fé, tal como foi devidamente explicado nas suas alegações.
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2.2. Notificado para o efeito o requerido respondeu apresentado as seguintes conclusões:
A - A Douta Sentença não merece a censura que a requerente lhe faz, pois pelo contrário foi uma sentença muito bem ponderada e fundamentada;
B – E não violou as disposições constantes dos artigos nº 411, nº 7 do C.P.C. nem dos artigos nº 21 e nº 40 do RGPTC, nem padece ou assenta em qualquer incongruência;
C - A litigância de má fé da recorrente é descaradamente ostensiva como decorre dos Autos e abaixo se alegará, tal como a litigância de má fé presente neste Recurso, pelo que a sua condenação em multa a favor do Estado e indemnização a favor do recorrido é mais do que adequada e se peca é por defeito;
D - A recorrente na P.I., começou por dizer que enviou cartas registadas com A/R ao recorrido a pedir o pagamento da comparticipação nas despesas médicas e escolares, documentos que não juntou aos Autos como devia na altura, nem o fez mais tarde, pese embora o recorrido ter alegado que tal era falso;
E - Na P.I. a recorrente limitou-se a alegar que o recorrido lhe devia relativamente às despesas em falta, sem indicar quais, 400,00€; número estranhamento “redondo”;
F - Sem sequer descriminar nem o tipo nem o montante de cada uma; G - Na P.I. protestou juntar os documentos sem indicar prazo para o efeito, o que é desde logo de estranhar;
H- Junção que nunca veio a acontecer por iniciativa da recorrente, mesmo depois do recorrido reportar essa falta;
I - Cinco meses passaram e nada a recorrente juntou aos Autos;
J - Mesmo assim, o tribunal notificou-a para juntar os documentos que tinha protestado juntar cinco meses antes, ao abrigo dos princípios da cooperação e gestão processual, que a recorrente nega que o tribunal recorrido tenha feito;
K - Cinco meses depois, veio a recorrida dizer que afinal “no ano de 2017, apresenta o valor de 405.87€” - doc. 1 a 10 – (cuja soma dá não aquele valor mas sim 385,44€) e no ano de 2018, a recorrida apresenta o valor de 668.21€ - cfr. doc. 11 a 29-” (mas documentos cuja soma dá 775.11€);
L - Mais tarde, a 17-12-2018, a recorrente juntou aos autos uma carta de 02-03-2018 em que alegadamente juntou os referidos recibos mas cujo custo de porte de correio de 3.40€ por ser o custo mais baixo de uma carta registada correspondente a gramagem inferior a 20 g comprova que na carta seguiram no máximo 3 folhas, cuja existência inexplicavelmente nunca chegou ao conhecimento do recorrido;
M - Quando a recorrente tinha dito de início na P.I. que tinha enviado várias cartas registadas com aviso de recepção ao recorrido;
N – Ao contrário do que diz a recorrente estes documentos remetidos ao tribunal, não foram alvo de qualquer ressalva, realce, sublinhados ou descriminação, conforme se constata da sua visualização;
O - Os documentos ou se referem à recorrente e não ao D…, vem vários sem o Nif do D…, outros referem-se a aquisições posteriores à alegada interpelação da recorrente de 02-03-2018, foram alterados, juntos mais tarde, recibos de roupa para justificar o valor peticionado, conforme atrás se disse e para onde se remete;
P – Relativamente ao leite magnésia e conforme declaração médica que desde já se impugna, e que a recorrente só agora junta aos Autos quando há muito o deveria ter sido em função das suas alegações ao longo dos diversos requerimentos que precederam a Douta Sentença e que por este motivo deve a sua junção ser julgada extemporânea e o documento devolvida à parte com a devida tributação, sempre se
dirá que uma colher de sopa representa 15 ml pelo que a criança então com 4 e 5 anos de idade estaria com uma “overdose” tremenda se tomasse toda este leite que a recorrente debita;
Q - É verdade que meses atrás o recorrido foi obrigada a comprar um frasco de leite magnésia porque tal aquisição era condição essencial para que a recorrente lhe entregasse o filho que o recorrido desde a separação (há quase 3 anos atrás) quase não vê por impedimentos recorrentes da progenitora;
R - A 17-12-2018, a recorrente usa de má fé de novo e junta aos Autos documentos diferentes, para justificar o valor pedido, nomeadamente recibos da Zippy, de roupa, no valor de 31.98€ de 04-10-2017 com o nif da recorrente, de 122,50€ de 19-03-2017, sem nif e posterior à carta de 02-03-2018 e sem contribuinte, quando sabido é que a despesa com a roupa está incluído na prestação alimentar;
S - Determina o artigo 8 do CPC que no processo devem as partes agir de boa fé;
T – Nestes Autos, a recorrida abusa descaradamente dos meios processuais para obter um resultado ilegal, ou seja receber o valor de despesas que não teve com o D…, mas antes consigo e que além do mais nunca apresentou ao recorrente, ao contrário do que alegou, o que faz manifestamente contra os limites impostos pela boa fé;
U - Acabando, dessa forma, por, além do mais, entorpecer o funcionamento da justiça;
V - Uso dos meios judiciais reprovável mais agravado num tribunal de Família pois ocupa este Tribunal com alegações falsas, tirando lugar à apreciação de necessidades reais e criticas de outras crianças;
W- Face a todo o atrás referido a conduta processual da recorrente, consubstancia uma litigância imbuída de ostensiva má fé, nos termos do disposto no artigo 542 e seguintes do C.P.C.
X – Efectivamente, a recorrente deduziu e continua a fazê-lo, com dolo, pretensão cuja falta de fundamento não ignora e faz do processo um uso manifestamente reprovável, estando, desta forma verificadas as alíneas a), b), c) e d) do nº 2 do artigo542 do C.P.C.
Y – Assim a condenação da recorrente como litigante de má fé, em indemnização condigna a favor do recorrido em 500,00€ e em multa de 3 ucs., se peca é por defeito.
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2.3. O Digno MP apresentou resposta, em ficheiro não editável e cujo teor se dá por reproduzido, concluindo que a decisão deve ser revogada e o recurso procedente porque a condenação por má fé exige a existência de dolo, que in casu não ocorreu.
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3. As questões a decidir são determinar se estão ou não preenchidos os pressupostos da litigância de má fé.
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4. Fundamentação de facto
1) Por decisão datada de 17.3.2017, proferida pela Sra. Conservadora da Conservatória do Registo Civil de Gondomar, foi homologado o acordo de regulação do exercício das responsabilidades parentais do menor D…, alcançado pelos progenitores, ficando o(a) requerido(a) obrigado ao pagamento, a título de alimentos devidos ao(à) menor, da prestação mensal de 150€, até ao dia 8 de cada mês, por transferência bancária, valor a actualizar anualmente em Janeiro, em função dos índices de preços ao consumidor publicado no I.N.E;
2)Mais ficou o(a) requerido(a) obrigado(a) ao pagamento de metade das despesas médicas, medicamentosas e escolares, na parte não comparticipada pelos serviços competentes, mediante a entregados respetivos documentos comprovativos;
3)O NIF do menor D… é ………e o NIF da progenitora B… é o ………;
4) A requerente/progenitora realizou as seguintes despesas:

5)A requerente/progenitora enviou carta regista da com aviso de recepção endereçada ao requerido/progenitor, datada de 3.3.2018,a qual foi devolvida, em 16.3.2018, com a menção «objeto não reclamado»;
6)O requerido não procedeu ao pagamento integral da prestação de alimentos no período compreendido entre Julho de 2017 e Agosto de 2018, tendo nesse período apenas pago 100 € mensais;
7) O requerido/progenitor procedeu aos seguintes pagamentos:

8)O valor de 150€ pago pelo requerido em 11.9.2018 foi para abatimento da dívida relativa a valor em falta desde Julho de 2017 até Julho de 2018;
9)As despesas descritas sob os n.º37 e 40 do quadro do ponto 4) dos factos provados, são repetidas.
Considera-se provado da tramitação processual que:
1. No seu requerimento inicial a apelante alegou que: “Sucede que o requerido desde Julho do ano de 2017, paga mensalmente somente o valor de 100€, ignorando o valor fixado, bem como não paga os 50% da sua comparticipação nas despesas médicas e escolares. A Requerente por diversas vezes enviou via correio registado, com aviso de recepção os documentos comprovativos das despesas realizadas com o menor, e o Requerido não procede ao levantamento das cartas no correio. De forma a furtar-se ao pagamento das ditas despesas. Assim o Requerido deve à requerente a título de pensão de alimentos a quantia de (11 meses x 50€) 550€. Relativamente às despesas em falta deve a quantia de 400€ (quatrocentos euros). Tudo conforme consta nos documentos que protesta juntar”.
2. Na sua contestação o requerido alegou que: “Quanto as alegadas despesas escolares e médicas com o menor, o requerido nunca foi interpelado para pagar seja o que for, em momento algum; 7 – Muito menos lhe foi indicado que tinha que pagar 400,00€, numero redondo que muito se estranha; 8 - Aliás a requerente não junta aos autos qualquer documento que prove a existência de quaisquer despesas médicas ou escolares do menor; 9 - Muito menos junta documento que demonstre que a parte não comparticipada ascende a 400,00€; 10 - Nem indica sequer na P.I. a que valor ascende as alegadas despesas médicas por um lado e as despesas escolares por outro, havendo nula descriminação de valores e do tipo de despesas;
3. No dia 26.11.18a requerente veio: “requerer que se digne a ordenar e admitir a presente junção aos autos dos documentos comprovativos das despesas realizadas pela requerente em prol do menor”.
4. O requerente pronunciou-se quanto a esses documentos nos seguintes termos: No ano de 2017 a requerente apresenta o valor de 405.87€ que apresenta nos documentos 1 a 10. Bem com vem apresentar as despesas referentes ao ano de 2018, que também se encontram em divida, por parte do Requerido, no valor de 668.21€. Constantes nos documentos 11 a 29. Agora, 5 meses depois e porque instada pelo tribunal para juntar aos Autos os alegados documentos referentes a despesas, vem a requerente dizer afinal que “no ano de 2017, apresenta o valor de 405.87€” (doc. 1 a 10), cuja soma dá não aquele valor mas sim 385,44€ e no ano de 2018, a requerente apresenta o valor de 668.21€, (cfr. doc. 11 a 29) mas documentos cuja soma dá 775.11€.
Folha 2 – o recibo de 13-09-2017, não diz respeito ao D…, não tem o contribuinte do D… nem o Brufen 600 se destina a uma criança com 4 anos de idade, como é sabido; o segundo medicamento vem rasurado.
Folha 4 – medicamentos não dizem respeito ao D…, ambos os recibos em nome da requerente.
Folha 5 – recibo do Continente- cereais cornflakes, iogurtes activia, tisana, fraldas. Tratam-se de alimentos para a requerente; o D… não usa fraldas nem sequer de noite, já antes do divorcio dos pais, a 17-03-2017. Em qualquer caso mesmo que se destinassem ao D…, são bens pagos pela prestação alimentar.
Recibo de 15-04-2017- apesar do recibo vir em nome do D…, quem usava produtos Uriage era a requerente. Duvida-se que o bepanthene eczema se destina-se ao D….
Folha 6 – recibo de 25-05-2017 em nome da requerente, e tudo produtos que se lhe destinavam, desde migrétil, dailycleanser pelo normal e seca e lei te magnésia Philipps que há anos a requerente toma, ainda o D… não era nascido, por padecer da doença de Crown e que se destina a quem sofre de prisão de ventre, azia, enfartamento e indigestão, que não é seguramente o caso do D…. (cfr. doc 1 e 2 e se dão aqui por reproduzidos para os legais efeitos)
Recibo de 15-08-2017- contribuinte desconhecido; não pertence nem ao D… nem a requerente.
Folha 7- despesa com corte de cabelo, não é despesa nem médica, nem medicamentosa nem escolar- recibo em nome da requerente.
Despesa do continente de 02-04-2017- nif pertence a desconhecido. Temos aqui fraldas e alimento para cão. Seguramente não é despesa referente ao D….
Folha 8 – consulta de 07-03-2017- não estavam reguladas as R. parentais, que só são a 17-03-2017, cfr. consta da própria P.I., pelo que não é devida.
Folha 9- - despesa de 08-03-2017 - não estavam reguladas as R. parentais, que só são a 17-03-2017, cfr. consta da própria P.I., para além de não ter sido paga pela requerente, pelo que não é devida.
Folha 16 – despesa de 05-09-2017- recibo em nome da requerente para pagar produtos para si, além de estarmos a falar de gel de banho e champó, bens pagos pela pensão alimentar.
Despesa de 19-06-2017- recibo em nome da requerente, referente ao contraceptivo Daylette e leite magnésia para ela (doc. nº 3 que se dá aqui por reproduzido para os legais efeitos;
Folha 17 – leite magnésia que se destina à requerente ,cfr. alegado acima.
Recibo de 08-03-2018- em nome da requerente e referentes a produtos para ela. Claridon é um medicamento para adulto, cfr. doc. nº 4.
Folha 18 - leite magnésia que se destina à requerente ,cfr. alegado acima.
Recibo de 24-04-2018- em nome da requerente e referentes a produtos para ela, nomeadamente Aerius, contraceptivo Zoely e Voltaren. (cfr. doc. nº 5 que se dá aqui por reproduzido para os legais efeitos)
Folha 19- despesa com corte de cabelo, não é despesa nem médica, nem medicamentosa nem escolar- recibo em nome da requerente.
Recibo de 26-02-2018- recibo em nome da requerente, produtos que lhe são destinados, nomeadamente aerius e Lierac Sunif creme invisível.
Folha 23 – recibo de 09-02-2018, em nome da requerente e produtos a ela destinados, a saber, habitual leite magnésia, Vichy pureté termal gel de limpeza, catricematte poder, essence satin touch blush. O D… não usa pó de arroz nem blush !
Recibo de 12-01-2018, em nome da requerente e produtos a ela destinados, habitual leite magnésia, Cholagutt e buscopan, conhecidos produtos para adultos.
Folha 24 – recibo com data ilegível mas de 2017 em nome da requerente e com o habitual leite magnésia, daflagan com comprimidos de 1000 mg ou seja dosagem para adulto.
Recibo de 24-04-2018- Não se aceitam embalagem de 120 doses de Avamys para o D….
Folha 25 – recibo de 22-04-2018 repetido na folha 27. De novo com leite magnésia que se destina à requerente.
Folha 26 – recibo de 23-11-2017 em nome da requerente. De novo com leite magnésia para ela.
Recibo de 16-05-2018 em nome da requerente; migretil (medicamento para adulto cfr. acima dito), contraceptivo Zoely, ovúlo Dermofix, e o habitual leite magnésia.
Folha 27 – recibo da wells de 22-04-2018 repetido (mesmo doc. Da folha 25) para além de se referir ao leite magnésia tomado pela requerente.
4. A apelante respondeu, ao incidente de condenação como litigante de má fé, nos seguintes termos: “2. O requerido, sistematicamente, não paga as prestações de alimentos devidas ao menor D… até à data em que se comprometeu a fazê-lo – até ao dia 8 de cada mês. 5. Mais ainda, o requerido nunca pagou até à presente data qualquer quantia a título de despesas de escola e saúde do seu filho menor D… que estão reclamadas e relacionadas no presente processo, apesar de a requerente ter tido o cuidado de as reclamar junto do requerido por carta registada para a morada que o requerido forneceu para tal. 8. Pelo exposto, a requerente nunca pretendeu faltar à verdade, nunca pretendeu desrespeitar o Tribunal nem nunca pretendeu utilizar a presente demanda para fins que não lhe possam ser legítimos”.
5. Após a resposta referida em 2) a mandatária da apelante sub estabeleceu sem reservas noutro mandatário. Posteriormente esse mandatário renunciou ao mandato.
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5. Motivação jurídica
O instituto da litigância com má fé tem uma origem histórica longa e antiga e identifica-se, total ou parcialmente, com a não adopção de uma conduta processual adequada, conforme com o comportamento de um cidadão médio.[1]
O nosso legislador recentemente[2] analisou este instituto defendendo que o mesmo visa: “Dissuadir, de forma eficaz, comportamentos processuais maliciosos ou a prática de actos processuais inúteis ou manifestamente dilatórios e reprimir, também, com eficácia, o exercício reprovável do direito de acção. (Tem como) objectivos mediatos: Aumentar a celeridade processual, contribuindo para a redução das durações médias dos processos. Diminuir o número de acções judiciais espúrias propostas, visando a diminuição do número de processo pendentes. Contribuir para a qualidade do sistema da Justiça”.
Ou seja, este instituto visa defender interesses públicos na boa administração da justiça, reduzindo não apenas a procura dos meios judiciais, mas também evitando comportamentos que possam por em causa a qualidade das decisões.
Pretende-se assim evitar: “um deficiente apuramento da realidade dos factos em resultado de comportamentos censuráveis das partes e do condicionamento que esses comportamentos levantam à actuação e decisão do tribunal”.
Daqui decorre que o seu objecto não é apenas a defesa do interesse da parte que no caso pode ser vítima da má fé da parte contrária, mas também a defesa do interesse público numa justiça material. É essa ideia que justifica que a parte que litiga de má fé deva indemnizar a outra dos danos que a sua conduta processual lhe causou e deva suportar também em benefício da coletividade - total ou parcialmente - uma sanção, penalidade ou multa[3].
Por causa disso, já VAZ SERRA[4], no âmbito dos trabalhos preparatórios para o Código Civil, aludia à litigância de má-fé como uma forma de exercício abusivo do direito de estar em juízo.
A generalidade da nossa doutrina e jurisprudência tem vindo, também a reconhecer que a litigância de má-fé visa sancionar comportamentos processuais abusivos[5].
Cabe salientar, decidindo desde já a questão suscitada pelo MP, que o elemento subjetivo da litigância de má-fé sofreu uma ampliação com a reforma do CPC de 1995/96. Até essa data era considerado de má-fé aquele que sabia não ter razão, numa clara aproximação da má-fé ao dolo, como pretende o digno MP nas suas alegações.
A partir do DL 329- A/95, de 12 de Dezembro, passou a ser considerado como litigante de má-fé também aquele que actua com negligência desconhecendo a sua falta de razão, porque grosseiramente não observou os mais elementares deveres de cuidado.[6]
Nesta medida Rodrigues Bastos[7] é claro; “a reforma de 1995 mudou este estado de coisas, considerando revelador de má fé no litígio tanto o dolo, como a culpa grave, que designa por negligência grave”.
Acresce que “como reflexo da filosofia que lhe está subjacente, a reforma alargou o conceito, estendendo-o justificadamente às condutas processuais gravemente negligentes. Basta, pois, uma falta grave de diligência para justificar o juízo de má fé da parte”[8].
Ou seja, contrariamente ao que sucedia até 1995, em que se exigia má-fé em sentido psicológico, isto é, o agir “com intenção maliciosa e não apenas com leviandade ou imprudência”, desde essa data que é sancionável a actuação negligente desde que esta seja grave.
Podemos, portanto, concluir que nem o Digno MP nem a recorrente têm razão quando invocam a inexistência de dolo para evitar o preenchimento da previsão legal, porque esta se basta com a existência de uma negligência grave.
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2. O art.º 542.º n.º 2 do CPC, classifica como litigante de má-fé, aquele que, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”
A litigância de má-fé pressupõe assim uma atuação dolosa ou com negligência grave, consubstanciada numa dessas diversas situações.
A má-fé é a violação de uma conduta adequada que se traduz na formulação de pedidos injustos, na articulação de factos contrários à verdade e/ou na promoção de diligências meramente dilatórias.
E, note-se que a má-fé tanto pode ser material como instrumental[9]. Na primeira situação “o litigante espera obter uma decisão de mérito que não corresponde à realidade”; no segundo “procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta”[10]. (nosso sublinhado)
A nossa doutrina e jurisprudência consideram caber nessa figura situações de má fé subjectiva, caracterizadas pelo conhecimento ou não ignorância da parte; e objectiva, resultantes da violação dos padrões de comportamento exigíveis.
Tem sido também salientado, que “a garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e do exercício do contraditório, próprios do Estado de Direito são incompatíveis com interpretações apertadas ou muito rígidas do artº. 542º do CPC”.
Por isso, é necessário “prudência e razoabilidade, na formulação do juízo sobre essa má fé”.
Sendo que: “a condenação por litigância de má fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu dolosamente ou com negligência grave, com e/ou no processo entrado em tribunal”[11].
Logo, é preciso que a parte tenha agido “sabendo da falta de fundamento da sua pretensão ou oposição, encontrando-se numa situação em que se lhe impunha que tivesse esse conhecimento e um dever de agir em conformidade com ele”[12].
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3. Da censurabilidade (ou não) da conduta da apelante
Importa, desde já frisar que as conclusões deste caso em nada derivam de contingências de prova.
Com efeito, conforme já decidiu este coletivo no processo nº 220/15.3T8VGS: “Não pode ser considerado litigante de má-fé aquele que perder uma acção por não comprovação de factos desde que tenha exercido o seu direito de acção sem dolo ou negligência grave. (…)”.
Note-se, a este propósito, o Ac. RP de 22.1.2007, nº 0645005 (Paulo Carvalho), que afirma “Não deve ser condenado como litigante de má-fé, o autor que invoca a existência de um contrato de trabalho que vem a ser qualificado como contrato de prestação de serviços, sem ter omitido quaisquer dos factos relevantes à boa decisão da causa”. Por seu turno, o Ac do STJ de 18.2.2015, nº 1120/11.1TBPFR.P1.S1 decidiu que a “litigância de má fé não se basta com a dedução de pretensão ou oposição sem fundamento, ou a afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta”.
E, segundo Pedro de Albuquerque[13] “basta uma situação de plausibilidade da sua pretensão ter fundamento para agir em juízo (…) uma situação de incerteza desde que sem violação da diligência devida sem necessidade de possuir uma certeza de irá vencer”, para evitar a condenação como litigante de má fé.
Ou seja, não basta uma mera desconformidade com a verdade processual para que exista uma litigância de má fé relevante[14]. Mas, se algo é certo, neste caso, é que não é isso que está em causa, pois: a apelante exigiu o pagamento de determinadas despesas; juntou comprovativos das mesmas e face ao teor desses documentos é evidente e notório que essas verbas não lhe são devidas, facto que, note-se, aceita na medida em que nem sequer põe em causa a decisão final.
Logo, in casu, estamos perante:
a) factos pessoais (diz que fez x despesas de saúde),
b) evidentes (os documentos foram juntos pela apelante que aceita toda essa realidade probatória),
c) não resultantes de qualquer tipo de contingência probatória (são até aceites pela apelante).
Ora, parece simples e evidente que a apelante preencheu de forma dolosa a previsão da má fé, em três das suas quatro modalidades.
Em primeiro lugar esta preencheu a alínea a) Dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não deve ignorar.
Por mais argumentos que a apelante possa usar, o certo é que esta pediu a condenação do requerido num determinado valor, indicou um valor monetário concreto, e sabia que não tinha efectuado despesas de saúde do seu filho naquele mesmo valor. Logo, quando intentou a acção desvirtuou a realidade em seu beneficio e fê-lo de forma direta sabendo e querendo obter esse beneficio.
Bastará dizer que se houvesse dúvidas estas foram desfeitas pela própria apelante, pois, após a parte contrária por em causa essas despesas, a mesma não apenas as reiterou como até juntou documentos para as comprovar que não correspondiam à realidade.
Ou seja, se estivéssemos perante um mero lapso ou conduta negligente a apelante não teria reiterado o pedido e a sua intenção “inventando documentos” para sustentar as despesas que sabia não ter realizado com comprovativo[15].
Conforme salienta o Ac do STJ de 6.12.2001, (Afonso de Melo), nº 01A3692: “A parte deduz pretensão, cuja falta de fundamento não devia ignorar, quando negligencia o dever de indagação quanto à existência de fundamento suficiente para a pretensão que deduz, atuando com desleixo. Para este efeito, basta a demonstração de que era exigível à parte a consciencialização da falta de fundamento da pretensão, não sendo necessário demonstrar que a parte sabia, efetivamente, da falta de fundamento, sob pena de se inviabilizar o funcionamento da regra prevista no Artigo 542º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil”.
Ora, esse é o caso claro, pois a apelante sabia quando efectuou o requerimento inicial que a parte pedida da verba de 800 euros não lhe era devida. Logo estamos perante uma conduta dolosa, na modalidade directa.[16]
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Em segundo lugar, como vimos preencheu também a alínea b) Alteração da verdade dos factos ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa. É evidente que não é qualquer alteração da realidade que pode ser considerado má-fé processual. Quanto a nós essa alteração tem de ser adequada, relevante e central. Adequada no sentido de apta a obter o objectivo, neste caso desvirtuar a boa decisão da causa. Relevante para a decisão da causa (prisma da utilidade). E, central sob o ponto de vista do objecto processual (o seu objecto é um ponto essencial para as questões debatidas nos autos)[17].
In casu, estamos perante uma desconformidade que é central face ao objecto da acção (diz respeito a parte importante do pedido), e mais do que adequada para obter a finalidade desejada. Basta dizer, que só a análise documento a documento, produto a produto, e os conhecimentos pessoais das necessidades da apelante; permitiu constatar que parte dos produtos eram consumidos por si e não pelo seu filho (caso flagrante de medicamentos para adulto). Ora, mais uma vez estamos perante factos pessoais cuja deturpação assume natureza necessariamente dolosa e não meramente negligente. Tanto mais que, repetimos, foi reiterada já que após a impugnação da parte contrária é que a parte juntou aos autos esses documentos para sustentar o seu já infundado pedido inicial.
Ou seja, a junção desses documentos, para a tentativa de comprovação de algo que já sabia ser infundado demonstra, mais uma vez uma conduta dolosa e grave. Pois, como salienta o Ac da RL de 20/12/2016 (nº 1220/14.6TVLSB.L1-7): “para efeitos de aferição da existência de litigância de má fé, a negligência grave deve ser entendida como «imprudência grosseira, sem aquele mínimo de diligência que lhe teria permitido facilmente dar-se conta da desrazão do seu comportamento, que é manifesta aos olhos de qualquer um».
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Em terceiro lugar, parece também seguro que a apelante preencheu a al. d) Uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais.
Esta previsão pressupõe a intenção de alcançar um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade ou protelar injustificadamente o andamento do processo. A «parte atuará ilicitamente se souber ou se devia saber que a sua pretensão, quer atendendo aos aspetos de facto, integradores da potencial causa de pedir, quer atendendo aos efeitos que deles são retirados, através da formulação de um pedido, não é compatível com aquilo que o sistema dita.»[18].
Desde logo, esta acção existe para salvaguardar os alimentos devidos ao menor filho das partes e não para enriquecer a apelante ou desgastar psicologicamente o apelado. Logo, se a apelante usa a acção e situação para obter esses ou outros benefícios é evidente que está a usar do direito de acção para lá do fim lhe foi concedido, isto é, defender o sustento do seu filho.
Dos elementos, do processo é evidente que a apelante começa por fazer um pedido injustificado, depois face à contestação da parte contrária reitera-o e junta meios de prova que bem sabia não serem adequados, aptos e substancialmente conformes com a realidade. Ou seja, a parte adultera a realidade, reitera essa adulteração e junta documentos que graças à sua actuação são substancialmente desconformes com a realidade (não comprovam que tenha despendido cerca de 800 euros na saúde do seu filho).
É simples, por isso, concluir que preencheu também esta previsão legal. Note-se aliás que a culpa na actuação do litigante de má fé é aferida nos termos do no art. 487º, nº 2 do CC que dispõe que “a culpa é apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias do caso”. Deste modo, o grau de diligência imposto à apelante é de um pai ou mãe medianamente prudente e cuidadoso, que por isso previamente à propositura de uma ação judicial saberia o montante gasto em despesas de saúde do seu filho.
Podemos, por isso concluir que os autos demonstram de forma clara que a apelante actuou violando de forma flagrante esse normal dever de probidade[19].
Porque, como salienta o como salienta o recente Ac do STJ de 26.11.2019 nº 7413/14.9T8LRS.S1 :“Deve ser condenado como litigante de má-fé a parte que teve ao longo do processo uma atitude de negar evidências relativamente a situações em que, no mínimo, lhe era exigível um outro comportamento, quando não se possa afirmar que a sua postura processual se reconduz apenas a uma elevada insatisfação e inconformismo, com idêntico nível de litigiosidade, dentro de um quadro de normalidade em caso de litígio judicial”.
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4. Do montante da sanção e da indemnização
Em rigor não faz parte do objecto do processo a adequação destes dois valores, pois, a apelante pretendia apenas a sua absolvição total do pagamento dos mesmos.
Sempre diremos, porém, que quer a multa quer a indemnização estão adequadamente fixadas tendo em conta as situações do caso concreto e os critérios legais e jurisprudenciais.
Entre nós a indemnização é fixada, nos termos gerais através da equidade, tendo em conta o grau da conduta ilícita e culposa do litigante de má-fé; e os demais fatores atendíveis, nos quais relevam, nomeadamente, a natureza e o valor processual da ação, os atos processuais praticados e não praticados e as consequências destes.[20]
Ora, no caso presente o beneficio ilícito que a apelante pretendia obter era de 800 euros e a multa foi fixada em 3 uc´s ao que acresce o valor de 500 euros a título de indemnização.
Parece-nos, pois, que esses valores são proporcionais ao grau de desconformidade da conduta da apelante, adequadas às consequências concretas da mesma e conformes com os valores patrimoniais que a apelante visava obter ilicitamente.
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VI. DECISÃO
Nos termos, e com os fundamentos expostos, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, por via disso, confirmar integralmente a decisão recorrida.
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Custas da apelação a cargo da apelante.

Porto em 16.12.2020
Paulo Duarte Teixeira
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
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[1] Cfr. Por todos Pedro de Albuquerque, Responsabilidade processual por litigância de má fé (…), Almedina, 2006. Pag. 29 e seguintes traçando a evolução no direito nacional. Referindo que pode ser remotamente reconduzida à noção romana de fides, definida como a obrigação do cidadão de ser uma pessoa de palavra.
[2] DGPJ, 2011, https://dgpj.justica.gov.pt/Portals/31/Estudos%20AIN% 20DGPJ/Litigancia_ma_fe_novembro _2010.pdf
[3] Aristides Rodrigues de Almeida, A responsabilidade pelo pedido infundado ou pela apresentação indevida à insolvência, Julgar online, Março, 2014, pág. 17 e 18.
[4] Cf. VAZ SERRA, Abuso do Direito (em matéria de responsabilidade civil), BMJ, nº 85, Abril, 1959, p. p. 268 e ss.
[5] Entre outros ABRANTES GERALDES, Temas Judiciários, p. 309; MARIA OLINDA GARCIA, A Responsabilidade do Exequente e de Outros Intervenientes Processuais, Breves Considerações, Coimbra Editora, 2004; SOARES, Fernando Luso, A Responsabilidade Processual Civil, Almedina, 1987.
[6] Cf. PAULA COSTA E SILVA, A Litigância de Má Fé, Coimbra Editora, 2008, p. 385.
[7] Notas ao CPC, II volume, pág. 221, Lisboa, 2000.
[8] cfr. Miguel Teixeira de Sousa in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa 1996, pág. 63, e Ac STJ de 21.11.2019 nº 1986/06.7TVLSB-C.L1.S2.
[9] Ac da RC 28/5/2019 (3303/11.5TBLRA-A.C1): I - O instituto da condenação por litigância de má fé envolve um juízo de censura que radica na violação dos elementares deveres de probidade, cooperação e de boa fé a que as partes litigantes estão adstritas. II - Enquanto que as alíneas a) e b) no nº 2 do art. 542º do CPC se reportam à chamada má fé material/substancial (direta ou indireta), já as restantes alíneas do normativo se reportam a situações que têm a ver com a designada má fé processual/instrumental das partes litigantes.
[10] A. dos Reis, CPC anotado, anotação ao art.º 465º.
[11] Cfr. entre outros Acs. do STJ de 21/04/2018, proc. nº. 487/ 17.5T8PNF.S; de 26/01/2017, proc. nº. 402/10.4TTLSB.L1.S1; de 02/06/2016, proc. nº. 1116/11.3TBVVD.G2.S1; de 21/04/2016, proc. nº. 497/12.6TTMR.E1.S1, de 11/9/2012, proc. nº. 2326/11; Ac. da RC de 16/12/2015, proc. 298/14.7TBCNT-A.C1, e Ac. da RE de 26/02/2014.
[12] Acórdãos do STJ de 17.12.2015, (João Trindade), nº 969/03, de 18.2.2015 (Silva Salazar), nº 1120/11, e de 10.12.2015 (Clara Sottomayor) nº 551/06.
[13] In Responsabilidade Processual por litigância de má fé (cit), Almedina, 2006, pág. 125 e segs.
[14] O Ac da RP de 12.5.20105, nº JTRP00038056 é claro . “Pode defender convicta, séria e lealmente uma posição sem dela convencer o tribunal. As circunstâncias do caso hão-de permitir se conclua que a parte apresentou pretensão ou fez oposição conscientemente infundadas, estar-se perante uma situação em que não deva deixar dúvida razoável sobre a conduta dolosa ou gravemente negligente da parte”.
[15] Não se diga sequer que esta se perdeu ou não foi pedida, pois, é evidente o interesse da requerente em documentar essas despesas, seja para ser ressarcido pelo pai do seu filho, seja para benefícios fiscais.
[16] ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, p. 569.
[17] CfrAc do TRG de 30/01/2020 100/17.8T8VRM.G1 (Paulo Reis) “deve ser sancionada à luz da litigância de má-fé a conduta processual dos autores que basearam a demanda na alegação de determinada versão dos factos cuja falta de fundamento não podiam deixar de conhecer por se mostrar de todo incompatível com os factos que resultaram provados e que consubstanciam factos pessoais que não podiam deixar de ter conhecimento, revelando-se ainda essenciais à verificação dos pressupostos ou requisitos constitutivos do direito invocado”, Este aresto foi comentado por URBANO LOPES DIAS in https://drive.google.com/file/d/1fkn46lHuIs8inXWfWbVGE8gWZouU70 CE/view.
[18] Cfr. PAULA COSTA E SILVA, A Litigância…, cit., p. 411 e 412.
[19] Cfr. Ac do STJ 18/10/2018, nº 74300/16.1YIPRT.E1-A.S1 “deve ser condenado como litigante de má-fé se nega factos pessoais que vieram a ser declarados provados”, e Ac. da Rl de 24.9.2020, nº 19727/18.4 SLSB-A.L1-6 MANUEL RODRIGUES.
[20] Cfr. por mais recente o Ac. do TRG de 6.2.2020, Proc. nº33/16.5TBCMN-A.G1. Tradicionalmente e segundo ALBERTO DOS REIS, CPC, II, pág. 269, atendia-se ao grau de má-fé e à situação económica do litigante.