Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
351/18.8PBBRG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FRANCISCO MOTA RIBEIRO
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONVOLAÇÃO
CRIME DE INJÚRIA
QUEIXA
ACUSAÇÃO PARTICULAR
Nº do Documento: RP20200304351/18.8PBBRG.P1
Data do Acordão: 03/04/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Tendo-se os autos iniciado para apuramento de um crime de violência doméstica sem que tenha sido apresentada qualquer queixa pela ofendida, sem que esta tenha deduzido acusação particular ou sequer tenha aderido à acusação do MP, fica o Tribunal impedido de conhecer de um eventual crime de injúria para o qual aquele venha a ser convolado.
II - Assim sendo, deveria o Tribunal a quo ter-se abstido de conhecer do mérito da causa, na parte atinente aos factos alegadamente constitutivos do crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181º, nº 1, do CPP, por falta de legitimidade do Ministério Público para, quanto a eles, proceder criminalmente contra o arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.º nº 351/18.8PBBRG.P1 – 4ª Secção
Relator: Francisco Mota Ribeiro
*
Acordam, em conferência,
no Tribunal da Relação do Porto
1. RELATÓRIO
1.1 Após realização da audiência de julgamento, no Processo nº 351/18.8PBBRG, que correu termos no Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia, Juiz 4, do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença de 24/10/2019, foi decidido o seguinte:
“Nestes termos, julgo a acusação pública parcialmente procedente, por não provada, e em consequência decido:
a) Absolver o arguido B… da prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea a), e n.ºs 2, 4 e 5 do Código Penal, de que vem acusado;
b) Condenar o arguido B… pela prática, em autoria material, e na forma consumada, de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de 6,50€ (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o montante de 585,00€ (quinhentos e oitenta e cinco euros);
e) Condenar arguido B… no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal, nos termos do disposto no artigo 513º do Código de Processo Penal, e no artigo 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais.
1.2. Não se conformando com tal decisão dela interpôs recurso o Ministério Público, apresentando motivação que termina com as seguintes conclusões:
“1. Por sentença proferida a 24.10.2019, constante de fls. 314 a 341, dos autos supra referenciados, o Tribunal “a quo” absolveu o arguido B… pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, 4 e 5, do Código Penal e condenou-o pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de €6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o montante de €585,00 (quinhentos e oitenta e cinco euros).
2. Com todo o respeito pela decisão recorrida, não podemos deixar de discordar da mesma, pois impunha-se a absolvição do arguido pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, por ausência de acusação particular e falta de legitimidade do Ministério Público para o procedimento criminal nos termos dos artigos 50º, do Código de Processo Penal e 188º, n.º 1, do Código Penal.
3. A questão essencial prende-se em saber se o Tribunal, absolvendo o arguido pela prática do crime de violência doméstica, pode condenar pela prática do crime de injúria, quando a assistente nem deduziu acusação particular, nem acompanhou/aderiu à acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
4. No caso, a ofendida constituiu-se assistente, mas ainda assim, não se verificou o cumprimento de um dos requisitos para que o processo pudesse prosseguir apenas pela prática do crime de injúria: a assistente não deduziu acusação particular pelo referido crime (nem o tinha que fazer por os factos acusados integrarem a prática do crime de violência doméstica), mas também não aderiu/acompanhou a acusação principal deduzida pelo Ministério Público.
Com efeito, concordamos que a assistente não tinha que deduzir acusação particular pela prática do crime de injúria; porque os factos respetivos foram considerados, pelo Ministério Público, integradores de um crime (público) de violência doméstica, no entanto, deveria ter acautelado esta situação, acompanhando/aderindo a acusação do Ministério Público.
5. A jurisprudência tem sufragado três posições no que concerne às consequências processuais advenientes da situação em que o Tribunal considera que a matéria de facto não integra a prática de um crime de violência doméstica, mas apenas de um crime de injúria.
6. A primeira posição entende que, encontrando-se o arguido acusado de um crime de violência doméstica e não se apurando, em julgamento, factos bastantes para o preenchimento dos requisitos típicos de tal crime, mas apenas suficientes para lhe atribuir a autoria de um crime particular contra a honra e não se tendo o queixoso constituído assistente e não tendo deduzido acusação particular pela prática do crime de injúria (nos termos do artigo 285° do Código de Processo Penal), o Ministério Público carece de legitimidade para fazer prosseguir a ação penal, devendo o arguido ser absolvido definitivamente de tal crime particular.
7. Uma outra corrente jurisprudencial, embora reconhecendo legitimidade do ofendido para exercer a ação penal pelo crime particular, apenas permite que a mesma se exerça após o cumprimento do artigo 359º, do Código de Processo Penal, no atual (não havendo oposição) ou num novo processo (em caso de oposição ao prosseguimento, vale como notícia do crime), em que se dê cumprimento ao disposto no artigo 285.º do Código de Processo Penal.
8. Relativamente a esta segunda posição, consideramos que não estamos perante uma alteração substancial de factos, desde logo porque não é imputado ao arguido um crime diverso.
9. Na verdade, os factos que poderiam integrar a prática de um crime de injúria estavam já integrados nos factos por que o arguido vinha acusado, decorrente da prática de um crime de violência doméstica.
10. Nos termos do artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal, “alteração substancial de factos” é aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.
11. Assim, entendemos que não estamos perante uma situação a que se deva aplicar o regime do artigo 359º, do Código de Processo Penal (relativo à alteração, substancial de factos), ou mesmo o regime do artigo 358º, daquele diploma legal (relativo à alteração não substancial de factos e à alteração de simples qualificação jurídica).
12. A terceira posição que reconhece o cumprimento dos requisitos de legitimidade do ofendido no caso de aquele se ter previamente constituído como assistente e aderido à acusação pública pelo crime de violência doméstica — em que se continham também os factos que se vieram a provar, consubstanciadores do crime particular — também entende como desnecessário o cumprimento do preceituado nos artigos 358º ou 359º do Código de Processo Penal.
13. Ora, seguimos este último entendimento.
14. O Ministério Público carece de legitimidade para fazer prosseguir a ação penal, a não ser que a assistente tivesse aderido à acusação pública, pelo que deverá o arguido ser absolvido definitivamente de tal crime particular.
15. Com efeito, concordamos que a assistente não tinha que deduzir acusação particular pela prática do crime de injúria; no entanto, deveria ter acautelado esta situação e acompanhado/aderido a acusação do Ministério Público.
16. O Tribunal a quo considerou que não se poderia exigir à assistente a dedução da acusação particular, uma vez que nunca lhe foi dada essa possibilidade, por o Ministério Público ter considerado os factos em apreço integradores de um crime (público) de violência doméstica.
17. Se, por um lado, a assistente nunca deduziu acusação particular pela prática desses crimes porque os factos respetivos foram considerados pelo Ministério Público como integradores de um crime (público) de violência doméstica, por outro lado, poderia ter acompanhado a acusação pública, nos termos do artigo 284º, do Código de Processo Penal, uma vez que até já era assistente nos autos.
18. Estabelece o artigo 16º, da Lei n.º 112/2009, de 16.09 (Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas), que “a vítima que se constitua assistente colabora com o Ministério Público de acordo com o estatuto do assistente em processo penal.”
19. Conforme decidido pelo Tribunal da Relação do Porto, no seu acórdão de 30.01.2013, processo n.º 1743/11.9TAGDM.P1, acessível em www.dgsi.pt, “Se o assistente tivesse acompanhado a acusação pública [art.º 284.º, do CPP] poderia considerar-se que esse acompanhamento continha implicitamente a acusação pela prática de crimes de injúria”.
20. Concluindo que “tratando-se, porém, de um crime de natureza particular e uma vez que, em momento oportuno, não foi deduzida acusação particular, impõe-se a absolvição do arguido também quanto a este crime.”
21. Ora, a manifestação da vontade, por parte da ofendida, da vontade de prossecução da tutela penal dos direitos violados expressa pela dedução de queixa, constituição de assistente, acompanhamento da acusação e prestação de declarações em sede de audiência é suficiente e adequada a prover à tutela dos interesses inerentes ao instituto da acusação particular.
22. Face ao supra exposto, não tendo resultado provados, em julgamento, factos suscetíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica, o certo é que a assistente não acompanhou/aderiu a acusação, deduzida pelo Ministério Público, pela prática de um crime de violência doméstica, pelo que se impõe a absolvição do arguido pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181º, n.º 1, do Código Penal.
23. Ao condenar o arguido, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 181º, n.º 1, 18.º, n.º 1, ambos do Código Penal, assim como o disposto nos artigos 50º e 284º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que impunham que se proferisse decisão absolutória relativamente ao crime de injúria.”
1.3. Admitido o recurso, não foi ao mesmo deduzida qualquer resposta.
1.4. O Sr. Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal emitiu o parecer de fls. 361 a 368, nele concluindo, nos seguintes termos:
“(…)
Nos crimes particulares, “se o assistente não acusar o Ministério Público também não o pode fazer porque a acusação particular constitui condição de legitimidade do Ministério Público, nos termos do art.º 48.º. Se o Ministério Público acusar, não obstante a falta de acusação particular, a acusação é nula, por força do disposto na al. b), do art.º 119.º”[1].
Nos crimes particulares, a acusação deduzida pelo assistente, não constitui um pressuposto processual, mas antes condição de legitimidade do Ministério Público[2].
É certo que a factualidade típica integradora do crime de injúrias é abrangida pela factualidade típica, integradora do crime de violência doméstica, cujo bem jurídico protegido abrange, quer as condutas violadoras da integridade física e psíquica, quer a liberdade pessoal, quer a liberdade de autodeterminação sexual, quer a honra.
E, os factos pelos quais o arguido foi condenado constavam já da acusação, embora com diferente qualificação jurídica (cfr. factos descritos na acusação sob o ponto 4.º).
Contudo, a assistente, nestes autos, não só não deduziu acusação particular, como também não acompanhou a acusação do Ministério Público, pelo crime de violência doméstica.
Devendo ser considerado, que o acompanhamento da acusação publica pelo assistente, corresponde a uma manifestação de vontade de que o arguido seja julgado pelos factos e crimes nela referidos, e, ou, preenchidos pelas descritas condutas, como foi considerado em todos os Acórdãos antes citados, e, portanto, como equivalente a uma acusação e bastante para preencher o requisito de legitimidade requerido pelo art.º 50.º, n.º 1, do CPP.
A verdade é que a assistente C…, destes autos, além de não ter deduzido acusação particular, não declarou acompanhar a acusação publica e desse modo não manifestou vontade de que o arguido fosse julgado pelos factos e crimes nela referidos, e, ou, preenchidos pelas descritas condutas.
Falta assim um elemento essencial, indispensável à verificação da legitimada de em procedimento dependente de acusação particular.
No caso de crimes de natureza particular, como sucede com o crime de injúrias (art.º 181.º e 188.º, n.º 1, de CP), é necessário que o ofendido se queixe, se constitua assistente e que deduza acusação particular.
(…)
Mostra-se assim, que não foi dado cumprimento à exigência legal para a verificação da legitimidade da acusação em caso de procedimento dependente de acusação particular (art.º 50.º do CPP), legitimidade que exige a dedução autónoma de uma acusação pelo assistente ou, pelo menos, o acompanhamento da acusação do Ministério Público, como vem, aliás, sendo referido, cremos que uniformemente, pela jurisprudência.
A assistente, omitindo a dedução de acusação particular ou a declaração de acompanhamento da acusação do Ministério Público, não cumpriu o pressuposto de que depende a legitimidade do procedimento dependente de acusação particular.
Aliás, a assistente não manifestando o seu desacordo com o sentido do recurso interposto pela Exma. Magistrada do Ministério Público, junto da 1.ª instância, revelou não ter já, verdadeiramente, interesse na condenação do arguido, pela prática do aludido crime de injúrias.
A interpretação, que é feita na motivação de recurso pela Exma. Magistrada do Ministério Público, do conjunto das normas do art.º 181.º, n.º 1, 188.º, n.º 1, do CP, e art.ºs 50.º, n.º 1, e 285.º do CPP, afigura-se-nos a mais adequada à situação dos autos.
Nestes termos, acompanha-se a bem elaborada motivação de recurso da Exma. Magistrada do Ministério Público junto da 1.ª Instância, emitindo-se parecer no sentido da procedência do recurso.”
1.5. Foi cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do CPP.
1.6. Tendo em conta os fundamentos do recurso interposto pelo demandante cível e os poderes de cognição deste Tribunal, e exatamente como o considerou o Ministério Público no recurso interposto, a questão a resolver consiste em saber se, sendo o arguido absolvido da autoria do crime de violência doméstica, de que vinha acusado, pode, todavia, ser condenado pela prática de um crime de injúria, sem que a assistente tivesse deduzido acusação particular relativamente a tal crime ou sem que tivesse acompanhado ou aderido à acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
2. Fundamentação
2.1 Factos a considerar
2.1.1 O Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade:
“1º- O arguido B… e a assistente C… contraíram matrimónio entre si, no dia 6 de Outubro de 1974, fixando inicialmente a sua residência na cidade da Régua e cerca de dez anos depois em …, Vila Nova de Gaia, e depois na Rua …, nº …., …, Vila Nova de Gaia, até 13 de Março de 2018, altura em que a assistente decidiu deixar de partilhar casa com o arguido.
2º- Dessa união nasceu um filho a 11 de Novembro de 1977.
4º- Em data não concretamente apurada mas posterior a 1985, e pelo menos há dez anos, na casa de morada de família em …, Vila Nova de Gaia, o arguido enervou-se porque encontrou um pedaço de esfregão na comida confecionada pela assistente e nessa altura discutiu com ela e apelidou-a de “cabra”, “porca” e “puta”, tendo ainda anunciado que lhe ia bater, o que não consumou por a irmã da assistente ter intercedido em sua defesa.
5º- No dia 13 de Março de 2018, a assistente exibia um hematoma no olho esquerdo e saiu da casa que partilhava com o arguido, auxiliada pela irmã.
6º- A assistente foi acompanhada em consultas de psiquiatria no Hospital D… pelo menos desde 11 de Novembro de 2015 e teve períodos de internamento, um dos quais com a duração de nove meses.
7º- Com a conduta referida em 4º, o arguido agiu livremente e de forma consciente, com intenção de atingir, como atingiu a honra, consideração, bom nome e reputação da assistente, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal ofensa.
8º- O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal e que, por isso, incorria em responsabilidade criminal.
*
Mais se provou que:
9º- O arguido e a assistente divorciaram-se a 10 de Janeiro de 2019.
10º - O arguido encontra-se reformado, aufere de reforma o montante de 1.035,00€, encontra-se a pagar uma dívida à REFER no montante de 328,00€ mensais, e uma dívida proveniente de um crédito contraído no período do casamento no montante de 242,00€, contribui ainda com a quantia de 100,00€ a título de alimentos devidos à assistente na sequência do divórcio, e tem como habilitações literárias o 4º ano de escolaridade.
11º- O arguido é tido no meio social em que se insere como uma pessoa honesta, humilde, trabalhadora e pacífica.
12º- O arguido não tem antecedentes criminais.”
2.1.2 Factos ainda a considerar:
1. Os presentes autos tiveram início com o auto de notícia de violência doméstica, lavrado e assinado pelo respectivo autuante, a 14/03/2018 - junto a fls. 4;
2. A 02/10/2018 deu entrada no processo requerimento assinado pela ofendida, no qual esta declarava juntar comprovativo do pedido de apoio judiciário, requerendo que se considerasse interrompido o prazo para a constituição de assistente e advogado;
3. A constituição de assistente foi requerida em 19/10/2018, a fls. 144, e admitida por despacho de 05/11/2018, junto a fls. 161 dos autos;
4. O Ministério Público, a 17/06/2019, deduziu acusação contra o arguido B…, imputando-lhe factos que no seu entender eram constitutivos de um crime de violência doméstica, previsto e punido no art.º 152º, nºs 1, al. a), 2, 4, 5, do Código Penal.
5. Por despacho de fls. 247 e 248, o Ministério Público, considerando o facto de o crime de dano indiciado nos autos, previsto no art.º 212º, nº 1, por força do disposto no art.º 207, nº 1, al. a), do Código Penal, assumir natureza particular, estando por isso o procedimento criminal dependente de acusação particular, e que decorrido o prazo estabelecido no art.º 285º, nº 1, do Código de Processo Penal, a assistente não deduziu qualquer acusação, determinou o arquivamento dos autos, nessa parte.
2.2. Fundamentos fáctico-conclusivos e jurídicos
Como já acima referimos, a questão a resolver consiste em saber se, tendo sido o arguido absolvido da autoria do crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152º do CP, de que vinha acusado, pode o Tribunal condená-lo pela prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181º, nº 1, do CP, sem que antes a assistente tivesse deduzido acusação particular relativamente a tal crime e sem que tivesse acompanhado ou aderido à acusação pública deduzida pelo Ministério Público, relativamente ao crime de violência doméstica.
Os presentes autos tiveram o seu início com o auto de notícia de violência doméstica, lavrado a 14/03/2018.
Como os factos aí descritos eram constitutivos de um crime de violência doméstica, previsto e punível nos termos do art.º 152º, nº 1, al. a), e nºs 2, 4 e 5, do CPP, os autos prosseguiram os seus ulteriores termos sem que tivesse sido deduzida queixa pela ofendida, atenta a natureza pública do crime em causa, que faz com que o procedimento criminal não esteja dependente de queixa ou de acusação particular, ao contrário do que acontece com os crimes semipúblicos e particulares. Possuindo assim o Ministério Público legitimidade para promover o processo penal, ao abrigo do disposto no art.º 48º do CPP, mesmo sabendo-se que os factos noticiados nos autos integravam, se atomisticamente considerados, crimes de injúria, de ameaça ou de ofensa à integridade física (art.ºs 181º, 153º e 143º do Código Penal), todos eles dependentes de queixa, para que o Ministério Público pudesse promover o processo-crime, e o primeiro ainda de acusação particular, nos termos previstos nos art.º 49º e 50º do CPP, pois tais crimes encontravam-se numa relação de especialidade com o crime de violência doméstica, e desse modo numa relação de concurso aparente com este[3], perdendo por esse facto autonomia, em termos de possibilidade de subsunção jurídico-penal, passando todos os factos a ser tratados conjuntamente, como um único crime, ao qual seria aplicável, verificados os respetivos pressupostos, a pena prevista para o crime de violência doméstica.
Ora, esta relação de especialidade com o crime de violência doméstica desfez-se na fase de julgamento do processo, ao não serem dados como provados factos que implicassem o tipo objetivo desse crime, e que desde logo traduzissem a existência de maus tratos para a vítima, sejam físicos ou psíquicos. Surgindo assim, isolada e autonomamente factualidade constitutiva apenas de um crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181º do Código Penal.
Sucede que, relativamente a tal crime, para que o Ministério Público procedesse criminalmente contra o arguido, necessário seria que tivesse sido, não só deduzida queixa pela ofendida, mas ainda, posteriormente, acusação particular, sob pena de ilegitimidade do Ministério Público. É isso que resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 188º, nº 1, do Código Penal e 49º e 50º do Código de Processo Penal.
Ora, apesar de nos autos a ofendida se ter constituído assistente, por requerimento de 19/10/2018, que mereceu o despacho de admissão de 05/11/2018, a verdade é que, após a notificação da acusação, a mesma ofendida não deduziu qualquer acusação pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importassem alteração substancial daqueles, nos temos previstos no art.º 284º, nº 1, do CPP, acusação essa que, a ter existido, permitiria agora considerar manifestada nos autos a pretensão de ver julgado o arguido pelos factos que apenas poderiam ser objeto de julgamento caso tivesse sido deduzida acusação particular pela assistente.
Além disso, é dado verificar que não é só a falta de acusação por parte da assistente que está em causa nos autos, com relevância para a ausência de legitimidade do Ministério Público, relativamente ao crime de injúria, mas também, analisando-se agora ainda mais retrospetivamente o problema da legitimidade, a ausência de queixa da ofendida que permitisse proceder criminalmente contra o arguido, relativamente a esse mesmo tipo de crime, assim como para se saber se tal queixa foi ou não tempestivamente deduzida.
Recordemos que o Tribunal deu como provado que em “em data não concretamente apurada mas posterior a 1985, e pelo menos há dez anos, na casa de morada de família em …, Vila Nova de Gaia, o arguido enervou-se porque encontrou um pedaço de esfregão na comida confecionada pela assistente e nessa altura discutiu com ela e apelidou-a de “cabra”, “porca” e “puta”, tendo ainda anunciado que lhe ia bater, o que não consumou por a irmã da assistente ter intercedido em sua defesa. Ou seja, os factos em causa nos autos ocorreram entre 1985 e 2009 (2009, tendo em conta a data da sentença, 24/10/2019, e o facto de se ter dado como provado que os factos ocorreram posteriormente a 1985 e “pelo menos há dez anos”, por referência à dada da sentença).
Ora, os presentes autos tiveram início com o auto de notícia por violência doméstica de 14/03/2018, sem que até aí, e mesmo posteriormente, tivesse sido deduzida qualquer queixa pela ofendida.
Assim sendo, àquela data, já há muito se encontrava extinto o direito de queixa, por força do art.º 115º, nº 1, do Código Penal, preceito onde se prescreve que o direito de queixa se extingue no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores.
Ou seja, quer por falta de queixa, quer por falta de acusação da assistente, na data em que o Tribunal a quo considerou subsistir apenas o crime de natureza particular de injúria, deveria ter então também concluído que estava impossibilitado de conhecer do mérito da causa relativamente a tal crime, fosse para condenar, fosse para absolver, porquanto para tal lhe faltava, nesse momento, e relativamente a esse tipo-de-ilícito, autonomamente considerado, um pressuposto processual, qual seja a legitimidade do Ministério Público para proceder criminalmente contra o arguido por esse crime. Isto é, inexistia um pressuposto “da dignidade punitiva do facto”, que nada tem a ver com a existência material deste, “antes só com o problema prático da sua punição”[4], e que, faltando a sua verificação positiva, nunca poderia ter sido proferida decisão condenatória, como acabou por acontecer[5], ou mesmo absolutória, porquanto sendo a legitimidade do Ministério Público um pressuposto processual, a sua falta obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa, ademais porque uma tal ilegitimidade tem como consequência a nulidade processual insanável prevista no art.º 119º, al. b), do CPP.
Assim sendo, deveria o Tribunal a quo ter-se abstido de conhecer do mérito da causa, na parte atinente aos factos alegadamente constitutivos do crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181º, nº 1, do CPP, por falta de legitimidade do Ministério Público para, quanto a eles, proceder criminalmente contra o arguido.
Razão por que irá ser concedido provimento ao recurso.
3. DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 2.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a sentença recorrida, na parte em que conheceu do mérito da causa e condenou o arguido pela autoria do crime de injúria, previsto e punido pelo art.º 181º, nº 1, do Código Penal.
Sem custas
*
Porto, 04 de março de 2019
Francisco Mota Ribeiro
Elsa Paixão
_____________
[1] SILVA, Germano Marques da, Curso de processo Penal, III, Verbo, 2009, p. 37.
[2] Neste sentido, SILVA, Germano Marques da, Curso de processo Penal, III, Verbo, 2009, p.s 37-38.
[3] Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, p. 336.
[4] Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra Editora, Lda., Coimbra, 1974, p, 122,
[5] Sem ponderar ainda, diga-se, a existência ou não da prescrição do procedimento criminal, que nos parece claramente existir, atento o disposto no art.º 118º, nº 1, al. d), do Código Penal.