Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
676/08.0GBFLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM GOMES
Descritores: BURLA INFORMÁTICA
CÓDIGO SECRETO (PIN)
Nº do Documento: RP20130605676/08.0GBFLG.P1
Data do Acordão: 06/05/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I – No crime de Burla informática nas comunicações, do art. 221.º CP, tutela-se imediatamente a utilização direta e correta dos meios informáticos e mediatamente o património de outrem.
II – Comete o crime de Burla informática nas comunicações, do art. 221.º CP, aquele que, sem para tal estar autorizado pelo legítimo titular, utiliza o cartão de débito numa plataforma informática, procedendo a pagamentos ainda que para o efeito não seja necessária a marcação de qualquer código.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Recurso n.º 676/08.0GBFLG.P1
Relator: Joaquim Correia Gomes; Adjunta: Paula Guerreiro
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO

1. No PC n.º 676/08.0GBFLG do 3.º Juízo do Tribunal de Amarante, em que são:

Recorrente/Arguido: B…..
Arguido: C…..

Recorrido: Ministério Público
Recorrida/Demandante: D…..

foi proferida sentença em 2012/Set./09 a fls. 398-413, que condenou cada um dos arguidos pela prática, como co-autores materiais, de um crime de burla informática da previsão do artigo 221.º, n.º 1 e 5 do Código Penal numa pena de multa de 300 (trezentos) dias, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), num total de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).
Mais foram condenados a pagar à demandante, na procedência do Pedido de Indemnização Cível, a quantia de 1.141,12€ (mil, cento e quarenta e um euros e doze cêntimos).
2. O arguido B.... interpôs recurso por correio electrónico expedido em 2012/Out./20 a fls. 428-436 pedindo a “anulação da sentença do tribunal a quo e a sua substituição por outra que absolva o recorrente”, porquanto e em suma:
1.º) Do “boquejo” das declarações das testemunhas E….., F…., G….. e H…. e da prova documental existente nos autos não resulta provado que o recorrente B....tenha sido o portador do cartão de débito da ofendida (1-8);
2.º) Pelo contrário, das declarações das testemunhas supra mencionadas resulta precisamente o contrário, ou seja, que não foi o recorrente B....quem utilizou o cartão de débito (9-10);
3.º) Não resulta dos autos nem da prova produzida quer testemunhal quer documental que o recorrente B....tenha adoptado um comportamento que constitua um artifício, engano ou erro consciente, por intermediação da manipulação de um sistema de dados ou de tratamento informático, ou de equivalente utilização abusiva de dados (11, 12);
4.º) O recorrente não interferiu no resultado de tratamento de dados, não interveio nesse tratamento sem autorização nem efectuou estruturação incorrecta do programa informático ou utilização incorrecta ou incompleta de dados, nem utilizou dados sem autorização (13);
5.º) O recorrente não utilizou o cartão de débito para efectuar pagamentos nem conhecia dados que pudesse utilizar sem autorização, não se encontrando preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime, porquanto o recorrente não teve intenção de lesar património de terceiros, não usou de engano ou artificio (14-16);
6.º) Não resultou sem qualquer margem de dúvida que o recorrente cometeu o crime pelo qual vinha acusado, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao não considerar o princípio in dúbio pro reo, quando a matéria probatória não é de todo irrefutável e segura, bem pelo contrário, como supra se demonstrou, pelo que o afastamento de tal princípio consubstancia não só violação dos direitos de defesa do arguido, que não poder ser prejudicado pelo seu direito ao silêncio, mas violação, à luz da Constituição da República Portuguesa de Direitos Fundamentais do recorrente, o que desde já se alega, com as ulteriores consequências legais (17, 18);
7.º) E em face dos elementos constantes dos autos substituir a sentença proferida em primeira instância por outra da qual resulte a absolvição do recorrente B...., absolvição essa que deverá ser extensível ao pedido de indemnização civil, porquanto não se encontram preenchidos os requisitos cumulativos em que assenta o regime da responsabilidade civil extracontratual previstos no artigo 483.° do Código Civil (19);
3. O Ministério Público respondeu em 2013/Jan./16 a fls. 442-456 pugnando pela improcedência do recurso.
4. Remetidos os autos a esta Relação, onde foram registados em 2013/Mar./13, e indo com vista ao Ministério Público foi por este emitido parecer em m2013/Mar./18 no sentido de que o recurso não merece provimento.
5. Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, colheram-se os vistos legais, nada obstando ao conhecimento do mérito do recurso.
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O objecto do recurso passa pelo reexame da matéria de facto (a) e pelo cometimento do crime de burla informática (b).
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
Na parte que aqui releva, transcrevem-se as seguintes passagens:
“A. FACTOS PROVADOS
Da discussão da causa e com relevância para a sua justa decisão, resultou provada exclusivamente a seguinte matéria de facto:
I. No dia 29 de Novembro de 2008, pelas 12H30, no Estabelecimento comercial denominado …., sito em Freixo de Cima, na área e concelho desta comarca de Amarante, os arguidos encontraram o cartão de multibanco da ofendida D…., da conta que esta possuía na Caixa Geral de Depósitos, com o n.º 040000039000, e apoderaram-se do mesmo.
II. Assim, sem o conhecimento e autorização desta, de acordo com um plano previamente traçado e em comunhão de esforços, utilizaram-no como forma de pagamento das seguintes compras, realizadas nas datas, locais, estabelecimentos comerciais e valores que de seguida se discriminam:
DATA HORA LOCAL COMERCIANTE VALOR
29-11-2008 14:38 I…… € 10
29-11-2008 12:16 J…. Loja 30 € 9,18
29-11-2008 14:41 I….. € 1300
29-11-2008 12:48 K….. € 20
29-11-2008 16:04 L….. Loja Vestuário € 187
29-11-2008 16:40 M….. 2 € 234
29-11-2008 16:47 São M….. 2 € 135
29-11-2008 18:43 N…. € 393,60
29-11-2008 18:48 N…. € 196,80
29-11-2008 19:39 O….. € 509,90
29-11-2008 19:43 O…. € 189,90
30-11-2008 10:45 P….. € 1,75
30-11-2008 11:31 Q….. € 69,30
30-11-2008 11:41 R….. € 91,12
30-11-2008 12:06 S….. € 290,90
30-11-2008 12:25 T….. € 340
30-11-2008 12:49 Q….. € 300,91
30-11-2008 13:42 U….., Lda. € 350,40
30-11-2008 14:05 R….. € 271,12
30-11-2008 14:07 R….. € 187,60
01-12-2008 14H42 P….. € 3,55
01-12-2008 9:28 V….. € 50, TOTAL € 5.141,12
III. Os pagamentos efectuados destinaram-se à aquisição de vários bens, designadamente, peças de vestuário, calçado e telemóveis, tais como:
1. Um telemóvel de marca Nokia, mod. E65, com o EMEI 358631014122014;
2. Um carregador de telemóvel;
3. Um cartão de memória de 1GB;
4. Uma caixa do telemóvel referente ao telemóvel de marca Nokia, mod. E65;
5. Vários livros de instruções;
6. Cabo USB de marca Nokia;
7. Auriculares;
8. Adaptador do cartão de memória;
9. Um par de calças de ganga azul, tamanho 34/ 134, de marca “Marlboro Classics”;
10. Um par de calças de ganga azul escura, tamanho 4 6, de marca “Lightningbolt”;
11. Um par de calças de ganga azul escura, tamanho 40, de marca “Lightningbolt”;
12. Um blusão de cor verde, marca “Lion Porches”;
13. Um blusão de criança de cor verde, de marca “mayorla”, 126 cm 8”;
14. Um par de ténis de criança de marca “Vans”;
15. Um par de botas de marca “Rockport”, de cor castanha, tamanho 43;
16. Um par de sapatos hydro-shield de cor castanha, tamanho 43;
17. Um par de botas de senhora, de marca ‘’ Roxy”, tamanho 38;
18. Uma camisola de homem, em malha de cor laranja, de marca Giannone, tamanho S;
19. Uma camisola de homem, em malha de cor Azul, de marca Giannone, tamanho S;
20. Uma camisola de homem, em malha de cor Verde, de marca Giannone, tamanho S;
21. Uma camisola de homem, em malha de cor Castanha, de marca Giannone, tamanho S;
22. Uma camisola de homem em malha de cor Castanha com padrão em xadrez, de marca Lion of Porches, tamanho S;
23. Um par de calças de homem, marca Lightning Bolt, de cor cinza escuro, tamanho 40;
24. Um cinto de homem em pano de cor verde, com fivela em metal, de marca Lightning Bolt;
25. Um casaco de homem, em malha de cor Branco, marca Victor Emmanuele, tamanho S;
26. Um par de calças de homem, marca Lion of Porches, em ganga de cor cinza escuro, tamanho 31;
27. Um casaco de senhora, marca Gaudi chic, em napa de cor preta, tamanho 46;
28. Um casaco de senhora, marca Volcom, em tecido de cor lilás, tamanho M;
29. Um casaco de homem, marca DC Shoes, em tecido de cor preto, tamanho S/P;
30. Um casaco de homem, marca O’ Neill, em tecido de malha polar de cor preto, tamanho S;
31. Uma camisola de criança, marca Mayoral, em malha de cor castanha,
tamanho 4;
32. Um par de calções de criança, marca AKRKIDS, em tecido de cor castanho, tamanho 2;
33. Um par de calças de criança, marca Petit Patapon, em tecido de cor verde, tamanho 4/5;
34. Um par de calças de criança, marca Mayoral, em tecido de cor castanho, Tamanho 4;
35. Uma camisola de criança, marca Akrkids, em tecido de cor castanho com figuras em várias cores, tamanho 2;
36. Um par de sapatinhas, marca Fallen, de cor preta, tamanho 42;
37. Um par de sapatilhas, marca DVS, de cor preta, tamanho 39;
38. Uma camisola de malha de cor cinzenta de marca “Ò DE MAI”, tamanho 3.
IV. No dia 15 de Dezembro de 2008, os objectos atrás descritos sob os n.os 1-17 encontravam-se no interior da residência do arguido B.... e os objectos descritos sob as alíneas 18-38 encontravam-se na residência do arguido C…...
V. A utilização do referido cartão prescindia da marcação de qualquer código.
VI. Os arguidos sabiam que o cartão bancário acima identificado não lhes pertencia e que ao agir da forma descrita, impediam que a seu verdadeira dona o recuperasse e utilizasse, mas quiseram isso mesmo.
VII. Utilizaram, de acordo com um plano previamente traçado e em comunhão de esforços, o referido cartão com o propósito de com ele adquirem bens, o que conseguiram, no montante global de € 5.141,12 (cinco mil, cento e quarenta e um euros e doze cêntimos), de que se locupletaram à custa do património da ofendida.
VIII. Ao servirem-se do cartão de débito da ofendida como meio de pagamento, sem o conhecimento e autorização desta, ludibriaram o sistema bancário, que pressupôs,
erroneamente, que a ordem era emanada por aquela (ou por alguém com o seu consentimento), e em consequência, autorizou que os respectivos pagamentos fossem
efectuados.
IX. Agiram sempre de forma livre deliberada e conscientemente, bem sabendo que as
suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
X. A actuação dos arguidos causou à ofendida um prejuízo patrimonial de € 5.141,12 mas desse valor a demandante já recebeu o valor de € 5.000 mas a ofendida sentiu medo, receio de retaliações e insónias, tendo necessidade de tomar comprimidos para dormir, o que lhe provocou cansaço e perturbação psíquica durante o dia, prejudicando-a no exercício da sua profissão de professora.
XI. O arguido C….. não tem antecedentes criminais e o arguido B.... já tem diversas condenações em penas de multa, prisão substituída por multa e prisão suspensa por vários crimes patrimoniais como emissão de cheque sem provisão e abuso de confiança e ainda desobediência e condução em estado de embriaguez.
XII. Dos relatórios sociais junto aos autos, cujo teor se dá por reproduzido, ressuma que os arguidos estão bem inseridos socialmente, exercendo profissões com denodo e cuidando das suas famílias razão pela qual o Tribunal afasta desde já uma opção por penas mais gravosas que a pena de multa.
XIII. O arguido B....exerce a profissão de comerciante de automóveis, recebendo à comissão num negócio que como se sabe está em franca recessão. A esposa é engenheira florestal e aufere € 1.090 mensais. Têm 2 filhos menores de 8 e 12 anos. Estudou até ao 7.º ano de escolaridade.
XIV. O arguido C…. trabalha como electricista auferindo cerca € 500 euros mensais. A esposa é auxiliar numa creche e aufere o SMN. Têm 2 filhas menores. Estudou até ao 6.º ano de escolaridade.

B) FACTOS NÃO PROVADOS
I. Não se logrou provar quaisquer outros factos relevantes para a boa decisão da causa, tendo-se firmado todos os factos da acusação e do pedido cível..

C) MOTIVAÇÃO
O Tribunal fundou a sua convicção, quer no conjunto da prova testemunhal produzida em audiência, quer nos documentos juntos aos autos, todos devidamente examinados em audiência, confrontados e conjugados com aquela prova testemunhal.
Para prova dos factos constantes supra, o Tribunal atendeu às declarações da queixosa-lesada, que depôs com isenção e rigor.
Relativamente aos antecedentes criminais, o Tribunal formou a sua convicção nos certificados de registo criminal. Relativamente à situação laboral do arguido e às suas condições de vida, o Tribunal atendeu às declarações do arguido B.... e aos relatórios sociais.
O arguido B.... remeteu-se ao silêncio quanto à matéria da acusação e o arguido C…. foi julgado na ausência por se encontrar a trabalhar no Alentejo.
O que se provou em audiência permitiu inferir, logicamente e de forma irrefutável, a conexão dos arguidos com os factos por que foram acusado, pelo que, em nome das regras do senso comum, foram os mesmos substancialmente dados como provados, em conjugação com os documentos juntos aos autos (extractos e informações bancárias).
Façamos ainda o bosquejo pela prova testemunhal:
- D…., a demandante, que explicou que a última vez que usou o cartão foi na J…. do Alto da Lixa e que ficou a saber que há caixas do BPN e terminais multi-banco onde se pode usar o cartão de débito sem código, premindo a tecla OK duas vezes, daí o providencial ressarcimento pela seguradora da CGD. Depois da deslocação à J…. ficou dois dias em casa pois estava mau tempo e ao querer pagar uma conta deu pela falta do cartão, na sua óptica, esquecido na caixa da J…. ou subtraído nessa loja.
- E….., cabo-chefe do NIC da GNR, que narrou que visualizou o filme de videovigilância de uma loja de roupa de criança em Amarante, onde observaram as características físicas dos utilizadores do cartão na compra de roupa e onde lhes foi fornecida a matrícula do carro onde os 2 indivíduos se deslocavam. Colheram a informação de que tal carro era conduzido habitualmente pelo arguido B…., o qual, andava sempre acompanhado pelo arguido C….., pois na altura os dois efectuavam trabalho a favor da comunidade. Fizeram buscas domiciliárias e encontraram na casa do arguido B....o vestuário adquirido na referida loja em Amarante onde o cartão foi usado, tendo o arguido B....confirmado ter ali usado o cartão de débito. Confirma que no vídeo o arguido C…. colaborou nas compras.
- W……, sogro do arguido C.... e dono de uma ourivesaria onde o cartão foi usado, por intermédio da filha da testemunha e o qual se mostrou desagradado com este processo, revelador do carácter duvidoso das actividades em que o seu genro esteve envolvido e com quem ele cortou relações.
- F….., empregada do estabelecimento de roupa para criança, a …., sita nas …. em Amarante. Confirmou que o arguido B…., acompanhado por outro indivíduo, carregou roupa de criança, sendo o acompanhante quem apresentou o cartão para pagar, sem marcar código e clicando na tecla OK duas vezes. Recorda-se bem do arguido B...., identificando-o em audiência, pois que o viu no acto da compra da roupa e posteriormente na troca de vestuário infantil cujo tamanho não serviu.
- H….., a qual vendeu 2 telemóveis Nokia, no valor aproximado de 500 euros (recorda-se da ocasião por ser uma boa venda que lhe granjeou uma boa comissão) e que identificou na fotografia de fls. 96 dos autos, o arguido C...., como o comprador dos mesmos.
- G……, que identificou o arguido C.... na foto de fls. 96 como o comprador de 3 telemóveis topo de gama e 2 cartões de memória, o qual, usou o cartão sem marcar qualquer código e teclando apenas e duplamente o OK.
- X….., marido da demandante que se pronunciou pelo sumiço de mais de € 5.000 euros da conta que continha precisamente os dois salários do casal, ambos professores e os respectivos subsídios de Natal.
- Y….., amiga e colega da demandante que se pronunciou pelos padecimentos morais que a afligiram.
- Z….., cunhado da demandante, que explicou toda a facilidade do sistema bancário que deixou a queixosa inerme e que por isso mesmo a CGD se apressou a ressarcir, pois tal virtualidade do cartão, não lembra a ninguém.
Por fim valeram de forma iniludível todo o acervo documental dos autos, com realce para aditamento de fls. 9, ficha biográfica de fls. 19, lista da CGD de fls. 21, facturas de fls. 22 e 23, fichas de inspecção de fls. 24 e 25, facturas de fls. 26 a 34, fotos de fls. 35 a 41, auto de busca domiciliária de fls. 65 à casa do arguido B.... onde foram encontrados vários artigos comprados com o cartão, auto de apreensão de fls. 68, fotos de fls. 79 a 84, auto de busca domiciliária de fls. 85 à casa do arguido C...., onde foram encontrados vários artigos adquiridos com o cartão, foto de fls. 96 pela qual as testemunhas vendedoras reconheceram o arguido C...., fotos de fls. 97 a 100, cota de fls. 118, foto de fls. 119 onde o Cabo E…. reconhece o arguido C.... a inserir e a usar o cartão e o arguido B....a carregar a roupa comprada, relatório final de fls. 146, CRCs de fls. 199 e 218 e relatórios sociais de fls. 359 e 363.
Análise Crítica: Numa palavra, da prova testemunhal resultou a compra e uso do cartão, em simultâneo pelos arguidos e, depois os artigos comprados foram encontrados nas residências de ambos. Prova mais irrefutável, em forma de puzzle perfeito, não pode haver.”
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2. Os fundamentos do recurso
a) Reexame da matéria de facto
Decorre do disposto no art. 428.º, n.º 1 do Código de Processo Penal[1], que as relações conhecem de facto e de direito, acrescentando-se no art. 431.º que “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do n.º 3, do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.” Por sua vez e de acordo com o precedente art. 412.º, n.º 3, “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas”. Acrescenta-se no seu n.º 4 que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Nesta conformidade e para se proceder à revisão da factualidade apurada em julgamento, deve o recorrente indicar os factos impugnados (i), a prova de que se pretende fazer valer (ii), identificando ainda o vício revelado pelo julgador aquando da sua motivação na livre apreciação da prova (iii).
Convém, no entanto, precisar que o reexame da matéria de facto não visa a realização de um novo julgamento, mas apenas sindicar aquele que foi efectuado, despistando e sanando os eventuais erros procedimentais ou decisórios cometidos e que tenham sido devidamente suscitados em recurso (Ac. do STJ de 2005/Jun./16 (Recurso n.º 1577/05), 2006/Jun./22 (Recurso n.º 1426/06) em www.dgsi.pt). Por outro lado, o recurso sobre a matéria de facto não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso de todos os elementos de prova que foram produzidos e que serviram de fundamento à sentença recorrida, mas apenas e tão-só a reapreciação da razoabilidade da convicção formada pelo tribunal “a quo”, a incidir sobre os pontos de factos impugnados e com base nas provas indicadas pelo recorrente (Ac. STJ de 2007/Jan./10, www.dgsi.pt). Daí que esse reexame esteja sujeito a este ónus de impugnação, sendo através do mesmo que se fixam os pontos da controvérsia e possibilita-se o seu conhecimento por esta Relação (Ac. do STJ de 2006/Nov./08, www.dgsi.pt).
Como é sabido e muito embora, segundo o disposto no art. 127.º, o tribunal seja livre na formação da sua convicção, existem algumas restrições legais ou condicionantes estruturais que o podem comprimir. Tais restrições existem no valor probatório dos documentos autênticos e autenticados (169.º), no efeito de caso julgado nos Pedido de Indemnização Cível (84.º), na prova pericial (163.º) e na confissão integral sem reservas (344.º). Aquelas condicionantes assentam no princípio da legalidade da prova (32.º, n.º 8 C. Rep.; 125.º e 126.º) e no princípio “in dubio pro reo”, enquanto emanação da garantia constitucional da presunção de inocência ([32.º, n.º 2, C. Rep.; 11.º, n.º 1 DUDH[2]; 6.º, n.º 2 da CEDH[3]). Por tudo isto, este princípio da livre apreciação das provas não tem carácter arbitrário nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado, estando ainda sujeito aos princípios estruturantes do processo penal, como o da legalidade das provas e “in dubio pro reo”.
Assim e para além da violação daquelas restrições legais ou das apontadas condicionantes estruturais, o juízo decisório da matéria de facto só é susceptível de ser alterado, em sede de recurso, quando a racionalidade do julgamento da matéria de facto corresponda, de um modo objectivo, a um juízo desrazoável ou mesmo arbitrário da apreciação da prova produzida.
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O arguido recorrente não chega a especificar os factos que pretende suscitar o reexame, muito embora se compreenda que seja a generalidade dos mesmos, quando está em causa a sua participação no uso do cartão aqui em casa, na aquisição dos diversos objectos. Para o efeito invoca os depoimentos das testemunhas E…., F….., G….. e H….. e a prova documental existente nos autos.
Porém, do depoimento da testemunha F….., empregada da “…”, que é um estabelecimento de roupa para criança, resulta que o arguido B...., conjuntamente com uma outra pessoa, transportou roupa de criança aí adquirida, sendo o seu acompanhante quem apresentou o cartão para pagar, sem marcar código e clicando na tecla OK duas vezes. Aliás, o próprio arguido B...., participou no acto da compra dessa roupa e veio posteriormente proceder à troca de vestuário infantil cujo tamanho não serviu. Por sua vez, a testemunha Cabo E….. perante a foto de fls. 119, reconhece o arguido C.... a inserir e a usar o cartão e o arguido B....a carregar a roupa comprada. Tudo isto dá para perceber que estes arguidos actuaram em conjunto. Daí que não exista nenhuma censura a fazer à sentença recorrida.
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b) O crime de burla informática e nas comunicações
Tal ilícito da previsão do artigo 221.º, n.º 1 do Código Penal pune “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, causar a outra pessoa prejuízo patrimonial, interferindo no resultado de tratamento de dados ou mediante estruturação incorrecta de programa informático, utilização incorrecta ou incompleta de dados, utilização de dados sem autorização ou intervenção por qualquer outro modo não autorizada no processamento”, agravado pelo seu n.º 5, face à redacção dada pela Lei n.º 65/98, de 02/Set., através da sua al. a), ou seja, quando o prejuízo for de “valor elevado”.
Por sua vez, o bem jurídico aqui tutelado continua a ser – como sucede com qualquer crime de burla – o património globalmente considerado, entendido este como qualquer bem, interesse ou direito economicamente relevante que o integre, podendo a sua lesão incidir em qualquer desses seus elementos. Porém, o que distingue a burla informática do tradicional crime de burla é que enquanto naquele ilícito a lesão do património ocorre mediante a utilização directa que o agente faz dos meios informáticos, sem necessidade de qualquer intervenção de terceiros, no segundo (artigo 217.º) o acostumado artifício fraudulento, causador de erro ou que provoca engano, é sempre indutor à prática de actos por parte de outrem.
A acção típica deste ilícito passa pela interferência no tratamento de dados ou no programa informática, pela utilização incorrecta ou indevida dos dados que permitem o acesso a essa plataforma informática ou simplesmente através de qualquer outro modo não autorizado.
Ora resulta provado que ambos os arguidos, em conjugação de esforços e de comum acordo, utilizaram o cartão de débito aqui em causa, ainda que para a utilização do mesmo para efectuar pagamentos não fosse necessário a marcação de qualquer código. Basta assim, a utilização indevida dessa cartão por quem não seja o seu legítimo titular e não esteja autorizado para o efeito, para que se considere uma actuação indevida e fraudulenta na plataforma informática que regula o débito de pagamentos mediante o respectivo cartão. Daí que também neste caso, o suscitado fundamento de recurso não tenha igualmente êxito.
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III. DECISÃO
Nos termos e fundamentos expostos, nega-se provimento ao presente recurso interposto pelo arguido B...., e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em quatro (4) Ucs. (513.º n.º 1 e 514.º n.º 2 do Código de Processo Penal e art. 87.º n.º 1 al. b) do Código das Custas Judiciais).

Notifique.

Porto, 05 de Junho de 2013
Joaquim Arménio Correia Gomes
Paula Cristina Passos Barradas Guerreiro
___________________
[1] Doravante são deste diploma os artigos a que se fizer referência sem indicação expressa da sua origem.
[2] Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 Dezembro de 1948.
[3] Convenção Europeia dos Direitos Humanos, que foi aprovada, para ratificação, pela Lei n.º 65/78, de 13/Out.