Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
90/14.9TYVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: PLANO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
REMUNERAÇÃO DO ADMINISTRADOR JUDICIAL
SOCIEDADES DE ADMINISTRADORES DA INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP2016091590/14.9TYVNG.P1
Data do Acordão: 09/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 69, FLS.148-159).
Área Temática: .
Sumário: I - Não obstante o cunho individual/pessoal que marca o exercício da atividade do Administrador Judicial no PER e na Insolvência, o seu exercício, quando desenvolvido no âmbito de uma SAI (sociedade de administradores da insolvência) de que aquele é sócio, determina que o pagamento devido a título de remuneração da sua função e o reembolso das suas despesas sejam efetuados à própria sociedade.
II - Se o juiz ordena, por despacho, que tal pagamento seja efetuado ao Administrador Judicial e é elaborada a respetiva conta de custas que contempla tal decisão, sem recurso nem reclamação nos prazos legais, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre tal questão e, transitada tal decisão, não é admissível que, no processo, se efetue o pagamento a favor da SAI, pessoa diferente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 90/14.9TYVNG.P1 (apelação)
Comarca do Porto – V. N. Gaia - Inst. Central – 2ª Secção Comércio

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides de Almeida
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I.
Neste processo especial de revitalização[1] requerido pela sociedade B…, Lda., em que foi nomeado Administrador Judicial Provisório[2] o Sr. Dr. C…, os autos seguiram a sua tramitação, com elaboração de um plano de recuperação que foi aprovado pelos credores. Tal plano foi homologado por sentença que transitou em julgado.
Nessa sequência, o AJP requereu que fosse fixada a sua remuneração (fl.s 466 e 467) e a Ex.ma Juiz fixou-a pelo despacho de fl.s 485 na quantia de € 2.000,00, determinando também o reembolso das despesas apresentadas.
A conta de custas foi elaborada no dia 21.10.2015 e, por requerimento de 5.2.2016, o AJP requereu que lhe fosse efetuado o pagamento pelo IGFEJ, I.P. referente à remuneração e despesas que considerou serem-lhe devidas pelo exercício das suas funções no processo.
Por despacho de 9.3.2016, ordenou-se que se efectuasse tal pagamento, conforme requerido.
Veio então o AJP invocar a sua qualidade de sócio da sociedade C1… – Sociedade de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda. e requerer a admissão de fatura a emitir pela referida sociedade, informando sobre o respectivo NIPC, o NIB, o IBAN e a categoria de rendimentos para efeitos fiscais.
O Ministério Público opôs-se a que o pagamento dos serviços prestados pelo AJP fosse efectuado àquela sociedade, no essencial, por ser pessoa diferente da que foi nomeada e prestou os serviços forenses a remunerar.
Por despacho subsequente, a Ex.ma Juiz entendeu que, por a indicação da qualidade de sócio da sociedade em causa constar da lista oficial, conforme art.º 6º, nº 1 e nº 2 da Lei nº 22/2013, de 26 de fevereiro, e considerando o que resulta do Decreto-lei nº 54/2004, de 18 de março, não há qualquer obstáculo à emissão da nota nos termos requeridos, tendo deferido o requerido.

Inconformado, apelou o Ministério Público formulando a seguinte conclusões:
«1.º No atual regime legal resultante da conjugação do CIRE e do EAJ apenas são passíveis de ser nomeados como administradores judiciais pessoas singulares que tenham cumprido os requisitos de admissão especificados no EAJ e que se encontrem inscritos na lista da comarca para cujos processos de insolvência ou revitalização pretendam ser nomeados.
2.º A despeito de existirem normas avulsas que preveem a possibilidade de os administradores judiciais se agregarem em sociedades civis sob a forma comercial cujo objeto exclusivo consista no exercício das funções de administrador da insolvência, a nomeação circunscrita a pessoas singulares inscritas nas listas e a pessoalidade do exercício das mesmas funções associada à ausência de normas legais que definam qualquer competência ou ato passível de ser exercido no âmbito dos processos do CIRE por sociedades de administradores, inviabiliza o exercício do objeto de sociedades daquela natureza, sendo este um exemplo típico, da previsão do artigo 6.º do CSC, em que a capacidade da sociedade não compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, pois os únicos que se integrariam nesse fim reportam-se à prática de atos que lhe são vedados por lei e inseparáveis da personalidade singular dos seus sócios.
3.º Na verdade a nomeação do administrador judicial é da competência exclusiva do juiz, a partir das listas organizadas por cada comarca, listas essas que apenas possuem a indicação de pessoas singulares.
4.º Além de as nomeações serem verdadeiramente intuitu personae, o administrador judicial tem de exercer pessoalmente as funções, como resulta do artigo 55.º do CIRE, apenas podendo substabelecer a prática de certos atos noutra pessoa singular também ela administradora da insolvência e inscrita nas listas respetivas.
5.º Por efeito da nomeação como administrador judicial, o respetivo colaborador na administração da justiça fica intitulado ao recebimento de honorários e ao ressarcimento de despesas, como contrapartida do desempenho funcional no processo.
6.º Salvo exceções contadas, como a do artigo 32.º do CIRE ou as relativas ao custo de um plano de insolvência, não incumbe ao juiz, nem às partes, muito menos ao administrador judicial, definir as circunstâncias quantitativas ou qualitativas nas quais irá decorrer a sua remuneração, quer por existirem normas expressas que fixam remunerações fixas e variáveis em função da obtenção de determinados objetivos, quer por se tratar de uma relação estranha ao princípio da liberdade contratual.
7.º No contexto de um processo especial de revitalização no qual o juiz nomeou determinado administrador judicial provisório e lhe fixou remuneração e despesas no total de € 2.513,15, valor inserido como encargo em conta de custas no qual o mesmo administrador surge identificado para efeitos fiscais como pessoa singular sujeita a IRS com retenção na fonte, sem que tenha ocorrido impugnação alguma quer do despacho, quer da conta, existe caso julgado quanto ao montante e destinatário do pagamento, traduzindo sua violação um subsequente despacho judicial que defira o pagamento a uma sociedade de administradores judiciais.
8.º Ora, atribuindo este despacho um novo direito a uma sociedade – dotada de autonomia, por ser outra pessoa jurídica – não só não extingue o direito subjetivo resultante do despacho que fixou a remuneração ao concreto administrador judicial nomeado e posteriormente consolidado na referida conta de custas, como duplica as responsabilidades patrimoniais a cargo do IGFEJ, pois que a satisfação da nota de honorários a favor de uma sociedade que não é o administrador judicial no processo em que são devidos não é pagamento liberatório e encontra-se irregularmente realizado à luz do disposto nos artigos 762.º, 769.º, 787.º e até 813.º do Código Civil.
9.º A assunção por um administrador judicial de um número de identificação fiscal identificativo de uma entidade diversa da sua pessoa, no caso, o NIPC de uma sociedade civil em forma comercial de que é sócio, para efeitos de solicitar que em nome desta seja “faturado” um pagamento que, na realidade, a si como pessoa singular é devido, estando em causa dinheiros públicos tutelados pelo Ministério da Justiça, além de ilegal, atenta contra os “princípios da autenticidade, veracidade, univocidade e segurança dos dados identificadores dos contribuintes” (artigo 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 14/2013 de 28/01), ao mesmo tempo que poderá aproximar-se da conceitualização presentemente definida para crimes de uso de documento falso, de recebimento indevido de vantagem ou de fraude fiscal.
10.º Tal atitude é também idónea a configurar simulação relativa (artigo 241.º CC), na medida em que, efetivamente, o requerente vem pedir ao tribunal que pague os honorários que a si são devidos, mas através de uma dissimulação de que é promotor e que consiste na interposição de uma entidade jurídica terceira que vai desvirtuar o sinalagma existente entre prestador e beneficiário do serviço apenas no específico detalhe de quem fiscalmente aparenta ser o destinatário do pagamento, não podendo servir os atos decisórios dos tribunais como instrumento que valide pretensões ilícitas (vide artigo 612.º do CPC), o que explica a irrazoabilidade do despacho do qual se recorre.
11.º O despacho do qual se recorre, proferido após a decisão final que aos autos competia não traduz mera aplicação de poderes discricionários ou despacho de mero expediente na medida em que, contrariando – e revogando mesmo – anterior decisão transitada em julgado que se pronunciou em sentido diverso, criou, de forma inovadora e contra legem, uma nova relação jurídica entre o Estado – na pessoa do organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça – e uma entidade incorpórea que não teve qualquer intervenção no âmbito de qualquer processo, mormente neste e que se vê enriquecida sem causa por ter passado a deter, unilateralmente, um crédito sobre o Estado que não é, na sua génese, natureza ou quantitativo, o que o Estado legitimamente devia – e esperava – pagar a uma outra pessoa física, singular, que efetivamente convocou para o exercício de atividades no âmbito da administração da justiça.
12.º Pelos motivos sobejamente expostos na motivação que antecede, o despacho de que se recorre violou ampla lista de normativos legais, sendo os mais flagrantes os artigos 17.º-F, n.º 6 e n.º 7; 32.º, n.º 1 e 3; 55.º e 60.º, n.º 1, todos do CIRE; 23.º, n.º 1 e n.º 2; 27.º e 30.º estes do EAJ; 3.º, n.º 1, 16.º, n.º 1, alínea a) e 31.º do RCP; 612.º, 620.º e 621.º, todos do CPC; artigo 1.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 14/2013 de 28/01; 241.º, 762.º, 769.º, 787.º e até 813.º e 1167.º, alínea b), do Código Civil.» (sic)
Pugna, assim, no sentido da revogação do despacho recorrido e da repristinação dos efeitos de um despacho anterior, transitado em julgado, que --- entende o recorrente --- reconhecera já ao verdadeiro administrador judicial provisório nomeado o direito à remuneração contrapartida da sua actividade processual.

O AJP respondeu em contra-alegações, ali tendo formulado as seguintes conclusões:
«A) O Código da Insolvência e da Recuperação das Empresas (CIRE), em matéria de recursos, na ausência de regulamentação específica remete para a aplicação subsidiária do Código de Processo Civil, em tudo o que não contrarie a legislação falimentar, não existindo norma expressa para o recurso interposto no caso dos presentes autos, devendo socorrer-se das disposições previstas, nesta matéria, no Código de Processo Civil, quanto à admissibilidade do presente Recurso de Apelação.
B) É primordial na garantia da justiça que as partes disponham da faculdade de interpor Recurso para um órgão imparcial, independente e superior ao conflito. Porém, em determinados casos recusa-se esse remédio: a) ou por se considerar que a questão é de escasso valor, b) ou como no caso em que o tribunal profere uma decisão dento da sua alçada, ou porque se trata de matéria indiferente ao conflito ou então se circunscreve ao exercício de um poder discricionário, c) ou porque a parte vencida pratica um ato que acarreta a perda do direito de recurso, ou ainda, d) em varias hipóteses concretas em que a lei declara a irrecorribilidade absoluta da respectiva decisão.
C) Desta feita, além dos casos acabados de enunciar, são absolutamente irrecorríveis as decisões de simplificação ou agilização processual, proferidos no âmbito do n.º1 do artigo 6.º do Código de Processo Civil, o qual prevê: cumpre ao juiz dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adoptando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa
D) Ora, o despacho de mero expediente é aquele que se destina a prover ao andamento regular do processo sem interferir no conflito de interesses entre as partes, ou no corrente entendimento jurisprudencial, aquele que, proferido pelo juiz, não decide qualquer questão de forma ou de fundo, e se destina principalmente a regular o andamento do processo.
E) Em face do exposto, por Douto despacho datado de 04 de Abril de 2016, a(o) M.ma(o) Juiz ordenou que fosse emitida a nota de honorários nos termos requeridos pelo Administrador Judicial Provisório (com indicação do valor acrescido da quantia respeitante a IVA, à taxa legal em vigor, indicação do NIPC, IBAN e categoria de rendimentos), tratando-se esse acto de uma “mera formalidade”. A finalidade primordial do Douto despacho recorrido é a promoção do andamento regular do processo e um pressuposto de não interferir nos interesses entre as partes.
F) Concluindo-se, assim, que o presente recurso de apelação, interposto pelo Dig.mo Procurador da República, na representação dos interesses do Ministério Público, não é passível de ser apreciado por falta de requisito de admissibilidade.
G) No nosso modesto entendimento, e sempre com o maior respeito pelo Douto entendimento do Dig.mo Procurador da República, o Douto despacho de que se recorre nunca colidirá com os interesses do Estado quanto à emissão da nota de honorários, nos termos requeridos pelo aqui Recorrido, tendo como destinatária uma Sociedade de Administradores da Insolvência que, pela sua parte, emitirá a respectiva factura/recibo, atenta à indicação expressa da qualidade de sócio de Sociedade de Administradores da Insolvência, nos exactos termos que consta das listas oficiais publicadas.
H) O Decreto-Lei n.º 54/2004, de 18 de Março plasma um meio legalmente admissível – SOCIEDADE DE ADMINISTRADORES DA INSOLVÊNCIA, que tem como objecto social “exclusivo o exercício das funções de administrador da insolvência” (cfr. artigo 2º do DL nº 54/2004 de 18 de Março) e da qual é sócio o Administrador Judicial nomeado, sendo que “[a]penas as pessoas singulares inscritas nas listas de administradores da insolvência podem ser sócios das sociedades de administradores da insolvência.”(cfr. nº 2 do artigo 1º do DL nº 54/2004 de 18 de Março), ocorrendo a sua nomeação de Administrador Judicial Provisório na qualidade de sócio de uma SAI, tal como consta das Listas de administradores judiciais, publicadas pelo Ministério da Justiça, aceites pela CAAJ, e único meio para a nomeação pelos Senhores Juízes de administradores da insolvência/administrador judicial provisório: “C… - Sócio da sociedade “C1… – Sociedade de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda.”.
I) O legislador estabelece no regime das mesmas que “[a]s sociedades de administradores da insolvência devem respeitar o disposto no Estatuto do Administrador da Insolvência”- Cfr. nº 1 do artigo 8º (Regime) do DL nº 54/2004 de 18 de Março. E estão “[o]s estatutos das sociedades de administradores da insolvência, bem como as respectivas alterações, são objecto de depósito na comissão competente prevista no Estatuto do Administrador da Insolvência, nos 30 dias subsequentes à sua aprovação” - Cfr. artigo 7º DL nº 54/2004 de 18 de Março.
J) Os administradores da insolvência podem constituir sociedades de administradores da insolvência sob a designação/sigla “SAI”, sendo esse um requisito indispensável, visto que apenas podem ser sócios destas sociedades as pessoas singulares inscritas nas listas de administradores da insolvência – Cfr. artigo 5.º do DL n.º 53/2004, de 18 de Março.
K) As Sociedades de Administradores da Insolvência existem, são lícitas e plenas de capacidade de acção, procedendo a Comissão para o Acompanhamento dos Auxiliares da Justiça (CAAJ) à publicação das listas oficiais dos Administradores Judiciais no site www.citius.mj.pt. Nesta data, mediante a consulta da Lista Geral dos Administradores Judiciais Inscritos nas Listas Oficiais do Ministério da Justiça, publicadas pela CAAJ, existem 49 (quarenta e nove) Sociedades de Administradores da Insolvência, envolvendo largas dezenas de Administradores Judiciais num universo global de 350 inscritos nas Listas Oficiais – Cfr. Lista Geral dos Administradores Judiciais inscritos nas Listas Oficiais, in http://caaj.eu/media/uploads/pages/Lista_geral_AJ_16mai2016_vf.pdf, através de http://caaj.eu/aj_lista/.
L) Ora, conforme resulta do n.º 4, do Artigo 6.º, da Lei n.º 22/2013, de 26 Fevereiro, vulgo Estatuto do Administrador Judicial, as listas oficiais de administradores judiciais são públicas e disponibilizadas de forma permanente no Portal Citius, conferindo fé pública a toda a actuação destes servidores e assíduos colaboradores da justiça portuguesa. Porquanto, o Administrador Judicial é nomeado nos moldes que constam da respectiva lista: “C… – Sócio da C1… – Sociedade de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda.”, não se conseguindo negar que a mesma se encontra inscrita.
M) Isto posto, o Administrador Judicial Provisório, para efeitos de processamento de remuneração e despesas, indicou, a pedido do Tribunal a quo, o regime da emissão da factura pela sociedade “C1… – Sociedade de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda.”: nos exactos moldes da prática adoptada em todos os casos análogos ao dos presentes autos, designadamente quanto às nomeações judiciais para exercício de funções enquanto Administrador Judicial, dependendo das funções exercidas no processo, na qualidade de Administrador Judicial Provisório, Administrador da Insolvência ou Fiduciário (cfr. n.º2 do artigo 2.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro). E, sempre se diga, não obstante a insistência e repetição, que se está perante a utilização das faculdades legais possibilitadas pelo regime específico, previsto para as Sociedades de Administradores da Insolvência, confirmando-se que este é o meio legal utilizado por muitos outros Administradores Judiciais.
N) Sendo, por isso, perfeitamente legítimo a emissão de factura/recibo pela entidade pessoa colectiva, Sociedade de Administradores da Insolvência, para suporte legal do recebimento das quantias respeitantes a remuneração e despesas.
O) Neste sentido, se tais sociedades fossem “mero legado do tempo”, conforme vem expêndido nas Doutas alegações, não teria existido uma conversão da legislação e uma continuidade do Regime Jurídico das mesmas. E, acrescente-se que, não poderá Regime Jurídico das SAI (DL n.º 54/2004) tenha ocorrido na mesma data: 18 de Março de 2004.
P) A “C1… – Sociedades de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda.” foi constituída em 16 de Janeiro de 2013 e apresenta o número de apólice n.º …….., renovada anualmente, cobrindo a Responsabilidade Civil para Profissões Específicas, em conformidade com os Docs. 1 e 2, cujo conteúdo se da aqui por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
Q) Na sua estrutura congrega uma equipa de profissionais habilitados e competentes, quer sejam trabalhadores por conta de outrem, quer profissionais liberais, como é o exemplo de Advogadas, Solicitadores/Agentes de Execução, bem como Economistas/Gestores que executam as competências de assessoria ao administrador da insolvência/administrador judicial, na prossecução da finalidade exclusiva da SAI.
R) Por todo o exposto, é lícita a determinação judicial dirigida ao IGFEJ, I.P. no sentido de proceder ao pagamento da remuneração e despesas do Administrador Judicial Provisório, por contrapartida da emissão de factura/recibo por parte da SAI, sendo jurídicamente válido a opção do recebimento pela SAI, não enquanto terceira entidade para pagamento, mas sim como sendo a entidade que tem como objecto social “exclusivo o exercício das funções de administrador da insolvência” (cfr. Artigo 2º do DL nº 54/2004 de 18 de Março e da qual é sócio o Administrador Judicial nomeado.
S) Isto porque “[a]penas as pessoas singulares inscritas nas listas de administradores da insolvência podem ser sócios das sociedades de administradores da insolvência.”(cfr. nº 2 do artigo 1º do DL nº 54/2004 de 18 de Março).
T) Acresce que, não há o deferimento de uma terceira pessoa, não há disponibilidade da sua vontade a conformação de uma relação jurídica entre o Estado e a SAI, há sim uma nomeação de Administrador Judicial Provisório na qualidade de sócio de uma SAI, tal como consta das Listas de administradores judicias, publicadas pelo Ministério da Justiça, aceites pela CAAJ, e único meio para a nomeação pelos Senhores Juízes de administradores da insolvência/administrador judicial provisório: “C… - Sócio da sociedade “C1… – Sociedade de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda.”.
U) Crê-se que, mais do que justificar a vinculação do exercício de funções ao Ius Imperii, é fulcral perceber que o desempenho das funções e a relação jurídica subjacente a estas não se coloca em crise com a emissão de factura nos moldes solicitados.
V) Mais, não se vislumbra a adoptação de qualquer expediente dilatório por parte do Administrador da Insolvência para que conseguisse causar prejuízo ao Estado, uma vez que será sempre tributado ou em sede de IRC e de IRS. E como se demonstrou o regime fiscal nunca pode ser mais favorável para a pessoa do administrador da insolvência/administrador judicial na opção pelo regime da SAI, porquanto à tributação em sede de IRC, na ordem dos 23% (em anos anteriores foi de 25%) a que acresce a derrama sobre o IRC, bem como a tributação em sede de IRS, vigorando para este último imposto as mesmas taxas com que se confrontaria o administrador da insolvência/administrador judicial no caso de exercício daquelas funções como profissional liberal.
W) Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo fez uma correcta interpretação e aplicação dos artigos 17º-F, 32º, e 60º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, bem como das normas constantes do 2º, 22º,23º, 25º e 27º do Estatuto do Administrador Judicial, Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, e ainda, tudo o quanto vem expendido no Regime Jurídico das Sociedades dos Administradores da Insolvência.» (sic)
Perspetiva, assim, o apelado a confirmação do julgado.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
A questão a decidir encerra apenas matéria de direito, estando o objeto do recurso delimitado pelas conclusões da apelação, acima transcritas, exceção feita para o que for do conhecimento oficioso (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do novo Código de Processo Civil[3]).

Somos chamados a decidir se o pagamento das despesas e dos honorários devidos ao Administrador Judicial Provisório, no processo especial de revitalização[4] pode/deve ser efetuado a sociedade de que aquele é sócio.
Há, primeiro, que apreciar a questão prévia da inadmissibilidade do recurso, suscitada pelo recorrido.
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III.
1. Admissibilidade da apelação
Alega o recorrido que o despacho impugnado teve por finalidade primordial promover o andamento regular do processo, sem interferir no interesse das partes. É uma decisão de simplificação ou agilização processual, proferida no âmbito do nº 1 do art.º 6º do Código de Processo Civil; como tal o recurso é inadmissível.
Pois bem.
Na verdade, não é admissível recurso das decisões de simplificação ou de agilização processual, proferidas nos termos previstos no n.° l do artigo 6.°, salvo se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios (cf. art.º 630º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro[5], citando Lebre de Freitas, que “gestão processual é a direção ativa e dinâmica do processo, tendo em vista, quer a rápida e justa resolução do litígio, quer a melhor organização do trabalho do tribunal. Mitigando o formalismo processual civil, assente numa visão crítica das regras, a satisfação do dever de gestão processual destina-se a garantir uma mais eficiente tramitação da causa, a satisfação do fim do processo ou a satisfação do fim do ato processual”.
A referida gestão não pode ter lugar com o atropelo dos direitos das partes e muito menos ainda com prejuízo de alguma delas em benefício da outra.
Ora, se o Ministério Público recorre defendendo que a remuneração do administrador judicial provisório e o reembolso de despesas não podem ser atribuídos à sociedade de que ele faz parte, como faz o despacho recorrido, mas apenas a ele próprio, e sendo uma e outro pessoas distintas, é óbvio que não é indiferente pagar a qualquer um deles, ainda que de uma sociedade unipessoal se trate. O direito de um exclui o direito do outro; só a um deles deve ser efetuado o pagamento.
O despacho que ordena o pagamento à dita sociedade interfere diretamente com o direito ao seu recebimento, não é um simples despacho de simplificação e de agilização que visasse, por exemplo, prevenir o atraso na sua atribuição.
Pelas referidas razões, também não é um despacho de mero expediente, já que estes se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes (art.º 152º, nº 4, do Código de Processo Civil). Tais despachos são os que têm por objetivo, simplesmente, regular, em harmonia com a lei, os termos do processo; são decisões banais que não põem em causa a situação subjetiva das partes ou interessados de que são exemplo os despachos internos, tais como ordens dirigidas à secretaria, ou que se limitam a fixar datas para a prática de certos atos processuais.
Por conseguinte, o recurso não é inadmissível nos termos do art.º 630º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. Nada obsta à sua admissão e ao conhecimento do seu objeto.
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2. Pagamento da remuneração e despesas do Administrador Judicial Provisório ao próprio ou à sociedade da administradores da insolvência de que aquele é sócio?
Em matéria de escolha e remuneração do AJP no âmbito do PER, aqui em causa, determina o art.º 17º-C, nº 3, al. a), do CIRE a aplicação, com as necessárias adaptações, do disposto no art.º 32º do mesmo código, segundo o qual tal seleção recai em entidade inscrita na lista oficial de administradores da insolvência (respetivo nº 1) e a remuneração constitui, juntamente com as despesas em que ele incorra no exercício das suas funções, um encargo compreendido nas custas do processo, que é suportado pelo Cofre Geral dos Tribunais na medida em que, sendo as custas da responsabilidade da massa, não puder ser satisfeito pelas forças desta (subsequente nº 3).
Parece-nos inquestionável a posição defendida por L. Carvalho Fernandes e João Labareda[6] --- referindo-se ao AJP ---, de que, apesar do silêncio da lei, em todos os pontos não especialmente regulados, “a melhor solução, de acordo com os cânones gerais da integração, não pode deixar de ser a de aplicar também o regime do administrador da insolvência, com as adaptações que possam justificar-se em virtude da provisoriedade das funções”.
Sobre a remuneração do Administrador da Insolvência rege o art.º 60º do CIRE que, sob o seu nº 1, determina que tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.
O Estatuto do Administrador Judicial[7] está atualmente estabelecido na Lei nº 22/2013, de 26 de fevereiro --- posterior ao início de vigência da lei nº 16/2012, de 20 de abril que, além do mais, criou e introduzir o PER no CIRE (art.ºs 17º-A a 17º-I) --- que revogou o anterior Estatuto do Administrador da Insolvência aprovado pela Lei nº 32/2004, de 22 de julho, alterada pela Lei nº 34/2009, de 14 de julho e pelo Decreto-Lei nº 282/2007, de 7 de agosto. Nele se estabelecem --- no que pode relevar para o caso sub judice --- regras reguladoras tanto das condições de acesso à atividade quanto relativas aos direitos e deveres e à remuneração e pagamento do administrador da insolvência como do AJP, ambos ali considerados administradores judiciais para efeitos da sua aplicação (cf. respetivo art.º 2º, nºs 1 e 2).
Os administradores judiciais são necessariamente pessoas singulares. Não obstante isso não resultar diretamente do EAJ, várias das indispensáveis condições de acesso à atividade ali previstas apenas são exigíveis a pessoas físicas (são, incompatíveis com a personalidade coletiva), como é o caso da habilitação com uma licenciatura e experiência profissional adequada ao exercício da atividade, frequência de estágio profissional, aprovação em exame de admissão especificamente organizado para avaliar os conhecimentos adquiridos durante o período de estágio profissional, idoneidade para o exercício da função (art.º 3º, nº 1, al.s a), b), c) e e)), sua sujeição aos impedimentos e suspeições aplicáveis aos juízes, bem como às regras gerais sobre incompatibilidades aplicáveis aos titulares de órgãos sociais das sociedades (art.º 4º, nº 1), idoneidade (art.º 5º), equiparação aos agentes de execução nas relações com os órgãos do Estado, nomeadamente no que concerne ao acesso e à movimentação nas instalações dos tribunais, conservatórias e serviços de finanças (art.º 11º, nº 1), o dever de servir a justiça e o Direito e, como tal, de mostrar-se dignos da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes e dever de atuar com absoluta independência e isenção, como é próprio da realização do interesse público (art.º 12º, nºs 1 e 2), sujeição a escusa e substituição (art.º 16º), para não citar outras condições legais apenas compatíveis com pessoas singulares.
Para cada comarca existe uma lista de administradores judiciais, contendo o nome, o domicílio profissional, o endereço de correio eletrónico e o telefone profissional das pessoas habilitadas a exercer tal atividade na respetiva comarca. Essa lista é pública e está disponibilizada de forma permanente no Portal Citius (art.º 6º, nºs 1 e 4, do EAJ), sendo regra a exclusiva nomeação de administradores judicias constantes das referidas listas (art.º 13º, nº 1 do EAJ e art.º 53º, nº 1, do CIRE).
Temos como seguro afirmar que apenas pessoas físicas podem habilitar-se ao exercício e, uma vez habilitados, exercer a atividade de administrador judicial, seja como administrador judicial provisório no PER ou na insolvência, seja como administrador da insolvência ou fiduciário.
De parte alguma do CIRE ou do EAJ resulta o direito acesso de qualquer sociedade à atividade do administrador judicial ou à respetiva remuneração. Esta constitui a contrapartida efetiva do exercício da administração, integra o sinalagma da prestação de serviços que liga contratualmente o administrador judicial ao processo. É um direito pessoal dele enquanto administrador judicial contratado, a que acresce a compensação por despesas necessárias que ele --- e não outrem --- tenha realizado. Não é, em princípio, um direito de uma qualquer terceira entidade, e não encontramos no CIRE qualquer referência a sociedades de administradores judiciais ou a qualquer estrutura empresarial que tenha por objeto o exercício das referidas funções remuneradas. Só o administrador judicial, nomeado, em regra, pelo juiz e pelo juiz fiscalizado e destituível (art.ºs 52º, nº 1, 53º, nºs 1 e 2 e 56º do CIRE e art.º 13º do EAJ) as pode exercer, pessoalmente, e a ele assiste o direito à respetiva remuneração.
Resulta claro do art.º 22º do EAJ que “o administrador judicial tem direito a ser remunerado pelo exercício das funções que lhe são cometidas, bem como ao reembolso das despesas necessárias ao cumprimento das mesmas”. O subsequente art.º 23º acrescenta, sob o nº 1, que “o administrador judicial provisório em processo especial de revitalização ou o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, de acordo com o montante estabelecido em portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças, da justiça e da economia”.
Não há dúvida de que o administrador judicial é chamado a colaborar com uma função soberana do Estado e está vinculado a critérios de objetividade e imparcialidade, próprios da realização do interesse público, como emana nomeadamente do grau de exigência que é colocado no acesso à atividade, do regime de incompatibilidades, impedimentos e suspeições, do requisito de idoneidade, do regime de escusa e substituição e do regime disciplinar, e do conjunto de direitos e de deveres a que os art.ºs 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º e 12, 16º e 17º e seg.s do EAJ se referem.
Acontece que no mesmo dia em que foi publicado o CIRE (18 de março de 2004) deu-se também publicação ao Decreto-lei nº 54/2004 que criou o regime jurídico das sociedades de administradores da insolvência. A extinção das figuras de gestor judicial e de liquidatário judicial, inerentes ao anterior Código de Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência[8], que tinham justificado a constituição de sociedades de gestores judiciais e sociedades de liquidatários judiciais, abriu caminho à constituição de sociedades de administradores de insolvência, harmonizando a figura societária com o novo modelo da insolvência desenhado no CIRE. Aquele decreto-lei introduziu até um regime que permitiu a transformação daquelas sociedades em socieades de administradores da insolvência, com isenção de emolumentos para os correspondentes atos notariais e de registo (cf. respetivo art.º 9º).
O referido decreto-lei autoriza a constituição de sociedades de administradores de insolvência[9], determina que apenas as pessoas singulares inscritas nas listas de administradores da insolvência podem ser sócios das sociedades de administradores da insolvência e define o seu objeto social como sendo, exclusivamente, o exercício das funções de administrador da insolvência, devendo tais sociedades assumir a natureza de sociedades civis sob a forma comercial, com a firma correspondente, devendo respeitar o disposto no Estatuto do Administrador da Insolvência (respetivos art.ºs 1º, 2º, 3º, 5º e 8º).
Consta do preâmbulo daquele decreto-lei que a admissão daquelas sociedades visa o melhor desempenho das funções de administrador da insolvência (atualmente, do administrador judicial) com o benefício “das sinergias e economias resultantes da associação dos seus profissionais” que se verificava já nas sociedades de gestores judiciais e nas sociedades de liquidatários judiciais.
O art.º 980º do Código Civil define o contrato de sociedade como “aquele em que duas ou mais pessoas se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício em comum de certa actividade económica, que não seja de mera fruição, a fim de repartirem os lucros resultantes dessa actividade ”.
Especificamente, a sociedade unipessoal é constituída por um sócio único, pessoa singular ou coletiva, que é o titular da totalidade do capital social (art.º 270º-A, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais. No caso das SAI, apenas podem ser constituídas por pessoas singulares que reúnam determinadas condições, como observámos já.
São três, portanto, os requisitos do contrato de sociedade referidos naquele artigo 980.°: a contribuição dos sócios, o exercício em comum de certa atividade económica, que não seja de mera fruição, e a repartição dos lucros.
Ainda que a lei não exija, de início, uma contribuição imediata, com a criação fundo patrimonial comum, este sempre se virá a constituir com os lucros da sociedade.
As SAI, enquanto sociedades civis, não se destinam prática de atos de comércio, mas, sendo constituídas sob a forma comercial (à semelhança das sociedades comerciais), estão submetidas ao regime da lei comercial. Não são associações de solidariedade ou de fim altruísta; são associações de direito privado com fim lucrativo, perspetivando a distribuição dos lucros pelos sócios.
Não faria sentido a existência das SAI sem atividade comum, sem património autónomo, com receitas e despesas, sem organização de pessoas e de bens, sem a distribuição de lucros.
A coexistência das SAI com as condições impostas pela lei ao exercício da atividade por pessoas singulares, excluindo as pessoas coletivas do exercício das funções de Administrador Judicial, passa necessariamente pela possibilidade concedida àquelas pessoas físicas habilitadas de, sem prejuízo da pessoalidade inerente ao exercício do cargo, se associarem e organizarem em sociedade, reunindo meios e sinergias que permitam um melhor exercício da atividade pelos sócios, com receitas e despesas inerentes a um património social, a partir do qual se procede à liquidação de dívidas e à distribuição dos lucros gerados na sociedade.
Limitadas que estão as SAI a ter como sócios apenas administradores judiciais (devidamente habilitados e inscritos nas listas oficiais) --- o que não acontece, por exemplo, com os advogados nas sociedades de advogados (cf. art.º 213º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro) --- e a ter como objeto social apenas o exercício das funções de administração judicial pelos seus sócios, é seguro afirmar que o património social é gerado pelas remunerações dos respetivos sócios, não se vislumbrando outra fonte de receita relevante. A credenciação individual do sócio para o exercício da função e as exigências a ela ligadas resultantes da lei não se estendem nem se poderiam estender, ante a possibilidade de constituição das SAI, à remuneração do administrador da insolvência que é livre de integrar uma sociedade daquele tipo e de para ela fazer transferir a remuneração a que lhe assiste.
A lei faculta ao Administrador da Insolvência a opção entre o exercício liberal (individual) da sua atividade e o exercício em regime de sociedade (a SAI), um e outro sujeitos a regimes de fiscalidade legalmente previstos. A remuneração do Administrador da Insolvência não deixa de ser tributada por ser paga à sociedade de administração da insolvência que ele integra. Os Administradores da Insolvência, no quadro legislativo alternativo que lhes é oferecido, optam por desenvolver a sua atividade no regime que consideram mais conveniente, podendo ponderar os diversos aspetos da fiscalidade.
Nomeado AJP, sob proposta da devedora, o Sr. Dr. C… (fl.s 10, 108 e 109 dos autos), no requerimento que endereçou ao processo em junho de 2014 identificou-se como sócio da sociedade C1… – Sociedade de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda. (cf. fl.s 240).
Da lista oficial de administradores judicias da Comarca do Porto consta o ora recorrente identificado pelo seu nome apenas na qualidade de sócio da sociedade C1… – Sociedade de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda. e em nenhuma outra, designadamente enquanto pessoa física/profissional liberal (com ou sem autorização desta sociedade).
Portanto, apesar da remuneração da sua função dever ser calculada em função do seu desempenho pessoal como AJP, com aplicação dos critérios legalmente previstos, a mesma deve ser entregue à sociedade em cujo âmbito se integra toda a sua atividade enquanto administrador judicial.
Ainda que se entenda que o direito à remuneração pertence, em qualquer caso, à pessoa do Administrador Judicial, sempre se dirá que, por efeito do contrato social, cedeu à SAI os créditos resultantes da sua actividade[10] sem o que esta --- ressalvado o exercício efetivo da administração da devedora pela pessoa do Administrador da Insolvência nomeado em função da sua qualidade profissional --- não poderia cumprir o seu objeto exclusivo: nas exatas palavras da lei, o exercício das funções de administrador da insolvência (cf. art.º 2º do citado Regime Jurídico das Sociedades de Administradores da Insolvência).
São requisitos da cessão de créditos, à luz do art.º 577º, nº 1, do Código Civil:
a) um negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou de parte do crédito;
b) a inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão;
c) a não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à pessoa do credor.
Sempre se deveria então considerar que a qualidade de sócio do Administrador da Insolvência relativamente à referida SAI determina a cessão do seu crédito, emergente do exercício da sua função. Agindo exclusivamente na qualidade de sócio daquela sociedade, é nela que se repercutem os pagamentos dos seus serviços. No fundo, é a sociedade que os presta através do recorrente, ainda que só através dele os possa prestar, por ter sido ele a pessoa nomeada para a administração provisória da devedora. O contrato de sociedade é o negócio causal que serve de base à cessão.
Não se conhecem impedimentos legais ou contratuais à transmissão do crédito, sendo esta inerente à qualidade de sócio da SAI, dadas as especificidades desta, previstas no referido regime jurídico.
Sendo a própria lei que autoriza a cessão, o crédito não está ligado à pessoa do credor.
Tem-se entendido que um critério possível para determinação deste impedimento à transmissão do crédito é o de verificar se a alteração na pessoa do credor provoca ou não desvantagens para o devedor em termos daquilo a que se vincula a prestar. Apenas será, por isso, relevante o impedimento sempre que a alteração da pessoa do credor implique que o devedor tenha que prestar algo diferente daquilo a que se tinha vinculado.[11]
Ainda segundo aquele ilustre Professor “estão nessa situação os créditos que se constituem para satisfação das necessidades pessoais do credor, como o apanágio do cônjuge sobrevivo (art.º 2018.°), os créditos de onde resulte uma dependência pessoal entre credor e devedor, como o contrato de serviço doméstico, e ainda os créditos em que se tomem em especial consideração as qualidades ou condições do credor, como a prestação de serviço dos médicos ou dos advogados. Igualmente se poderão considerar abrangidos nesta excepcão os créditos em que a pessoa do credor é obrigado a uma colaboração específica, consistente num facere infungível, como na hipótese do crédito sobre um pintor para a realização de um quadro retratando a pessoa do credor”.
Parece-nos hialino que a faculdade legal de constituição de sociedades de administradores da insolvência, com o regime legal atrás analisado, não obstante o serviço só poder ser prestado pelo Administrador da Insolvência nomeado, permite considerar que o crédito resultante da prestação do serviço é originariamente da SAI ou, pelo menos, autoriza a cessão do crédito do Administrador da Insolvência pelo pagamento respetivo a favor da sociedade a que pertence.
O pagamento da prestação à sociedade que o próprio credor indica para o efeito jamais viabilizaria a possibilidade de o próprio Administrador da Insolvência vir depois a exigir ao Estado um novo pagamento na sua própria pessoa. Aliás, tal conduta sempre representaria, no mínimo, violação do princípio da boa fé e abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, por comportamento contraditório relevante.
Pagar ao Administrador da Insolvência ou à SAI sempre será indiferente para o devedor, não resultando agravamento da sua posição jurídica no caso de o pagamento ser efetuado na pessoa da sociedade. Com efeito, sempre estaria verificado também o terceiro (al. c)) dos apontados requisitos da cessão de créditos.
Nos termos do art.º 583º, nº 1, do Código Civil, a cessão produz efeitos em relação ao devedor desde que lhe seja notificada, ainda que extrajudicialmente, ou desde que ele a aceite.
Há informação nos autos anterior ao próprio pedido de pagamento de honorários e despesas de que o AJP age na qualidade de sócio da SAI; isso mesmo resulta também da lista oficial de Administrador da Insolvência a que o tribunal e a entidade pagadora tem acesso.
Quer se entenda que o direito à remuneração entra diretamente na esfera jurídica da SAI, quer se considere que o respetivo crédito lhe foi transmitido pelo Administrador da Insolvência com base no contrato de sociedade, tal crédito pertence-lhe e é e ela que deve ser paga a remuneração dos serviços do administrador judicial e efetuado o reembolso das despesas.
Todavia, no caso em análise, foi o próprio AJP, pessoa física, que solicitou o pagamento de honorários e despesas, o que, por despacho de 28.4.2015 (fl.s 485), determinou que a remuneração global e o reembolso das despesas fossem atribuídos ao próprio AJP. Daí, na conta de custas, elaborada a 21 de outubro de 2015, veio a figurar como credor a pessoa do AJP, C….
Subsequentemente, por requerimento da pessoa do AJP apresentado em 5.2.2016, veio ele acusar que fora notificado da conta de custas no dia 16.9.2015 e que, apesar do tempo decorrido, não recebeu qualquer quantia. E concluiu:
(…) Vem, muito respeitosamente, requerer à(ao) M.ma(o) Juiz que se digne ordenar o pagamento do valor de 2.513,15 euros, pelo Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, I.P. (IGFEJ), referente à remuneração e despesas devidas ao administrador judicial provisório, nos presentes autos”.
O tribunal ordenou o pagamento nos termos requeridos, por despacho de 9.3.2016; ou seja, ordenou que o pagamento fosse efetuado ao próprio AJP, tendo ficado imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre aquela matéria (art.º 613º, nºs 1 e 3, do Código de Processo Civil).
As referidas decisões transitaram em julgado, sem recurso, designadamente da SAI cuja legitimidade para a apelação sempre se lhe reconheceria ao abrigo do art.º 631º, nº 2, do Código de Processo Civil.
Nem da conta de custas houve reclamação.
Não pode, assim, efetuar-se, no processo, o pagamento a favor de pessoa diferente daquela a favor da qual se fixaram os honorários e as despesas, com trânsito em julgado.
Decorre do exposto que a M.ma Juiz tem razão quando, no despacho recorrido, entende que o pagamento deve ser feito na pessoa da SAI; porém, já não poderia ter ali ordenado que ele se fizesse a essa sociedade (C1… – Sociedade de Administradores da Insolvência, Unipessoal, Lda.), porquanto já se encontrava esgotado o seu poder quanto a esse thema, por ter decidido anteriormente que o crédito se pagasse ao próprio AJP, por despacho que também transitou em julgado.
A apelação procede com base no referido fundamento.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Não obstante o cunho individual/pessoal que marca o exercício da atividade do Administrador Judicial no PER e na Insolvência, o seu exercício, quando desenvolvido no âmbito de uma SAI (sociedade de administradores da insolvência) de que aquele é sócio, determina que o pagamento devido a título de remuneração da sua função e o reembolso das suas despesas sejam efetuados à própria sociedade.
2. Se o juiz ordena, por despacho, que tal pagamento seja efetuado ao Administrador Judicial e é elaborada a respetiva conta de custas que contempla tal decisão, sem recurso nem reclamação nos prazos legais, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz sobre tal questão e, transitada tal decisão, não é admissível que, no processo, se efetue o pagamento a favor da SAI, pessoa diferente.
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revoga-se o despacho recorrido, mantendo-se os que anteriormente determinaram que o pagamento da remuneração e o reembolso das despesas fosse efetuado a favor do recorrido C…, o Administrador Judicial Provisório.
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Custas a cargo do recorrido.
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Porto, 15 de setembro de 2016
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Adiante designado por PER.
[2] Adiante designado por AJP.
[3] Aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26 de junho.
[4] Adiante “PER”.
[5] Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2014, pág. 47.
[6] CIRE anotado, 2009, pág. 178 (anot. ao art.º 32º).
[7] Adiante EAJ.
[8] Abreviado, CPEREF.
[9] Adiante designadas por SAI.
[10] A lei é tão exigente que faz depender da autorização da SAI o exercício de atividades de gestão pelo sócio, com carater profissional e remunerado, fora da sociedade (art.º 4º, nº 1, do Decreto-lei nº 54/2004, de 18 de março).
[11] Luís Teles de Menezes Leitão, Cessão de Créditos, Almedina, 2005, pág. 311, citando Nörr/Scheying/Pöggeler, § 3 II, p. 22.