Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
78/17.8T8VGS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: INÊS MOURA
Descritores: PERSONALIDADE JURÍDICA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RP2018102578/17.8T8VGS.P1
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO - LIVRO DE REGISTOS Nº 150, FLS 46-53)
Área Temática: .
Sumário: I - O condomínio não dispõe de personalidade jurídica não podendo por isso ser titular de direitos. Ao atribuir personalidade judiciária ao condomínio o legislador confere-lhe a possibilidade de ser parte em juízo, mas apenas nas acções que se integrem no âmbito das funções e dos poderes do administrador do condomínio e só nestas, como decorre do art.º 1437.º do C.Civil.
II - Sendo o pedido formulado no sentido do reconhecimento do direito de propriedade do condomínio, adquirido por usucapião, sobre parte de prédio confinante usado como estacionamento pelos condóminos e atenta a limitação do art.º 12.º al. c) do C.P.C. que apenas confere ao condomínio personalidade judiciária relativamente às acções que se inserem nas funções e poderes do administrador, a sanação da falta de personalidade judiciária não é possível.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 78/17.8T8VGS.P1
Apelação em processo comum e especial

Relator: Inês Moura
1º Adjunto: Francisca Mota Vieira
2º Adjunto: Paulo Dias da Silva

Sumário: (art.º 663.º n.º 7 do C.P.C.)
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Acordam na 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório
Vem B..., na qualidade de Administrador do Condomínio do Edifício ..., Bloco ., sito na Rua ..., n.º ..., ..., freguesia ..., concelho de Vagos, intentar a presente acção declarativa de reivindicação, com a forma de processo comum contra a C..., pedindo que se declare que o Condomínio é legítimo e exclusivo dono e proprietário de parte do prédio destinado a estacionamento identificado na petição inicial, condenando-se a R. a reconhecer e respeitar esse direito de propriedade e a abster-se da prática de qualquer acto que colida ou afecte esse direito, devendo para tanto mandar retirar a vedação que aí colocou ilicitamente.
Alega, em síntese, para fundamentar o seu pedido que o Edifício ... – Bloco . identificado, é um prédio que foi construído pela sociedade D..., Ld.ª e que na ausência de garagens ou lugares de estacionamento, a empreiteira informou os compradores de que podiam aparcar os veículos no prédio contíguo que igualmente lhe pertencia. Desde que as fracções foram ocupadas, cada um dos condóminos passou a aparcar os veículos em lugares de estacionamento devidamente delimitados e separados com linhas amarelas com menção à fracção a que pertencem. Mais alegou que os condóminos vêm cuidado do bom estado de conservação do estacionamento, arranjando o piso, pintando as linhas delimitadoras e arrancando as ervas daninhas que lá crescem, de forma pública, pacífica, contínua, de boa fé, à vista de todos e que são, por si e pelos seus antepossuidores, os legítimos proprietários do estacionamento que adquiriram por usucapião, tendo inclusivamente decidido por unanimidade essa aquisição em reunião de condóminos. Alega ainda que a R. adquiriu o terreno onde se encontra implantado o estacionamento por negócio de compra e venda celebrado com a D..., Ld.ª no ano de 2013, tendo mandado vedar o prédio, com excepção de um espaço que permite a entrada e saída de veículos, o que constitui uma violação do direito de propriedade do condomínio.
Devidamente citada, a R. veio contestar concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição do pedido. Mais requer a intervenção acessória provocada de D..., Ld.ª, invocando ter direito de regresso sobre a chamada em caso de procedência da acção. Suscita a excepção da ilegitimidade do A. referindo que dos factos alegados decorre que quem tem a posse efectiva da parcela do prédio em que se procede ao estacionamento dos veículos são os condóminos e que, por isso, são estes que poderão ter adquirido o direito de propriedade sobre o mesmo, por usucapião e já não o condomínio. Mais impugna o valor atribuído à causa e os factos alegados.
Realizaram-se diligências com vista à determinação do valor da causa, que foi fixado por despacho de 16/03/2018 em €18.604,75.
Foi proferido despacho saneador que considerou o tribunal competente e apreciando a excepção da ilegitimidade do A. suscitada pela R. decidiu nos seguintes termos que se reproduzem:
“No caso sub judice, está em causa um pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre determinada parcela de terreno, pela via da usucapião, a ser exercido pelo condomínio. Para apreciar a questão, urge, em primeiro lugar verificar em que situações pode o condomínio agir em nome próprio (ao invés de ser cada um dos condóminos a agir judicialmente). No regime da propriedade horizontal, a administração das partes comuns cabe, em conjunto, à assembleia de condóminos e ao administrador do condomínio, cabendo ao administrador as funções a que alude o artigo 1436º do Código Civil, bem como aquelas que lhe forem delegadas pela assembleia de condóminos. Por outro lado, o artigo 1437º do Código Civil consagra a capacidade judiciária do condomínio relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador.
De acordo com o disposto pelo artigo 1421º do Código Civil “1. São comuns as seguintes partes do edifício: (…). 2. Presumem-se ainda comuns: (…) d) as garagens e outros lugares de estacionamento”.
Do elenco não taxativo do artigo 1421º do Código Civil resulta que, contrariamente ao telhado ou às paredes, as garagens ou lugares de estacionamento não são coisa imperativamente comum, logo, são susceptíveis de apropriação individual. Aliás, das palavras de Henrique Mesquita (A propriedade Horizontal no Código Civil Português, RDES, 1976, ano XXIII, pág. 79 e ss) resulta, a propósito do n.º2 do artigo 1421º do Código Civil que “segundo este critério, consideram-se comuns e, portanto, compropriedade de todos os condóminos as coisas que não estejam afectadas ao uso exclusivo de um deles”. E conclui o mesmo autor que o critério por que o nosso legislador optou, sendo o mais acertado no tocante às partes do prédio “que caracterizam a sua traça geral e sobre cuja administração seria inconveniente que pudessem tomar-se deliberações divergentes”, não deve valer, porém, quanto às partes do edifício “sobre cuja administração, pela própria natureza das coisas, não há que acautelar o perigo de poderem tomar-se deliberações divergentes e a respeito das quais, por outro lado, nada justifica que todos os condóminos interfiram.” Na mesma linha de entendimento, e sempre reportando-se a partes não imperativamente comuns, também Rui Miller (A Propriedade Horizontal no Código Civil, pág. 78-79) escreve que estas tanto podem ser objecto de propriedade exclusiva de um condómino como de compropriedade restrita a uma parte dos condóminos; Aragão Seia (Propriedade Horizontal, Condóminos e Condomínios, 2ª edição revista e actualizada, pág. 78-79) diz que o uso ou a propriedade das mesmas partes, não imperativamente comuns, podem ser atribuídos em exclusivo a um ou a alguns dos condóminos e Ribeiro Mendes (Revista da Ordem dos Advogados, Ano 30, pág. 65) refere que o título deve mencionar, no campo das partes presuntivamente comuns, quais as que pertencem apenas a um ou alguns dos condóminos. Assim, nada obsta a que na propriedade horizontal existam, no âmbito do que é presuntivamente comum, partes objecto da compropriedade ou propriedade restrita de alguns condóminos. Para o aferir, seria necessário verificar a escritura de constituição da propriedade horizontal, pois que, em situação de normalidade, aquando da constituição da propriedade horizontal teria ficado esclarecido se as garagens, pese embora partes comuns, estariam afectas, cada uma, a condóminos específicos.
No caso dos autos, inexiste constituição de propriedade horizontal que abranja o espaço de estacionamento, pois que o prédio onde o mesmo alegadamente ocorre não é/era pertença do prédio e sim a prédio contíguo, o qual foi sendo, ao longo dos anos utilizado pelos condóminos para proceder ao estacionamento dos seus veículos, tudo com o consentimento do antepossuidor da ré. Neste sentido, inexistindo esta escritura no que tange ao espaço de estacionamento (o que validamente se pode presumir dada a alegação do autor – artigos 349º e351º do Código Civil), o Tribunal apenas pode apreciar a questão com base na alegação do autor. Ora, desta alegação (e da prova documental constante de fls. 12-15), resulta que “os condóminos são, por si e pelos antepossuidores que legalmente representam, os legítimos proprietários do estacionamento do prédio descrito no artigo 8º, que adquiriram através da aquisição originária, por usucapião que expressamente se invoca como forma legítima de adquirir”. Assim, é possível retirar da alegação do autor que a intenção de cada condómino é a de afectar a cada um o uso exclusivo de determinado lugar de estacionamento, sem que se inculque a ideia de que se trata de espaço comum. Daqui resulta, em termos muito simplistas, que não é intenção dos condóminos (cuja vontade está expressa em reunião de condomínio) que tenha sido o condomínio a adquirir, por usucapião, a propriedade exclusiva de cada um dos lugares de estacionamento. Acrescenta-se que sequer o autor fundamenta a causa de pedir na propriedade horizontal, e sim no instituto da usucapião, previsto nos artigos 1263º, 1287º, 1293º, todos do Código Civil, sendo que da sua alegação apenas resultam actos de posse por parte de cada um dos condóminos, sem que alegue que tenha existido posse em nome do condomínio. Também não há alegação de que, em determinado momento, tenha existido da sua parte qualquer acto susceptível de constituir inversão do título de posse relativamente a cada um dos condóminos (artigo 1265º do Código Civil), pois que todos os actos materiais descritos na petição inicial, praticados por cada um dos condóminos, não se reconduzem a deter a coisa em nome alheio e sim em nome próprio.
Do que se deixa expresso, a causa de pedir é contraditória com o pedido deduzido, ou seja, é deduzida uma conclusão oposta à premissa de que partiu, sendo que não é possível pela via do aperfeiçoamento que se supra tal vício (de ineptidão) da petição inicial e que configura uma excepção dilatória de conhecimento oficioso (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 28-11-2002, relatado pelo Sr. Conselheiro Salvador da Costa).
Do que se deixa expresso, não se está somente perante ilegitimidade processual activa, mas igualmente, em face da nulidade prevista nos artigos 186º, n.º1 e 2, alínea b), 187º, 576º, n.º1 e 2 e 577º, alínea b) do Código de Processo Civil.
Em face de todo o exposto, julgando-se inepta a petição inicial, declara-se a nulidade da mesma e, consequentemente, absolve-se a ré “C...” da instância.”
É com esta decisão que o A. não se conforma e dela vem interpor recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que determine a subsequente tramitação dos autos, apresentando para o efeito as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1. A decisão recorrida padece de erro crasso na apreciação da matéria de direito, quer quanto à interpretação dada à alínea d) do n.º2 do artigo 1421º do Código Civil, quer quanto à existência de ineptidão da petição inicial.
2. Nos presentes autos, o Autor, enquanto Administrador do Condomínio, reivindicou para este (condomínio) o estacionamento existente no prédio confinante, pertença da Ré.
3. No entanto, a Mma Juiz a quo entendeu, na nossa modesta opinião, erradamente, que o estacionamento em causa nos presentes autos não seria uma parte comum em virtude dos condóminos pretenderem afectar a cada um deles o uso exclusivo de determinado lugar de estacionamento.
4. Ao reivindicar o estacionamento, o Recorrente fê-lo em nome do Condomínio, e consequentemente para todos os condóminos que integram esse mesmo Condomínio, e o facto de cada um dos condóminos ter o seu lugar de estacionamento não desvirtua o facto do estacionamento em si, e como um todo, ser uma parte comum do prédio, pertença do Condomínio.
5. Não sendo o Condomínio uma pessoa física, os actos possessórios foram efectuados pelos condóminos, já que estes é que ocupavam e ocupam os lugares de estacionamento, o que não invalida, de forma alguma, que o estacionamento seja uma parte comum do prédio.
6. No caso sub judice, foi reivindicada uma parcela de 122,7 m2 onde se encontra o estacionamento, razão pela qual o seu todo deve ser tido como uma parte comum afecta ao Condomínio de uso exclusivo de todos os Condóminos.
7. Aliás, da própria leitura da petição inicial, nomeadamente dos artigos 5º a 14º, infere-se, sem sombra de dúvida, que, ainda que sejam os Condóminos a usar o estacionamento para aparcar os seus carros, o fazem porque tal estacionamento é pertença do Condomínio, tratando-se de um espaço comum.
8. A posse que os Condóminos têm do estacionamento é, e sempre foi, em nome do Condomínio, ilação que deve retirar de tudo quanto foi alegado pelo Autor, ora Recorrente, até porque o Condomínio ainda que tenha um Administrador representa a vontade da maioria dos Condóminos.
9. Entende o Recorrente que o estacionamento é uma parte comum do prédio, pelo que é ao Condomínio que compete agir em representação dos Condóminos.
10. Nessa senda, ainda que estivéssemos perante um caso de ilegitimidade activa, por falta de intervenção de todos e cada um dos condóminos na qualidade de comproprietários dos espaços comuns, como dispõe o artigo 1420º do Código Civil, tal excepção é, e sempre foi, suprível.
11. Ao contrário do que entende a sentença recorrida no seguinte trecho: “Assim é possível retirar da alegação do autor que a intenção de cada condómino é a de afectar a cada um o uso exclusivo de determinado lugar de estacionamento, sem que se inculque a ideia de que se trata de espaço comum. Daqui resulta, em termos muito simplistas, que não é intenção dos condóminos (cuja vontade está expressa em reunião de condomínio) que tenha sido o Condomínio a adquirir, por usucapião, a propriedade exclusiva de cada um dos lugares de estacionamento,”
12. Não se infere, da alegação do Autor, essa intenção até porque cada um aparca o seu veículo na parcela que lhe cabe, mas tal parcela e sua manutenção têm sido desde sempre levadas a cabo pelo Condomínio e não pelo condómino A, B, C ou D.
13. Ora, ainda que, considerando o disposto no artigo 1420º do Código Civil de que cada condómino é comproprietário das partes comuns do edifício e por referência aos factos alegados na petição inicial sempre estaríamos, em última análise, no que não se concede, como supra se explicou, perante um caso de litisconsórcio necessário activo em que o condomínio deveria ser acompanhado na acção por cada um dos respectivos condóminos.
14. Tal excepção de ilegitimidade é, desde logo, sanável por via da dedução de um incidente de intervenção principal, a fim de que cada um destes viesse aos autos assumir a posição de Autor juntamente com o Condomínio na reivindicação da propriedade do estacionamento.
15. E a verdade é que a Mma Juiz a quo, em cumprimento do princípio de gestão processual, poderia e deveria ter convidado o Autor a deduzir o incidente necessário à regularização da instância uma vez que, da fundamentação da sentença, claramente resulta que esta entende verificar-se ilegitimidade activa.
16. Dispõe o artigo 6º do Código do Processo Civil, mormente no seu n.º2 o seguinte: “O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
17. Do supra citado normativo resulta, em nosso entender, claro e evidente o dever do juiz providenciar mesmo oficiosamente pelo suprimento de falta de pressupostos processuais tendentes à regularização da instância.
18. Reportando-nos ao caso dos autos, verifica-se pois que tal não sucedeu uma vez que o Autor, ora Recorrente, apenas foi notificado para aperfeiçoar a sua petição no sentido de delimitar em metros quadrados o estacionamento, objecto do litigio, o que ainda assim fez por referência à globalidade do estacionamento e não como agora fundamenta na sentença, parcela a parcela.
19. Verifica-se, pois, que em face do estado dos autos, incumbia à Juiz a quo proferir despacho de aperfeiçoamento e não proferir saneador sentença, como fez, alegando que a falta de legitimidade do Condomínio para agir sozinho sem todos e cada um dos condóminos é causa de ineptidão da petição inicial. Mais referindo que a causa de pedir é contraditória com o pedido deduzido, o que configura uma situação de ineptidão da petição inicial.
20. Não podíamos discordar mais!
21. Isto porque, na petição inicial, estamos perante a alegação de factos tendentes à prova da aquisição do direito de propriedade de um estacionamento enquanto parte comum.
22. A questão do Condomínio ser parte legítima ou cada um dos condóminos per si mostra-se relevante apenas para efeitos processuais, isto é, para efeitos de legitimidade processual que mesmo não se verificando sempre seria possível de ser suprida.
23. Quer-se com isto dizer que da alegação da causa de pedir – ocupação e utilização exclusiva do estacionamento há mais de 20 anos pelo mesmo zelando e tratando da sua manutenção – se infere que:
a) O estacionamento é claramente um espaço comum e como tal gerido pelo Condomínio;
b) Tal espaço comum é naturalmente dividido como sucede nas garagens em parcelas individualizadas respeitantes a cada um dos condóminos.
24. Ou seja, daqui se infere a alegação de posse do estacionamento por parte do Condomínio, o que está em consonância com o pedido formulado de reconhecimento do direito de propriedade do estacionamento por parte deste.
25. Donde resulta não existir a apontada contradição entre a causa de pedir e o pedido que conduza, sem mais, à ineptidão da petição inicial.
26. Aliás, uma coisa é em determinada peça processual ocorrer contradição entre a causa de pedir e o pedido e outra completamente diferente é a alegação de factos contraditórios entre si sendo certo que esta última não implica só por si a ineptidão da petição inicial. Cfr Acórdão da Relação de Coimbra de 1-10-1991 (in BMJ 410-893).
27. Quando muito, no que aliás não se concede, poderá o Autor por lapso ter alegado factos contraditórios entre si, apenas e só, na medida em que alega que o estacionamento se trata de espaço comum por um lado mas por outro alega que que os condóminos é que têm vindo a zelar pela conservação do mesmo (Vd. artigo 11º da petição inicial).
28. Mas tal contradição poderia, quando muito, constituir apenas uma contradição de factos entre si e já não uma contradição entre a causa de pedir e o pedido, porque nesse ponto não há contradição: no pedido formula-se a reivindicação do estacionamento para o condomínio fundado no instituto da usucapião, a qual consta da causa de pedir explanada no articulado da petição inicial.
29. A única diferença que aqui se poderia vislumbrar é precisamente na questão da legitimidade e no facto dos condóminos poderem vir a ser chamados na qualidade de Autores para peticionarem a propriedade do estacionamento em conjunto com o Condomínio, o que se trata de uma simples modificação subjectiva na instância facilmente ultrapassável mediante a dedução pelo Autor de um incidente de intervenção principal, desde que notificado para tanto.
30. Mas como supra já se disse a falta de legitimidade processual não contende com ineptidão da petição inicial, pois essa não se verifica!
31. A verificar-se um caso de ilegitimidade esta sempre seria sanável por via da dedução do competente incidente sendo obrigação do juiz, em obediência ao princípio da gestão processual, promover esse suprimento por via da prolação de um despacho de aperfeiçoamento ficando depois o ónus de dedução do respectivo incidente a cargo do Autor. Mas isso nunca aconteceu!
32. Em face do exposto verifica-se que não assiste razão à Mma Juiz a quo quando decidiu absolver da instância a Ré por ineptidão da Petição Inicial, arrumando pela via formal, a questão de fundo essencial e em discussão nos autos: a existência de um estacionamento pertencente ao condomínio, cuidado por este e utilizado exclusivamente por cada um dos condóminos.
33. Ao assim decidir, a sentença recorrida violou frontalmente o disposto nos artigos 1421º, n.º 2, alínea d) do Código Civil, bem como o disposto nos artigos 6º, n.º2 e 186º, ambos do CPC, devendo por isso ser revogada e substituída por outra que ordene o prosseguimento dos autos para apurar a questão de fundo: se existe ou não direito de propriedade do estacionamento, enquanto parte comum, no prédio da Ré.
34. Termos em que deverá esse Venerando Tribunal conceder provimento ao presente recurso e, nessa conformidade, ser proferido douto Acórdão que revogue a decisão a quo, devendo os autos prosseguir a sua normal tramitação, designadamente para, caso assim se entenda, prolação de despacho de aperfeiçoamento, assim fazendo a tão acostumada JUSTIÇA!
A R. veio responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.
II. Questões a decidir
Tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelos Recorrente nas suas conclusões- art.º 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do C.P.C.- salvo questões de conhecimento oficioso- art.º 608.º n.º 2 in fine:
- da (in)existência de contradição entre o pedido de aquisição do direito de propriedade de parte do prédio destinada a estacionamento, pelo condomínio, enquanto parte comum e a causa de pedir invocada;
- do suprimentos da falta de legitimidade do A.
III. Fundamentos de Facto
Os factos assentes relevantes para a apreciação do presente recurso são os que resultam do relatório elaborado.
IV. Razões de Direito
- da (in)existência de contradição entre o pedido de aquisição do direito de propriedade de parte do prédio destinada a estacionamento, pelo condomínio, enquanto parte comum e a causa de pedir invocada
A presente acção é intentada pelo Condomínio do prédio identificado na petição inicial que se apresenta como A., representado pelo Administrador do Condomínio, sendo o pedido formulado no sentido de se declarar o Condomínio legítimo e exclusivo dono do espaço de estacionamento que se situa em prédio confinante ao edifício constituído em propriedade horizontal.
A decisão recorrida considera que existe uma contradição entre o pedido e a causa de pedir susceptível de determinar a ineptidão da petição inicial, pela circunstância dos actos de posse invocados como elemento constitutivo da aquisição do direito de propriedade por usucapião serem imputados aos condóminos e não ao condomínio.
A primeira questão prévia que se impõe esclarecer é a da natureza jurídica do condomínio, registando-se que os autos revelam a este respeito uma grande confusão quanto ao regime jurídico da propriedade horizontal.
A propriedade horizontal vem prevista e regulada nos art.º 1414.º ss. do C.Civil, que estabelece como princípio geral: “As fracções de que um edifício se compõe, em condições de constituírem unidades independentes, podem pertencer a proprietários diversos em regime de propriedade horizontal.
O art.º 1420.º n.º 1 diz-nos que cada condómino é proprietário exclusivo da fracção que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício, enunciando o art.º 1421.º no seu n.º 1 quais sãos as partes comuns do edifício constituído em regime de propriedade horizontal e acrescentado o n.º 2 aquelas que se presumem comuns.
A respeito dos direitos subjacentes à propriedade horizontal, diz-nos de forma impressiva Gonçalo de Oliveira Guimarães, in. A personalidade judiciária do Condomínio e a sua representação em juízo, Revista Julgar n.º 23, pág. 60: “O núcleo do instituto da propriedade horizontal é constituído por direitos privativos de domínio, a que estão associados, com função instrumental, mas de modo incindível e perene, direitos de compropriedade sobre as partes do prédio não abrangidas por uma relação exclusiva. Foi para distinguir as situações de propriedade horizontal das de simples contitularidade ou comunhão sobre coisa indivisa que o legislador recorreu ao conceito de condomínio, acolhendo as teorias de PLANIOL, RIPERT E BAUDRY-LACANTINERIE. O condomínio é, assim, no dizer de HENRIQUE MESQUITA, a figura definidora da situação em que uma coisa materialmente indivisa ou com estrutura unitária pertence a vários contitulares, mas tendo cada um deles direitos privativos ou exclusivos de natureza dominial sobre fracções determinadas. No fundo, o direito de propriedade sobre a parte exclusiva é combinado com o direito de compropriedade sobre as partes comuns. Daí nasce um direito real complexo, no sentido de que combina figuras preexistentes de direitos reais. É, no entanto, diferente do mero somatório dos esquemas da propriedade e da compropriedade; contendo o uma regulamentação própria do seu exercício, constitui a se um direito real.
Na propriedade horizontal cada um dos condóminos vê integrar-se na sua esfera jurídica um direito real específico e próprio que conjuga dois direitos reais coexistentes: um direito de propriedade exclusivo sobre a fracção de que cada um é titular e um direito de compropriedade sobre as partes comuns do edifício constituído em propriedade horizontal.
Quanto à administração das partes comuns do edifício, o art.º 1430.º n.º 1 do C.Civil estabelece que a mesma compete à assembleia de condóminos e a um administrador, a quem o legislador confere legitimidade para agir em juízo nas circunstâncias previstas no art.º 1437.º, na execução das funções que lhe pertencem ou quando autorizado pela assembleia relativamente a questões relacionadas com os bens comuns.
É neste âmbito que é conferida personalidade judiciária ao condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, como resulta do art.º 12.º al. e) do actual C.P.C. e é assim precisamente porque o condomínio não dispõe de personalidade jurídica, ou seja, não é uma entidade autónoma susceptível de ser titular de direitos e obrigações, como o são as pessoas singulares, nos termos do art.º 66.º do C.Civil ou as pessoas colectivas, associações ou fundações, entidades que dispõem igualmente de personalidade jurídica, de acordo com o art.º 158.º do C.Civil.
Dizem-nos Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in. Manual de Processo Civil, pág. 110: “Todos os indivíduos que sejam maiores ou menores quer sejam capazes, interditos ou inabilitados, quer nacionais ou estrangeiros (art.º 14.º do Cód. Civil) gozam de personalidade judiciária, podem ser partes em juízo, visto que todos eles podem ser sujeitos, em princípio, de quaisquer relações jurídicas (art.º 67.º do Cód. Civil). E o corolário aplicável às pessoas singulares estende-se de igual modo, quer às pessoas colectivas (associações ou fundações) quer às sociedades a que seja reconhecida personalidade jurídica. (…) Há todavia excepções ao princípio da correspondência (entre capacidade de gozo de direitos e a personalidade judiciária), todas elas orientadas no sentido de estender a personalidade judiciária a quem não goza de personalidade jurídica ou a quem é pelo menos duvidoso que a possua.”
Em regra, como decorre do art.º 11.º n.º 2 do C.P.C. a personalidade judiciária, que consiste na susceptibilidade de ser parte em juízo, acompanha a personalidade jurídica. Podemos dizer que quem tem personalidade jurídica goza necessariamente de personalidade judiciária.
O contrário é que já não é verdadeiro, uma vez que o legislador contemplou excepções à regra da correspondência da personalidade jurídica e judiciária. Razões de ordem prática, de simplificação e de eficiência terão levado a que seja conferido a determinadas entidades que não dispõem de personalidade e capacidade jurídica a possibilidade de litigarem em tribunal, contemplando os art.º 12.º e 13.º do C.P.C., para além de outros casos em legislação avulsa, situações a que se estende a possibilidade de ser parte em juízo a entidades que não têm personalidade jurídica ou seja, que não podem ser titulares de direitos e obrigações.
No âmbito das excepções à regra da coincidência entre a personalidade jurídica e judiciária prevista no art.º 11.º n.º 2 do C.P.C., temos, entre outras, a situação do condomínio resultante da propriedade horizontal, relativamente às acções que se inserem no âmbito dos poderes do administrador, excepção prevista expressamente na al. e) do n.º 12 do C.P.C.
É precisamente pelo facto do condomínio não dispor de personalidade jurídica, sendo os condóminos os titulares do direito de propriedade sobre as fracções autónomas e sobre as partes comuns do edifício, que é atribuída ao condomínio personalidade judiciária, assim se lhe dando a possibilidade de ser parte em juízo, mas apenas nas acções que se integrem no âmbito das funções e dos poderes do administrador do condomínio e só nestas, como decorre do art.º 1437.º do C.Civil.
Com interesse para esta questão, diz-nos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007 no proc. 07B1875 in. www.dgsi.pt referindo-se à previsão do art.º 1437.º do C.Civil: “Porém, como também já se deixou entrevisto, este normativo refere-se à capacidade processual e não à legitimidade adjectiva (ad causum) do condomínio, ao invés do defendido no acórdão recorrido. Ao conferir ao administrador a possibilidade de actuar em juízo, o art. 1437º mais não faz do que concretizar uma aplicação do disposto no art. 22º do CPC – que estatui sobre a representação das entidades que carecem de personalidade jurídica – eliminando possíveis dúvidas sobre se aquele poderia, no exercício das suas atribuições, recorrer à via judicial. Fica claro, com o preceito em apreço, que o administrador da propriedade horizontal, na execução das funções que lhe pertencem ou quando munido de autorização da assembleia de condóminos – relativamente a assuntos que, exorbitando da sua competência, cabem, todavia, na competência desta assembleia – pode accionar terceiros ou qualquer dos condóminos, ou por eles ser demandado nas acções respeitantes às partes comuns do edifício.”
Verifica-se assim que em qualquer outra circunstância, fora dos poderes do administrador do condomínio a que alude o art.º 1437.º do C.Civil, ainda que possa estar em causa um interesse comum aos vários condóminos, têm de ser estes a vir a juízo em nome próprio no sentido de fazer valer os seus direitos, em razão do condomínio não dispor de personalidade judiciária para este efeito, além de que, não dispondo de personalidade jurídica, nunca pode ser titular de direitos.
No caso em presença é forçoso reconhecer a contradição entre o pedido e a causa de pedir afirmada na decisão recorrida. Talvez resultando do facto de não ter bem presente que o condomínio não é uma pessoa jurídica, bem como esta realidade e o regime jurídico da propriedade horizontal, são invocados na petição inicial, do que são exemplo os art.º 8.º a 14.º, factos que são susceptíveis de revelar actos de posse praticados sobre o prédio da R., que não é o prédio constituído em regime de propriedade horizontal, pelos condóminos do prédio confinante, sem que o pedido se dirija à aquisição de um qualquer direito de propriedade por estes, que não são parte na acção, mas antes pelo condomínio.
O condomínio enquanto tal nunca pode ser titular de um qualquer direito de propriedade, designadamente do direito de propriedade sobre o prédio usado como estacionamento identificado na acção, por ser uma entidade que não dispondo de personalidade jurídica não é susceptível de ser titular de direitos. Os titulares dos direitos no âmbito da propriedade horizontal são apenas os condóminos.
Por um lado, ainda há que reconhecer que não estamos perante uma situação cuja resolução se possa integrar nas funções ou poderes do administrador do condomínio, previstas no art.º 1436.º e 1437.º do C.Civil, já que nem sequer podemos dizer que estão em causa partes comuns do edifício, nos termos em que a elas alude o art.º 1421.º do C.Civil e que são, naturalmente, e tal como aí é expressamente referido, as partes comuns do edifício constituído em regime de propriedade horizontal, que para o feito tem um título constitutivo necessariamente submetido a licença camarária.
Verifica-se assim que, para além da contradição entre o pedido e a causa de pedir afirmados pela decisão recorrida e que determina a ineptidão da petição inicial e consequente absolvição do R. da instância, sempre haveria ainda a considerar a falta de personalidade judiciária do A., pressuposto processual de conhecimento oficioso, que sempre impõe a absolvição do R. da instância, nos termos do disposto no art.º 278.º n.º 1 al. c) do C.P.C.
- do suprimentos da falta de legitimidade do A.
Alega o Recorrente que o tribunal deve oficiosamente providenciar pelo suprimento da falta de pressupostos processuais, chamando os condóminos à acção, para suprir a falta de legitimidade do A.
A este respeito a sentença recorrida, embora sem grande fundamentação, entendeu estar-se também perante uma ilegitimidade processual activa.
Como já se viu, o pressuposto processual que está em falta relativamente ao A. condomínio não é o da legitimidade enquanto interesse em demandar na acção, nos termos do art.º 30.º do C.P.C., mas antes o da personalidade judiciária, pressuposto que é prévio àquele e cuja falta determina a absolvição da instância, de acordo com o art.º 278.º n.º 1 al. c) do C.P.C.
As excepções dilatórias são na maioria dos casos supríveis podendo em regra ser sanadas, prevendo a primeira parte do n.º 3 do art.º 278.º que só subsistem enquanto a respectiva falta ou irregularidade não for sanada nos termos do art.º 6.º n.º 2 do C.P.C. É aliás um dever do juiz providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta dos pressupostos processuais susceptíveis de serem sanados, convidando as partes, quando for o caso, a praticar os actos necessários à regularização da instância, como resulta expressamente da norma referida.
A personalidade judiciária constitui um pressuposto processual que, pela sua natureza, não é em regra susceptível de ser sanado, prevendo o legislador apenas no art.º 14.º do C.P.C., como excepção, o suprimento da falta de personalidade judiciária das sucursais, agências, filiais, delegações ou representação, situações previstas no art.º 13.º, com a intervenção da administração principal e a ratificação ou repetição do processado.
Dizem-nos Antunes Varela e outros, in. ob. cit. pág. 116: “E compreende-se o silêncio da lei, porquanto ao invés da incapacidade judiciária e da ilegitimidade, a carência de personalidade judiciária é em princípio irremovível.” Também no sentido de que a falta de personalidade judiciária não tem remédio, por oposição à incapacidade ou falta de representação, pronuncia-se Aberto dos Reis in. Código de Processo Civil anotado, Vol. I, pág. 66.
No caso em presença, considerando o pedido e a causa de pedir subjacentes à acção e atenta a limitação do art.º 12.º al. c) que apenas confere ao condomínio personalidade judiciária relativamente às acções que se inserem nas funções e poderes do administrador, o que não é manifestamente o caso, já se vê que a sanação da falta não é possível, impondo-se também por isso a absolvição da instância já determinada.
V. Decisão:
Em face do exposto, julga-se o presente recurso interposto pelo A. totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pelo Recorrente.
Notifique.
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Porto, 25 de Outubro de 2018
Inês Moura
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva