Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
599/20.6T8VCD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DOLORES DA SILVA E SOUSA
Descritores: RECURSO
DEFENSOR
ESCUSA DO DEFENSOR
PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RP20210205599/20.6T8VCD-A.P1
Data do Acordão: 02/05/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: ATENDIDA
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 64º do CPP, a interposição de recurso depende, obrigatoriamente, da assistência de um defensor legalmente habilitado.
II – Nos casos em que o Defensor recusa interpor recurso e pede escusa, fazendo-se a interpretação literal do n.º 4 do art.º 66º do Código de Processo Penal (“enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo”), fica o arguido impossibilitado de defender-se perante um tribunal superior por decurso do prazo legal.
III - Daí que a contagem do prazo para recorrer não pode ser alheia a tal vicissitude, sob pena de violação de disposições constitucionais atinentes à tutela das efectivas garantias de defesa dos arguidos, tutela essa que abrande a possibilidade de o arguido ser assistido por um novo defensor, permitindo-lhe que este possa, em tempo, praticar, em concreto, o acto – interposição do recurso – que deu causa à justa substituição.
IV – É inconstitucional a interpretação normativa do n.º 4 do artigo 64º, do CPP, conjugada com o n.º 1 do artigo 411º CPP, quando considera que o prazo para interposição do recurso se conta ininterruptamente a partir da data do depósito da decisão na Secretaria, mesmo no caso de recusa de interposição do recurso por parte do defensor oficioso nomeado, cuja substituição foi por este requerida.
Reclamações: Reclamação n.º 599/20.6T8VCD-A.P1
Comarca do Porto

I.

1.- No Processo Comum Coletivo n.º 599/20.6T8VCD-A.P1 do Juízo Central Criminal de Vila do Conde, foi proferido acórdão de realização de cúmulo em 14.10.2020.
2- Na leitura desse acórdão estiveram presentes o arguido e a sua defensora.
3- A defensora do arguido veio ao processo no dia 4 de novembro dar conhecimento de ter requerido, junto do Conselho Regional da Ordem dos Advogados a escusa de patrocínio e a consequente solicitação de que seja nomeado novo patrono para o arguido porquanto: “vem o Arguido insistir em querer interpor recurso da sentença de cúmulo que lhe foi aplicada, sentença essa que após analise e salvo melhor opinião, se concluiu pela falta de fundamentos para o efeito e a inviabilidade do mesmo.
Comunicado tal posição ao arguido o mesmo não aceita o aconselhado e insiste em interpor recurso.
Razão pela qual não posso continuar a patrocinar o mesmo, existe perda de confiança e imposição da prática de um acto jurídico na minha perspetiva sem viabilidade.”
4- No dia 16 de novembro de 2020, os autos foram informados de “que os motivos apresentados… são considerados justificativos de dispensa e que em substituição se nomeia o(a) Senhor(a) Advogado(a): Dr(a) B….
5- O Tribunal notificou a nomeação ao novo defensor no dia 16.11.2020.
6- O arguido em 11.12.2020 interpôs recurso subscrito pelo novo defensor, questionando a medida da pena de prisão.
7- Sobre essa interposição de recurso foi proferido o seguinte despacho:
«Cumpre proferir despacho sobre a admissão do recurso de fls. 295 e seguintes, subscrito em nome do arguido pelo ilustre defensor oficioso, Dr. B…, e que foi apresentado em 11 de dezembro de 2020.
O acórdão recorrido é passível de recurso artigo 399.º e 400.º, este a contrario sensu, do Código de Processo Penal.
Sucede que, nos termos do disposto no artigo 411.º, n.º 1, alínea b), do Código do Processo Penal, o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias a contar do depósito da sentença na secretaria. Este prazo é contínuo, suspendendo-se, no entanto, durante as férias judiciais artigo 138.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, ex vi artigo 104.º, n.º 1 do Código do Processo Penal. São ainda aplicáveis à contagem dos prazos para a prática de actos processuais, por força do mesmo artigo, o disposto no artigo 139.º do Código do Processo Civil.
No caso dos autos, o arguido C… esteve presente na audiência de cúmulo jurídico, tendo o acórdão sido lido e depositado em 14 de Outubro de 2020 (cfr. fls.256). Como tal, o prazo para interposição do recurso terminou em 14 de Novembro de 2020.
Não se olvida que, no dia 4 de Novembro de 2020, a ilustre defensora do arguido veio dar conhecimento aos autos de que, nessa mesma data, havia apresentado pedido de escusa junto do Conselho Regional da Ordem dos Advogados (cfr. fls.261-262) e de que, em 16 de Novembro de 2020, os autos foram informados de que o pedido de escusa havia sido deferido e que havia sido nomeado o Dr. B… como novo defensor do arguido.
Todavia, conforme resulta dos artigos 34º, 39º e 42º da Lei 34/04 de 29-07 (Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais), a nomeação de defensor ao arguido e a sua substituição são feitas nos termos Código do Processo Penal, sendo que enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantem-se para os actos subsequentes, não se aplicando, por isso, em sede de processo penal o preceituado no n.°2, do art. 34.°, do DL 34/2004, de 29/7 (cfr., neste sentido, entre outros, o Ac. da RE de 30/6/2015, proferido no âmbito do Proc. 28/08.2GBCCH.E1, e o Ac. da RL 28-10-2019, proferido no âmbito do Proc. 1794/13.9PULSB-A.L1-9, ambos acessíveis em www.dgsi.pt).
Assim, é manifesto que o recurso do arguido - interposto em 11-12-2020 é extemporâneo e, em consequência, não deve ser admitido.
Pelo exposto, nos termos do disposto no artigo 414.º, n.º 2 do Código do Processo Penal, decide-se não admitir o recurso interposto pelo arguido C… quanto ao acórdão de cúmulo jurídico de penas proferido no âmbito dos presentes autos.
Notifique
*
8.- É deste último despacho que o arguido traz a presente reclamação, pugnando pelo recebimento do recurso, com os seguintes fundamentos:
(…)«…o prazo para a interposição do recurso terminaria em 14 de Novembro de 2020.
Logo após a leitura da sentença, o Arguido manifestou à sua ilustre defensora a sua intenção de recorrer de tal acórdão.
Sucede que, no dia 4 de Novembro de 2020, a ilustre defensora do arguido deu conhecimento aos autos de que, nessa mesma data, havia apresentado pedido de escusa.
O pedido de escusa, cuja sindicância pertence ao Conselho Regional da Ordem dos Advogados, veio a ser deferido em 16 de Novembro de 2020, com informação dada aos autos, tendo na referida data sido nomeado o signatário da presente reclamação (e do recurso não admitido) como defensor ao arguido.
Ou seja, considera o Tribunal a quo que a nomeação do “novo” advogado ocorreu dois dias após o termo do prazo de recurso.
E, por essa razão, o recurso apresentado pelo arguido, em 11 de Dezembro de 2020, não foi admitido, por extemporâneo.
Ora, o arguido não aceita que lhe seja vedado o acesso ao Direito por questões de natureza burocrático-administrativa, que em nada dependeram de si, mas sim do modo como administrativamente opera a substituição de um advogado por outro.
Um Estado de Direito minimamente maduro não pode permitir que situações como esta sejam impeditivas do acesso dos arguidos aos Tribunais, no caso, ao Supremo Tribunal de Justiça, por via de recurso.
Devendo entender-se que não foi isso que o legislador pretendeu quando aprovou a Lei 34/2004, de 29 de Julho.
Na verdade, não pode nem deve, o arguido aqui reclamante, ser prejudicado pela inércia da sua anterior defensora oficiosa, que em face do pedido de escusa não apresentou o recurso em tempo.
Em boa verdade, o pedido de escusa apresentado pela ilustre defensora foi deferido, pelo que não fazia sentido ser esta a praticar o acto, quando, precisamente, solicitou não o fazer.
Sendo certo que o facto de tal pedido de escusa ter sido deferido, demonstra inequivocamente que havia fundamento para tal, pelo que seria de uma total incongruência que a mesma, apesar disso, o tivesse de praticar. Aliás, se tivesse sido o arguido a pedir a substituição de defensor, nos termos do artº 32º da Lei 34/2004, de 29 de Julho (com as respectivas alterações), o prazo para a prática de qualquer acto já se suspendia.
Assim, no entender do reclamante/recorrente, tanto se justifica a suspensão do prazo quando o arguido pede a substituição de defensor, como quando o próprio defensor pede a sua escusa.
A similaridade das situações está em que ambas desencadeiam um procedimento administrativo que visa a substituição de um defensor por um novo defensor.
Não se justificando consequências antagónicas, no que respeita à suspensão do prazo quando, do que se trata realmente, é de assegurar o acesso do arguido ao Direito e aos Tribunais.
A não se entender assim, as normas que permitem interpretação diversa devem ser consideradas inconstitucionais por não permitirem uma cabal defesa dos direitos dos arguidos.
Acaba requerendo que seja admitida a subida imediata do recurso por si interposto e que a presente reclamação seja acompanhada da sentença condenatória, do recurso interposto e do despacho ora em crise.
*
II. Cumpre apreciar e decidir

Vejamos.
Como decorre do artigo 64º, n. º1 al. d) do CPP a interposição de recurso depende obrigatoriamente, nos termos da legislação processual penal, da assistência de um defensor legalmente habilitado para subscrever, em nome do arguido, o requerimento de interposição e a respectiva motivação de recurso.
A defensora do arguido, aquando da leitura do acórdão, recusou-se no decurso do prazo de interposição de recurso a “a interpor recurso” contra a vontade do arguido, é o que decorre dos elementos fácticos enunciados nos autos.
Com base nessa recusa e diferenças de entendimento a anterior defensora requereu a escusa, junto do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, a 04.11.2020, decorridos 20 dias sobre o início do prazo de recurso.
A escusa foi deferida - embora referindo-se como dispensa - e nomeado novo defensor a 16.11.2020, tendo neste intervalo terminado o prazo de recurso, contado ininterruptamente desde o depósito legal do acórdão. Quando o tribunal notificou a nomeação de novo defensor ao arguido, segundo a decisão sob reclamação, aquele prazo já havia terminado, pois, diz o tribunal no despacho reclamado “o prazo de recurso terminou a 14.11.2020”.
Perante tal quadro, «subsistindo a situação de recusa de interposição do recurso, consubstanciada comprovadamente numa posição assumida pelo primeiro defensor, fica o arguido impossibilitado de defender-se perante um tribunal superior enquanto não contar com a assistência de um novo defensor. Daí que a contagem do prazo para recorrer não pode ser alheia (…) a tal vicissitude, sob pena de, (…) contando-se ininterruptamente o prazo desde o depósito da decisão na secretaria, a intervenção da nova defensora -, necessária em face da factualidade referida que se espelha na razão de ser da sua nomeação para a interposição do recurso –, sempre ficar prejudicada por extemporaneidade, e, com isso, frustrada a interposição do recurso clamado pelo arguido».[1]

E se é certo que o artigo 66.º, n.º 4 do Código de Processo Penal afirma que “enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um acto mantém-se para os actos subsequentes do processo”, e, nessa linha, dir-se-á que “a defensora substituída continuava em plena capacidade de exercício das suas funções”.
Se tal norma não impede que um recurso seja interposto pelo defensor a substituir, já a interpretação da referida norma que implique a continuidade do defensor apenas num plano estritamente formalista e que não confira relevo à recusa de interposição de recurso, fundamento justificante da substituição diferida; e, bem assim, ao facto de o arguido continuar a ser assistido por um defensor que não pratica o acto (relativamente ao qual o arguido apenas pode intervir pela interposta pessoa do defensor) que acabou por estar na origem do seu afastamento; tal interpretação não atenda à especificidade da situação concreta em causa no que respeita à efectiva possibilidade conferida ao arguido para recorrer da decisão condenatória. Ora, uma tal interpretação redundará num sacrifício das garantias de defesa que a Constituição reconhece aos arguidos em processo crime.
Assim, tendo em atenção que a ratio normativa do artigo 64º, n.º4, do CPP tem um cunho marcadamente garantístico, no sentido de evitar uma situação de “vazio” na assistência ao arguido, parece-nos “assaz problemático” fazer uma interpretação normativa, com base no cumprimento literal do preceito, desconsiderando o facto de o arguido estar efectivamente, ou realmente sem defesa e impedido de recorrer; e com base nessa interpretação determinar a contagem ininterrupta do prazo para a interposição de recurso em termos de, quando a decisão é notificada ao novo defensor já não haver possibilidade de sindicar o decidido pela 1.ª instância.
Uma tal visão ficaria desapartada dos fins que presidem à consagração da norma e aos valores constitucionais que enformam as disposições constitucionais pertinentes em matéria de rejeição de recurso por extemporaneidade.[2]
Ora, havendo recusa de um (concreto) defensor em interpor recurso de uma decisão – e não esquecendo que “o defensor exerce os direitos que a lei reconhece ao arguido” (artigo 63.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), não se vê por que deixar o arguido à mercê de tal posição – que, inclusive, poderá configurar-se completamente infundamentada. Em tal circunstância e sindicada a existência de justa causa, a tutela constitucional das efectivas garantias de defesa dos arguidos não só deve abranger a possibilidade de o arguido ser assistido por um novo defensor, como também permitir que este possa, ainda em tempo, praticar, em concreto, o acto – interposição do recurso – que deu causa à justa substituição.
Foi assim que num caso idêntico ao presente o TC, no acórdão que vimos seguindo, concluiu que “a norma resultante da interpretação conjugada dos artigos 66.º, n.º 4, e 411.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo para interposição do recurso (na altura de 15 dias agora de 30 dias), se conta ininterruptamente a partir da data do depósito da decisão na Secretaria, mesmo no caso de recusa de interposição do recurso por parte do defensor oficioso nomeado, cuja substituição foi requerida, é inconstitucional por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”. E do mesmo passo concluiu que no que concerne especificamente ao direito de acesso ao direito e aos tribunais – artigo 20.º, n.º 1, da Constituição –, (…) é de concluir que a norma aplicada (…) enferma igualmente de inconstitucionalidade, na medida em que, como supra se referiu, desconsiderando a recusa por parte da defensora substituída de interpor recurso e carecendo o arguido de defensor para o interpor, determina a contagem ininterrupta do prazo, impossibilitando o recurso ao Tribunal da Relação como via de sindicância da decisão condenatória proferida em 1.ª instância.
Pelos motivos expostos entendemos que sob pena de uma interpretação inconstitucional dos incisos do artigo 64º, n.º4, do CPP em conjugação com o artigo 411º, n.º1 do CPP, nomeadamente quando considera que o prazo para interposição do recurso se conta ininterruptamente a partir da data do depósito da decisão na Secretaria, mesmo no caso de recusa de interposição do recurso por parte do defensor oficioso nomeado, cuja substituição foi requerida, o recurso interposto deve ser admitido e, consequentemente deferida a reclamação apresentada.
*
III.- Pelo exposto, defere-se a reclamação apresentada pelo arguido devendo o despacho reclamado ser substituído por outro que admita o recurso.
*
Sem tributação.
*
Porto, 5fevereiro2021.
Maria Dolores da Silva e Sousa
[Vice-Presidente do Tribunal da Relação do Porto]
______________
[1] Cf. O Ac. do TC n.º 159/2004, acedido em 04.02.2021, in http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20040159.html
[2] Cf. O Já mencionado Ac. do TC que aqui seguimos de perto e, bem assim, o Ac. do n.º 39/04 www.tribunalconstitucional.pt/jurisprudencia.htm)
Decisão Texto Integral: