Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
586/16.8PHMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: INIMPUTABILIDADE
MEDIDA DE SEGURANÇA
Nº do Documento: RP20180207586/16.8PHMTS.P1
Data do Acordão: 02/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 748, FLS 09-20)
Área Temática: .
Sumário: I - Para efeitos de aplicação do disposto no artigo 91º, nº 1, do Código Penal, o facto ilícito típico aí mencionado integra apenas a conduta objetiva prevista no tipo legal de crime, não abrangendo os elementos subjetivos.
II - A aplicação de uma medida de segurança a um arguido está dependente da prova que a conduta grave objetiva descrita no tipo legal de crime tenha sido praticada pelo agente por causa da anomalia psíquica e, por isso, incapaz de avaliar a ilicitude da sua conduta e se determinar de acordo com tal avaliação.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 586/16.8PHMTS.P1
Data do acórdão: 7 de Fevereiro de 2018

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Origem: Comarca do Porto
Juízo Local Criminal de Matosinhos

Sumário:
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Acordam os juízes acima identificados da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o Ministério Público.
I - RELATÓRIO
1. No dia 2 de Outubro de 2017 foi proferida a sentença recorrida no âmbito dos presentes autos, que terminou com o seguinte dispositivo:
"a) declarar ser inadmissível o procedimento criminal contra o arguido B..., no que respeita à prática do crime de violência doméstica sobre C... no período anterior a 28/09/2011, extinguindo-se de imediato o procedimento quanto a estes factos;
b) no que respeita ao período de 28-09-2011 a 19/04/2017, considerar não provada e absolver o arguido B... da prática, sobre C..., de factos suscetíveis de serem subsumíveis ao tipo do crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 do Cód. Penal, indeferindo por isso o requerimento para aplicação de medida de segurança, nos termos do disposto no artº 91º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal, aplicável a inimputável perigoso.
(…)"

2. Inconformado com tal decisão, o Ministério Público recorreu da mesma, concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos:
"A sentença de que ora se recorre fez uma incorrecta interpretação das seguintes normas jurídicas: art. 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e arts. 282.º n.º 3 e 283.º n.º 3 al. b), ambos do Código de Processo Penal.
De facto, o princípio ne bis in idem, com assento constitucional, no seu art. 29.º, n.º 5, estabelece a regra de que “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”.
No entanto, no caso sub judice, e ao contrário do que sustenta o Mmo. Juiz a quo, o Ministério Público ao fazer constar na acusação que o arguido já havia beneficiado da suspensão provisória do processo, pelo mesmo ilícito criminal e contra a mesma vítima, não pretendeu um novo julgamento relativamente aos factos englobados no despacho que determinou a aplicação do referido instituto (e daí que não tivessem sido articulados no referido despacho), e por conseguinte, em nenhum momento foi violado o referido princípio, o que nos leva a pugnar por uma incorrecta interpretação da norma que o consagra.
Com tal inclusão o Ministério Público teve precisamente a intenção contrária: a de chamar atenção para a existência de tal decisão, com vista a balizar os factos, evitando que fossem chamados à colação, no decurso das inquirições, em especial da vítima, comportamentos do arguido já incluídos no referido despacho de suspensão provisória do processo, como é normal neste tipo de situações, e que pudessem ser, indevidamente considerados.
Por outro lado, as mais elementares regras de apreciação da prova em crimes de violência doméstica, exigem a exposição de um quadro geral de actuação do agressor, com especial acuidade em casos como o em apreço (de inimputáveis perigosos), relativamente aos quais se requer a aplicação de uma medida de segurança, por haver fundado receio de que o comportamento daquele venha a repetir-se.
A circunstância do arguido já ter beneficiado da suspensão provisória do processo é um elemento relevante mas relativamente ao qual não é necessária nem possível a realização de um segundo julgamento, porque nem sequer foram descritos na acusação factos abrangidos por essa suspensão.
Do mesmo modo que se o arguido tivesse tido condenado, por sentença transitada em julgado, por crime da mesma natureza e contra a mesma vítima, faria todo o sentido fazer tal referência, por relevante, sem que a mesma importasse um segundo julgamento e a violação do referido princípio, indispensável no caso de o arguido ser reincidente.
Por outro lado, na sentença de que ora se recorre também se verifica uma incorrecta interpretação do art. 282.º n.º 3 do Código de Processo Penal, decorrente do princípio ne bis in idem, e que impede tão-somente que o Ministério Público venha a deduzir acusação relativamente a factos incluídos em anterior despacho de suspensão provisória do processo, o que claramente não se verificou na situação sub judice.
Na verdade, na acusação deduzida no âmbito do presente processo apenas foram articulados factos praticados pelo arguido após o período de suspensão, fazendo-se referência ao início dos problemas do casal logo após o casamento, por uma questão de contextualização dos mesmos, pelos motivos já acima explicitados, razão pela qual, e ao contrário do defendido pelo Mmo Juiz a quo, tal preceito não foi violado.
Por outro lado, verificou-se uma incorrecta interpretação do art. 283.º n.º 3 al. b) do CPP, ao se ter exigido, de forma abstracta, a articulação do elemento subjectivo.
Tal preceito legal estabelece que a acusação contém sob pena de nulidade, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível o lugar, o tempo e a motivação da sua prática.
Ora, esta motivação consta da acusação e foi dada como provada: doença psiquiátrica do arguido.
Perante esta particularidade, que altera em absoluto o processo formativo da vontade do arguido, este elemento não pode ser afirmado e nem exigido.
E a propósito não podemos deixar de fazer referência à argumentação utilizada Digna Procuradora-Adjunta, na motivação de recurso a que deu origem o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 10-07-2013, disponível em www.dgsi.pt, com a qual concordamos na íntegra:
“(…) No caso dos inimputáveis, existe uma perturbação que lhes afecta a capacidade de entender e de querer, impedindo-os de avaliarem a ilicitude dos actos praticados no momento em que actuam e se determinarem de acordo com essa avaliação.
Esta incapacidade para avaliarem a ilegalidade dos seus atos e entenderem o caráter ilícito do fato, retira-lhes o juízo de culpa ou seja, o elemento intelectual do dolo.
O arguido não podia, assim, querer praticar um ato ilícito típico, porque não estava capaz de avaliar essa ilicitude e se determinar de acordo com tal avaliação.
E porque, na estrutura do dolo, o elemento intelectual antecede sempre o elemento volitivo, já que só se pode querer aquilo que previamente se conheceu, estando ausente este elemento, estará necessariamente irradiado o elemento volitivo.
A exclusão do elemento volitivo, leva à exclusão da imputação dolosa, isto é, do dolo.
Ora, se o dolo está ausente, não poderá ser descrito na acusação, sob pena de estarmos a efetuar a descrição da conduta de um imputável.
Os elementos que terão de constar da acusação serão apenas:
- a descrição objetiva dos factos típicos do ilícito de violência doméstica que é imputado ao arguido B…, da leitura da qual se possa deduzir que a sua ação foi resultado de um ato voluntário da sua vontade e não de causas acidentais ou imprevistas externas,
- o substrato biopsicológico capaz de lhe excluir a culpa e, consequentemente, o dolo, consubstanciado na anomalia psíquica de que padece,
- a verificação do seu efeito normativo, traduzido na incapacidade de, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação e
- a possibilidade de vir a cometer outros factos da mesma natureza no futuro, capaz de evidenciar a sua perigosidade.
Na verdade, só estes requisitos é que são exigidos para a sujeição do agente a uma medida de segurança, pelo que somente eles é que terão de ficar comprovados e, por isso, ser descritos na acusação. (…)“.
E por conseguinte não se pode afirmar, como fez o Mmo Juiz a quo, que a acusação é manifestamente infundada, por falta de um elemento subjectivo, que em nenhum momento foi concretizado, mas que fundamentou a absolvição do arguido.
Neste sentido leia-se ainda o Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pág. 108, de acordo com o qual “o facto praticado pelo inimputável supõe a existência do ilícito-típico e das causas adicionais de punibilidade, mas exclui os elementos do tipo subjectivo do ilícito e os elementos da culpa”.
Do mesmo modo entendeu certamente a Mma. Juiz que recebeu a acusação (fls. 158-159), como de resto, vem sendo a prática judiciária.
Por outro lado, é também para nós inaceitável que se recorra a uma argumentação meramente teórica, onde se invocam figuras monstruosas e ataques de sonambulismo, que em nada têm com a realidade dos factos, para exigir, de modo abstracto, elementos que não constam da acusação, e assim absolver o arguido.
Na verdade, conforme se deu como provado: No momento da prática dos factos supra descritos, o arguido padecia de psicose delirante crónica de ciúme, sendo por força de tal anomalia psíquica incapaz de avaliar a ilicitude daqueles e se determinar de acordo com tal avaliação, e é possível a reiteração no tempo das condutas ilícitas do arguido na pessoa de seu cônjuge, como sucedeu.
Pelo exposto, os factos dados como provados (insultos e perseguições), ao longo de seis anos de vida em comum entre vítima e agressor, foram motivados pela doença psiquiátrica de que padece o arguido, não requerendo o mencionado preceito a articulação de elementos adicionais que demarquem a situação em apreço de outras, como as equacionadas na sentença, que nada têm a ver, sublinhe-se, com o caso concreto, razão pela qual não podem nem devem ser chamados à colação.
Ou dito de outro modo, os factos foram articulados na acusação pública de forma eficiente, resultando da sua própria estrutura que não há nenhuma causa de “vis absoluta” que justifique a sua prática, não sendo exigível que aquela contenha afirmações pela negativa (não actuou sob coacção, nem durante um ataque de sonambulismo, etc), conforme parece ser exigido pelo Mmo Juiz a quo.
Por último resta acrescentar que a orientação seguida no citado Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 10-07-2013, disponível em www.dgsi.pt, não tem força obrigatória geral e que a situação ali tratada tem particularidades específicas (designadamente tipo de doença do arguido, momento em que foi suscitada a alegada falta), razão pela qual aquela não pode, de forma acrítica, ser transposta para o caso concreto.
De facto, na situação sub judice não podemos afirmar que o arguido, perante a doença de que padece, que o mantém em internamento compulsivo (ainda que em regime de ambulatório), tivesse actuado com vontade de ofender a honra e consideração da vítima, ou de lhe perturbar a vida privada, a paz e o sossego, razão qual tais elementos não podiam ter constado da acusação, conforme pareceu exigir o Mmo. Juiz a quo.
Assim, deverá a decisão ora recorrida ser revogada, proferindo-se uma nova que condene o arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 do Código Penal, e lhe aplique uma medida de segurança."

2. Notificado da motivação do recurso, o arguido apresentou uma resposta, concluindo pela improcedência do recurso:
"O presente recurso está centrado na impugnação da decisão sobre a matéria relativa de que a acusação violou o principio ne bis in idem e que o despacho acusatório é manifestamente infundado,
Ora, salvo o devido respeito, a decisão do Tribunal a quo não merece qualquer reparo, uma vez que toda a prova produzida demonstrou que os factos constantes na acusação já tinham sido sindicados e objecto de um inquérito / processo crime na qual foi arquivado,
No que concerne a qualificação jurídica e aos elementos do tipo legal do crime, na acusação não se verifica a fundamentação de factos relativos ao elemento subjectivo. Na acusação não consta qualquer facto relativo ao elemento subjectivo do tipo legal de crime de que o arguido foi acusado,
Pelo exposto decidiu bem o tribunal a quo, na qual deu como provado de que a acusação violou o principio ne bis in idem e que o despacho acusatório é manifestamente infundado em virtude de não ter sido alegado nem provado qualquer facto relativo ao elemento subjectivo do tipo legal de crime de que o arguido foi acusado,
Termos em que deve a Sentença Objecto de Recurso ser confirmada, (…)"

3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo nos termos legais, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
4. Nesta instância, o Ministério Público teve vista dos autos (artigo 416º, nº 1, do Código de Processo Penal), emitindo parecer quanto ao mérito do recurso nos seguintes termos:
"(…) Por se concordar com a interposição do recurso aderimos aos fundamentos que dele constam, com excepção da menção à condenação do arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravada, uma vez que, atenta a sua inimputabilidade, o arguido terá sempre que ser absolvido pela prática do referido crime.
Pelo exposto, somos de parecer que se deverá ser dado provimento parcial ao recurso revogando-se a sentença recorrida que deverá ser substituída por outra que declare o arguido B... inimputável perigoso, que o absolva da prática, sobre C..., de factos susceptíveis de serem subsumíveis ao tipo do crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art.º 152°, n.º 1, als. a) e e) e n,° 2, do Código Penal, atenta a sua inimputabilidade, e, consequentemente, que lhe aplique uma medida de segurança de internamento, nos termos do disposto no art." 91.°, n.°s 1 e 2, do Código Penal.
Promovo que se dê cumprimento ao disposto no art.0 417.°, n.° 2 do C.P.P.(…)"

5. Tendo sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta por parte do arguido.
6. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].
Questões a decidir
Do thema decidendum dos recursos:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Das questões a decidir neste recurso:
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas, que sintetizam as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o thema decidendum:
Erros em matéria de direito:
a) quanto à interpretação do princípio non bis in idem; e
b) quanto à exigibilidade do elemento subjetivo do tipo legal de crime para efeitos de aplicação de uma medida de segurança;
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Extrato do texto da sentença recorrida:
O Ministério Público, em processo comum e com intervenção do Tribunal Singular, veio, relativamente a
B..., filho de D... e de E..., natural ..., Matosinhos, nascido a 1967-04-23, casado, pasteleiro, residente na Rua ..., nº ..., ..., Matosinhos,
requerer a imposição de medida de segurança de internamento, aplicável a inimputável perigoso, nos termos do disposto no artº 91º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal, pela prática, por parte de B..., de factos suscetíveis de integrarem o tipo do crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 do Cód. Penal, conforme acusação de fls. 122 a 125, que se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
(…)
Da violação do principio do ne bis in idem
Neste processo, o arguido B... foi acusado da prática de factos suscetíveis de serem subsumíveis ao elemento objetivo do tipo de violência doméstica.
Nos termos da acusação que foi deduzida, e tal como decorre dos documentos juntos ao processo, já anteriormente factos praticados pelo arguido tinham sido objeto de inquérito, que culminou com um despacho de suspensão provisória do inquérito.
E o arguido cumpriu as obrigações decorrentes desse despacho, tendo o inquérito sido arquivado.
Mas a acusação, aparentemente, aproveita-se de factos abrangidos pelo objeto desse inquérito que foi arquivado.
Refere a acusação, neste processo, além do mais:
“4. Os problemas entre o casal iniciaram-se logo após terem contraído matrimónio
(...)
6. Volvidos cerca de quatro anos sobre a referida data do matrimónio, a vítima apresentou a primeira queixa contra o arguido pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152.º n.º 1 e 2 do Código Penal, dando origem ao inquérito n.º 475/09.2PCMTS, que correu os seus termos neste Núcleo de Matosinhos do DIAP do Porto, suspenso provisoriamente entre 30-04-2010 a 30-04-2011, de acordo com as seguintes condições:
i. Não criar obstáculos a que a vítima vá sozinha às compras, possibilitando que ela o faça sempre que quiser;
ii. Não criar obstáculos a que a vítima vá sozinha para o seu local de trabalho, possibilitando que ela o faça sempre que quiser;
iii. Não criar obstáculos a que a sua mulher contacte e/ou visite os seus familiares e amigos, principalmente aos fins-de-semana, possibilitando que ela o faça sempre que quiser;
iv. Ter acompanhamento ela DGRS e continuar em tratamento médico no Hospital ..., seguindo a terapêutica que lhe for prescrita.
7. Por despacho datado de 28-09-2011, tal inquérito foi arquivado”.
Ora a inclusão de tais factos na acusação, das duas, uma: ou são elementos totalmente irrelevantes e, portanto, nunca poderiam constar da acusação; ou o Ministério Público deles se quis prevalecer para sustentar a acusação.
Partindo do pressuposto de que se trata desta última situação, então haverá que concluir que a inclusão de tais factos no libelo acusatório deste processo violam o princípio do Ne Bis In Idem, considerando o que consta no artº 282º, nº 3, do Cód. Proc. Penal.
Prossegue o processo, para apreciação dos factos posteriores a esta data.
*
Inexistem outras questões prévias, nulidades ou exceções que cumpra apreciar e que obstem ao prosseguimento do processo.
II. Fundamentação de Facto
a) Factos Provados
1. C... e o arguido são casados entre si desde 24 de Julho de 2004, tendo fixado residência na Rua ..., lote .., ....-... ... - Matosinhos, local onde sucederam parte dos factos referidos no número 4. e 5. dos factos provados.
2. Já anteriormente ali residiam em comunhão de teto, leito e mesa (união de facto).
3. Desta relação nasceram dois filhos: F... e G..., nascidos a 29-04-1997 e 2001-11-28, respetivamente.
4. Desde 28-09-2011 e até 19/04/2017 que o arguido, em datas não concretamente apuradas mas pelo menos uma vez de três em três meses, que dirigiu a C... as seguintes expressões, repetidamente e aos gritos, no interior da referida residência e na residência anterior: “Puta! Vaca! Mato-te”.
5. O arguido, diariamente, controlava os passos de C..., ligando-lhe dezenas de vezes para saber onde é que ela estava quando esta regressava do trabalho ou ia às compras.
6. No momento da prática dos factos supra descritos, o arguido padecia de psicose delirante crónica de ciúme, sendo por força de tal anomalia psíquica incapaz de avaliar a ilicitude daqueles e se determinar de acordo com tal avaliação, razão pela qual foi considerado inimputável (e perigoso) no cometimento dos mesmos em relatório de psiquiatria.
7. Atenta a anomalia psíquica de que padece e a gravidade dos factos descritos, é provável a reiteração no tempo das condutas ilícitas do arguido na pessoa de seu cônjuge, como sucedeu, pelo que existe fundado o receio de o arguido vir a cometer novos factos idênticos aos supra relatados.
8. O arguido não tem antecedentes criminais.
b) Factos não provados
1. H... e I... são filhos biológicos do casal.
2. O arguido refere diariamente as expressões referidas no número 4. dos factos provados.
3. No momento indicado no número 4. dos factos provados, o arguido dirigia as expressões “se não queres nada comigo é porque tens outro! não fazes pouco de mim! eu acabo com esta palhaçada”.
4. Desde 28-09-2011 e até 19 de Abril de 2017, pelo menos uma vez por ano, o arguido agridiu a C... mediante apertões no pescoço com ambas as mãos, empurrões contra a parede, bofetadas na face e pontapés no tronco e membros inferiores, de onde resultam hematomas, edemas escoriações e dores.
5. Uma dessas situações ocorreu no passado dia 14 de Junho de 2016, pelas 22H00, em que o arguido desferiu um pontapé em C... atingindo-a nas costas.
6. Da referida conduta do arguido resultou para C... hematoma e dor na referida zona do corpo.
7. Diariamente o arguido vai ao alcanço de C..., para a acompanhar no trajeto situado entre o trabalho desta e a casa onde habitam, tudo no concelho de Matosinhos.
8. Previamente, contacta-a telefonicamente, com vista a apurar onde a mesma se encontra, e assim que chega perto dela, diz-lhe: “onde é que tu estiveste? estiveste com o teu amante?”.
(…)
III. Enquadramento Jurídico
A acusação imputou ao arguido a prática de factos suscetíveis de integrar o elemento objetivo do tipo de violência doméstica agravada, p.p. pelo artº 152º, nº 1 al.s a), b) e c) e n.º 2, todos do Cód. Penal.
Estipula o artº 152º, nº 1 al.s a), b) e c), todos do Cód. Penal que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(...)
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau
(...).
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.
Por “maus-tratos físicos”, previstos na disposição transcrita, entendem-se as ofensas à integridade física.
Os maus-tratos psíquicos serão as agressões que, não cabendo nos maus-tratos físicos, se orientam no sentido de afetar seriamente a saúde mental e o equilíbrio psicológico da vítima.
Por sua vez, o artº 152º, nº 2, do Cód. Penal estipula que “2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos”.
Ora, neste processo provou-se que:
- Desde 28-09-2011 e até 19 de Abril de 2017 que o arguido, em datas não concretamente apuradas mas pelo menos uma vez de três em três meses, que o arguido dirige a C... as seguintes expressões, repetidamente e aos gritos, no interior da referida residência: “Puta! Vaca! Mato-te” (cfr. número 4. dos factos provados);
- O arguido, diariamente, controlava os passos de C..., ligando-lhe dezenas de vezes para saber onde é que ela estava quando esta regressava do trabalho ou ia às compras (cfr. número 5. dos factos provados).
Tais factos são suscetíveis de serem integrados no conceito de maus tratos psicológicos e, por isso mesmo, integradores do elemento objetivo do tipo da violência doméstica.
Sucede, porém, que, dos factos que constam da acusação, não se vislumbram os factos relativos ao elemento subjetivo do tipo.
É verdade que se provaram, igualmente, factos que conduzem à consideração da existência de verdadeira inimputabilidade. Mas a inimputabilidade, na teoria da infração, apenas afeta a apreciação do elemento culpa.
E a aplicação de uma medida de segurança por inimputabilidade pressupõe que a ação típica e ilícita esteja comprovada. No tipo, o elemento objetivo e subjetivo tem de ser alegado e comprovado.
Por outras palavras: antes de mais, para que a alguém possa ser aplicada uma medida de segurança, necessário é que se comprove que praticou factos típicos, embora não censuráveis por força da inimputabilidade.
Vejamos um exemplo.
Imaginemos que uma pessoa em situação de ser considerada inimputável, conduz uma viatura e atropela uma pessoa. Pode ser uma situação em que o inimputável quis embater na pessoa, porque, por exemplo, por força da sua condição psiquiátrica, via na pessoa um monstro que o ia atacar; ou pode-lhe simplesmente ter faltado os travões e o embate ser totalmente involuntário e nada ter a ver com a condição psíquica do agente. No primeiro caso poderemos ter um facto típico, não censurável por força da condição psiquiátrica, mas suscetível de conduzir à aplicação de uma medida de segurança; no segundo caso, pode nem sequer ser crime.
É preciso, por isso, que a imputação contenha este elemento de vontade. O elemento intelectual do dolo até pode estar afetado, mas o elemento volitivo tem de estar na acusação e se provar.
No caso concreto, o elemento subjetivo (quer dizer, no caso da violência doméstica, dolo, ou, pelo menos, o elemento volitivo deste) é essencial para a imputação. É o que permite concluir que o arguido não agiu em estado sonâmbulo, por exemplo.
Como refere o Tribunal da Relação do Porto de 10/07/2013 “a acusação necessita de abarcar a declaração expressa do elemento subjetivo do tipo de crime imputado, mesmo no caso em que o arguido seja ou possa ser declarado inimputável.
II – Sem essa alegação – que não pode ser suprida – a restante factualidade fica despida de relevância criminal, não podendo conduzir à condenação do arguido ou à aplicação de uma medida de segurança”.
Não fomos os subscritores do despacho que recebeu a acusação e, por isso mesmo, não sentimos qualquer melindre a salientar que, em nosso entender, a acusação era manifestamente improcedente desde o início.
Também não podemos agora suprir a deficiência apontada, desde logo por convicção própria. E também não o podemos fazer por força do acórdão de fixação de jurisprudência nº 1/2015, publicado no DR 18 SÉRIE I de 2015-01-27.
O arguido é, por isso, absolvido da prática de factos suscetíveis de integrar o tipo do qual foi acusado, indeferindo-se por isso o requerimento para aplicação da medida de segurança.
B) Do direito
Um recurso ordinário, versando matéria de direito deve incluir nas conclusões da motivação de recurso:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento da recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Tais exigências legais resultam do disposto no artigo 412º, nº 2, do Código de Processo Penal e foram satisfeitas, formalmente, pelo recorrente.
De jure
a) quanto à interpretação do princípio non bis in idem:
O recorrente insurge-se contra a fundamentação da decisão interlocutória proferida na sentença recorrida, na qual se decidiu que o processo apenas prossegue para a apreciação dos factos posteriores à data do arquivamento do inquérito n.º 475/09.2PCMTS, suspenso provisoriamente entre 30-04-2010 a 30-04-2011 e arquivado por despacho datado de 28 de Setembro de 2011.
Compreende-se, humanamente, esta reação do Ministério Público, na medida em que a fundamentação da sentença critica, de forma fundamentada, a inclusão de referência àquele inquérito na descrição factual da matéria da acusação, por entender tal opção violadora do disposto no artigo 283º, nº 3, do Código de Processo Penal e, consequentemente, do princípio non bis in idem.
Segundo o recorrente, a inclusão dessa referência não pretendia responsabilizar o arguido neste processo por quaisquer condutas abrangidas por aquele inquérito – que nem sequer descreveu na acusação proferida neste processo -, mas tão-somente, balizar no tempo a altura a partir da qual os factos descritos no libelo acusatório podem ser susceptíveis de serem valorados para efeitos de aplicação de uma medida de segurança ao arguido.
Em suma: o recorrente concorda com a decisão interlocutória em que o tribunal a quo decide não valorar quaisquer factos anteriores a 28 de Setembro de 2011 para efeitos de aplicação de medida de segurança, mas diverge da crítica à acusação plasmada na sua fundamentação.
Um recurso – seja em matéria de direito ou de facto – visa a alteração de uma decisão judicial e não a sua fundamentação.
Por conseguinte, a primeira questão suscitada no recurso não chega a integrar matéria controvertida susceptível de ser decidida por via de recurso, uma vez que não existe qualquer dissensão em relação à decisão.

b) quanto à exigibilidade do elemento subjetivo do tipo legal de crime para efeitos de aplicação de uma medida de segurança;
O Ministério Público deduziu uma acusação contra o arguido, requerendo a imposição de uma medida de segurança de internamento ao mesmo, aplicável a inimputável perigoso, nos termos do disposto no artigo 91º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal, pela prática de factos suscetíveis de integrarem o tipo do crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 do Cód. Penal.
Realizado o julgamento, a sentença recorrida apurou a factualidade provada e na fundamentação jurídica, concluiu que os factos provados integram o elemento objetivo do tipo de crime de violência doméstica agravada identificado pelo Ministério Público.
Em termos factuais também se provou que no momento da prática dos factos (integrantes dos elementos objetivos daquele tipo legal de crime), "o arguido padecia de psicose delirante crónica de ciúme, sendo por força de tal anomalia psíquica incapaz de avaliar a ilicitude daqueles e se determinar de acordo com tal avaliação, razão pela qual foi considerado inimputável (e perigoso) no cometimento dos mesmos em relatório de psiquiatria". Mais se provou que "atenta a anomalia psíquica de que padece e a gravidade dos factos descritos, é provável a reiteração no tempo das condutas ilícitas do arguido na pessoa de seu cônjuge, como sucedeu, pelo que existe fundado o receio de o arguido vir a cometer novos factos idênticos aos supra relatados.
Porém, o tribunal a quo não aplicou ao arguido qualquer medida de segurança, por entender que "a aplicação de uma medida de segurança por inimputabilidade pressupõe que a ação típica e ilícita esteja comprovada. No tipo, o elemento objetivo e subjetivo tem de ser alegado e comprovado."
Para sustentar a sua tese não identificou qualquer norma jurídica, desenvolvendo apenas aquele entendimento jurídico com base em princípios gerais e invocando a seu favor uma decisão de tribunal superior.
O recorrente motivou o seu recurso, sustentando que aquela decisão "não tem força obrigatória geral e que a situação ali retratada tem particularidades específicas (designadamente tipo de doença do arguido, momento em que foi suscitada a alegada falta), que impedem a sua transposição, de forma acrítica, para o caso concreto".
De resto, baseia a sua tese jurídica no entendimento doutrinário plasmado no Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de Paulo Pinto de Albuquerque, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pág. 108, de acordo com o qual “o facto praticado pelo inimputável supõe a existência do ilícito-típico e das causas adicionais de punibilidade, mas exclui os elementos do tipo subjectivo do ilícito e os elementos da culpa”, para refutar a decisão recorrida.
Acrescentou, principalmente, que no caso concreto em apreço "não podemos afirmar que o arguido, perante a doença de que padece (psicose delirante crónica de ciúme), que o mantém em internamento compulsivo (ainda que em regime de ambulatório), tivesse actuado com vontade de ofender a honra e consideração da vítima, ou de lhe perturbar a vida privada, a paz e o sossego, razão qual tais elementos não podiam ter constado da acusação".
Cumpre apreciar e decidir.
Considera-se pacificamente adquirido que o arguido teve condutas integrantes do tipo objetivo de crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 do Cód. Penal.
Mais se provou que no momento da prática de tais factos, o arguido padecia de psicose delirante crónica de ciúme, sendo por força de tal anomalia incapaz de avaliar a ilicitude daqueles e se determinar de acordo com tal avaliação, tendo sido considerado inimputável e perigoso no cometimento dos mesmos e sendo provável a reiteração no tempo de condutas ilícitas do arguido na pessoa do seu cônjuge, como sucedeu, existindo fundado receio do mesmo cometer novos factos idênticos.
Nos termos do disposto no artigo 20º, nº 1, "É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação.".
Como salientado por Jorge de Figueiredo Dias[3], "Nos termos do artigo 20º-1 é requisito da inimputabilidade, antes de mais, que o agente sofra de uma anomalia psíquica. (…) De um ponto de vista jurídico-penal a categoria mais indiscutível que reentra na conexão em análise continua a ser a das psicoses (…). Na concepção tradicional, a psicose deveria traduzir-se em um defeito ou processo corporal ou orgânico, somaticamente comprovável, caso se tratasse de uma psicose exógena (…) somente postulado ou suposto em caso de psicose endógena (por isso também chamada funcional), de que constitui exemplo paradigmático a esquizofrenia."
Segundo Ana Sofia Cabral, António Macedo e Duarte Nuno Vieira[4], "Compreende-se que assim seja, porquanto carece de lógica ou de sentido sancionar penalmente um indivíduo incapaz da autodeterminação que ordenamento jurídico requer para a responsabilidade criminal. Por outras palavras, sendo o inimputável insusceptível de ser objecto de um juízo de censura por ser incapaz de culpa, não poderá, por igual forma, estar sujeito à aplicação de uma pena criminal, na medida em que esta tem como seu pilar inderrogável a existência daquela mesma culpa."
Perante a factualidade provada, acima reproduzida, não resta qualquer dúvida que o arguido era inimputável no momento da prática do facto, tendo os factos integrantes dos elementos objetivos do tipo legal de crime de violência doméstica agravado sido cometidos em resultado da patologia de psicose delirante crónica de ciúme, sendo por isso incapaz de avaliar a ilicitude das suas condutas e se determinar de acordo com tal avaliação, tendo sido considerado inimputável e perigoso no cometimento de tais factos.
O sistema penal baseia a sua eficácia nas penas e nas medidas de segurança.
Como identificado por Figueiredo Dias[5], "Enquanto as primeiras têm a culpa por pressuposto e limite, as segundas têm na base a perigosidade (individual) do delinquente. (…) a indispensabilidade das medidas de segurança faz-se desde logo sentir num primeiro nível, ao nível do tratamento jurídico a dispensar aos chamados agentes inimputáveis (…) se o facto praticado ou a personalidade do agente revelarem a existência de uma grave perigosidade o sistema sancionatório criminal não pode deixar de intervir, sob pena de ficarem por cumprir tarefas essenciais de defesa social que a uma política criminal racional e eficaz sem dúvida incumbem. "
Com base nos factos considerados provados, constata-se que o arguido se encontrava incapaz de, no momento da prática dos factos, avaliar a ilicitude dos mesmos ou de se determinar de acordo com essa avaliação e, por essa razão, reconhece-se a sua inimputabilidade, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º1 do Código Penal.
A declaração de inimputabilidade exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena. Porém, pelos motivos acima referidos, essa circunstância não afasta, antes exige a aplicação de uma medida de segurança, uma vez que o agente do crime declarado inimputável revela um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de defender-se prevenindo o risco da prática por ele de futuros factos criminosos.
É por essa razão que o artigo 91.º, n.º1 do Código Penal estatui que Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”.
A aplicação das medidas de segurança tem assim como fundamento a perigosidade social do agente declarado inimputável e obedece aos princípios da legalidade, da tipicidade e da proporcionalidade, só podendo por isso ser aplicadas em julgamento com todas as garantias do processo criminal, constitucionalmente consagradas[6].
A questão controvertida suscitada no recurso tem a ver, precisamente, com o princípio da tipicidade: enquanto o tribunal a quo perfilha o entendimento de que devem provar-se os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime justificador da aplicação de medida de segurança, para o Ministério Público basta a prova dos seus elementos objetivos.
Germano Marques da Silva[7], esclarece, quanto às medidas de segurança, que "O princípio da tipicidade resulta da exigência da prática de um facto formalmente ilícito como condição sine qua non da aplicação da medida."
Entende-se que para efeitos de aplicação do disposto no artigo 91º, nº 1, do Código Penal, o facto ilícito típico aí mencionado integra apenas a conduta objetiva prevista no tipo legal de crime, não abrangendo os elementos subjetivos do mesmo, uma vez que a verificação destes depende da capacidade do agente ter culpa – o que pressupõe a sua imputabilidade e, por isso, afastaria a possibilidade de aplicação de medida de segurança à luz do aludido preceito legal -.
Neste sentido, também, o comentário de Paulo Pinto de Albuquerque[8], ao referir que “o facto praticado pelo inimputável supõe a existência do ilícito-típico e das causas adicionais de punibilidade, mas exclui os elementos do tipo subjectivo do ilícito e os elementos da culpa”.
A culpa do agente justifica e limita a aplicação de uma pena a um agente imputável.
Sendo inimputável, a aplicação de uma medida de segurança está dependente da prova que a sua conduta objetiva integrante de tipo legal de crime foi praticada pelo agente por causa da anomalia psíquica e, por isso, incapaz de avaliar a ilicitude da sua conduta e se determinar de acordo com tal avaliação.
O exemplo apontado na fundamentação da solução jurídica do tribunal a quo revela assim a sua inconsistência para legitimar a tese defendida na sentença, uma vez que permite exemplificar a aplicação da solução jurídica definida neste acórdão: se um condutor inimputável conduz uma viatura e atropela uma pessoa por causa da sua anomalia psíquica, sendo inimputável, sujeita-se a que lhe seja aplicada uma medida de segurança. Se o condutor atropelar uma pessoa por razões fortuitas e independentes da sua vontade – por exemplo, em caso de falha dos travões, sabotados por terceiro -, mesmo sendo inimputável, não será sujeito a medida de segurança, uma vez que o facto típico não aconteceu em resultado da anomalia psíquica.
Como referido por Ana Sofia Cabral, António Macedo e Duarte Nuno Vieira[9], acrescentando um elemento histórico de interpretação a respeito do princípio da tipicidade, a expressão do texto do Código Penal de 1982 "facto descrito num tipo legal de crime” foi substituída pela expressão “facto ilícito típico”, clarificando-se assim que o pressuposto da aplicação da medida de segurança de internamento é a prática, pelo inimputável, não de um ilícito típico completo, mas de um facto que possa ser considerado criminoso, salvo no que se refere aos elementos pertencentes ou decorrentes da culpa".
Num crime, a responsabilidade penal da conduta do agente da conduta ilícita e típica depende da sua culpa.
Quando essa conduta é de uma pessoa inimputável, a aplicação de uma medida de segurança depende da circunstância daquela ter ocorrido por causa da anomalia psíquica. Doutra forma não existirá perigosidade que legitime a medida de segurança[10].
Nestes termos – e tendo-se provado, em julgamento, que os factos integradores dos elementos objetivos do tipo legal de crime de violência doméstica agravado foram cometidos pelo arguido por causa da sua anomalia psíquica (psicose delirante crónica de ciúme)[11] -, a tese jurídica do recorrente merece provimento.

Consequências jurídicas:
a) da aplicação de medida de segurança:
Tendo-se provado que o arguido se encontrava incapaz de, no momento da prática dos factos, avaliar a ilicitude dos mesmos ou de se determinar de acordo com essa avaliação, reconhece-se a sua inimputabilidade, nos termos do disposto no artigo 20.º, n.º1 do Código Penal.
A declaração de inimputabilidade apenas exclui a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena.
Tal circunstancialismo determina a aplicação de uma medida de segurança sempre que o agente do crime declarado inimputável revele um grau de perigosidade tal que a sociedade tenha de defender-se prevenindo o risco da prática por ele de futuros factos criminosos: neste sentido, o estatuído no artigo 91.º, n.º1 do Código Penal, ao referir que “Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie”.
A aplicação das medidas de segurança tem assim como fundamento a perigosidade social do agente declarado inimputável e obedece aos princípios da legalidade, da tipicidade e da proporcionalidade, só podendo por isso ser aplicadas em julgamento com todas as garantias do processo criminal, constitucionalmente consagradas.
O Ministério Público submeteu o arguido a julgamento, requerendo em sede de acusação a aplicação de uma medida de segurança.
O tribunal recorrido, apoiando-se, nomeadamente, na perícia médico-legal de psiquiatria realizada, apurou de forma pacífica o seguinte:
a) que o arguido é inimputável; e
b) que o arguido é perigoso, sendo provável, em função da anomalia psíquica verificada, que o mesmo reitere as condutas ilícitas na pessoa do seu cônjuge.
Tais condutas integram os elementos objetivos do crime de violência doméstica agravado e, por conseguinte, os factos cometidos pelo arguido são graves, tendo em conta o seu grau de ilicitude bem evidenciado pela respetiva moldura penal.
É com base nestas premissas que deverá ser aplicada uma medida de segurança ao arguido, nos termos do disposto no artigo 91º, nº 1, do Código Penal, por se verificarem os respetivos pressupostos:
a) a prática de um facto ilícito típico;
b) por inimputável; e
c) haver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie – o mesmo é dizer que se trata de um inimputável perigoso -.
Resulta da lei que o arguido deve ser mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança.
Tendo em conta as especificidades do caso concreto, tal internamento deverá ter lugar em estabelecimento psiquiátrico que assegure o seu tratamento e, se possível, a cura.
b) da duração da medida de segurança:
Tal como as penas, a medida de segurança de internamento está sujeita ao princípio da proporcionalidade presente nos artigos 40º, nº3, 91º e 92.º do Código Penal e nos artigos 18º, nº 2 e 30º, nº2 da Constituição da República Portuguesa, revelando o seu regime jurídico certas particularidades emergentes da sua razão de ser.
Para se perceber a ratio legis nesta matéria, interessa recordar o escrito no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de Outubro de 1998 (processo nº 98/P894)[12]: "O internamento de inimputável perigoso tem em vista por um lado (…) por outro e o mais relevante fazer cessar no internado o estado de perigosidade criminal que deu origem ao internamento, fazendo regressar ao convívio da comunidade um cidadão apto a respeitar os direitos dela".
Integrando a conduta do arguido os elementos objetivos de um crime contra as pessoas (crime de violência doméstica agravado) mas punível, somente, com uma pena de 2 a 5 anos de prisão – sendo, portanto, não superior a cinco anos -, o internamento não tem a duração mínima de três anos prevista no artigo 91º, nº 2, a contrario sensu, do Código Penal).
Não estando em causa a prática de crime contra as pessoas ou de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a 5 anos, tem-se entendido que o limite mínimo do internamento é o limite mínimo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável, isto é, o limite mínimo da moldura penal[13] o que, in casu, significa dois anos (ex vi do artigo 152.º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 do Cód. Penal).
Isso não prejudicará o fim do internamento antes desse prazo, caso o tribunal (de execução de penas) verifique que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem, conforme resulta do disposto no artigo 92º, nº 1, in fine, do Código Penal.
Quanto ao limite máximo do internamento: sendo o internado submetido a um tratamento, este só deveria terminar, em princípio, quando a perigosidade criminal em causa tiver cessado.
Porém, o legislador fixou, como regra, um prazo máximo de internamento, findo o qual o internado tem de ser posto em liberdade - tenha ou não cessado o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem -, em obediência ao princípio constitucional consignado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
A duração máxima do internamento encontra-se assim prevista no número 2 do artigo 92º do Código Penal, correspondendo ao limite máximo da pena correspondente ao tipo de crime cometido pelo inimputável, ou seja, é de cinco anos no caso em apreço (ex vi do artigo 152.º, n.º 1 alíneas a) e c) e n.º 2 do Cód. Penal).
Tal como as penas, a medida de segurança está sujeita ao princípio da proporcionalidade presente não só nos artigos 40.º, nº3, 91º e 92.º do C. Penal mas também nos artigos 18.º, n.º2 e 30.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa.
Pelo exposto, entre o limite mínimo de dois anos e o máximo de cinco anos, o internamento poderá sempre findar quando o tribunal de execução de penas verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem, sendo essa apreciação obrigatória decorridos dois anos sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver mantido, se entretanto não for invocada a existência de causa justificativa da cessação do internamento – artigo 93.º, números 1 e 2, do Código Penal.
Por esse motivo, tal como sustentado por Figueiredo Dias[14], o Tribunal da condenação não poderá fixar um período fixo para a medida de internamento.
O arguido deverá assim ser sujeito a medida de segurança de internamento em estabelecimento psiquiátrico de tratamento e cura durante um período entre dois e cinco anos, a qual poderá sempre findar quando o Tribunal de Execução de Penas verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem, sendo essa apreciação obrigatória decorridos dois anos sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver mantido, se entretanto não for invocada a existência de causa justificativa da cessação do internamento, conforme resulta do disposto no artigo 93.º, números 1 e 2, do Código Penal -.
O recurso é, assim, julgado parcialmente provido.
*
Das custas:
Sendo o recurso do Ministério Público julgado parcialmente provido, com a oposição do arguido, não há lugar ao pagamento de custas – uma vez que apenas o decaimento total implicaria responsabilidade tributária para o arguido, ex vi do artigo 513º, 1, in fine, do Código de Processo Penal)
*
*
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III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores por unanimidade, em conferência, em julgar parcialmente provido o recurso do Ministério Público e, em consequência, revogar a sentença recorrida e:
a) declaram o arguido B... inimputável perigoso; e
b) aplicam a este arguido a medida de segurança de internamento em estabelecimento psiquiátrico de tratamento e cura durante um período entre dois e cinco anos, a qual poderá sempre findar quando o Tribunal de Execução de Penas verificar que cessou o estado de perigosidade criminal que lhe deu origem, sendo essa apreciação obrigatória decorridos dois anos sobre o início do internamento ou sobre a decisão que o tiver mantido, se entretanto não for invocada a existência de causa justificativa da cessação do internamento – artigo 93.º, números 1 e 2, do Código Penal -.
Sem custas.

Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 7 de Fevereiro de 2018.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
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[1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo aplicada de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[3] Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, págs. 530-531.
[4] Revista Julgar, nº 7, 1999, a págs. 189.
[5] Ibidem, a págs. 83 e 84.
[6] Acórdão da Relação de Lisboa, de 20 de Junho de 2017 (processo nº 3835/12.8TACSC.L1-5), relatado pela Desembargadora Maria José Machado e acessível na base de dados de jurisprudência disponibilizada na rede digital global em
http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/074d8ff8cc60c4158025814d005c052a?OpenDocument.
[7] Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Parte Geral, III, Teoria das Penas e das Medidas de Segurança, Verbo, 1999, pág. 132.
[8] Comentário ao Código Penal à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa 2008, pág. 108.
[9] Ibidem, a págs. 194.
[10] Na expressão de Figueiredo Dias, in op.cit. pág. 91.
[11] Resultou provado que no momento da prática dos factos supra descritos, o arguido padecia de psicose delirante crónica de ciúme, sendo por força de tal anomalia psíquica incapaz de avaliar a ilicitude daqueles e se determinar de acordo com tal avaliação, razão pela qual foi considerado inimputável (e perigoso) no cometimento dos mesmos em relatório de psiquiatria. Mais se provou que atenta a anomalia psíquica de que padece e a gravidade dos factos descritos, é provável a reiteração no tempo das condutas ilícitas do arguido na pessoa de seu cônjuge, como sucedeu, pelo que existe fundado o receio de o arguido vir a cometer novos factos idênticos aos supra relatados.
[12] Podendo o seu texto completo ser acedido no endereço:
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/06037c0477b05fab802568fc003baa48?OpenDocument.
[13] Paulo Pinto de Albuquerque, in op. cit., págs. 286 e 289.
[14] Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, pág. 475.