Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3475/16.2T8STS-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDA ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA CULPOSA
AFETAÇÃO DO GERENTE DE DIREITO
NEXO DE CAUSALIDADE
INDEMNIZAÇÃO AOS CREDORES
Nº do Documento: RP202209263475/16.2T8STS-B.P1
Data do Acordão: 09/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A base da insolvência culposa acha-se no n.º 1 do art. 186.º CIRE, onde se determina a responsabilidade dos administradores, de facto ou de direito, da insolvente.
II - Da simples assunção de um cargo societário que importe o dever de controlar e vigiar a organização e condução da atividade social, deriva uma responsabilidade que o art. 186.º CIRE não quis afastar, mesmo que a administração efetiva ou de facto pertença a outrem.
III - Tendo-se provado a alienação gratuita de património da insolvente a favor de terceiros, presume-se de forma absoluta a culpa do administrador de direito e também o nexo de causalidade entre esta alienação e o agravamento da insolvência.
IV - Mesmo considerando não presumido o nexo de causalidade, a doação de três automóveis a terceira empresa, sem outra razão que não os laços familiares entre os respetivos responsáveis, tendo impedido a donatária do exercício do seu objeto social, agravou o estado deficitário das suas contas.
V - Nos termos do art. 189.º, n. 2 al. e) do CIRE, na redação introduzida pela L 9/2022, de 11.1, as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência não são condenadas no montante dos créditos não satisfeitos, mas sim até ao montante máximo daqueles créditos e considerando as forças dos respetivos patrimónios.
VI - O administrador deverá ser condenado a indemnizar os credores na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência, e só na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc.º 3475/16.2T8STS-B.P1

Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora, nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

RELATÓRIO
Por apenso aos autos de insolvência em que foi declarada a insolvência de B..., Sociedade Unipessoal, Lda., veio Administrador da insolvência apresentar parecer propondo que a insolvência fosse qualificada como culposa, com base na violação do disposto no artigo 186.º/ 2, a), d), e), g) e i) e 3, a) e b), do CIRE, dela sendo afetado AA.
Também o Ministério Público, a seu tempo, pugnou pela qualificação da insolvência como culposa, com base na violação do disposto no artigo 186.º, 2, d), do CIRE, com responsabilidade de AA.

Este último, por sua vez, opôs-se à pretendida qualificação, alegando basicamente que relativamente aos negócios de venda dos veículos referidos nos pareceres, o gerente da insolvente não recebeu qualquer contrapartida, nem desviou qualquer quantia da sociedade ou praticou ato que constituísse prejuízo para a mesma. O gerente apenas deteve temporariamente a gerência de direito da sociedade, nunca tendo praticado, atos em nome da mesma.

Realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 29.4.2022, a qual
a) qualificou como culposa a insolvência de B..., Sociedade Unipessoal, Lda.;
b) afetou por essa qualificação AA;
c) decretou a inibição de AA para administrar patrimónios de terceiros por três anos;
d) decretou a inibição de AA para o exercício do comércio, bem como para ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, pelo período de três anos;
e) declarou perdidos quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente eventualmente detidos por AA e a restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, caso tenham tido lugar;
f) condenou AA a indemnizar os credores da devedora/insolvente no montante dos créditos reconhecidos na relação definitiva de créditos apresentada pelo Administrador da insolvência.
Foram aí dados como provados os seguintes factos:
1) A B..., Sociedade Unipessoal, Lda., foi constituída em 27 de Abril de 2004, com o capital social de 50.000€, tendo por objeto o transporte de mercadorias e realização e mudança e sendo seu gerente registado AA.
2) Por petição inicial apresentada em 25/11/2016, BB requereu a insolvência da B..., Sociedade Unipessoal, Lda., invocando uma dívida laboral no valor de 11.895€ e as tentativas frustradas de a fazer pagar, tudo conforme termos de fls. 4/5 do processo principal, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
3) Por sentença de 22/03/2017, já transitada em julgado, foi decretada a insolvência da B..., Sociedade Unipessoal, Lda., tudo conforme termos de fls. 60/66 do processo principal, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
4) A 16 de Dezembro de 2016, a B..., Sociedade Unipessoal, Lda., havia dado entrada em juízo de um processo onde se apresentava à insolvência, que correu termos sob o n.º 10144/16.1T8VNG, J3, juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, e que foi suspenso atenta a pendência destes autos, acabando por ser extinto, tudo conforme termos de fls. 69/90 destes autos.
5) A 22 de Fevereiro de 2019, o Senhor administrador da insolvência apresentou a relação de créditos definitiva, tendo sido reclamados e reconhecidos créditos no valor total de 95.324,93€, tudo conforme termos de fls. 3 do apenso G, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
6) No âmbito de ação de verificação ulterior, por sentença proferida a 10/04/2018 foram reconhecidos créditos à administração tributária no valor de 2.805€, tudo conforme termos de fls. 1, verso/2 e 26 do apenso C, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
7) No âmbito de ação de verificação ulterior, por sentença proferida a 17/10/2018 foram reconhecidos créditos à administração tributária no valor de 2.851€, tudo conforme termos de fls. 1, verso/2 e 26 do apenso D, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
8) Por sentença de 10/04/2019, o Fundo de Garantia Salarial foi habilitado por ter pago a quantia de 15.875,75€ a titulo de créditos salariais que CC, BB e DD, trabalhadores da B..., Sociedade Unipessoal, Lda., tinham reclamado, tudo conforme termos de fls. 3/4 e 8 do apenso F, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
9) O Senhor administrador da insolvência procedeu inicialmente à apreensão dos veículos de matrícula ..-..-PA, ..-..-MQ, ..-AD-.., ..-..-XD, ..-IA-.. e ..-..-PD, tudo conforme termos do auto de apreensão e fls. 2 do apenso E, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
10) Para o efeito, a massa insolvente, representada pelo administrador da insolvência, havia remetido uma carta a J..., Unipessoal, Lda., datada de 07/09/2017, comunicando a resolução em favor da massa insolvente da compra e venda de quatro viaturas realizada com as matriculas ..-..-PD, ..-..-XD, ..-AD-.. e ..-IA-.., tudo conforme termos do documento de fls. 6, verso/7, do apenso A, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
11) J..., Unipessoal, Lda., intentou ação de impugnação de resolução de compra e venda das viaturas referidas em 8) contra a massa insolvente de B..., Sociedade Unipessoal, Lda., que foi julgada procedente, tudo conforme termos do acórdão do Tribunal da relação do Porto de fls. 118/124 do apenso A, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
12) EE é primo de AA.
13) A B..., Sociedade Unipessoal, Lda., transferiu para T..., Unipessoal, Lda., em Agosto de 2016, a propriedade das viaturas de matrícula ..-CB-.., ..-..-MQ e ..-..-PM a título gratuito, não tendo a T..., Unipessoal, Lda., pago qualquer quantia.
14) As viaturas de matrícula ..-CB-.., ..-..-MQ e ..-..-PM valiam 10.350€.
15) FF é cunhada de AA e a entrega das viaturas de matrícula ..-CB-.., ..-..-MQ e ..-..-PM foi feita para fazer um favor ao marido da primeira, de forma a que permanecessem nessa empresa e pudessem ser utilizados na respetiva atividade de transportes.
16) A partir da entrega das viaturas, a B..., Sociedade Unipessoal, Lda., ficou sem viaturas suficientes para poder continuar a sua atividade.
17) A B..., Sociedade Unipessoal, Lda., depositou as contas relativas aos anos de 2006 a 2015 na Conservatória do Registo Comercial.
18) A venda dos bens cuja apreensão se manteve foi efetuada pelo Senhor administrador da insolvência por 5.210€.
19) GG, pai de AA, administrava a B..., Sociedade Unipessoal, Lda., embora AA tivesse conhecimento do que se passava, assinando o que o seu pai lhe pedia.
Matéria de facto não provada
20) A entrega das viaturas de matrícula ..-CB-.., ..-..-MQ e ..-..-PM à T..., Unipessoal, Lda., conforme mencionado em 13), foi feita na condição desta segunda empresa contratar dois motoristas da B..., Sociedade Unipessoal, Lda.

Desta sentença recorre AA, discordando da sua condenação a pagar aos credores as dívidas da insolvente, terminando as suas alegações do modo seguinte:
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Contra-alegou o MP, pugnando pela improcedência do recurso.

Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635.º, nºs 3 e 4 e 639.º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil):
- da condenação do administrador de direito em indemnização aos credores da sociedade insolvente em consequência da qualificação da insolvência como culposa.

Fundamentos de facto
Começa o recorrente por afirmar ter o Juiz a quo efetuado uma justa apreciação da matéria de facto.
Todavia e incompreensivelmente, vem depois a mencionar prova concreta – com indicação das passagens gravadas – como se de impugnação da matéria de facto se tratasse. Fá-lo, contudo, sem que indique qual a matéria que pretende colocar em causa, ou qual quer ver provada ou não provada, aludindo a um supostotemor reverencial” relativamente a seu pai – gerente de facto da insolvente -, para justificar as suas intervenções como gerente de direito, sem que anteriormente tenha invocado tais circunstâncias na petição inicial.
Ora, o art. 640.º CPC estabelece um ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no n.º 1 que,
1.Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O n.º 2 acrescenta:
“a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”
Assim, se o recurso visa a impugnação da matéria de facto, cabe ao tribunal ad quem proceder a um novo julgamento, limitado à matéria de facto impugnada, para o que deverá reapreciar a prova produzida, considerando os meios de prova indicados no recurso e outros que entenda relevantes.
Para tanto, o legislador impõe ao recorrente o cumprimento de regras de conteúdo e forma de molde a evitar uma completa ou parcial repetição de julgamentos, rejeitando, desde logo, a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão de facto, tendo optado por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências pelo recorrente.
Por essa razão, embora se não exija a transcrição dos excertos da gravação que se considerem importantes, já é necessário que os apelantes indiquem com exatidão as passagens da gravação que consideram relevantes para que o tribunal de recurso possa apreciar todas e cada uma das decisões de facto com que não concordam, isto porque, substancialmente, a intervenção da Relação a este título apenas redundará na alteração da seleção factual alcançada em primeira instância, caso se verifique um erro manifesto e flagrante na apreciação da prova em cada ponto concreto.
Como se vê, não foram in casu cumpridos os formalismos relativos à impugnação da matéria de facto, nem sequer o recorrente visa a alteração desta, pelo que tudo quanto se refere a prova e sua interpretação é absolutamente inconsequente e inútil para efeitos de recurso.
Deste modo, a matéria de facto que interessa à decisão do recurso é a que ficou fixada em primeira instância e acima transcrita.

Fundamentos de Direito
Tratamos da qualificação da insolvência como culposa, tendo a sentença concluído pela atuação culposa e causal – presumida uris et de iure – do administrador de direito e extraído os efeitos substantivos que à mesma são fixados no art. 189.º CIRE.
Com efeito, qualificando a insolvência como culposa, o juiz identifica as pessoas afetadas por essa qualificação, que podem ser, não apenas a pessoa singular insolvente e seus administradores (artigo 186.º, n.º 4), mas também os administradores, de direito ou de facto, e, bem assim, os próprios técnicos oficiais de conta e revisores oficiais de contas (artigo 189.º, n.º 2), universo subjetivo que a lei enuncia exemplificativamente num propósito de responsabilização, não apenas da pessoa declarada insolvente, mas de todos aqueles que, sendo terceiros, criaram ou agravaram censuravelmente, por força da sua atuação, no período legalmente relevante, a situação de insolvência decretada.
Os efeitos jurídicos que decorrem do art. 189.º “são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal” (ac. TC 280/2015, de 20.5).
A sentença recorrida culminou na fixação de todos os efeitos substantivos associados à qualificação da insolvência como culposa.
Mas o objetivo do recurso centra-se, tão-só, na censura do segmento da sentença que condena o recorrente – gerente de direito da insolvente – a indemnizar os credores desta, quando a empresa era gerida pelo seu pai que, assim, atuava como gerente de facto.
O recorrente não coloca em causa a sua condenação como afetado pela qualificação e inibido para a administração de patrimónios de terceiros ou para o exercício do comércio.
A sua única discordância refere-se à responsabilidade sobre as dívidas da insolvente em montante tão elevado, argumentando, afinal, não ser justo assim condená-lo quando o mesmo, sendo mero gerente de direito, nada decidiu sobre os destinos da empresa e nada dela recebeu.
Todavia, para se averiguar se a condenação assim efetuada era ou não certa, do ponto de vista jurídico, importar convocar o regime legal aplicável, nomeadamente a teleologia da norma ao erigir o administrador de direito como responsável, ao lado do administrador de facto.
A questão gira, pois, em torno do disposto nos arts. 186.º, n.ºs 1 e 2, e 189.º, CIRE, que dispõem:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2- Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
E,
Na sentença que qualifique a insolvência como culposa, o juiz deve:
(…)
Condenar as pessoas afetadas a indemnizarem os credores do devedor declarado insolvente até ao montante máximo dos créditos não satisfeitos, considerando as forças dos respetivos patrimónios, sendo tal responsabilidade solidária entre todos os afetados.
A sentença considerou o seguinte:
“(…) onde podemos encontrar fundamento para considerar que a insolvência B..., Sociedade Unipessoal, Lda., deve ser considerada culposa é na presunção mencionada na alínea d) (= disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros) daquele artigo.
Recorde-se que se demonstrou que a B..., Sociedade Unipessoal, Lda., transferiu para T..., Unipessoal, Lda., em Agosto de 2016, a propriedade das viaturas de matrícula ..-CB-.., ..-..-MQ e ..-..-PM a título gratuito, não tendo a T..., Unipessoal, Lda., pago qualquer quantia.
Ainda que FF é cunhada de AA e a entrega das viaturas de matrícula ..-CB-.., ..-..-MQ e ..-..-PM teve em vista fazer um favor ao seu marido, de forma a que permanecessem nessa empresa e pudessem ser utilizados na respetiva atividade de transportes.
E, por fim, que a partir da entrega dessas viaturas, a B..., Sociedade Unipessoal, Lda., ficou sem viaturas suficientes para poder continuar a sua atividade.
Não há assim qualquer dúvida que houve uma disposição dos bens da empresa em proveito de um terceiro, ligado por relações familiares ao gerente da insolvente, disposição essa que acabou por se revelar essencial para que a B..., Sociedade Unipessoal, Lda., que deixou de exercer a sua atividade.
E acrescentou, “deve ser afetado pela qualificação da insolvência como culposa o gerente de direito, ainda que não exerça a gerência de facto, considerando que essa qualidade permite-lhe acompanhar a vida da sociedade, inteirar-se do modo como a gerência é exercida, zelar pelo cumprimento dos deveres legais, entre eles evitar a disposição do património”.
O recorrente não coloca em causa a qualificação da insolvência como culposa, mas diz não se ter provado qualquer ato de gestão por si praticado (não podemos questionar a outra factualidade que alega segundo a qual a insolvência se deveu à crise do mercado e ao facto de a insolvente ter apenas um cliente, uma vez que nem os factos provados contêm matéria que o permita, nem a sentença se debruçou sobre tais circunstâncias).
Todavia, não concordamos com a alegação de que não existem atos de gestão da sua parte.
Como sabemos, a base da insolvência culposa acha-se no n.º 1 do art. 186.º CIRE. Aí se determina, antes de mais, a responsabilidade dos administradores, de facto ou de direito, da insolvente.
Foi com a L 53/04, de 18.3, que estabeleceu o CIRE, que passou a existir, quanto às insolvências, a noção de administrador e de representante legal, conforme exposto no ponto 20 do decreto preambular e na al. a) do n.º 1 do art. 6.º CIRE.
A definição de administrador de direito surge sem complicações; trata-se daquele que, no contrato de sociedade, é indicado, ou vem a ser indigitado em Assembleia-geral, para desempenhar as funções de representante legal da sociedade, tal como figura estatutariamente na certidão permanente.
No ponto 1 dos factos provados resulta expresso ser o recorrente o gerente da insolvente. É, pois, administrador de direito.
Está, de todo, afastada a sua responsabilização neste contexto?
A resposta é negativa.
Apesar de se ter dado como provado ser outrem, o pai do gerente de direito, quem de facto administrava a sociedade – pessoa que, por isso, também deveria ter sido responsabilizada -, a verdade é que se deu igualmente como provado que o recorrente tinha conhecimento do que se passava na empresa, possibilitando a administração de facto do pai mediante a assinatura dos documentos que aquele lhe submetia.
Nada resultou demonstrado quanto a qualquer quadro de coação ou dependência psicológica e emocional do filho, que o tivesse levado de forma inexorável a aceitar o cargo formal de gerente e, depois disso, a subscrever a documentação que o administrador de facto lhe submetia.
Teria sido importante alegá-lo em sede de articulado de oposição apresentado ao abrigo do disposto no art. 188.º, n.º 6.
É verdade que, no processo de insolvência vigora o princípio do inquisitório – art. 11.º CIRE – pelo que cabe ao juiz indagar, por sua iniciativa e investigar livremente, todos os factos relevantes para a decisão.
Sendo assim, bem poderia este tribunal ponderar da necessidade de se apurarem outros factos dos quais resultasse o afastamento do administrador de direito por via do que agora alega em recurso, a saber a sua juventude e a influência paterna.
Compulsámos, pois, a prova a que a motivação da decisão de facto da sentença recorrida concita.
Por via disso, verificamos ter o recorrente sido constituído gerente da insolvente em 2009, altura em que teria por volta de 20 anos (posto que, em 2022, aquando da sua inquirição no julgamento destes autos, declarou ter 33 anos de idade), admitindo-se que, então, não reunisse experiência suficiente para exercer o cargo e, dessa forma, fosse em absoluto determinado pelo pai cuja gerência formal substituiu na empresa.
Todavia, em 2016, ano a que se reporta o ato de alienação gratuita em que se fundou a qualificação da insolvência como culposa, o requerido detinha já 27 anos, tendo admitido em audiência ter assinado as declarações de venda que, afinal – como afirmou – não correspondiam ao negócio efetuado, que foi de doação. Ademais, perpassa das suas declarações uma assunção velada dos desígnios da sociedade, ao mencionar que os outros veículos a que se referem os factos provados “nunca trabalharam para nós”.
Assim configurada a prova, não vemos necessidade de operar aquele princípio do inquisitório, com mais exaustiva indagação da posição substantiva do requerido quanto aos desígnios da insolvente, posto que a já recolhida afasta o que agora alega relativamente à sua instrumentalização pelo administrador de facto.
Sendo assim, duas observações importam:
- em primeiro lugar, a assunção da gerência encerra em si, e abstratamente, um conjunto de obrigações, nomeadamente quanto a terceiros, que se refletem a jusante quando a empresa se constitui insolvente;
- em segundo lugar, mediante a aposição da assinatura necessária para o giro comercial concreto, o recorrente possibilitou a criação pelo gestor/gerente de facto da situação de insolvência ou seu agravamento.
Quanto ao primeiro aspeto, comungamos do exposto no acórdão desta Relação, de 22.2.2022, no Proc. 309/11.8TYVNG-N.P2, onde se cita Coutinho de Abreu, e se escreve: “os administradores têm poderes-função, poderes-deveres, gerem no interesse da sociedade, têm os poderes necessários para promover este interesse.” “Os deveres impostos aos administradores para o exercício correcto da administração começam por ser, como actividade, o dever típico e principal de administrar e representar a sociedade…”, sendo que este dever genérico apenas encontra densidade nos deveres fundamentais elencados nas alíneas a) e b) do art. 64º, nº 1 do Cód. das Sociedades Comerciais: o dever de cuidado e o dever de lealdade” e se acrescenta, para situação semelhante à dos autos: “Assim, a circunstância de o gerente de direito não exercer, de facto, tais funções, que eram desempenhadas por uma outra pessoa, neste caso o seu pai, não o isentava das suas obrigações legais, enquanto gerente de direito, de, designadamente, apresentar a sociedade à insolvência, de cumprir com o dever de colaboração, de elaborar as contas anuais ou de assegurar o cumprimento destes deveres. Aliás, a ignorância e o alheamento dos destinos da sociedade que caracterizam a atuação do aqui requerido constituem, só por si, uma violação dos deveres gerais que se lhe impunham, enquanto gerente da insolvente - cfr. Ac. Rel. Coimbra de 22.11.2016, CJ, ano XLI, tomo V, págs. 23/29. Deste modo, a mera invocação de que a gerência era de facto exercida por uma outra pessoa não dispensava o requerido, gerente de direito, dos seus deveres para com a sociedade e não tem a virtualidade de o afastar da previsão do art. 186º, nºs 1 e 2 do CIRE”.
Quer isto dizer que, da simples assunção de um cargo societário que importe o dever de controlar e vigiar a organização e condução da atividade social, já deriva uma responsabilidade que o art. 186.º CIRE não quis afastar, mesmo que a administração efetiva ou de facto pertença a outrem.
Outro dos requisitos deste normativo para que se impute a culpa da insolvência consiste na atuação que cria ou agrava a insolvência.
Dir-se-ia que, cabendo a gerência de facto a terceiro, não poderia imputar-se ao gerente de direito tal atuação.
Mas não é assim.
A atuação que se imputa ao requerido é, in casu, a prevista no n.º 2 do citado 186.º, na sua d), isto é, a disposição de bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros.
Não está provado ter o requerido disposto de bens da insolvente a seu favor. Porém, apurou-se que a insolvente transferiu para empresa detida por familiares do mesmo um conjunto de automóveis, no valor de €10.350,00, sem qualquer contrapartida monetária ou outra.
Não terá sido deste facto que resultou a ruína financeira da empresa, mas o certo é que, depois disso, a pessoa coletiva – que tinha por objeto o transporte de mercadorias e realização de mudanças – ficou sem viaturas suficientes para poder continuar a sua atividade o que, naturalmente, agravou a sua saúde económica.
Poderá afirmar-se não ter o recorrido, por si, efetuado esta alienação de património, mas a verdade é que o possibilitou porque, tendo conhecimento do que na sociedade se passava, assinou a documentação que o pai lhe submeteu e não exerceu a vigilância devida. Porém, “a forma como se encontra redigida a norma constante do n.º 1 do artigo 186.º, permite incluir como comportamento relevante para efeitos de qualificação, quer uma acção positiva, um facere, quer uma omissão, um non facere” (Rui Estrela de Oliveira, Uma brevíssima incursão pelos incidentes de qualificação da insolvência, Julgar, n.º 11, 2010, p. 231).
Tratando-se de circunstância – a alienação gratuita – elencada no n.º 2 do art. 186.º CIRE, presume-se a mesma culposa e causalmente determinante do agravamento da insolvência.
Esta presunção é inilidível (a lei emprega a expressão sempre), pois o legislador visou com este n.º 2 instituir “uma presunção iuris et de iuri, quer da existência de culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário” (Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 10.ª Edição, p. 235, podendo ver-se, ainda, com indicação de outra doutrina e jurisprudência, A. Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Vol. I, 4.ª Ed., p. 567-568).
Tendo-se provado a alienação gratuita de património da insolvente a favor de terceiros, presume-se de forma absoluta (no dizer de Catarina Serra, O Regime Português da Insolvência, p.141), a culpa do administrador de direito e, na ótica que vimos, também o nexo de causalidade entre esta alienação e o agravamento da insolvência (posição que a relatora subscreveu, como adjunta, no ac. desta Relação, de 6.9.2021, no Proc. 908/12.0TYVNG-A.P1.
Mesmo considerando não presumido o nexo de causalidade, como sustenta Rui Oliveira, cit., p. 240 (“Também aqui, por imperativo lógico, os factos imputados ao visado devem vir acompanhados de factualidade demonstrativa da existência de um nexo de causalidade entre os actos e a produção e/ou agravamento do estado de insolvência”), na situação que cuidamos, vimos que a doação de três automóveis a terceira empresa, sem outra razão que não os laços familiares entre os respetivos responsáveis, tendo impedido a donatária do exercício do seu objeto social, naturalmente agravou o estado deficitário das suas contas.
De sorte que não pode deixar de se atribuir ao requerido a responsabilidade que lhe foi imputada em primeira instância, sob a forma de dolo, como se deixou consignado no dispositivo, embora se não tenha esclarecido o tipo de dolo aqui implicado, parecendo-nos ajustada a figura do dolo eventual, atenta a circunstância de se ter dado como provado que era o pai do requerido quem administrava de facto a empresa.
Outro aspeto, porém, é o das consequências dessa imputação.
Como dissemos, não estão em causa outras, que não a prevista no art. 189.º, n.º 2 al. e) CIRE.
Com esta base legal, foi o recorrente condenado a pagar aos credores o valor dos créditos reconhecidos na relação definitiva de créditos, valor este que, segundo o fato provado 5, se situa em €95.324,93.
Todavia, o art. 189.º, n. 2 al. e) do CIRE, não tem a redação que a sentença de primeira instância indicou.
Na verdade, as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência não são já condenadas no montante dos créditos não satisfeitos, mas sim até ao montante máximo daqueles créditos e considerando as forças dos respetivos patrimónios.
Esta diferença de redação foi introduzida ao preceito pela L 9/2022, de 11.1, aplicável já à data da sentença recorrida.
Quer isto dizer que a lei estabelece o dever de condenar os afetados, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, nomeadamente a culpa de cada afetado e as forças do seu património, pelo que o montante máximo a pagar pode ir até ao montante dos créditos não satisfeitos, mas pode ficar abaixo dele.
Por este motivo, a maior parte da doutrina, mesmo antes da alteração de janeiro passado, entendia que “o administrador deverá ser condenado a indemnizar os credores na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência, e só na proporção em que o seu comportamento contribuiu para a insolvência”(Nuno Oliveira, Responsabilidade civil dos administradores – Entre direito civil, direito das sociedades e direito da insolvência, 2015, p. 225; também, assim, Catarina Serra, Lições de direito da insolvência, p. 162).
Do mesmo jeito, no TC, no ac. 280/2015, de 20.5 já citado, lê-se: “Esses efeitos jurídicos são cumulativos e automáticos, como claramente decorre do proémio do n.º 2 do artigo 189.º, pelo que, uma vez proferida tal decisão, não pode o juiz deixar de aplicar todas essas medidas. Não obstante, a determinação do período de tempo de cumprimento das medidas inibitórias previstas nas alíneas b) e c) do n.º 1 do artigo 189º do CIRE (inibição para a administração de patrimónios alheios, exercício de comércio e ocupação de cargo de titular de órgão nas pessoas coletivas aí identificadas) e, naturalmente, a própria fixação do montante da indemnização prevista na alínea e) do n.º 2 do mesmo preceito legal, deverá ser feita em função do grau de ilicitude e culpa manifestado nos factos determinantes dessa qualificação legal”.
Também o STJ, em ac. de 22.6.2021, Proc. 439/15.7T8OLH-J.E1.S1: A qualificação como culposa de uma insolvência – consistindo no escrutínio das condições em que eclodiu ou se agravou uma situação de insolvência – tem em vista “moralizar o sistema”: aplicar certas medidas/sanções ao(s) culpado(s) por tal criação ou agravamento, não permitindo que, havendo culpado(s), o(s) mesmo(s) passem(m) “impune(s)”.
II - O que não significa que tais medidas/sanções – maxime, a indemnização consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE – devam ser impostas automaticamente, sem quaisquer limites e fora de quaisquer exigências ou controlo de proporcionalidade (ou de não desproporcionalidade). III - Assim, no caso de indemnização consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE, será atendendo e apreciando as circunstâncias do caso (tudo o que está provado no processo: o que levou à qualificação e o que o afetado alegou e provou em sua “defesa”) que o juiz pode/deve fixar as indemnizações em que condenará as pessoas afetadas. IV - E entre as circunstâncias com relevo para apreciar a proporcionalidade ou desproporcionalidade da indemnização a fixar encontram-se os elementos factuais que revelam o grau de culpa e a gravidade da ilicitude da pessoa afetada (da contribuição do comportamento da pessoa afetada para a criação ou agravamento da insolvência): mais estes (os elementos respeitantes à gravidade da ilicitude) que aqueles (os elementos respeitantes ao grau de culpa), uma vez que, estando em causa uma insolvência culposa, o fator/grau de culpa da pessoa afetada não terá grande relevância como limitação do dever de indemnizar, sendo o fator/proporção em que o comportamento da pessoa afetada contribuiu para a insolvência que deve prevalecer na fixação da indemnização. V - Não perdendo o juiz de vista, na fixação das indemnizações, que a responsabilidade consagrada no art. 189.º, n.º 2, al. e), do CIRE (sobre as pessoas afetadas pela qualificação da insolvência como culposa) tem uma função/cariz misto, ou seja, sem prejuízo da sua função/cariz ressarcitório, tem também uma dimensão punitiva ou sancionatória (da pessoa afetada/culpada na insolvência), pelo que a observância do princípio da proporcionalidade não exige que a indemnização a impor tenha que ser avaliada como justa, razoável e proporcionada, mas sim e apenas, num controlo mais lasso, que a indemnização a impor não seja avaliada como excessiva, desproporcionada e desrazoável.
Quer isto dizer que o legislador consagrou aqui a possibilidade de limitação da indemnização em termos semelhantes ao que estabeleceu para a indemnização fundada em mera culpa que, nos termos do art. 494.º CC, é fixada equitativamente, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Face ao exposto, afigura-se-nos não fundada a sentença quando condena o requerido a pagar aos credores da insolvente todo o montante dos créditos não satisfeitos.
Recorde-se que o único comportamento que se lhe imputa respeita à alienação, em proveito de terceiros, de veículos no valor de €10.350,00, alienação que, embora com o seu conhecimento e assinatura dos documentos, corresponde à gerência de facto de seu pai.
Não resulta dos factos provados ter o afetado sido responsável pela criação da situação de insolvência, mas apenas pelo seu agravamento, em agosto de 2016, sendo que o processo de insolvência foi instaurado em novembro do mesmo ano.
Sendo assim, entendemos ser desproporcionada a condenação na totalidade do valor dos créditos não satisfeitos, não podendo a indemnização a cargo do afetado ser superior àquela quantia de €10.350,00.
Atento o vai dito, na parcial procedência da apelação, deve condenar-se o afetado a indemnizar os credores da insolvente, naquele montante.

Dispositivo
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, condenar AA, afetado pela qualificação da insolvência, a indemnizar os credores da insolvente, até às forças do respetivo património, no montante de €10.350,00, confirmando-se no mais a sentença recorrida.

Custas do recurso na proporção de 10% pelo recorrente e 90% pela massa insolvente.


Porto, 26.9.2022
Fernanda Almeida
Teresa Fonseca
Maria José Simões