Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0810050
Nº Convencional: JTRP00041091
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
CASO JULGADO
MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
Nº do Documento: RP200802270810050
Data do Acordão: 02/27/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 517 - FLS 145.
Área Temática: .
Sumário: I - Não constituem prova de valoração proibida as declarações do assistente relatando conversas que, sobre os factos em julgamento, teve com o arguido, se este, embora remetendo-se ao silêncio, esteve presente na audiência e teve por isso oportunidade de contraditar essas declarações.
II - O facto de o arguido, por sentença de 03/03/2005, haver sido condenado pela prática, em 06/05/2003, do crime de maus tratos na pessoa do cônjuge, do qual foi acusado em 12/12/2003, não é obstáculo a que se considere que praticou outro crime de maus tratos ao cônjuge em data posterior a 06/05/2003.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
*
I- RELATÓRIO
1. No Tribunal Judicial de Vila do Conde, nos autos de processo comum (Tribunal Colectivo) nº …/04.3GAVCD, do .º Juízo Criminal, foi proferido Acórdão, em 24/09/2007 (fls. 438 a 468), constando do dispositivo o seguinte:
“Pelo exposto, os juízes acordam em:
a) Condenar o arguido, B………., pela prática, em autoria material, de um crime de maus tratos a cônjuge, previsto e punido pelo artigo 152°, n.° 1, al. a) e nº 2 do Código Penal, com a pena de 2 (dois) anos de prisão;
c) Suspender a execução da pena de dois anos de prisão aplicada ao arguido pelo período de 4 anos.
d) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se em 3 UCs a taxa de justiça individual, acrescida de 1% nos termos do art. 13º do DL nº 423/91, de 30/10, com procuradoria em 1/2 da taxa de justiça devida (art. 82º, 85º, 89º e 95º Código das Custas Judiciais).
Boletins ao registo criminal.
Notifique e deposite.”
*
2. O arguido B………. interpôs recurso desse acórdão (fls. 472 a 506), apresentando as seguintes conclusões:
1) Desde o início da presente Audiência de Julgamento, houve por parte do tribunal a quo, uma inaceitável pré-formação de um juízo de culpabilidade do arguido – o que é intolerável à luz do nosso ordenamento jurídico.
2) No início da audiência, logo após a leitura da acusação, o arguido foi pressionado a falar e a confessar um crime que não cometeu e que o próprio tribunal ainda não sabia minimamente se o mesmo teria cometido.
3) O acórdão recorrido questiona e censura a opção do arguido recorrer ao silêncio, pondo em causa um dos basilares pilares fundamentais em que assentam os direitos de quem está acusado de um crime.
4) Atento os depoimentos das testemunhas de acusação e na evidência de que dos quais não resultou qualquer prova conforme vem descrito nos nºs 7, 8, 9 e 10 da matéria dada como provada no acórdão recorrido, verifica-se inequivocamente uma insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e um erro notório na apreciação da prova.
5) Em nenhum momento da produção de prova na audiência de discussão e julgamento ficou minimamente demonstrado que o arguido tenha maltratado a sua mulher a partir do dia 06 de Maio de 2003, e durante o ano de 2004, nomeadamente, algures no mês de Janeiro ou na noite de 18 para 19 de Março.
6) Quanto à questão da violação do princípio «ne bis in idem» importa reter que, ao contrário do que vinha alegado na presente acusação, estes últimos factos (as supra referidas situações ocorridas posteriormente a 06 de Maio de 2003) foram já devidamente consideradas e valoradas pelo tribunal que julgou o arguido no âmbito do NUIPC …/03.7.
7) O princípio da legalidade impõe a exigência da intervenção judicial ou da imediação judicial na aplicação ou na apreciação da responsabilidade criminal do agente e com mais interesse directo para o presente caso, o princípio da legalidade impõe ainda a proibição de uma dupla condenação pelo mesmo facto.
8) Ao decidir como decidiu, o douto acórdão violou, pelo menos, as seguintes normas: art. 61 nº 1-c) e 343 nº 1 do Código de Processo Penal; artigo 29 nº 5 da Constituição da República Portuguesa; arts. 32 nº 1 da Constituição da República Portuguesa, 10 e 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem e 6º da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.”
Termina pedindo o provimento do recurso e a consequente revogação do acórdão recorrido.

3. Na 1ª instância, o MºPº respondeu ao recurso (fls. 513 a 517), concluindo pelo não provimento do recurso e pela confirmação do acórdão recorrido.

4. Nesta Relação, o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor visto (fls. 524).

5. Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.

6. No acórdão sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1. “O arguido casou com C………. no dia 15 de Junho de 1953.
2. Durante cerca de 28 anos estiveram emigrados em França, tendo regressado definitivamente a Portugal há cerca de 9 anos, passando a viver numa casa situada no n°… da Rua ………., ………. nesta comarca de Vila do Conde.
3. A partir de 30/05/2003, a ofendida começou a ser seguida regularmente no D………. que funciona no Hospital ………., na cidade do Porto.
4. Tal ocorreu devido aos comportamentos adoptados pelo arguido, os quais causaram desde sempre na C………. grande tristeza e sentimentos depressivos, levando-a a refugiar-se no consumo excessivo de álcool.
5. Em Maio de 2003, na sequência de mais uma agressão consumada pelo arguido no dia 6 desse mês e ano, a C………. apresentou queixa, a qual deu origem ao inquérito com o NUIPC …/03.7 GAVCD, onde acabou por ser deduzida acusação, com a data de 12/12/2003, tendo o Ministério Público imputado ao arguido a prática do crime de maus tratos.
6. Submetido a julgamento pela prática dos factos ali imputados, por sentença proferida a 3 de Março de 2005 e transitada em julgado, o arguido foi condenado na pena de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos.
7. Porém, depois do dia 6 de Maio de 2003 (data da última agressão imputada ao arguido no mencionado processo) e mesmo após o conhecimento da acusação, o arguido continuou a agredir a C………. com murros, empurrões, pontapés e bofetadas e contra ela proferindo as expressões “filha da puta” e “bêbada”.
8. No mês de Janeiro de 2004, em dia e hora que não foi possível apurar, na casa onde viviam, o arguido atingiu, com especial incidência nos membros inferiores, o corpo da sua mulher, com bofetadas, murros e pontapés.
9. Com estas agressões causou na ofendida múltiplas contusões o que a levou a no dia 4 de Fevereiro seguinte a dirigir-se à G.N.R. para apresentar queixa por esses factos.
10. Na noite de 18 para 19 de Março de 2004, o arguido voltou a agredir a ofendida no corpo, com um objecto contundente que não logrou apurar-se, causando-lhe lesões, cuja extensão não foi possível apurar-se.
11. No interior da cozinha da casa de ambos foram encontradas manchas de sangue da C………. .
12. A ofendida encontrava-se alcoolizada, apresentando uma T.A.S. de 2,24 g/l.
13. A hora que não foi possível apurar, mas provavelmente após as 04.00 horas dessa madrugada, a C………. acabou por falecer no interior da casa de banho, dentro da banheira, sem água, deitada de bruços e apoiada com a cabeça numa das extremidades laterais, envergando apenas roupa interior, sem que tenha sido possível apurar por que forma ali se colocou ou foi colocada.
14. Apresentava as seguintes lesões: - na cabeça: área de escoriação de forma irregular interessando a região inter-parietooccipital; equimose peri-orbicular bilateral; hemorragia sub-conjuntival direita; escoriações várias, de forma irregular, dispersas pela região frontal, dorso do nariz, região malar, região mentoniana esquerda; área de escoriação, de forma irregular, interessando a região da hemiface esquerda; contusões de forma irregular, localizadas na parte interna de ambos os lábios e fractura dos ossos próprios do nariz. – no tórax: equimose de forma irregular, localizada no quadrante infero-externo da mama esquerda; no abdómen: equimoses, de forma irregular, em ambos os flancos; - nos membros superiores: equimoses, de formas arredondadas e irregular, localizadas nas partes anterior e posterior do braço esquerdo; equimose, de forma irregular, na parte posterior do cotovelo esquerdo; área de equimoses, de forma irregular, localizadas no antebraço esquerdo; - nos membros inferiores: escoriações de forma irregular e linear localizadas na parte lateral da metade inferior da coxa direita; - escoriações, de forma linear, de direcção aproximadamente horizontal, localizadas na parte lateral do terço inferior da coxa esquerda; equimose, de forma irregular, localizada no joelho direito; escoriações, de forma irregular e linear, localizadas na parte anterior do joelho esquerdo; outras equimoses, com as mesmas características, localizadas à direita, na parte anterior do joelho e terço superior da perna.
15. A morte da ofendida foi devida a asfixia provocada por aspiração de sangue consecutiva às lesões traumáticas da face.
16. Cerca das 8 horas, o arguido dirigiu-se a casa da sua vizinha E………. pedindo-lhe que viesse a sua casa pois a “a B1………. estava morta”, assim se referindo à vítima.
17. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente com o firme propósito de atingir o corpo da ofendida, bem como a sua honra e consideração de forma repetida, o que conseguiu.
18. Caso não tivesse morrido, as lesões apresentadas pela ofendida teriam demandado um período de doença de 20 dias sem afectação grave da capacidade para o trabalho.
19. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
20. O arguido respondeu criminalmente no processo supra referido pela prática do mesmo tipo de crime, tendo sido condenado, por sentença de 03.03.2005, transitada em julgado, na pena de 18 meses de prisão cuja execução foi suspensa pelo período de 3 anos.
21. Encontra-se reformado, auferindo uma pensão mensal no valor de 750,00 Euros.
22. Vive sozinho e tem como habilitações literárias a 4ª classe.”

7. Quanto aos factos não provados consignou-se o seguinte:
“Nenhuns outros factos constantes da acusação e contestação resultaram provados, designadamente que:
- que depois do dia 6 de Maio de 2003 o arguido agredia quase diariamente a C……….;
- que no dia 13 de Janeiro o arguido dirigiu à sua mulher, entre outras, as expressões “filha da puta” e “bêbada”;
- que as agressões praticadas pelo arguido em Janeiro de 2004 causaram na ofendida uma forte depressão nervosa que a obrigou a permanecer no leito até ao dia 4 de Fevereiro seguinte;
- que o arguido na noite de 18 para 19 de Março de 2004 atingiu a ofendida na cabeça, face, abdómen, membros superiores e inferiores, causando-lhe directa e necessariamente as seguintes lesões: - na cabeça: área de escoriação de forma irregular interessando a região inter-parietooccipital; equimose peri-orbicular bilateral; hemorragia sub-conjuntival direita; escoriações várias, de forma irregular, dispersas pela região frontal, dorso do nariz, região malar, região mentoniana esquerda; área de escoriação, de forma irregular, interessando a região da hemiface esquerda; contusões de forma irregular, localizadas na parte interna de ambos os lábios e fractura dos ossos próprios do nariz. – no tórax: equimose de forma irregular, localizada no quadrante infero-externo da mama esquerda; no abdómen: equimoses, de forma irregular, em ambos os flancos; - nos membros superiores: equimoses, de formas arredondadas e irregular, localizadas nas partes anterior e posterior do braço esquerdo; equimose, de forma irregular, na parte posterior do cotovelo esquerdo; área de equimoses, de forma irregular, localizadas no antebraço esquerdo; - nos membros inferiores: escoriações de forma irregular e linear localizadas na parte lateral da metade inferior da coxa direita; - escoriações, de forma linear, de direcção aproximadamente horizontal, localizadas na parte lateral do terço inferior da coxa esquerda; equimose, de forma irregular, localizada no joelho direito; escoriações, de forma irregular e linear, localizadas na parte anterior do joelho esquerdo; outras equimoses, com as mesmas características, localizadas à direita, na parte anterior do joelho e terço superior da perna;
- que a agressão perpetrada pelo arguido na noite de 18 para 19 de Março de 2004 se iniciou no interior da cozinha;
- que tais agressões continuaram na casa de banho habitualmente usada pela ofendida e para onde se dirigira, local onde o arguido a acabou por a deixar, apesar de se ter apercebido da gravidade das lesões por si infligidas e de ter constatado que a C………. sangrava abundantemente pelo nariz;
- No momento em que se ausentou da casa de banho e ali deixou a vítima, o arguido estava consciente de que a C………. carecia do seu auxílio, já que sangrava abundantemente pelo nariz e boca e, pelo estado de embriaguez em que se encontrava, não conseguia reagir às consequências das agressões;
- Não obstante, o arguido retirou-se daquele local e dirigiu-se para o seu quarto onde permaneceu o resto da noite, deixando a C………. entregue à sua sorte, representando como possível que da ausência de cuidados a C………. pudesse vir a falecer como, de facto, aconteceu;
- que o arguido seja uma pessoa considerada por todos quanto o conhecem;
- que o arguido é uma pessoa séria, honesta e humilde.”

8. Na respectiva fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, fez-se constar o seguinte:
«A convicção do tribunal baseou-se, quanto aos factos considerados provados, no conjunto da prova produzida em julgamento, designadamente:
- Nas declarações do assistente, filho do arguido e da falecida C………. que descreveu com clareza e segurança todo o desenrolar da vida do casal, fruto do que desde pequeno observou, com especial incidência para o período decorrido desde Outubro de 2003 até à morte da mãe. De forma muito emocionada referiu que através de telefonemas tinha conhecimento das agressões físicas de que a mãe era vítima e infligidas pelo arguido, chegando inclusivamente a vê-la com marcas dessas agressões, marcas essas que a mesma tentava disfarçar com maquilhagem. Esclareceu também que ouviu o pai chamar “nomes” à mãe. Esta testemunha referiu ainda que o início de 2004 foi um inferno para a mãe, já que o arguido a agredia, não a deixando dormir. Quanto ao dia do falecimento da mãe deslocou-se a casa de ambos, tendo visto o estado em que aquela se encontrava dentro da banheira, além de ter detectado marcas de sangue no corredor e cozinha. Pronunciou-se também acerca da existência de marcas nas mãos do arguido. Acrescentou que a mãe começou a ingerir bebidas alcoólicas devido à vida que levava com o arguido, sofrendo muitas depressões e como forma de refúgio.
- No depoimento das testemunhas F………., G………. e H………., respectivamente irmãos e cunhada da vítima e que viviam próximo da mesma, referindo que o arguido chamava constantemente “nomes” à mulher e a agredia, chegando eles a vê-la com marcas dessas agressões em diversas partes do corpo. Estas testemunhas referiram que, embora não tivessem assistido às agressões, a vítima queixava de que o marido lhe batia e várias vezes a viram ferida na cara. Concretizaram no tempo tais agressões situando-as em fins de 2003 e Janeiro de 2004.
- No depoimento da testemunha I………., sobrinha da arguido e da vítima e a quem esta também confirmou que o marido lhe batia.
- No depoimento das testemunhas E………. e J………., ambas vizinhas do arguido e da vítima e que devido ao estado de proximidade se apercebiam de discussões entre eles, chegando a ver a falecida com marcas das agressões provocadas pelo marido. Também a elas a vítima confidenciava que o marido a agredia.
- No depoimento da testemunha K………., nora do arguido que, de forma muito emocionada, contou que a sogra, desde Julho de 2003 até falecer, lhe telefonava amiúde a contar as agressões de que era vítima por parte do marido. Acrescentou que várias vezes, situando no tempo tais situações, viu a sogra com lesões em diversas partes do corpo, lesões essas que segundo a mesma, eram provocadas pelo arguido.
- No depoimento da testemunha L………., médica no D………. e que nessa qualidade acompanhou a falecida no seu problema de alcoolismo. Confirmou os relatos de maus tratos de que a mesma era vítima por parte do marido, esclarecendo que era a própria C………. que lhe contava. Explicou como os referidos maus tratos influenciavam o estado clínico daquela e como tentou ajudá-la. Confirmou o teor do relatório clínico por si elaborado e constante de fls. 131 e 132.
- No depoimento do Sr. Perito Dr. M………. que elaborou o relatório de autópsia junto de fls. 196 a 205, tendo confirmado o mesmo. Tal depoimento relevou na medida em que explicou coerentemente e com bastante precisão quais as lesões internas e externas que a C………. apresentava e qual terá sido a causa da sua morte. Foi peremptório ao afirmar que as lesões apresentadas foram produzidas por instrumento de natureza contundente, sendo que não conseguiu distinguir se as mesmas foram causadas por uma agressão (utilização de objecto contundente) ou uma queda. Adiantou que nenhuma das lesões por si encontradas na vítima são causa directa da morte. Explicou igualmente o estado de embriaguez em que a vítima se encontrava, explicando quais as implicações de tal facto.
Teve também o tribunal em conta o teor dos documentos juntos de fls. 91 a 101 (certidão da sentença proferida nos autos n.° …/03.7GAVCD), 17 a 25, 71 e 72 (acusação proferida nos referidos autos).
Considerou também o tribunal os exames periciais efectuados pelo IML e constantes de fls. 78 a 84 (relatório de perícia médico-legal), 196 a 205 (relatório de autópsia), bem como o relatório clínico do D………. constante de fls. 131 e 132 dos autos.
Quanto às condições económico-sociais do arguido teve-se em conta as suas próprias declarações.
No que tange aos antecedentes criminais, foi analisado o Certificado de Registo Criminal.
Quanto aos factos considerados como não provados pelo tribunal, tal deveu-se à ausência de prova.
Acresce o que se referiu supra quanto ao depoimento do Sr. Perito M………. . Face ao respectivo depoimento não é possível imputar o resultado “morte” ao arguido.
Ou melhor, apenas se apurou que o arguido agrediu a falecida, não se logrando apurar quais as lesões que o mesmo lhe provocou e muito menos que a mesma veio a falecer em consequência da conduta do arguido. Em suma o tribunal não pode concluir sem uma dúvida razoável ter o arguido praticado os factos constantes da acusação no que se refere ao resultado “morte”.»
*
II- FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação que apresentou (art. 412 nº 1 do CPP).
As questões que se colocam são as seguintes:
1ª - Analisar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, quanto aos pontos 7 a 10 dos factos dados como provados, uma vez que, na perspectiva do recorrente, por um lado, o tribunal já teria a sua convicção (no sentido da culpabilidade do arguido) formada antes do início do julgamento e teria até pressionado o arguido a prestar declarações, tendo valorado (em seu desfavor) o seu silêncio e, por outro lado, a prova produzida em julgamento (concretamente os depoimentos das testemunhas N………., F………., G………., H………., I………., J………., K………., nas partes que assinala, conjugadas com declarações prestadas pelo perito do IML) levava a decisão diversa (sustentando, ainda, que existiria insuficiência para a decisão da matéria de facto e erro notório na apreciação da prova), ou seja, a que tais factos fossem dados como não provados, o que conduziria à sua absolvição;
2ª - Verificar se foi violado o princípio ne bis in idem, uma vez que na perspectiva do recorrente as condutas apreciadas nestes autos (cujo acórdão é objecto de recurso), já teriam sido valoradas no processo nº …/03.7GAVCD (no qual acabou por ser condenado) e, portanto, importa saber se há violação do princípio da “proibição da dupla condenação pelo mesmo facto”.
Passemos, então, a apreciar as questões suscitadas no recurso aqui em apreço.
1ª Questão
Importa, então, analisar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, quanto aos pontos 7 a 10 dos factos dados como provados, tendo em atenção a argumentação sustentada pelo recorrente.
Como se verifica dos autos, procedeu-se à documentação (por meio de gravação) das declarações prestadas oralmente em audiência de julgamento, encontrando-se juntos aos autos os respectivos suportes técnicos (hoje em dia, não é exigida a transcrição, sendo certo que a sua falta não constitui obstáculo ao conhecimento de impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, desde que cumpridos os respectivos ónus legais).
Embora de forma pouco modelar, lendo a motivação apresentada pelo arguido, percebem-se quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, tendo, ainda, indicado, embora de forma deficiente, mas perceptível, as provas produzidas em audiência que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa, fazendo referência a suportes técnicos, considerando terem sido as mesmas provas incorrectamente apreciadas pelo tribunal a quo e, concluindo, pela modificação da matéria de facto, com a sua consequente absolvição.
Consideramos, pois, que o recorrente cumpriu os ónus de impugnação da decisão da matéria de facto, indicados no art. 412 nº 3 e 4 do CPP.
Atentos os poderes de cognição das Relações (art. 428 nº 1 do CPP), uma vez que a prova produzida em audiência de 1ª instância foi gravada, constando dos autos os respectivos suportes técnicos (art. 412 nº 3 e 4 do CPP), pode este tribunal conhecer da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Mas, convém aqui lembrar que “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.”[1]
Ou seja, a gravação das provas funciona como uma “válvula de escape” para o tribunal superior poder sindicar situações insustentáveis, situações limite de erros de julgamento sobre a matéria de facto[2].
Os elementos de que esta Relação dispõe, no caso em apreço, são apenas a gravação da prova produzida oralmente em audiência na 1ª instância e as provas documental e pericial juntas aos autos, aludidas na motivação de facto da sentença sob recurso.
Assim, não obstante os seus poderes de sindicância quanto à matéria de facto, a verdade é que não podemos esquecer a percepção e convicção criada pelo julgador (neste caso pelo tribunal colectivo) na 1ª instância, decorrente da oralidade da audiência e da imediação das provas.
O juízo feito pelo Tribunal da Relação é sempre um juízo distanciado, que não é «colhido directamente e ao vivo», como sucede com o juízo formado pelo julgador da 1ª instância.
É que, a credibilidade das provas (o seu mérito ou desmérito) e a convicção criada pelo julgador da 1ª instância «tem de assentar por vezes num enorme conjunto de situações circunstanciais, de tal maneira que essa convicção criada assenta não tanto na quantidade dos depoimentos prestados, mas muito mais em outros factores»[3], fornecidos pela imediação e oralidade do julgamento, «onde para além dos testemunhos pessoais, há reacções, pausas, dúvidas, enfim, um sem número de atitudes que podem valorizar ou desvalorizar a prova que eles transportam»[4].
Posto isto, não esquecendo que o princípio da livre apreciação da prova (art. 127 do CPP) também se aplica ao tribunal da 2ª instância, importa “saber se existe ou não sustentabilidade na prova produzida para a factualidade dada como assente, e que é impugnada, sendo que tal sustentabilidade há-de ser aferida através da verificação da existência de prova vinculada, da verificação da existência de erros sobre a identificação da prova relevante e da constatação da inconsistência mínima de certo facto perante uma revelada fonte que o suporta”[5].
E, claro, há que ter presente que, com as provas “pretende-se comprovar a realidade dos factos”, ou seja, pretende-se “comprovar a verdade ou a falsidade de uma proposição concreta ou fáctica”[6], criar no juiz um determinado convencimento.
Produzidas as provas em audiência de julgamento, o julgador (seja o tribunal singular, seja o tribunal colectivo) terá de as apreciar, com vista à sua valoração.
Para esse efeito vai desencadear dois tipos de juízos ou operações que estão intimamente relacionados entre si: o primeiro tem a ver com a interpretação das provas e, o segundo com a valoração propriamente dita dessas mesmas provas[7].
O que implica um exercício de comparação (entre, por um lado, os factos alegados pela acusação e pela defesa e, por outro, as afirmações instrumentais, decorrentes das provas produzidas, que se reputaram como certas e reais) que irá conduzir a uma necessária dedução de factos (dedução de um facto a partir de outro ou outros factos que se deram previamente como provados através do referido exercício de comparação)[8].
Quando procede à apreciação das provas, o julgador está sujeito a determinados limites que tem de respeitar, nomeadamente, decorrentes da vinculação temática e do funcionamento do princípio da livre apreciação da prova (art. 127 do CPP), bem como das respectivas “excepções” ou limitações.
A decisão sobre a matéria de facto há-de ser, assim, “o resultado de todas as operações intelectuais, integradoras de todas as provas oferecidas e que tenham merecido a confiança do Juiz”[9].
Pois bem.
Começando pela “acusação” feita pelo recorrente, no sentido de o tribunal colectivo já ter a sua convicção (no sentido da culpabilidade do arguido) formada antes do início do julgamento e de ter até pressionado o arguido a prestar declarações em audiência, tendo valorado (em seu desfavor) o seu silêncio, ouvido o respectivo suporte técnico, verificamos que tais afirmações são absolutamente falsas.
Com efeito, em parte alguma do que se ouve no suporte técnico respectivo, se nota, por mínima que seja, qualquer “pressão” (como falsamente e sem qualquer objectividade é sustentado pelo recorrente) por parte do tribunal em relação ao arguido para prestar declarações, em audiência, quando lhe foi perguntado se queria falar sobre a acusação que lhe fora lida previamente.
Aliás, o arguido foi previamente (antes da leitura da acusação) esclarecido que não era obrigado a falar e que o seu silêncio o não podia desfavorecer.
Depois de lida a acusação (tal como fora informado previamente) foi perguntado sobre se queria falar e, perante a resposta dúbia que o arguido deu (que não foi peremptório na sua resposta de não querer prestar declarações), o tribunal apenas procurou esclarecer se o arguido queria ou não falar – o que fez de forma clara e desinteressada (uma vez que inclusivamente o arguido até referiu que não valia a pena falar) explicando-lhe que estavam a tratar de processo diferente daquele em que já respondera (uma vez que o arguido se referiu a esse processo) – e, mal esclareceu essa situação, mandou-o sentar-se e passou a ouvir a prova que iria ser produzida em julgamento.
Não houve, por isso, qualquer “diálogo persecutório”, nem se induz das breves palavras trocadas pela Srª. Juíza com o arguido, qualquer “intenção de confundir o arguido”, como sustenta o recorrente.
E, ao contrário do que sugere o recorrente (quando diz que o arguido acabou “involuntariamente até, por … negar a prática do crime”), em parte alguma da decisão recorrida se valorou qualquer declaração do arguido sobre os factos que lhe eram imputados na acusação.
Aliás, os comentários feitos na motivação de recurso, v.g. sobre a falta de isenção do tribunal, sobre os pré-juizos de culpabilidade com que o tribunal teria ido para o julgamento e sobre as pressões que teria feito sobre o arguido (para além de altamente ofensivos) são perfeitamente despropositados e gratuitos, não encontrando um mínimo de apoio no que consta do respectivo suporte técnico (nem nos demais, os quais também foram ouvidos na sua totalidade para que não restassem quaisquer dúvidas, face à gravidade das imputações feitas, uma vez que inclusivamente se referia – na motivação do recurso – ter sobrado “um sentimento de verdadeiro embuste”).
Portanto, essa argumentação (que ultrapassa o “mero desabafo”) é inconsequente, não havendo qualquer violação dos direitos do arguido, enquanto sujeito processual: ou seja, nesse domínio, não foram violados os artigos 61 nº 1-c) (hoje correspondente ao art. 61 nº 1-d) do CPP na versão da Lei nº 48/2007, de 29/8) e 343 nº 1 do CPP, nem o art. 32 nº 1 da CRP, invocados pelo recorrente.
E, também não releva a confusão que o recorrente faz (ou quer fazer) entre o direito ao silêncio, que qualquer arguido goza, com as considerações feitas pelo tribunal colectivo, no momento da determinação da medida concreta da pena.
Nesse aspecto (cf. ponto “IV – Determinação da medida concreta da pena”, fls. 465 e 466), o tribunal da 1ª instância foi bem claro quando, analisando a conduta do arguido, para efeitos do disposto no art. 71 do CP, referiu:
“(…) Com a sua conduta mostrou elevado desprezo pela integridade física e psicológica da ofendida.
A própria postura do arguido em audiência de julgamento, que preferiu remeter-se ao silêncio, embora configure uma faculdade prevista na lei e que não o pode desfavorecer, também é certo que não pode trazer-lhe qualquer benefício. Com efeito, não prestando qualquer declaração, o arguido por um lado não colaborou com o tribunal para a descoberta a verdade e. por outro lado. Não demonstrou qualquer arrependimento quanto à sua conduta, manifestamente grave. (…)”.
Tais apreciações, feitas pelo tribunal colectivo, no âmbito da determinação da medida concreta da pena (portanto, já depois de proferida a decisão sobre a matéria de facto, depois de apresentada a respectiva motivação, bem como após o enquadramento jurídico-penal – incluindo análise da questão prévia da invocada violação do princípio ne bis in idem – tudo conforme a estruturação de qualquer sentença ou acórdão) não podem ser descontextualizadas, como o faz o recorrente, quando pretende retirar ilações não consentidas pelo texto da decisão recorrida.
Em parte alguma da decisão sob recurso, consta qualquer valoração em prejuízo do arguido, pelo facto de o mesmo ter exercido o seu direito ao silêncio[10].
Aliás, é expressamente referido que o mesmo não pode ser desfavorecido por exercer esse direito ao silêncio.
Qualquer interprete (considerando o homem médio) percebe que, aquela afirmação feita a nível da determinação da medida concreta da pena, significa que o arguido não podia beneficiar de atenuantes, como o arrependimento ou a colaboração para a descoberta da verdade, por se ter remetido ao silêncio em julgamento e não haver prova nesse sentido.
Essa interpretação é perfeitamente perceptível por, não ter sido produzida prova (v.g. testemunhal) que sustentasse por exp. qualquer arrependimento ou colaboração na descoberta da verdade, apesar de o arguido se ter remetido ao silêncio, como tinha todo o direito de o fazer.
Com efeito, se essa prova tivesse sido produzida e, obviamente tivesse convencido o tribunal, nada obstava à sua apreciação em termos de medida concreta da pena.
Como não foi produzida essa prova, não podiam retirar-se tais ilações favoráveis (de forma positiva) do comportamento do arguido em audiência.
Portanto, neste aspecto, é o recorrente – e não o tribunal a quo – que faz conjecturas, não sustentadas no texto da decisão, sobre uma pretensa valoração, em seu desfavor, do silêncio do arguido como meio de prova.
Não se detecta, por isso, qualquer violação do princípio da presunção de inocência ou do privilégio que, qualquer arguido goza, de não se auto-incriminar[11], pilares esses que asseguram o acesso a um verdadeiro processo equitativo[12].
Avançando para a análise da prova oral produzida em julgamento (tendo em atenção as declarações do assistente, das testemunhas de acusação e dos peritos), vejamos então se foi ou não produzida prova bastante que sustente a matéria de facto dada como provada, na parte aqui impugnada (seus pontos 7 a 10).
Na versão do recorrente, era impossível ao tribunal da 1ª instância (por falta de produção de qualquer prova nesse sentido) dar tais factos como provados.
Para tanto, apela às declarações do perito (Sr. Dr. M……….) e a parte de declarações que transcreve e imputa às testemunhas N………., F………., G………., H………., I………., J………. e K………., sustentando que houve erro notório na apreciação da prova e que, face ao erro de julgamento quanto aos pontos que impugna, tais factos terão de ser dados como não provados e, consequentemente, existirá insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Vejamos, então, ouvindo os respectivos suportes magnéticos da prova oral produzida em julgamento e, conjugando-os com a demais prova constantes dos autos (mencionada no texto da motivação de facto do acórdão sob recurso), se as fontes indicadas, na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, permitem “o convencimento justificado quanto à existência histórica de toda a facticidade dada como provada”, atenta, também, a apreciação crítica das provas que é feita no acórdão sob recurso.
Começando pelas declarações prestadas pelo assistente N………. (filho do arguido e falecida mulher) em audiência de julgamento, o recorrente pretende sustentar (face ao que transcreve na motivação de recurso) que das mesmas, apenas se pode concluir que não presenciou qualquer agressão do pai em relação à mãe (quer em Janeiro de 2004, quer no dia 18 para 19 de Março de 2004, apenas tendo visto a mãe, depois de morta, dentro da banheira do quarto de banho, da casa onde vivia) e que, as declarações que prestou no dia do julgamento destes autos (12/9/2007) foram as mesmas que já havia prestado no julgamento do processo nº …/03.7GAVCD (no qual o arguido foi condenado, por sentença de 3/3/2005, transitada em julgado – conforme certidão de fls. 216 a 226 destes autos – por um crime de maus-tratos em relação à mulher, tal como aludido no ponto 20 dos factos dados como provados).
Mas, ouvindo essas declarações prestadas pelo mencionado assistente é evidente que as mesmas não se cingiram aos aspectos que, de forma interessada, foram indicados na motivação de recurso.
Com efeito, resulta dessas declarações que, pese embora o assistente N………. não tivesse presenciado as agressões descritas nos pontos 8 e 10 dos factos dados como provados, a verdade é que fez referência a episódios que evidenciaram o tipo de relacionamento que existia entre os pais.
Concretamente (apesar de ter deixado de viver com os pais desde os 22 anos de idade), depois de Maio de 2003, ouviu várias vezes o pai a insultar a mãe, chamando-lhe “puta”, “vaca” e, em Outubro de 2003 (quando o assistente vivia em casa da sogra), em data que não soube indicar, um tio foi buscá-lo porque o pai tinha posto a mãe fora de casa, tendo então se dirigido a casa dos pais, lá entrando (onde então a mãe não estava no seu interior), indo falar com o pai que estava na quarto de banho, vendo-o com uma espécie de vermelhões na cara, tendo depois (nessa mesma ocasião) visto a mãe muito depressiva e com marcas nas pernas.
Noutra ocasião, no natal de 2003, o pai convidou-o para ir jantar lá a casa no dia 25/12 (que a mãe fazia a comida) e, quando nesse dia lá chegou, a mãe avisou-o que não sabia como ia ser, porque o pai estava “com os copos” e, quando este (o pai) chegou a casa, insultou a mãe de “puta” e “vaca” e ele tentou acalmar as coisas, ficando lá em casa até às 5 horas da manhã, para o pai ir para a cama (e, portanto, não agredir a mãe) e poder ficar mais sossegado em relação à mãe.
Mencionou, também, o assistente, que no início do ano de 2004 “foi um inferno”, o pai “virou-se completamente”, chamava nomes à mãe, não a deixava dormir e que esta (a mãe) lhe telefonava a ele e à esposa (mais até à K………. - porque a ele escondia-lhe o que se passava em casa, tinha medo de lhe contar, fugia a dizer o que acontecia – relatando até episódio em que questionou a mãe por a ter visto com os lábios azulados, respondendo ela que foi uma coisa que fez, sem esclarecer melhor) e que, mal o pai chegava a casa, desligava logo o telefone.
Acrescentou que a mãe foi proibida pelo pai de sair de casa e de falar com familiares e que, quando estava depressiva, bebia, o que sucedia por causa do relacionamento que tinha com o pai e da forma como este a tratava.
Inclusivamente referiu que a mãe se pintava na cara para esconder lesões que tinha na face.
Também mencionou que, quando o próprio assistente estava presente, nunca houve agressões porque sempre tentou acalmar os conflitos, mas havia muitos conflitos.
Depois relatou o que viu no dia 19/3/2004, em casa dos pais, indicando os locais onde viu sangue (no corredor, em cima do frigorifico, na cozinha, além da casa de banho –cf. também imagens de fls. 21 e 22), como encontrou a mãe (a este propósito conferir as imagens de fls. 17 a 20) contando a explicação que então o pai lhe deu, quando o questionou sobre o que se tinha passado.
Notou que naquela altura o pai estava nervoso, explicando que vira a mãe no chão e então pô-la na banheira, foi-se deitar e, de manhã, é que a viu morta na casa de banho, mencionando também que haviam discutido; também reparou que o pai tinha as mãos nos bolsos mas, depois, quando falava, tirou-as dos bolsos e viu-as inchadas – igual a quem joga boxe – perguntando-lhe porque tinha assim as mãos, tendo ele lhe dito que tinha andado a cortar lenha (para além disso, também referiu ter visto marcas nos braços e mãos do pai, o que também é confirmado pelas imagens de fls. 24 e 25).
E, repare-se que as declarações do assistente relatando essa conversa que teve com o pai (arguido), é de livre apreciação por parte do tribunal, uma vez que o arguido esteve presente em audiência e, apesar de se ter remetido ao silêncio, não estava impossibilitado (através do seu advogado) de contraditar aquelas declarações[13].
Adiante-se, também, que o mesmo se passa com os depoimentos das testemunhas que relataram conversas que tiveram com a C………. (que são também de livre apreciação, nos termos do art. 127 do CPP).
Mas, voltando ao assistente, é claro que o seu relato não se limitou ao que foi mencionado na motivação do recurso, sendo certo que, ainda que as suas declarações coincidissem com as que prestou no julgamento do processo nº …/03.7GAVCD, como é bem claro (e elementar), até confrontando o teor da respectiva peça acusatória (fls. 70 a 72) – que delimitava o objecto desse processo – com o teor da sentença ali proferida (fls. 91 a 101), no mais que extravasaram a matéria ali em apreciação, não foram valoradas, sendo, por isso, perfeitamente irrelevantes as respostas que a esse respeito deu (no julgamento onde foi proferida o acórdão sob recurso), a instâncias do mandatário do arguido.
Ou seja, a apreciação feita pelo tribunal colectivo, quanto às declarações prestadas pelo assistente, encontra suporte no que consta da respectiva cassete onde as mesmas se encontram gravadas.
Também a testemunha E………. (vizinha da casa onde vivia o arguido e a falecida, amiga de ambos, sendo até “compadres”), relatou a forma como soube pelo arguido, no dia 19/3/2004, pelas 7h45m, da morte da “B1……….” (nome pelo qual por todos era conhecida quer a falecida, quer a sua família), o estado em que ele se encontrava (com “cara de terror”), mencionando, ainda, o que viu quando lá chegou a casa.
Esta testemunha também referiu ser frequente ouvir discussões (onde prevalecia a voz do arguido), principalmente no ano antes do falecimento da C………., tendo visto, várias vezes, a GNR lá à porta da casa do referido casal (o que é elucidativo do seu mau relacionamento).
Também contou o episódio da discussão que ouviu, quando foi bater com força à persiana de uma das janelas da casa do arguido e mulher (dessa forma acalmando o que se passava no seu interior que, todavia, não conseguia ver), o qual não soube situar com precisão quando teria ocorrido, mencionando que podia ter sido no mesmo ano do falecimento da C………., como no ano anterior.
Referiu, ainda, que o mau relacionamento do casal se agravou mais no ano em que a C………. faleceu (portanto, em 2004) e que esta, apesar de desabafar com a testemunha, encobria o marido (porque tinha vergonha); contou também o episódio em que viu a falecida com “uma vista pisada” (tendo-se apercebido que antes de a ver assim tinha havido discussão entre o casal) e que a mesma lhe disse que fora o arguido que lhe batera.
Neste aspecto, portanto, a apreciação deste depoimento, feita na motivação constante da decisão recorrida, também encontra suporte no teor da respectiva gravação.
Olhando, agora, para os esclarecimentos prestados pelo perito médico M………. (que verificou o óbito no próprio local onde se encontrava a C………., onde teria chegado por volta das 11 horas da manhã e depois fez a autópsia, consoante consta do relatório de fls. 196 a 205), verifica-se que, efectivamente, se pode chegar à conclusão que nenhuma das lesões (internas e externas) da C………. foi causa idónea da morte, sendo certo que as mesmas lesões para curar demorariam 1 a 2 meses, sem deixar sequelas. A causa da morte foi a “asfixia por aspiração de sangue”, consecutiva às lesões traumáticas na face (as lesões internas, da fractura dos ossos do nariz, eram as que podiam causar um sangramento muito mais acentuado, ao contrário das lesões externas – sendo certo que a falecida apresentava na face e pelo corpo todo escoriações, equimoses e hematomas, que, contudo, não causam sangramento abundante). Essa asfixia, para a qual contribuiu o facto de a C………. estar alcoolizada (em vida a quantidade de álcool era superior à detectada na autópsia e, também foi detectado que se tratava de pessoa que sofria de alcoolismo crónico, pelo estado do fígado), foi a causa da morte; porém, pela autópsia, não se pode excluir a hipótese de haver outras causas concomitantes (portanto decorrentes de outras situações que não advém de lesões traumáticas) com aquele sangramento que adveio da fractura dos ossos do nariz.
Quanto às lesões externas que a falecida apresentava dispersas por todo o corpo, o perito apenas foi capaz de afirmar que foram produzidas por acção de instrumento contundente, o que tanto abrangia situações de agressão, como de queda, como ambas, não podendo, por isso, determinar a sua causa; mas o certo é que essas lesões externas que apresentava eram recentes (tinham sido feitas dentro das 24h/48h antes do traumatismo, sendo certo que quando o perito chegou ao local onde se encontrava a falecida – por volta das 11 horas - pelos livores cadavéricos que viu, que ainda não estavam fixados, a hora do falecimento ocorreu menos do que as 6h/8h antes das 11 horas).
Esclareceu, também, o perito médico, que nos alcoólicos crónicos (em que o sangue tem mais dificuldade em coagular) – que, como sabido, muitas vezes perdem o equilíbrio – um pequeno toque em qualquer objecto faz logo uma “pisadura”.
Ou seja, se é certo que (como se diz na motivação de facto do acórdão sob recurso), pelos esclarecimentos do perito «não é possível imputar o resultado “morte” ao arguido», a verdade é que, essa conclusão e demais declarações do mesmo perito, não afastam, nem contrariam (obviamente existindo prova nesse sentido), que fosse dado como provado o que consta do ponto 10.
É que o perito não excluiu a possibilidade de as lesões externas que a C………. apresentava terem sido causadas por agressão: apenas disse que tanto podiam ter sido causadas por agressão ou por queda.
Não há, por isso, qualquer contradição ou incoerência, como alega o recorrente, nessa parte (os últimos dois parágrafos) da motivação de facto da decisão recorrida.
E, não se esqueça, também, que das declarações do assistente resulta que (quando no dia 19/3/2004 perguntou ao pai o que se tinha passado), também viu no pai as lesões externas acima referidas, as quais também se mostram documentadas nas imagens de fls. 24 e 25 (o que aponta para a existência de agressão no casal, sendo disso sinal as pisaduras que o próprio arguido apresentava naquelas imagens).
Isto, já para não falar, considerando a versão apresentada pelo assistente (que, todavia, nessa parte não convenceu o tribunal, face ao consta da parte final do ponto 13 dos factos provados), na incoerente explicação que diz ter ouvido ao pai (da qual resultaria uma omissão inexplicável de auxílio à mulher, por a ver naquele estado e a colocar dentro da banheira).
Aliás, não deixa de ser estranho o local e posição em que a falecida aparece dentro da banheira, não obstante o tribunal colectivo não ter conseguido “apurar por que forma ali se colocou ou foi colocada”.
Para além disso, não se pode deixar de olhar para as lesões exteriores que a falecida apresentava (que constam das imagens de fls. 19 e 20), articulando-as quer com as declarações do assistente (na parte em que se referiu às lesões exteriores que viu no pai, documentadas a fls. 24 e 25), quer com o depoimento da testemunha J………. (abaixo melhor descrito) e, os próprios esclarecimentos do perito (Sr. Dr. M……….), para se compreender a razão pela qual foram dados como provados os factos que constam no ponto 10 impugnado.
Passando, agora, à testemunha F………. (irmã da falecida C………. e cunhada do arguido), o recorrente pretende sustentar (face ao que transcreve na motivação de recurso) que a mesma não presenciou qualquer agressão do arguido em relação à mulher (que o episódio que a testemunha relatou não foi por ela presenciado, antes lhe foi contado) e que, também, o seu depoimento prestado no dia do julgamento destes autos (12/9/2007) foi o mesmo que já havia prestado no julgamento do dito processo nº …/03.7GAVCD.
Mas, ouvindo esse depoimento é evidente que o mesmo não se cingiu aos aspectos evidenciados, de forma interessada, pelo arguido na motivação de recurso.
Com efeito, resulta desse depoimento que, pese embora a referida testemunha não tivesse presenciado as agressões descritas nos pontos 8 a 10 dos factos dados como provados, a verdade é que fez referência a episódios que evidenciaram o tipo de relacionamento que existia entre o casal.
Nomeadamente, referiu ter sido proibida de entrar lá em casa pelo arguido (que a chegou a por fora de casa, antes de 2003 ou nesse ano de 2003, numa ocasião em que se encontrava no seu interior), relatou episódio em que viu a irmã C………. (que tratava por madrinha) com ferida na cara (e explicação que ela lhe deu na altura e, posteriormente, quando foi de novo por ela confrontada relativamente a essa ferida), mencionou que também a viu com os braços pisados (quando a C………. ia a casa da testemunha estender a roupa lavada para secar), contou episódio, que se teria passado no Inverno de 2003, quando a testemunha E………., à noite, foi lá bater à porta (o mesmo que foi relatado pela testemunha E………., referindo que depois foi lá a casa da irmã C………. – numa altura em que não viu o carro do cunhado à porta – tendo visto sangue entre os azulejos e perguntado o que se tinha passado, acabando aquela por lhe dizer que fora o marido que a agredira, tendo visto que a mesma apresentava o “nariz escuro”, chegando a aconselhar a irmã a divorciar-se), mencionou que então a C………. vivia quase 24 horas em casa, que quando conversava com ela (v.g. pelo telefone), ela encobria o marido e, a partir de Janeiro de 2004, chegou a ver a GNR à porta da casa da irmã e cunhado (tendo a sua irmã lhe dito que o arguido lhe batia e então ela chamava a GNR), contando, ainda, episódio que se passou em Janeiro de 2004, quando a irmã chegou a casa (depois de vir da missa) e foi agredida pelo marido com murros e pontapés.
E, se é certo que esta testemunha igualmente confirmou que, o seu depoimento ali prestado coincidia com o que prestara no julgamento do processo nº …/03.7GAVCD, como já acima se explicou (quando se analisou a mesma questão em relação às declarações do assistente), essa confirmação (feita a instâncias do mandatário do arguido) é irrelevante e não prejudica a sua valoração no âmbito deste processo, cujo acórdão é objecto deste recurso.
Quanto ao depoimento da testemunha G………. (irmão da falecida e cunhado do arguido), as passagens que são transcritas na motivação de recurso são parciais, uma vez que omitem a parte em que essa testemunha diz ter sabido, pela sua mulher, da agressão que a sua irmã C………. foi vítima em 13/1/2004 (data que recordava, por ter sido na altura em que foi internado no hospital para ser operado à garganta e, a C………. até tinha telefonado para a mulher da testemunha a saber do seu estado, tendo ambas combinado encontrar-se na igreja nesse mesmo dia). Esta testemunha também relatou episódio ocorrido em Novembro de 2003, quando se deslocou a casa do arguido e mulher, tendo a dada altura (quando conversava com o arguido sobre poda de árvores), visto a irmã a passar, ostentando uma “marca no sobrolho”, questionando então o arguido sobre o que se tinha passado, tendo ele lhe respondido que lhe “deu um toque”. Também se referiu a deslocação que a irmã C………. fez a sua casa (levada pelo marido, procurando explicar a razão dessa atitude do arguido, pelo interesse no dinheiro da irmã), no domingo anterior ao dia do seu falecimento, altura em que falou nas suas intenções de abrir conta bancária com o arguido e, portanto, transferir o dinheiro que tinha noutra conta conjunta com a mulher da testemunha.
Relativamente ao depoimento da testemunha H………. (cunhada do arguido e da C………., sendo esta irmã do falecido marido da testemunha), na motivação de recurso também se omite parte do seu depoimento, nomeadamente, quando a testemunha contou diversas conversas (v.g. pelo telefone e pessoalmente) que teve com a C………. (quando esta, no último ano antes de morrer, se queixava do marido, de ele lhe bater, de a obrigar a beber álcool – episódio que sucedeu 2 ou 3 meses antes do seu falecimento – de conversa telefónica que teve com a C………. no dia 18/3/2004 - a qual foi interrompida quando o arguido chegou a casa, porque segundo o que a falecida contava estava proibida de falar com os familiares - de conselhos que lhe dava, para o deixar, tendo a C………. medo de sofrer represálias) e marcas que lhe viu na cara, por duas ou três vezes (dizendo-lhe a C………. que havia sido o marido que a agredira).
Seguiu-se, depois, o depoimento da testemunha L………. (médica no então designado “D………., no Hospital ……….), a qual confirmou o relatório que elaborou, constante de fls. 131 e 132, descreveu o acompanhamento que fez da C………. desde que a observou (pela 2ª vez) em 30/5/2003, mencionado os internamentos que teve (o segundo com início em 31/7/2003, na sequência do episódio que a doente lhe contou do marido a ter obrigado a beber álcool), as consultas que fez em que contactou o arguido (duas consultas em que ele esteve presente, contando o que se lembrava da conversa que tivera com o arguido, quando o conheceu, sobre a violência doméstica), chamando à atenção que a C………. nunca lhe apareceu em estado de intoxicação agudo, sempre se tendo apresentado (ao contrário de outros doentes) com um aspecto exterior muito cuidado (em relação a ela própria) e muito limpa, contando ainda alguns episódios e observações que a C………. lhe fazia (designadamente quanto a queixas de agressões do marido, a cuidados que tinha com a arrumação da casa e com o jardim), quer nas consultas, quer nos internamentos, excluindo qualquer hipótese de ela se ter suicidado.
Passando ao depoimento da testemunha I………. (filha da testemunha G………. e, portanto, sobrinha da falecida e do marido), esqueceu o recorrente de referir, na sua douta motivação, as conversas que a mesma mantinha, pelo telefone, com a C………. (v.g. onde esta lhe relatava alguns episódios do relacionamento com o marido, nomeadamente, quando ele a obrigou a beber - em data que não soube concretizar mas que situou no ano de 2003 - quando se queixava de o arguido lhe bater, de discussões que tinham e do ambiente em casa, que dormia no quarto com a porta fechada), bem como contacto pessoal que teve com a tia em Fevereiro de 2004, altura em que a mesma estava muito deprimida.
Igualmente, no que respeita ao depoimento da testemunha J………. (que então frequentava diariamente a casa da mãe – entretanto falecida – que era vizinha do arguido e mulher e que contactou e falou, com regularidade, com a C………., quando o arguido não estava em casa), o recorrente esqueceu parte do seu depoimento, concretamente no que lhe era desfavorável (resolvendo, por isso, dizer que essa testemunha mentiu ao tribunal).
Com efeito, no depoimento dessa testemunha relevam essencialmente dois episódios por ela relatados: um, é aquele que ela situou no fim do verão de 2003, mais concretamente no mês de Outubro, em dia que não soube indicar, em que viu (de tarde, quando saia de casa de sua mãe) a C………. cheia de sangue, à porta de casa, razão pela qual se aproximou dela e perguntou-lhe o que se passava (tendo então visto no interior de casa, próximo, o arguido), tendo ela lhe respondido que “atiravam bombas de tinta um ao outro” (percebendo a testemunha que a C………. não queria falar no que se passara, reparando também que dentro de casa não havia sinais de terem andado a atirar tintas) e, o outro episódio, foi no dia 18/3/2004, de tarde, por volta das 15h30-15h40m (que se lembrava também por ter uma consulta médica, nesse dia, marcada para o filho para as 15h45m), quando a C………. a esperava, muito deprimida, a chorar (a dizer que o marido lhe tinha dito de manhã que tinha uma amante), contando então que foi com ela a casa, ajudou-a quer a tomar um calmante (medicação própria que a C………. então tomava), quer a deitar-se (ajudando-a a despir-se, tirando-lhe a roupa, não lhe vendo quaisquer marcas de agressão no corpo ou na cara), sendo certo que, quando se foi embora, a deixou deitada (tendo sido a própria C………. que se quis deitar) e a mesma não cheirava a álcool.
Mais referiu esta testemunha que, a sua mãe (já falecida), lhe contou que, depois daquele episódio que situou em Outubro de 2003, viu a policia várias vezes à porta de casa da C………. e do marido.
No que respeita ao depoimento da testemunha K………. (casada com o assistente e, portanto, nora do arguido e da mulher), que viveu em Portugal entre Janeiro de 2003 até Janeiro de 2005, esqueceu o recorrente de mencionar os contactos regulares (v.g. pelo telefone) que a mesma tinha com a sogra, nomeadamente a partir de Julho de 2003 (quando passou a ter a loja e, por isso, só ia a casa dos sogros aos fins de semana, sendo certo que a IC………. escondia ao filho o que se passava para evitar que o mesmo fosse bater no pai), as lesões (“negras”) na face e no corpo (nomeadamente no verão de 2003 – lesões na cara que a sogra procurou disfarçar com “base”, mas sem êxito, porque se notava, quando lá foi à loja com o arguido – e, por volta de Fevereiro de 2004, quando viu “negras” quer na face, quer nas pernas da C……….) que lhe viu (acabando por confirmar - a instâncias do mandatário do arguido - que essas lesões que situara em Fevereiro de 2004 eram as que deram origem à queixa que a sogra apresentara, portanto à queixa que deu origem ao apenso nº …/04.3GAVCD), a descrição do episódio do natal de 2003 (que já o seu marido contara).
Este depoimento, conjugado com o daquelas testemunhas (G………. e I……….) que fizeram alusão à agressão ocorrida em Janeiro de 2004, sustentam os factos dados como provados relativos aos pontos 8 e 9 impugnados.
Finalmente, quanto ao depoimento da testemunha O………. (que mora em frente à casa do arguido e da falecida mulher) – arrolada pela defesa – a mesma referiu que nunca ouviu discussões, nunca viu a C………. com lesões, nunca a viu alcoolizada (embora notasse, ultimamente, que andaria um pouco trôpega, mas atribuía isso a problemas que ela dizia ter na cabeça), nem tão pouco viu agressões, parecendo-lhe (pelo que descreveu) que o casal vivia de forma harmoniosa mas, desconhecendo o que se passava dentro de casa do arguido e C………. .
Pronunciou-se também sobre a confiança que tinha no arguido e de lhe chamarem o “lenhador”, na brincadeira, por cortar muita lenha (o que inclusivamente teria feito, até tarde, no dia anterior ao falecimento da C……….).
Como se verifica do supra exposto, a motivação que consta da decisão sob recurso para a decisão proferida sobre a matéria de facto - ao contrário do que alega o recorrente - encontra suporte na articulação conjugada e criteriosa da prova oral produzida em julgamento, bem como nas provas documental e pericial ali também mencionadas.
Obviamente que o tribunal tinha que conjugar os depoimentos das testemunhas ouvidas, bem como as declarações do assistente, para poder dar como provados os factos impugnados.
E, essa articulação impunha que fosse feita (como o foi) uma análise integral (e não parcial como o fez o recorrente) e articulada de cada um desses depoimentos, bem como das declarações do assistente, conjugadas, obviamente, com as demais provas mencionadas naquela motivação.
A ideia da livre apreciação da prova subjacente ao art. 127 do CPP, «uma liberdade de acordo com um dever»[14], assenta nas regras da experiência[15] e na livre convicção do julgador.
Ora, conjugando todas essas provas, compreende-se a certeza a que chegou o tribunal da 1ª instância, quando concluiu que o arguido cometeu os factos dados como provados, designadamente, os que foram impugnados.
Essa avaliação da prova feita pelo tribunal a quo não contraria as regras da experiência comum.
O tribunal da 1ª instância fez o exame crítico das provas produzidas e examinadas em audiência, as quais sustentam a convicção a que chegou, estando explicitado o processo lógico e racional seguido na apreciação da prova, tendo sido observado o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do CPP.
Todas as provas supra descritas, apreciadas em conjunto, permitiam ao tribunal colectivo, segundo as normais regras da experiência comum, formar a sua convicção no sentido dos factos que deu como provados.
Assim, improcede a argumentação do recorrente quando conclui que as provas indicadas pelo Colectivo impunham decisão diversa.
Não há, por isso, qualquer erro de julgamento, não merecendo censura a decisão proferida sobre a matéria de facto dada como provada.
Decorre do que já acima se referiu, que também não há o invocado “erro notório na apreciação da prova”, não havendo motivos para modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Igualmente não se verifica o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto.
Aliás, compulsado o texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, este Tribunal da Relação não detecta qualquer dos vícios enunciados no art. 410 nº 2 do CPP.
O acórdão sob recurso, nesse aspecto, sendo de evidente clareza, mostra coerência lógica entre factos provados e não provados, não patenteando qualquer erro de que o homem médio facilmente se desse conta.
Efectivamente, o que acontece no caso dos autos é que o recorrente esqueceu o teor do art. 127 do CPP, sendo a sua divergência pessoal e subjectiva, carecida de relevância jurídica e, como tal, inconsequente.
O que é relevante é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, e não a sua (do recorrente) convicção pessoal, nomeadamente, quando apenas selecciona a prova que lhe interessa à defesa do seu ponto de vista[16].
Assim, não havendo erro de julgamento, nem se verificando os vícios previstos no art. 410 nº 2 do CPP e, tão pouco existindo qualquer nulidade de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª instância sobre a matéria de facto.
Improcede, pois, nesta parte a argumentação do recorrente.
2ª Questão
Importa, agora, verificar se foi violado o princípio ne bis in idem, uma vez que o recorrente invoca que as condutas apreciadas nestes autos (cujo acórdão é objecto de recurso), já teriam sido valoradas no processo nº …/03.7GAVCD (no qual acabou por ser condenado) e, portanto, há que apurar se existe violação do princípio da “proibição da dupla condenação pelo mesmo facto”.
Esta questão (suscitada na contestação) foi apreciada no acórdão sob recurso nos seguintes termos:
“Na contestação veio o arguido invocar já ter sido julgado e condenado nos autos de NUIPC …/03.7 GAVCD por todos os factos constantes na acusação ora deduzida, pelo que agora, a sua submissão a julgamento, nada mais se traduz de que uma simples repetição do que já foi anteriormente julgado.
A nossa Constituição consagra de forma irrefutável o caso julgado penal, ao dispor no seu art. 29.°, n.º 5, que: «Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime».
Tal imposição surge igualmente reflectido no art. 4.º, n.º 1 do Protocolo n.º 7, da CEDH, segundo o qual “Ninguém pode ser penalmente julgado ou punido pelas jurisprudências do mesmo Estado por motivo de uma infracção pela qual já foi absolvido ou condenado por sentença definitiva, em conformidade com a lei e o processo penal”.
Consagra-se assim o designado princípio “non bis in idem”, no duplo sentido da proibição de um duplo julgamento e de uma dupla punição.
Pretende-se, deste modo e primordialmente, preservar a segurança jurídica, obstando-se que uma mesma causa seja julgada mais que uma vez, o que conduziria a uma constante perseguição criminal e à inexistência de paz jurídica. Por outro lado, visa-se igualmente garantir que a decisão judicial tomada e transitada em julgado é aquela que corresponde à verdade, evitando-se assim que uma outra venha contradizê-la.
O Código de Processo Penal de 1987 não regula de forma expressa ou implícita o instituto jurídico do caso julgado ou da exceptio judicati, sendo certo que só em duas disposições a ele se refere, designadamente no art. 84.° e no art. 467.°, n.º l.
É certo que a propósito têm surgido ao nível da jurisprudência duas posições distintas quanto à ultrapassagem desta lacuna.
No Assento n.º 2/92 do STJ e no decurso da sua fundamentação, excluiu-se a aplicação das normas correspondentes do processo civil, porquanto, segundo aí se considerou, as mesmas não se mostram adequadas a colmatar tal omissão, impondo-se o recurso aos princípios gerais do processo penal. Entendeu-se “que se têm de considerar como ainda em vigor as disposições regulamentadoras do tema que constavam do anterior Código Processo Penal, na medida em que traduzem os princípios gerais do direito penal vigente entre nós” – neste sentido igualmente o Ac. R. C de 2003/Jun./09 [CJ III/42] e Ac. do STJ de 2006/Mar./15[4].
Só que ultimamente tem vindo a singrar a posição que, por via do disposto no art. 4.º do Código Processo Penal, será de aplicar subsidiariamente os preceitos reguladores deste instituto do caso julgado, regulado no Código de Processo Civil [497.º a 499.º], desde que não exista incompatibilidade – neste sentido o Ac. STJ de 2002/Mai./22 [CJ (S) II/209][5], Ac. R. P. de 2004/Jan./22[6], divulgado em www.dgsi.pt.
Assim e seguindo os critérios de integração de lacunas definidos no citado art. 4.º, não vemos qualquer obstáculo para que, como aí se preceitua, “Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios do processo penal”.
Os limites do caso julgado, como da litispendência estão condicionados pelo objecto do processo.
O objecto do processo é fixado pela acusação ou pelo despacho de pronúncia, sendo estes que, à partida, delimitam os poderes de cognição do tribunal – cfr. art. 1.º, n.º 1, al. f), 283.º, 303.º, 308.º, 358.º, 359.º, 379.º, n.º 1, al. b); neste preciso sentido Figueiredo Dias, em “Direito Processual Penal”, Vol. I (1981), p. 145.
A propósito será de destacar que a titularidade da acção penal cabe ao Ministério Público, estando a mesma sujeita ao princípio da legalidade e á defesa da legalidade democrática [219.º da C. Rep.], estando o objecto do processo compartimentado pela correspondente acusação e por aquilo que é alegado pela defesa.
Daí que a estrutura do nosso sistema processual seja essencialmente acusatória, mas com concessões ao princípio da investigação [299.º, 340.º], muito embora este seja sempre moldado pelo contraditório [298.º, 327.º, 340.º, n.º 2, 348.º, 355.º e 360.º].
Assim, afigura-se-nos que não podemos falar em identidade de objecto processual, sem que se parte do correspondente libelo acusatório e do objecto da defesa, sendo este o âmbito da vinculação temática do tribunal em cada um dos procedimentos acusatórios.
Do nosso ordenamento jurídico e como tópicos de interpretação temos ainda o citado art. 29.º, n.º 5 da C. Rep. que alude à “prática do mesmo crime” e o disposto no art. 1.º, al f) do Código de Processo Penal que considera alteração substancial dos factos, “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis”.
Mas o que se deve entender por objecto de um processo? O mesmo crime? A sua qualificação jurídica? Os mesmos factos?
Partindo de um critério naturalístico, entendeu-se que o “objecto sobre que incide o processo tem que ser um facto concreto na sua existência real”, um “evento naturalístico, objecto de investigação e prova”, pelo que “a identidade do facto tem de apreciar-se naturalísticamente, como facto concreto, real” – veja-se Cavaleiro Ferreira, em “Curso de Processo Penal”, Vol. III, p. 49, 52 e 53.
E mais à frente (p. 54) referiu que “E por isso haverá caso julgado material quando se acuse em novo processo pela mesma acção, embora acrescida de novas circunstâncias, embora seja diferente o evento material que se lhe segue, embora seja diversa a forma de voluntariedade (dolo ou culpa)”.
Porém, adoptando-se um critério jurídico-normativo, o facto deveria ser jurídico-criminalmente aferido, de modo que “sempre que na acusação ou no despacho de pronúncia se aponte tão só uma ou algumas das actividades que, …, constituem uma unidade, deverá o juiz conhecer das restantes a fim de apreciar esgotantemente o todo criminal submetido a julgamento”, sendo o único limite “a unidade de resolução concreta do agente” – neste sentido Eduardo Correia, em “Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz” (1983), p. 337.
Aí a dado momento (p. 304) também se escreveu que “A força consuntiva de uma sentença relativamente a futuras condenações e processos há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto, ou seja, estender-se até onde o juiz tenha o poder e o dever de apreciar os factos submetidos ao seu julgamento. Pelos limites deste dever de cognição há que medir o âmbito do conteúdo da sentença e, portanto, os termos da sua força consuntiva relativamente a futuras acusações”.
Uma outra posição, que tem por base um critério misto normativo-social, assenta na “identidade ou coincidência fundamental dos bens jurídicos – logo, dos tipos legais de crime – sem perder de vista as realidades da vida, mantendo-se por isso igualmente atento à valoração social dos factos”, estando os limites de cognição do tribunal balizados pelas exigências de não por em causa as garantias de defesa – como sucede com Robalo Cordeiro, em “O Novo Código Processo Penal” (1997), p. 304/5, sobre “A audiência de julgamento”.
Explicitando melhor esta última posição, escreveu-se (ib idem) que estaremos, em regra, “perante o mesmo crime quando os factos provados em julgamento, no seu relacionamento com os acusados, dão lugar a uma situação de concurso aparente ou de continuação criminosa, formando com eles uma unidade jurídico-normativo (…); e bem assim nos casos em que se mantém firme a incriminação, embora com alteração de factos que lhe servem de apoio: alteração entenda-se, não essencial, por forma que continuam passíveis do mesmo juízo de valoração social”.
Mas já haverá uma diversidade de crimes “quando o material fáctico colhido em julgamento redunde numa situação de concurso efectivo, real ou ideal (…); e ainda quando, diferindo essencial ou estruturalmente do que serviu de suporte à acusação, transmite agora uma realidade diferente e impõe, em consequência, uma diferente avaliação social, sem prejuízo de manter-se eventualmente a sua qualificação jurídica”.
Vejamos agora, como se tem perfilado a jurisprudência quanto a esta temática.
No referenciado Ac. do STJ de 2002/Mai./22, entendeu-se que “Existe uma identidade factual quando se está perante o mesmo desígnio criminoso, ainda que possa manifestar-se através de acções que não sejam totalmente coincidentes nos dois processos, podendo inclusivamente num deles o seu objecto ser mais amplo em relação a outro processo que o antecedeu”.
Assim, “Existe caso julgado quando, num certo lapso de tempo, total ou parcialmente similar nos dois processos, mas sempre sob a mesma resolução, no âmbito do mesmo espaço físico e condicionalismo de execução, ainda que os adquirentes de droga sejam distintos, prossegue-se a mesma actividade de tráfico de droga”.
No caso desses autos conclui-se que existia violação do princípio “ne bis in idem”, porquanto o tráfico de estupefacientes é visto como um crime exaurido e a actividade sujeita ultimamente a julgamento tinha-se desenvolvido entre Junho e Agosto de 1997, quando o mesmo arguido já tinha sido julgado em outros dois processos por facto ocorridos em 2 e 28 de Junho de 1997.
No Ac. R. C. de 2005/Dez./21 [CJ V/55] afirmou-se que “Para que se verifique a existência de caso julgado impõe-se que o tribunal tenha apreciado efectivamente os factos que vêm submetidos segunda vez à sua apreciação na perspectiva da sua subsunção a determinado tipo de crime e sua imputação ao agente”.
Por isso, concluiu-se que “O conjunto de factos concretos consubstanciados em agressões físicas ao cônjuge ocorridas em Abril de 2000, Julho de 2001, Setembro e Novembro de 2003, concretizadores de um crime de maus tratos a cônjuge, p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, alínea a) do C. P., não consubstancia qualquer situação de caso julgado em relação à prática de dois crimes de ofensas à integridade física na pessoa do mesmo cônjuge, ocorridos em Julho e Setembro de 2002”.
No citado Ac. do STJ de 2006/Mar./15, considerou-se que “Entender o termo crime, empregue no n.º 5 do art. 29.º da CRP, como referência a um determinado tipo legal, a uma certa e determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. Um tal entendimento seria permitir - o que é inaceitável - que aquele que foi julgado e condenado por ofensas à integridade física (art. 143.° do CP) pudesse, pelos mesmos factos, ser segunda vez submetido a julgamento e eventualmente condenado por homicídio (art. 131.° do CP). …O que referido preceito da CRP proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.”
Aí concluiu-se que o mesmo objecto processual, “não pode deixar de ser o acontecimento da vida que, como e enquanto unidade, se submeteu à apreciação e julgamento de um tribunal. Daqui resulta que todos os factos praticados pelo arguido até decisão final e que directamente se relacionem com o pedaço da vida apreciado e que com ele formam uma unidade de sentido haverão de ser considerados como fazendo parte do «objecto do processo»”.
A situação respeitante a este aresto dizia respeito a um crime de maus-tratos a cônjuge, da previsão do art. 152.º, n.º 1, al a) do Código Penal, sendo este mesmo ilícito que tinha sido imputado num outro processo, no qual tinha sido proferido sentença condenatória já transitada em julgado.
Assim, enquanto aquele processo reportava-se a factos ocorridos em 2004, designadamente nos dias 5, 17 e 18 de Janeiro, 21 e 28 de Março, 1 de Maio, 3, 4, 9, 12 e 13 de Setembro, 31 de Outubro, e 1 e 6 de Novembro, este outro reportava-se a factos praticados em 2003/Dez./10, sendo a respectiva sentença datada de 2004/Jun./07.
O STJ entendeu precisamente que nada obstava a que factos ocorridos em Janeiro, Março e Maio de 2004 fossem tomados em consideração pelo tribunal do primeiro julgamento, uma vez que a alteração daí decorrente deveria ser qualificada como não substancial (art. 358.°, n.º 1, do CPP), para além de que os mesmos formam uma unidade com aqueles que foram apreciados e julgados no outro processo, com trânsito em julgado, “pelo que não pode deixar de se considerar consumido o respectivo direito de acusação, pois a todos aqueles factos se deve ter por “estendido” o valor daquela decisão”.
Cremos e s.d.r. que não podemos ir tão longe tal como se sustenta neste aresto do Supremo, porquanto os factos praticados após a primeira acusação estariam para além desta e do objecto do processo, já que a estrutura do nosso processo penal é essencialmente acusatória, estando os poderes de cognição do tribunal limitados, à partida, pela acusação, tal como anteriormente referimos.
Das considerações até agora expendidas, podemos, em suma, assentar no seguinte:
- nas situações de caso julgado, como de litispendência, a identidade do objecto processual, deve ser aferida em função do objecto da acusação ou do despacho de pronúncia, correlacionado com os correspondentes poderes de cognição do tribunal em relação a cada um desses procedimentos;
- haverá identidade do objecto do processo quando se está perante o mesmo facto social e desígnio criminoso, que ponha essencialmente em causa o mesmo bem jurídico.
Aqui chegados e, face a todas as considerações supra expostas, que dizer quanto ao crime em causa?
Relativamente ao crime de maus-tratos a cônjuge da previsão do art. 152.º, n.º 2 do Código Penal, entende-se que o mesmo, em regra, como sucedeu com o Ac. da R. P. de 2003/Nov./05[7], “pressupõe uma reiteração de condutas que integram o tipo objectivo e que são susceptíveis de, singularmente considerados, constituírem, em si mesmas, outros crimes: ofensa à integridade física simples, ameaça, injúria, difamação”, de modo que não haverá uma pluralidade de crimes, mas antes uma pluralidade de actos de execução – neste sentido Ac. STJ de 2003/Out./30 [CJ (S) III/208], Ac. R. P. de 1999/Nov./03, 2003/Jun./04, [CJ V/223, III/218], Ac. R. G. de 2004/Mai./31 [CJ III/291], Ac. R. C. de 2005/Jul./06 [CJ IV/41], Ac. R. L. de 2005/Jul./14 [CJ V/147].
Haverá, por isso, uma execução continuada ou sucessiva, que se prolonga no tempo, dominada pelo mesmo desígnio criminoso, em que “cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único”.
Isto não significa que tal crime não possa ser cometido por uma única conduta isolada, se a mesma se revelar da gravidade exigida pelo respectivo tipo legal (maus tratos físicos ou psíquicos) – neste sentido vejam-se os Ac. da R E de 1999/Nov./23, 2005/Jan./25 [CJ V/283, I/260], Ac. R. P. de 2004/Set./29 [CJ IV/210].
No caso aqui em apreço e tanto nestes autos, como no outro processo, a conduta imputada ao arguido integrará um crime de maus tratos a cônjuge do art. 152.º, n.º 2 do Código Penal, pelo que está em causa o mesmo crime e, obviamente, o mesmo bem jurídico, que será a dignidade humana do cônjuge ou equiparado, particularmente a sua saúde, compreendendo-se nesta o bem estar físico, psíquico e mental.
Atenta a descrição factual constante em ambos os libelos acusatórios, temos que: - no processo n.º …/03.7 GAVCD, cuja acusação foi proferida em 12.12.2003, mas cujo julgamento terminou com a prolação da sentença em 03.03.2005, os factos reportam-se a cerca de sete antes e, mais concretamente a 06.05 de 2003; - nestes autos, cuja acusação é de 08.01.2007, os factos reportam-se aos últimos anos, bem como a factos posteriores a 06.05.2003, concretizando-se ainda os factos ocorridos a 13.01.2004 e 18/19.03.2004.
Muito embora se considere o crime de maus-tratos como um ilícito de execução continuada ou reiterada, integrado por diversas realizações parcelares, o certo é que os factos imputados na acusação proferida nestes autos e posteriores a 06.05.2003 são distintos daqueles outros do processo n.º …/03.7GAVCD, quer sob o ponto de vista social, quer do desígnio criminoso.
E isto independentemente dos factos aqui descritos, despidos da referência ao outro processo, poderem ou não vir a integrar o referenciado crime de maus-tratos a cônjuge.
O mesmo não se pode dizer quanto aos factos anteriores a 06.05.2003 estando, por isso, consumido e extinto o direito de as acusar e podendo-se opor sempre ao exercício da respectiva acção penal a excepção ne bis in idem. Verifica-se, pois, relativamente àqueles factos a exceptio judicati, razão pela qual não podem ser considerados nos presentes autos.
Tal circunstância, porém, em nada afecta a decisão a proferir nos presentes autos, visto que os demais factos cometidos pelo arguido após 06.05.2003[17] poderão vir a integrar, por si só, o crime de maus-tratos a cônjuge pelo qual o mesmo vem acusado.
Em conclusão: não existe identidade de objecto quanto aos factos posteriores a 06.05.2003, não se podendo quanto aos mesmos opor a excepção ne bis in idem, razão pela qual podem ser e serão considerados nos presentes autos.”
Pois bem.
No plano teórico, a questão já foi bem escalpelizada pela 1ª instância, razão pela qual, pouco mais iremos acrescentar.
Na apreciação concreta da questão suscitado pelo recorrente, também pouco resta para dizer.
Efectivamente, esqueceu o recorrente que, os dois referidos processos trataram de objectos (de apreciação) diferentes.
E, esse diferente objecto resulta, desde logo, da análise das respectivas acusações constantes de um e do outro processo.
Da sua análise logo ressalta que tratam de factos (“pedaços da vida”), diferentes e autónomos, não obstante ambos integrarem o mesmo tipo de crime imputado ao arguido (aqui se remetendo para o que consta da decisão sob recurso a esse respeito), por ele cometido por duas vezes (em dois períodos temporais distintos, sucessivos, sendo certo que os factos descritos na segunda acusação ainda não haviam sido cometidos no momento em que foi deduzida a primeira acusação).
Ora, neste caso (compulsadas as duas acusações), não existe qualquer obstáculo a que ao arguido fosse imputado, em processos autónomos, crimes de maus-tratos, por estes se encontrarem numa situação de concurso efectivo.
Atenta a natureza deste tipo de crime (“maus-tratos”), nada obsta a que haja um concurso efectivo de crimes[18], uma vez que cada actuação do agente (os diversos actos constitutivos cometidos em determinado período de tempo, não são tratados como crimes autónomos de, por exemplo, injúrias e de ofensas à integridade física, mas antes como um só crime de maus-tratos) reconduz-se à comissão de um crime de maus-tratos (tratado como um só crime, que se consuma com a prática do último acto de execução atenta aquela concreta descrição da acção imputada ao agente na acusação) independente e autónomo.
Não é a circunstância de cada crime de maus-tratos ser tratado como um único crime (uma só realidade criminal que absorve actos individuais constitutivos de infracções independentes, como os crimes de injúrias, ofensas à integridade física, ameaça etc.) que impede a existência de um verdadeiro concurso efectivo de crimes (desde que, claro, se reportem a momentos diferentes, que se não confundam entre si[19]).
Neste caso aqui em apreço, o segundo crime (objecto do segundo inquérito) foi cometido depois de consumado o primeiro, cujo último acto de execução ocorreu em 6/5/2003 (objecto do primeiro inquérito).
Portanto, nem sequer se trata de situação em que os factos descritos no segundo processo se integrassem na unidade criminosa já julgada no primeiro processo (ver sentença proferida em 3/3/2005, transitada em julgado).
Se ambos os processos tivessem estado, em algum momento (o que nunca sucedeu, uma vez que quando foi instaurado o 2º inquérito já no primeiro havia sido deduzida acusação), na mesma fase processual, podiam ter sido objecto de apensação, pela utilização do expediente da conexão previsto no art. 25 do CPP.
Obviamente que, oportunamente, transitado o acórdão ora sob recurso (portanto o relativa ao segundo processo), sempre poderá ser efectuado o competente cúmulo jurídico de penas, pelo tribunal da última condenação (no caso de se aceitar a tese de que não existe obstáculo pelo facto de as penas de prisão aplicadas terem sido suspensas na sua execução) – arts. 77 nº 1 e 78 nº 1 do CP.
E, olhando para essas duas condenações (a sentença de 3/3/2005 transitada em julgado e o acórdão sob recurso), logo se vê que na segunda decisão o juízo de desvalor efectuado recaiu sobre factos distintos dos apreciados na primeira sentença.
Repare-se ainda que, no momento em que foi proferida a sentença no primeiro processo, já era conhecida a existência do segundo inquérito (o que resulta do teor do ponto 11 dos factos dados como provados, quando se escreveu: “… em circunstâncias ainda não apuradas…”).
E, o certo é que o segundo inquérito recaiu sobre factos ocorridos posteriormente a 6/5/2003.
Poderia então aquele tribunal (que nessa sentença fixou – em função da acusação deduzida – o dia 6/5/2003 como sendo o momento do último acto de execução cometido pelo arguido), por sua iniciativa, investigar factos posteriores a 6/5/2003?
Não podemos esquecer que o princípio da acusação funciona “como limite ao princípio da investigação”[20], o que quer dizer “que são as questões que estão contidas na acusação (na sua síntese de facto e de direito) que limitam o âmbito da investigação do tribunal”[21].
Como sabido é a acusação (ou o despacho de pronúncia, se tiver havido fase de instrução) que define e fixa o tema do julgamento.
Os poderes de cognição do tribunal do julgamento estão limitados pelo objecto da acusação.
Há uma “vinculação temática” (do tribunal, do MP, do assistente e do arguido) em relação à matéria que consta da acusação (ou do despacho de pronúncia), assim se criando um mínimo de segurança quanto ao objecto do processo e, ao mesmo tempo, assegurando-se o direito de defesa (através da acusação ou do despacho de pronúncia, o arguido passa a saber quais os factos que lhe são imputados ou pelos quais está pronunciado e, dessa forma, passa a dispor das condições necessárias para escolher a melhor forma de se defender).
Claro que existem mecanismos próprios para a alteração de factos da acusação (ou da pronúncia), quer quando essa alteração é substancial, quer quando é não substancial (art. 358 e 359 do CPP, na fase do julgamento).
Esses mecanismos foram criados para assegurar os direitos de defesa do arguido e, assim, garantir um processo justo e equitativo.
Porém, quando tais meios (previstos nos arts. 358 e 359 do CPP) são accionados reportam-se à matéria da acusação ou da pronúncia daquele processo submetido a julgamento.
Os mecanismos previstos nos arts. 358 e 359 do CPP não foram criados para o tribunal investigar factos (e, cumpridos os respectivos formalismos legais, considerá-los provados) que, agravando a posição do arguido, não fazem parte das questões suscitadas pela acusação (quando v.g. até o podiam ter sido, mas que o MP – titular da acção penal – decidiu não investigar ou não acusar) ou (porque cometidos após a data em que, encerrado o inquérito, foi deduzida a acusação) não podiam ser objecto de averiguação naquele inquérito que deu origem ao processo submetido a julgamento.
E, muito menos para averiguar factos que pudessem ter sido cometidos entre a data da acusação e a data em que é proferida a sentença[22].
Tal solução, aplicada em geral, a qualquer situação em que se discutisse a questão do caso julgado ou mesmo de litispendência, subverteria a estrutura do processo penal português actual.
Até corríamos o risco de confundir o papel do juiz do julgamento com o do juiz de instrução (para não falar do MP enquanto titular da acção penal), criando uma figura híbrida que contrariava os princípios subjacentes a cada fase processual, prejudicando inclusivamente a garantia de um processo equitativo.
Por isso, em casos como o aqui em apreço (em que não foi estabelecida qualquer relação de continuidade entre os factos do primeiro processo e os do segundo processo – como se vê lendo a sentença e o acórdão aqui em questão) o tal efeito preclusivo do direito de acusar apenas pode abranger factos que pudessem ser incluídos naquela primeira acusação que foi submetida a julgamento e, portanto, o seu limite (não estando de outra forma definido na peça acusatória) é, em último termo, o da data da dedução dessa acusação (independentemente portanto da data da sentença que ali vier a ser proferida).
Quando Eduardo Correia[23] colocava a questão da “força consuntiva de uma sentença relativamente a futuras acusações e processos” concluindo que a mesma “há-de ser medida pelos devidos limites do seu objecto”, salientava que a “medida do âmbito do conteúdo da sentença” dependia dos limites do dever de cognição, o que pressupõe “determinar até que ponto pode e deve ir a actividade cognitiva do juiz”.
E é aqui (na determinação dos limites do dever de cognição do juiz do julgamento) que, quanto a nós, se coloca o cerne da questão, tendo em atenção que, hoje em dia (ao contrário do que sucedia quando vigorava o CPP de 1929, em que o processo penal assentava numa estrutura inquisitória), o nosso processo penal assenta em dois pilares fundamentais:
- por um lado, na estrutura acusatória (é a acusação que delimita e fixa o objecto do julgamento, vinculação temática essa que tem subjacente “os princípios da identidade, da unidade e da consunção desse mesmo objecto processual”), embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigos 289 nº 2 e 340 do CPP, respectivamente nas fases de instrução e do julgamento);
- e, por outro, no asseguramento de todas as garantias de defesa (artigo 32 nº 1 e 5 da CRP), “do direito de audiência de todo e qualquer participante processual que possa vir a ser pessoalmente afectado por qualquer decisão judicial”[24], o que compreende ainda, de forma destacada e autónoma, o respeito pelo exercício efectivo do princípio do contraditório, princípio este que atinge a sua dimensão máxima na fase do julgamento, visto que, nas fases preliminares, há ainda limites ao seu exercício, por, numa ponderação de interesses prevalecer o superior interesse público da prevenção e repressão da criminalidade.
Ora, considerando aquele processo nº …/03.7GAVCD o poder e dever do juiz de apreciar os factos submetidos a julgamento (o que se prende com os seus poderes de cognição) não podia ultrapassar o último momento (ali fixado em 6/5/2003) que fora definido na acusação ali proferida.
Se esse momento não estivesse definido na acusação, ressalvando outros casos que para aqui não interessam (como por exemplo de não constarem factos que podiam - e por exemplo não foram - ter sido investigados no inquérito), poder-se-ia discutir se os poderes de cognição do tribunal poderiam chegar ao limite da data em que aquela peça fora deduzida (12/12/2003).
A considerar-se que, em casos como o destes autos, os poderes de cognição do juiz na primeira sentença tinham por efeito impedir (por ficar precludido) a apreciação da segunda acusação (sobre a qual recaiu o acórdão sob recurso), então perderiam sentido regras como a da conexão de processos e, poderia até cair-se em exageros insustentáveis que levassem o MP a não deduzir acusação (independentemente dos prazos de inquérito), se fosse previsível a repetição do mesmo crime, situação que se poderia prolongar (de forma absurda) até à prescrição do procedimento criminal.
O que seria um contra-senso, não só por colidir com o exercício da acção penal, com o princípio da celeridade, com as regras do concurso de crimes, como por não acautelar os interesses da vítima e do próprio Estado, enquanto titular do ius puniendi.
De resto, lendo com a devida atenção a sentença proferida no processo nº …/03.7GAVCD (concretamente a respectiva decisão proferida sobre a matéria de facto, conferindo a peça acusatória que definia o objecto daquele processo), logo se vê que é errada a afirmação feita pelo recorrente, quando teima que os factos que se reportam a dia não apurado (na acusação referenciado como sendo o dia 13) de Janeiro de 2004 e a 18/3/2004 (objecto de apreciação nestes autos) já naquela decisão foram considerados e valorados.
Com efeito, em nenhuma parte daquela sentença proferida em 3/3/2005 consta qualquer referência aos factos que foram dados como provados nestes autos.
Por outro lado, no acórdão aqui sob recurso, está claramente definido o período temporal que foi objecto de apreciação, o qual não se pode confundir com a matéria de facto apreciada e valorada naquela sentença de 3/3/2005.
Repare-se, ainda, que nesta segunda decisão (no acórdão sob recurso) não foram aduzidos factos que demonstrem existir uma unidade jurídica entre os ali dados como provados e os apreciados na primeira decisão (aquela sentença de 3/3/2005).
Nessa medida, não se pode considerar consumido o “respectivo direito de acusação”: isto é, não se pode ficcionar que todos esses factos deviam ter sido apreciados na primeira sentença (não obstante o tipo legal em questão ser o mesmo).
Ou seja: não tendo sido considerado, em nenhuma daquelas duas decisões, que existia uma continuidade criminosa, não se pode concluir que existe uma unidade jurídica dos factos apreciados nos dois processos.
E, não se diga que a sentença de 3/3/2005 extravasou os factos que ali foram submetidos à sua apreciação (definidos pela acusação deduzida em 12/12/2003 – fls. 71 e 72).
Começa o recorrente por confundir as considerações de direito que ali, na sentença de 3/3/2005, se fazem sobre o crime de maus-tratos, dizendo que o Sr. Juiz o considerou “como um crime continuado”.
Em parte alguma daquela decisão proferida em 3/3/2005 se trata o crime de maus-tratos como um crime continuado.
E, isso percebe-se desde que se tenha a noção correcta de crime continuado[25].
A ideia de “reiteração” é diferente da de “continuidade criminosa”, mesmo no sentido de crime continuado.
Note-se que, naquela sentença de 3/3/2005, o arguido não foi condenado por um crime continuado de maus-tratos.
Depois, afirma o recorrente que, naquela decisão de 3/3/2005, foi apreciado todo o comportamento do arguido “praticado durante toda a vida em comum do casal”, o que também não é verdade.
Mesmo na parte, relativa à determinação da medida da pena, no segmento em que se escreve, que se tem em atenção “A persistência do comportamento do arguido ao longo dos anos em que durou a coabitação conjugal, conforma um elevado grau de ilicitude” é claro que o julgador se está a reportar ao período em apreciação, que definiu nos factos que deu como provados.
Querer retirar dessa afirmação, como o faz o recorrente, que também ali se apreciou o período temporal posterior a 6/5/2003, é descontextualizar o seu sentido e extravasar a apreciação que ali foi feita.
Aliás, bastava ler os factos dados como provados para logo se perceber que o julgador não estava a apreciar a conduta do arguido posterior a 6/5/2003.
Argumenta, ainda, o recorrente, com frase que foi buscar à motivação de facto daquela sentença de 3/3/2005, quando se escreve, a dado passo: “Foi ainda relevante o teor do relatório de autópsia junto a fls. 131 a 140, onde constam as lesões que a vítima apresentava aquando da morte, designadamente equimoses e hematomas por todo o corpo bem como fractura dos ossos próprios do nariz”.
Esquece, porém, que essa frase ou parágrafo serve apenas para explicar o que se deu como provado no ponto 11 da respectiva decisão sobre a matéria de facto ali proferida.
E, desse ponto 11, constavam apenas factos que foram conhecidos na altura do julgamento e em que foi proferida a sentença de 3/3/2005, a saber: “A queixosa veio a falecer em Março de 2004 em circunstâncias ainda não apuradas, tendo aparecido morta na casa de banho da sua residência, com o corpo coberto de equimoses e hematomas e tendo-se a morte ficado a dever a asfixia por aspiração de sangue, consecutiva às lesões traumáticas da face”.
Não se afirma em parte alguma daquela decisão que foi o arguido que provocou aquelas lesões traumáticas, matéria essa que apenas era objecto de apreciação nestes autos, então ainda em fase de inquérito.
Aliás, quando ali (no processo nº …/03.7GAVCD) foi proferida acusação (deduzida em 12/12/2003 – fls. 71 e 72), ainda a C………. estava viva.
E, quando ali foi proferida, em 3/3/2005, a sentença, ainda nem sequer existia este processo comum porque estava ainda em fase de inquérito, em investigação e não havia ainda sido deduzida acusação (o que sucedeu apenas em 8/1/2007).
Como podia o tribunal proferir uma decisão sobre esses factos, quando ali (naquele processo autónomo nº …/03.7GAVCD) não fora feita a respectiva investigação?
De esclarecer que, na acusação proferida no processo nº …/03.7GAVCD – ao contrário do que refere o recorrente – não é indicada qualquer prova documental.
Por outro lado, da prova documental oferecida na acusação deduzida no processo aqui em apreciação, quando remete para aquela sentença de 3/3/2005, também não se pode retirar qualquer ilação no sentido de os factos em questão (objecto de apreciação do acórdão sob recurso) já terem sido ali apreciados.
Se assim fosse, obviamente que o MP não teria deduzida a acusação que foi objecto de apreciação do acórdão sob recurso.
Depois, pretende o recorrente socorrer-se do que consta da acusação proferida em 8/1/2007 (neste processo onde foi proferido o acórdão sob recurso), esquecendo o que foi dado como provado no acórdão do qual recorreu.
Obviamente que esse apelo não faz qualquer sentido (nem mesmo quando se reporta à formula usada “Porquanto indiciam os autos que”), atenta a decisão proferida sobre a matéria de facto no acórdão sob recurso.
Aliás, como se refere no acórdão sob recurso, a qualificação do crime pelo qual o arguido foi condenado reporta-se aos factos cometidos, após conhecimento da dedução de acusação no primeiro processo (a qual foi proferida em 12/12/2003), particularmente aos ocorridos em Janeiro de 2004 e na noite de 18 para 19/3/2004.
No acórdão sob recurso apenas se apreciaram esses factos cometidos pelo arguido em execução dessa nova resolução criminosa que tomou, após ter tido conhecimento da dedução de acusação no primeiro processo (cf. também ponto 7 dos factos dados como provados).
O que significa que os factos em apreço na decisão sob recurso constituem um novo crime, distinto daquele pelo qual o arguido foi condenado na sentença de 3/3/2005.
Ou seja, não foi violado o disposto no art. 29 nº 5 da CRP[26] e tão pouco os demais normativos invocados pelo recorrente.
De resto, invoca o recorrente a decisão do STJ de 15/3/2006 (relatada por Oliveira Mendes, no processo nº 05P4403), para sustentar que os factos dados como provados no acórdão sob recurso sempre estariam abrangidos na referida condenação (proferida no processo nº …/03.7GAVCD) de 3/3/2005, transitada em julgado.
Porém, também nós não conseguimos acompanhar, nessa parte, aquela douta decisão do STJ, porque efectivamente (como se diz no acórdão sob recurso e pelo que já se adiantou), tal solução, subverteria a estrutura acusatória que caracteriza o processo penal português, na medida em que, assim, passaria a recair sobre o julgador, na fase do julgamento (que é distinta da fase de investigação, do inquérito) o ónus de investigar factos que, entretanto, tivessem ocorrido entre a data da acusação e a data em que fosse proferida a sentença nesse processo.
Assim sendo, porque não existe “identidade de objecto” entre a sentença de 3/3/2005 (transitada em julgado) e o acórdão sob recurso, apenas podemos concluir que não foi violado o princípio do ne bis in idem, nem tão pouco o princípio da proibição da dupla punição do mesmo facto[27].
Restará, pois, oportunamente (como acima se referiu), elaborar o respectivo cúmulo jurídico das penas impostas ao arguido.
Por último, face à nova redacção do art. 50 nº 5 do CP, quanto ao período de suspensão da execução de pena de prisão imposta ao arguido, entendemos que não pode ultrapassar (atenta a pena que lhe foi aplicada) 2 anos.
E, nesta parte (quanto à pena de substituição), o regime penal actual (Lei nº 59/2007 de 4/9, tendo em atenção a Declaração de Rectificação nº 102/2007 de 31/10) é mais favorável ao arguido (art. 2 nº 4 do CP).
Foram razões de política criminal[28] (concorde-se ou discorde-se) que justificaram que, na versão actual do art. 50 nº 5 do CP, o período de suspensão fosse de duração igual ao quantum da pena de prisão substituída, embora nunca inferior a 1 um ano.
Atenta a natureza da “suspensão da execução da pena de prisão” (incluídos, portanto, os seus pressupostos e duração), o limite máximo desta pena de substituição, quanto à duração do período de suspensão, neste caso concreto, não pode hoje ultrapassar 2 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.
Assim sendo, por aplicação da lei mais favorável (art. 2 nº 4 do CP) impõe-se a redução do período de 4 anos de suspensão da execução da pena de prisão aplicada para o período de 2 anos.
De notar que, tendo sido possível fazer um juízo de prognose favorável à suspensão (juízo esse que, obviamente, se mantém, quer seja formulado no domínio da lei vigente à data da prática do facto, quer no domínio da lei penal na versão actual), a alteração da lei quanto ao período de suspensão (no sentido de ser igual à pena concreta mas nunca inferior a um ano), não tem reflexos (implicações) nas operações anteriores efectuadas (que levaram à determinação da medida concreta da pena de prisão aplicada num e noutro regime penal) até se chegar ao momento da substituição da pena de prisão.
Ou seja, não é pelo facto de se reduzir o período da suspensão, de acordo com a nova opção legislativa, que isso vai ter implicações quanto à pena concreta aplicada e quanto ao juízo favorável à suspensão (e isto, independentemente, de antes desta alteração legislativa, o julgador ter ainda de fazer um outro juízo para decidir sobre o período de suspensão; de qualquer modo, o teor do actual art. 50 nº 5 do CP, não permite, em comparação de regimes, para escolha do mais favorável ao arguido nos termos do art. 2 nº 4 do CP, questionar de novo o juízo favorável à suspensão ou agravar a pena de prisão aplicada, por esses momentos já estarem ultrapassados quando se chega a essa fase em que se tem de indicar o período da suspensão).
Em conclusão: nega-se provimento ao recurso, alterando-se apenas a decisão em apreço no que respeita ao período de suspensão da execução da pena de prisão, por aplicação do disposto no art. 50 nº 5 do CP, dado ser mais favorável ao arguido (art. 2 nº 4 do mesmo código).
*
III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação:
a)- em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B……….;
b)- em confirmar o acórdão proferida pela 1ª instância, salvo quanto ao período de suspensão da execução da pena de dois anos de prisão imposta ao mesmo arguido que, por aplicação do disposto no art. 2 nº 4 do CP, tendo em atenção a actual versão do art. 50 nº 5 do CP, se reduz para o período de 2(dois) anos.
c)- custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 10 UCs.
*
(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94 nº 2 do CPP)
*

Porto, 27/02/2008
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Jaime Paulo Tavares Valério

_____________________________
[1] Cf. Ac. do STJ de 15/12/2005, proferido no proc. nº 2951/05 e Ac. STJ de 9/3/2006, proferido no proc. nº 461/06, relatados por Simas Santos (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais). Aliás, como se diz no Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), a admissibilidade da alteração da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação “mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”
[2] Assim, cit. Ac. do STJ de 21/1/2003.
[3] Ibidem.
[4] Ac. do STJ de 9/7/2003, proferido no proc. nº 3100/02, relatado por Leal-Henriques (consultado no mesmo site do ITIJ).
[5] Assim, Ac. do TRG proferido no recurso nº 1016/2005, relatado por Nazaré Saraiva.
[6] Carlos Climent Durán, La Prueba Penal, tomo I, 2ª ed., Valência: tirant lo blanch, 2005, p. 65. Mais à frente, o mesmo Autor, ob. cit., p. 78, nota 64, citando K. Engisch, diz que “o objectivo da actividade probatória é «criar no juiz o convencimento da existência de certos factos»”. No mesmo sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra, e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed. Revista e actualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra: Coimbra Editora, Limitada, 1985, pp. 435-436, quando afirmam que “a prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção assente na certeza relativa do facto. (…) É o juiz da causa ou o tribunal colectivo, consoante as circunstâncias, que há-de convencer-se da realidade do facto, para que este se considere provado e se lhe possa aplicar a estatuição da norma que o tem como pressuposto”. Também Jeremias Bentham, Tratado de las Pruebas Judiciales (obra compilada dos manuscritos do Autor por E. Dumont, trad. de Manuel Ossorio Florit), Granada: Comares, 2001, p. 22, refere que a prova é «um meio que se utiliza para estabelecer a verdade de um facto, meio que pode ser bom ou mau, completo ou incompleto».
[7] Carlos Climent Durán, ob. cit., p. 91. Citando Jiménez Conde, F. (La apreciación de la prueba legal, cit., p. 122), refere, na nota 81, que este Autor, a propósito da apreciação das provas, observa que não se podem confundir os dois tipos de juízos que lhe estão subjacentes: «1º a averiguação dos dados fácticos ou juízos de facto particulares que são trazidos pelas provas produzidas, independentemente da sua verdade ou falsidade; 2º a fixação do concreto valor que se há-de conceder a esses mesmos meios de prova, ou, o que é igual, a decisão quanto à credibilidade dos resultados fácticos por eles produzidos, ou juízo sobre o grau de correspondência desses resultados fácticos com a realidade histórica objectiva do facto questionado. A primeira dessas operações constitui, como alguns autores lhe chamam, a interpretação das provas, enquanto a segunda se refere mais propriamente à sua valoração. E ambas se integram no conceito de apreciação das provas, como actividade complexa que as abarca».
[8] Neste sentido, Carlos Climent Durán, ob. cit., p. 94.
[9] Assim, Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), chamando à atenção para o que se escreveu em Ac. de 8/2/99, em recurso de apelação do proc. nº 1/99 do Tribunal de Círculo de Chaves.
[10] Como diz Costa Andrade, Sobre as proibições de prova em processo penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1992,p. 129, citando Kühl, o arguido ao exercer «o seu direito ao silêncio renuncia (faculdade que lhe é reconhecida) a oferecer o seu ponto de vista sobre a matéria em discussão, nessa medida vinculando o Tribunal à valoração exclusiva dos demais meios de prova disponíveis no processo». Realça ainda (ob. cit., pp. 128 e 129) que «o silêncio deve, por isso, ser tomado como a ausência pura e simples de resposta, não podendo, enquanto tal, ser levado à livre apreciação de prova. E isto (…) quer se trate de silêncio total quer, na parte pertinente, de silêncio meramente parcial».
[11] O TEDH (Caso John Murray c. Royaume-Uni, ac. de 8/2/1996), também defende que o direito de não se auto-incriminar e o direito ao silêncio são direitos absolutos de que os arguidos devem beneficiar sem restrições. O exercício do direito ao silêncio não deve ser utilizado como prova contra o arguido sob pena de se estar a subverter a presunção de inocência e, bem assim, os moldes em que deve ser produzida a prova em processo penal. Igualmente, no Caso Allan c. Reino Unido, ac. de 5/11/2002, o TEDH reafirmou que o privilégio contra a auto-incriminação ou o direito ao silêncio “são normas reconhecidas internacionalmente, que estão intimamente ligadas com a noção de processo equitativo. Essas normas visam proteger o acusado de uma coerção abusiva por parte das autoridades, e, portanto, pretendem evitar erros judiciários e garantir o disposto no artigo 6 da CEDH”.
[12] A propósito da vontade europeia de garantir um mínimo de regras aos suspeitos e aos arguidos, ver em particular: Livro Verde da Comissão - Garantias processuais dos suspeitos e arguidos em procedimentos penais na União Europeia, Bruxelas, 19/2/2003, COM/2003/0075 final: Comissão das Comunidades Europeias; Resolução do Parlamento Europeu de 6/11/2003, publicada no JO 83 E de 2/4/2004, pp. 0180-0185, relativa a processos penais (garantias processuais), que contém uma proposta de recomendação dirigida ao Conselho sobre normas mínimas em matéria de garantias processuais dos suspeitos e arguidos em procedimentos penais na União Europeia (2003/2179 (INI)); Proposta de decisão-quadro do Conselho de 28/4/2004, relativa a certos direitos processuais no âmbito dos processos penais na União Europeia {SEC (2004) 491}, COM/2004/0328 final - CNS 2004/0113: Comissão das Comunidades Europeias; Resolução legislativa do Parlamento Europeu de 12/4/2005, sobre essa mesma proposta de decisão-quadro do Conselho de 28/4/2004, relativa a certos direitos processuais no âmbito dos processos penais na União Europeia, publicada no JO C 33 E de 9/2/2006, pp. 0159-0169; Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu que estabelece o programa-quadro «Direitos fundamentais e justiça» para o período de 2007 a 2013, incluindo no âmbito desse programa geral, para esse período, Proposta de Decisão do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece o programa específico «Luta contra a violência (Daphne) e informação e prevenção em matéria de droga», Proposta de Decisão do Conselho que estabelece o programa específico «Direitos fundamentais e cidadania», Proposta de Decisão do Conselho que estabelece o programa específico «Justiça penal» e Proposta de Decisão do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece o programa específico «Justiça civil», Bruxelas, 6/4/2005, COM (2005) 122 final, 2005/0037 (COD), 2005/0038 (CNS), 2005/0039 (CNS), 2005/0040 (COD), {SEC (2005) 434}: Comissão das Comunidades Europeias; Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu que estabelece o programa-quadro “Segurança e protecção das liberdades” para o período de 2007 a 2013, incluindo nesse programa geral, para esse período, Proposta de Decisão do Conselho que estabelece o programa específico “Prevenção, preparação e gestão das consequências em matéria de terrorismo” e Proposta de Decisão do Conselho que estabelece o programa específico “Prevenir e combater a criminalidade”, Bruxelas, 6/4/2005, COM (2005) 124 final, 2005/0034 (CNS), 2005/0035 (CNS), {SEC (2005) 436}: Comissão das Comunidades Europeias. Na Comunicação da Comissão ao Conselho e ao Parlamento Europeu - Programa de Haia: dez prioridades para os próximos cinco anos. Parceria para a renovação europeia no domínio da liberdade, segurança e justiça, Bruxelas, de 10/5/2005, COM (2005) 184 final”: Comissão das Comunidades Europeias, chama-se a atenção que «um espaço europeu de justiça não é apenas um espaço em que as decisões judiciais proferidas num Estado-Membro são reconhecidas e aplicadas noutros Estados-Membros, mas antes um espaço em que é garantido o acesso efectivo à justiça para obter e executar as decisões judiciais. Para o efeito, a União deve prever não só regras em matéria de competência, reconhecimento e conflitos de leis, mas também medidas que permitam desenvolver a confiança mútua entre Estados-Membros, estabelecendo normas processuais mínimas e garantindo elevados níveis de qualidade dos sistemas judiciários, principalmente no que se refere à igualdade de tratamento e ao respeito dos direitos da defesa. A compreensão mútua pode ser reforçada através da criação progressiva de uma “cultura judiciária europeia”, defendida pelo Programa da Haia, baseada na formação e na criação de redes. É também indispensável elaborar uma estratégia coerente no que se refere às relações da UE com os países terceiros e organizações internacionais», acrescentando-se, quanto à justiça penal, que «a aproximação das disposições e o estabelecimento de normas mínimas relativas a diversos aspectos do direito processual (por exemplo, o princípio ne bis in idem, o tratamento das provas ou os julgamentos in absentia) desempenharão um papel fundamental para desenvolver a confiança mútua e prosseguir o reconhecimento mútuo. O Plano de Acção do Conselho e da Comissão de aplicação do Programa de Haia sobre o reforço da liberdade, da segurança e da justiça na União Europeia (cf. nota 72), vai no mesmo sentido. No Parecer do Comité das Regiões de 14/4/2005, sobre o «Espaço de liberdade, de segurança e de justiça: Papel das autarquias locais e regionais na execução do Programa de Haia», publicado no JO C 231 de 20/9/2005, pp. 0083-0086, salienta-se que «as autoridades locais e regionais têm um papel central a desempenhar na criação de um espaço de liberdade, de segurança e de justiça na Europa» (…), prevendo aquele Comité «pronunciar-se a favor da criação de uma Agência Europeia dos Direitos Fundamentais», realçando que «a cidadania e os direitos fundamentais se exercem, em primeiro lugar, no âmbito da democracia de proximidade». Posteriormente, no seu Parecer de 6/7/2005, publicado no JO C 31 de 7/2/2006, pp. 0006-0010, o Comité das Regiões fez diversas observações e recomendações quanto à proposta de regulamento do Conselho que cria a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia e quanto à proposta de decisão do Conselho que autoriza a Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia a exercer as suas actividades nos domínios referidos no Título VI do Tratado da União Europeia – COM (2005) 280 final. Mais recentemente (e para não sermos exaustivos) ver, entre outros, a Decisão do Conselho, de 13 de Fevereiro de 2007, que cria, para o período de 2007 a 2013, no âmbito do Programa Geral sobre Direitos Fundamentais e Justiça, o programa específico «Justiça penal», in JO L 58 de 24/2/2007, pp. 13-18.
[13] Neste sentido, entre outros, Ac. do STJ 20/4/2006 (Rodrigues da Costa), proferido no processo nº 06P363, consultado em www.dgsi.pt.Também o Tribunal Constitucional já decidiu que "o art. 129º 1 (conjugado com o art. 128º 1) do CPP, interpretado no sentido de que o tribunal pode valorar livremente os depoimentos indirectos de testemunhas que relatem conversas tidas com um co-arguido que, chamado a depor, se recusa a fazê-lo no exercício do seu direito ao silêncio, não atinge, de forma intolerável, desproporcionada ou manifestamente opressiva, o direito de defesa do arguido. Por isso não havendo um encurtamento inadmissível do direito de defesa do arguido, tal norma não é inconstitucional" (Ac. do Tribunal Constitucional nº 440/99 de 8.7, proc. 268/99, DR II Série de 9.11.1999).
[14] Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra: Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-89, p. 139, refere que «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada “verdade material” –, de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e controlo (possa embora a lei renunciar à motivação e ao controlo efectivos)».
[15] Regra de experiência que, como diz Paolo Tonini, A prova no processo penal italiano (trad. de Alexandra Martins e Daniela Mróz, de La prova penale, 4ª ed., publicado em Pádua, pela Cedam – Casa Editrice Dott. António Milani, em 2000 e posterior actualização de Setembro de 2001), São Paulo, Brasil: Editora Revista dos Tribunais LTDA, 2002, pp. 55 e 56, “expressa aquilo que acontece na maioria dos casos”, sendo “extraída de casos similares”, gerando “um juízo de probabilidade”, de um “idêntico comportamento humano”, devendo o juiz formular “um raciocínio de tipo indutivo” e sucessivamente “um raciocínio dedutivo”.
[16] Aliás, como tem vindo a ser decidido por esta Relação, “o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação (…) e também não pode destinar-se a substituir a convicção formada pelo tribunal recorrido, objectivamente motivada, plausível segundo as regras da lógica, da experiência da vida e do senso comum e coerente com o sentido das provas produzidas” (assim, Ac. proferido no proc. nº 4133/05-1, relatado por Guerra Banha, citando outra jurisprudência).
[17] Nos termos do art. 380 nº 1-b) e nº 2 do CPP, corrigiu-se o lapso de escrita quanto ao ano (que não é 2004 mas antes de 2003).
[18] O mesmo sucede com o crime de tráfico de estupefacientes que é um crime exaurido ou crime executido: não é pelo facto de determinado arguido ter sido condenado por um crime de tráfico de estupefacientes cometido no período entre, por exp., 1/1/2003 a 1/1/2005, que já não pode ser condenado pelo mesmo tipo de crime mas agora cometido entre 2/1/2005 e 2/1/2006.
[19] Situação de violação do ne bis in idem existiria se, por exp., na primeira sentença o agente tivesse sido condenado por crime de maus-tratos cometido entre 1/1/2000 e 1/1/2003 e, em segunda sentença, viesse a ser condenado por crime de maus tratos cometido no período entre 1/5/2002 e 1/12/2002, por actos concretos que não haviam sido indicados na primeira sentença e que até eventualmente nesse processo não tivessem sido conhecidos.
[20] José Manuel Damião da Cunha, O Caso Julgado Parcial, Questão da Culpabilidade e Questão da Sanção num Processo de Estrutura Acusatória, Porto: Publicações da Universidade Católica, 2002, p. 399, nota 188.
[21] Ibidem.
[22] Em sentido contrário, Ac. do STJ de 15/3/2006 (relatada por Oliveira Mendes), no processo nº 05P4403, consultado no site www.dgsi.pt.
[23] Eduardo Correia, Unidade e Pluralidade de Infracções, Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Coimbra: Almedina, 1983, pp. 304 e 305.
[24] Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal (lições coligidas por Maria João Antunes), Coimbra: Secção de Textos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988-9, p. 108.
[25] Relembremos, resumidamente, que o crime continuado (art. 30 nº 2 do CP) – pressupondo uma pluralidade de resoluções tomadas – encontra o seu fundamento na considerável diminuição da culpa do agente, devido ao carácter exógeno da conduta que lhe cria uma especial solicitação para o crime. Terá de existir uma qualquer relação que de fora e de maneira considerável facilite a repetição da actividade criminosa, que torne cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito – assim, Eduardo Correia, Direito Criminal (com a colaboração de Figueiredo Dias), II vol., Coimbra: Almedina, 1968, pp. 208-219. Exige-se: 1º- a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico; 2º- homogeneidade na forma de execução do comportamento total e um mínimo de conexão espacial e temporal entre os vários actos; 3º- persistência de uma situação exterior que facilite a repetição do crime e que torne menos censurável a sua conduta; 4º- e um dolo continuado (resolução que se renova). Como é claro, esta definição do crime continuado (ainda que resumida) não se confunde com a natureza do crime de maus-tratos (que nem pela doutrina, nem pela jurisprudência é tratado como crime continuado, não obstante a referência que habitualmente se faz “à reiteração das respectivas condutas” – cf. por todos, Taipa de Carvalho, em anotação ao art. 152 do CP, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, dir. de Jorge Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, pp. 329 a 339)
[26] Dispõe o artigo 29 nº 5 da CRP:
Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
[27] No mesmo sentido, Ac. do TRP de 28/2/2007 (relatado por Joaquim Gomes), proferido no processo nº 0616053, consultado no site www.dgsi.pt.
[28] Dir-se-á que, para aplicação desta pena de substituição, o legislador se contenta agora apenas com a possibilidade (poder-dever) de o tribunal efectuar um juízo de prognose favorável à suspensão da execução da pena de prisão (concretamente aplicada até 5 anos), sendo desnecessário, quanto ao período de duração da suspensão (que, para ter alguma eficácia, nunca pode ser inferior a um ano), exigir mais um juízo (intermédio) de ponderação.