Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2762/15.1T8STS-E.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
CRIAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
AGRAVAMENTO DA INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP201812072762/15.1T8STS-E.P1
Data do Acordão: 12/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º859, FLS.25-29)
Área Temática: .
Sumário: Se os devedores, já em estado de insolvência, vendem um imóvel e não usam o preço para liquidar dívidas, diminuindo a possibilidade de os credores obterem satisfação dos seus créditos por esse bem ou pelo respectivo produto da venda, deve ser indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n. 2762/15.1T8STS.P1-E – Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B… e C…, insolventes nos presentes autos de Insolvência de Pessoa Singular, vieram requerer a sua declaração da sua insolvência, pelos fundamentos constantes do requerimento inicial, requerendo ainda a exoneração do passivo restante.
Ouvidos os credores, vieram "D…, :S.A." e " E…" opor-se ao pedido de exoneração do passivo restante.
Seguidamente foi proferido despacho indeferindo liminarmente ao pedido formulado pelo insolvente.
Deste despacho interpõem os insolventes o presente recurso, formulando as seguintes conclusões:
1) O Douto Despacho em apreço não fez ''correcta interpretação dos factos e adequada aplicação dos normativos aplicáveis; devendo, por conseguinte, ser revogado na íntegra.
2) Os Insolventes apresentaram-se a juízo, atempadamente e não incumpriram qualquer prazo.
3) Os requisitos do n.° 1 do art. 238° do CIRE, são cumulativos; apenas devendo ser indeferido o pedido se "Constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência culpa do devedor- na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.°”
4) In casu não se verifica a ocorrência de :tais pressupostos uma vez que; os recorrentes nunca tiveram qualquer postura que tivesse prejudicado os credores.
5) Os ora recorrentes tiveram um comportamento impoluto em todo o processo, não tendo sido apontado qualquer comportamento fáctico dos mesmos, que possa manchar o seu comportamento.
6) Perante os elementos disponíveis e ao seu alcance não existe indício algum, forte ou fraco, que possa levar a concluir, por comportamento deliberado ou negligente no sentido de prejudicar, quem quer que fosse.
7) Não é possível concluir que a alienação do imóvel tivesse prejudicado os credores.
8) A insolvência é fortuita, decisão já tomada pelo Tribunal a quo, razão pela qual se deve conceder o deferimento da exoneração do passivo restante aos insolventes.
9) Também a AI no seu relatório é do parecer, que deve ser concedido aos recorrentes o despacho inicial da exoneração do passivo.
Assim, atento o exposto, não se mostram preenchidos os requisitos do art. 238.° do CIRE, inexistindo quaisquer elementos que levem a concluir pelo indeferimento do despacho inicial de exoneração do passivo restante.
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Não foram apresentadas contra alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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A decisão recorrida baseou-se nos seguintes factos que, por não terem sofrido impugnação, por parte dos recorrentes, ora se dão como assentes para a decisão do recurso:
a) Os devedores apresentaram-se à insolvência em 21 de Agosto de 2015, tendo a sentença de insolvência sido proferida em 27.08.2.015;
b) O processo veio a ser declarado, por despacho datado de 19.01.2017, encerrado por insuficiência da massa insolvente-, por ter sido prestada informação por parte da administradora da: insolvência que inexistiam bens pertença dos devedores susceptíveis de apreensão a favor da massa, tendo os insolventes procedido à venda da sua habitação/casa de morada de família em 13 de Fevereiro de 2015 a F… e esposa G…, através de escritura pública denominada "Contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca'', pelo valor ali declarado de €100.000,00 (cem mil euros) que a primeira outorgante H… declarou já ter recebido, mais tendo ali sido exarado que o imóvel era vendido livre ide quaisquer ónus ou encargos, assim; ficando assegurado o cancelamento das hipotecas registadas a favor do "E…", tudo como flui do teor de fls. 321 a 328, que aqui se dá- por integralmente reproduzido;
c) No relatório elaborado pela administradora da insolvência ao abrigo do disposto no art.° 155.° do CIRE, foi consignado que relativamente à venda do imóvel realizada pelos insolventes a F… e esposa, a mesma não apresentava indícios de simulação, e que a aquisição por parte dos compradores foi financiada pelo Banco I…, mas que a administradora desconhecia a aplicação dada ao produto da venda., antevendo a possibilidade de tal valor poder ter sido aplicado no pagamento do: crédito hipotecário da responsabilidade 'dos insolventes e que incidia sobre o imóvel vendido (cfr. teor de fls. 137 a 143 dos presentes! autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido);
d) Os incumprimentos dos insolventes iniciaram-se em Abril de 2014, e as dívidas reclamadas e reconhecidas provêm essencialmente de avais prestados pelos insolventes às sociedades "J…, Lda." “K…”, sendo que aquela primeira foi declarada insolvente em processo que corre termos na Comarca de Braga (Instância Central do Comércio, Vila Nova. de Famalicão), acrescendo o facto de tais avais se terem iniciado em 2006, junto do credor L…, sucedendo-se os credores M… e M1…, onde os avais foram prestados em Abril de 2007 e Abril de 2009, respectivamente;
e) No âmbito do apenso de verificação e graduação dos créditos foram reconhecidos pela administradora da insolvência créditos no valor global de €1.516.721,88 (um milhão, quinhentos e dezasseis mil setecentos e vinte e um euros e oitenta e oito cêntimos), tudo conforme consta da lista junta a fls. 75-76 do apenso A, que aqui se dá por reproduzida;
f) Na sequência dó facto referido em c) e face à interpelação, realizada em assembleia de credores, por parte do credor M1…, S.A., a insolvente C… declarou, naquela mesma assembleia realizada em 13.10.2015, que não se recordava do valor: que teria sido liquidado: ao credor E…, e que tinha ideia que não teria sido recebido qualquer valor remanescente, após aquela liquidação, por parte do casal insolvente;- (cfr. teor de fls. 18 dos autos, que aqui se dá por reproduzido, para os devidos efeitos).
g) Foi solicitada tal informação ao E…, o qual veio por exposição exarada a fls. 220 dos autos, esclarecer que os devedores insolventes liquidaram junto de tal entidade o valor de €86.214,88 respeitante a crédito de habitação;
h) Na sequência deste esclarecimento, veio o credor M1…, S.A.", solicitar que se ordenasse a notificação dos insolventes para esclarecerem o destino conferido ao valor de €13.785,12 sobrante (cfr. fls. 223-224);
i) Vieram os devedores, a fls. 229, informar os autos que o remanescente do preço recebido pela alienação do imóvel serviu para pagar à imobiliária, ao mandatário forense, taxas de justiça de processos judiciais, e contas indispensáveis à sobrevivência diária do agregado familiar composto por dois adultos e duas crianças (cfr. teor de fls. 229, que aqui se dá por inteiramente reproduzido);
j) Face ao teor desta exposição, o tribunal notificou a administradora da insolvente para se pronunciar, designadamente sobre a questão de saber se mantinha ou não o parecer favorável à concessão liminar da exoneração do passivo restante (cfr. fls. 258), tendo esta referido não vislumbrar forma de desmentir a versão apresentada; pelos devedores, e considerando a situação dos insolventes, p valor em causa, e a plausibilidade das razões apresentadas, entendeu manter o parecer favorável anteriormente por si emitido (v. fls. 261-262);
l) O processo foi já declarado encerrado por insuficiência da massa, insolvente, por decisão datada de 19.01.2017 (cfr. fls. 294-295 dos presentes autos);
m) A insolvente encontra-se a trabalhar em part-time, e o insolvente marido obteve enquadramento laboral desde Dezembro de 2016, e trabalha como gerente na sociedade N…, Unipessoal, Lda.", auferindo/declarando o salário de €557,00 mensais.
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Dispõe o art. 235.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) que “se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do presente capítulo”.
Preceituando o artigo 238º, n.º 1, do CIRE que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
O instituto da exoneração do passivo restante é uma inovação introduzida pelo vigente Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004 de 18 de Março, mediante a qual é permitido ao devedor que, em certas circunstâncias, ao fim de 5 anos, veja extintas as suas dívidas não satisfeitas (ou totalmente satisfeitas) pela liquidação da massa insolvente, ou através da cessão de parte do seu rendimento aos credores, através de um fiduciário, libertando-se, assim, do encargo de as pagar no futuro.
Trata-se, assim, de um benefício concedido aos insolventes pessoas singulares, exonerando-os dos seus débitos e permitindo a sua reabilitação económica, à semelhança do instituto do “fresh start” do direito norte-americano. Importando para os credores na correspondente perda de parte dos seus créditos, porventura em montantes muito avultados, que desse modo se extinguem por causa diversa do cumprimento. E porque de um benefício se trata, “é necessário que o devedor preencha determinados requisitos e desde logo que tenha tido um comportamento anterior e actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, aferindo-se da sua boa conduta, dando-se aqui especial cuidado na apreciação, apertando-a, com ponderação de dados objectivos passíveis de revelarem se a pessoa se afigura ou não merecedora de uma nova oportunidade e apta para observar a conduta que lhe será imposta” (Acs. desta Relação de 05/11/2007, proc. 0754986, e de 09/01/2006, proc. 0556158, ambos acessíveis in www.dgsi.pt, citados no Ac. desta Relação e secção de 09-12-2008, JTRP00041990, Rel. Des. Pinto dos Santos e Assunção Cristas, in “Novo Direito da Insolvência”, RFD da UNL, 2005, pg. 264, também ali citada).
O prosseguimento do incidente depende de despacho liminar, prevendo o n.º 1 do art. 238º os casos em que deve ser proferido despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração.
No caso vertente, baseou a 1.ª instância tal indeferimento no disposto na alínea e) do art.º 238.º, n.º 1, do CIRE – constarem do processo elementos que indiciam com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência – porquanto constata que “os insolventes, ao terem procedido à alienação do único bem que possuíam, cerca de seis meses antes de se terem vindo a apresentar à insolvência, nos termos acima dados conta (fazendo seu o valor monetário sobrante da referida alienação após liquidação do valor que se encontrava em débito ao credor hipotecário, e aplicando-o/afectando-o ao pagamento desta ou daquela dívida, e às alegadas necessidades correntes da vida quotidiana, conforme bem entenderam), não podiam deixar de ignorar (pelo menos com culpa grave) que estavam a “dissipar” o único bem susceptível de ser apreendido a favor da massa insolvente, e como tal, não podiam ter deixado de equacionar que, dessa forma, estavam a agravar o seu estado de insolvência e a fazer claudicar os legítimos direitos dos credores da insolvência. Com efeito, caso aquele imóvel tivesse sido alienado em contexto insolvencial, inexistiria certamente qualquer valor sobrante a ser entregue aos devedores insolventes, pois que o valor que viesse a ser (eventualmente) apurado após afectação daquele produto ao pagamento do credor hipotecário – à imagem do que fizeram os devedores em momento anterior ao da apresentação à insolvência – reverteria para o pagamento aos demais credores da insolvência, atento o elevado valor global dos créditos reconhecidos no apenso de verificação e graduação de créditos. Caso não fosse este o nosso entendimento, como de facto é, estaria então encontrada uma “fórmula mágica” de livre e fácil acesso por parte dos insolventes, devidamente auxiliados por parte de profissionais do foro, com vista a eximirem bens à massa insolvente, pois que, se por um lado evitaram a alienação do imóvel através do procedimento da “liquidação do activo”, por outro lado, tal permitiu que fossem beneficiários de um valor não despiciendo de €13.785,12 (treze mil setecentos e oitenta e cinco euros e doze cêntimos), que aplicaram (ou guardaram?) a seu bel talante.”
Mesmo não subscrevendo inteiramente que os recorrentes estavam a “dissipar” o único bem susceptível de ser apreendido a favor da massa insolvente, pelo menos no sentido de que o alienaram por valor abaixo do corrente no mercado e fizeram desaparecer todo o produto da venda, concorda-se, no essencial, com a apreciação feita. Com efeito, aquando da alienação do imóvel aludido em b), já os recorrentes se encontravam já em incumprimento generalizado das suas obrigações, sem que elementos nenhuns conhecidos fizessem antever que tal situação viesse a ser ultrapassada. Ao terem os recorrentes optado por proceder à venda extrajudicial do imóvel, em vez de se terem apresentado de imediato à insolvência, possibilitando que tal venda tivesse lugar no respectivo processo, retiveram os recorrentes um excedente de €13.785,12 em relação ao crédito hipotecário que solveram, a que deram o destino que lhes aprouve, e que não foi aplicado na satisfação de qualquer crédito que devesse considerar-se como garantido para efeitos do disposto no art.º 47.º, n.º 4, al. a), do CIRE. Tal montante, que é significativo, poderia, em sede de liquidação da massa insolvente, entrar em rateio, no caso de não existirem outros créditos garantidos ou privilegiados, abatendo ao montante das dívidas insatisfeitas da massa insolvente.
Consequentemente, comparando a situação que teve lugar mercê da actuação dos recorrentes com aquela que teria tido lugar caso todo o produto da venda tivesse ficado à ordem da massa insolvente, é inegável o agravamento da situação de insolvência, relevante para efeitos do disposto no artigo 186.º, n.º 1, do CIRE, verificados que estão os seus pressupostos temporais.
Afigura-se, pelo exposto, inatacável o enquadramento jurídico feito na douta decisão recorrida, existindo indícios de culpa, pelo menos, no agravamento da situação de insolvência, relevantes para efeitos do disposto no art. 186.º n.º 2, al. d), do CIRE, porquanto os recorrentes dispuseram do excedente em apreço, ou em proveito pessoal, ou em proveito de outrem que não os credores da insolvência.
Para que o pedido de exoneração deva ser liminarmente indeferido o indeferimento nos termos da alínea e) do artigo 238º, n.º 1, do CIRE não é necessário que em incidente de qualificação da insolvência seja declarada a insolvência culposa, bastando a simples existência de elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência. E tais elementos existem no caso vertente, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao indeferir liminarmente o peticionado. Assim sendo, o despacho recorrido deve manter-se, improcedendo o recurso.
Decisão.
Em face do exposto, julga-se improcedente o recurso interposto, confirmando-se o douto despacho recorrido.
Custas pelos apelantes.

Porto, 2018/12/07
João Proença
Estelita de Mendonça
Anabela Dias da Silva