Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
520/15.2T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: DOCUMENTO AUTÊNTICO
ADMISSIBILIDADE DA PROVA TESTEMUNHAL
PRINCÍPIO DE PROVA
Nº do Documento: RP20150915520/15.2T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 09/15/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Numa aplicação mitigada da proibição constante do art. 394º, nº 1 do C. Civil, a jurisprudência vem admitindo a produção de prova testemunhal para a demonstração de uma factualidade diversa da constante de documento escrito, desde que esta resulta com alguma verosimilhança de outros meios de prova, designadamente de outros documentos escritos.
II - Não é apto a servir como “princípio de prova” escrita, relacionada intrinsecamente com a factualidade alternativa que se pretende demonstrar através de prova testemunhal, um documento escrito não assinado por quem nele figura como obrigado e cuja credibilidade, sediada apenas na livre convicção do julgador, advém exclusivamente da própria prova testemunhal e do contexto do negócio relatado por essas mesmas testemunhas.
III - Em tais circunstâncias, o conteúdo de um negócio celebrado por escritura pública não pode ser obliterado em resultado da produção de prova exclusivamente testemunhal, que era ab initio inadmissível, nos termos do art. 394º, nº 1 do C. Civil.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. Nº 520/15.2T8PVZ-A.P1
Comarca do Porto – Tribunal da Póvoa de Varzim
Inst. Local - Secção Cível - J2

REL. N.º 257
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Fernando Samões
Vieira e Cunha
*
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO
B… e esposa C… vieram requerer a concessão de providência cautelar não especificada contra o seu filho D… e mulher E…, pedindo a condenação destes a absterem-se de os impedirem de entrar e permanecer na sua habitação, sita na Rua …, nº …, freguesia …, Vila do Conde, bem como de os impedirem de utilizar e aceder a todas as divisões que lhes estão afectas, designadamente, cozinha, despensa, sala de estar, quarto, wc do rés-do-chão, lavandaria e quintal e, ainda, a sua condenação a reporem o fornecimento de água e energia eléctrica ou a autorizarem que os respectivos contratos sejam celebrados em nome dos requerentes, sempre com a condição de suportarem os respectivos custos de consumos.
Sustentando a sua pretensão, alegaram que pretenderam fazer aos requeridos a transmissão da casa que era sua, por “partilhas em vida”, sob condição de estes deles tratarem toda a vida. Por razões relacionadas com o registo da titularidade do prédio, acabaram por fazer uma escritura de justificação desse mesmo prédio e da sua venda aos requeridos, sendo que esse negócio não foi o que realmente fora acordado. O preço previsto foi pago aos irmãos do requerido marido, como se de tornas se tratasse, sem que tivesse ficado escrita a condição de assistência e tratamento dos aqui requerentes, pais do requerido marido.
Acontece que os requeridos abandonaram a habitação e deixaram de assegurar as necessidades dos requerentes, contra o que fora acordado, além de que os confinaram a viver num espaço reduzido da casa, vedando-lhes o acesso aos demais, e deixando de garantir o abastecimento de luz e água, assim colocando em perigo a saúde de ambos. Daí, em suma, a necessidade de recurso a esta providência cautelar não especificada.
Deferiu-se o pedido de produção de prova sem contraditório dos requeridos, após o que foi concedida a providência cautelar requerida.
É esta decisão que os requeridos vêm impugnar através do presente recurso, que terminam com as seguintes conclusões:
1. A testemunha F…, cujo depoimento se encontra gravado no CD 20150417142845_14091415_2871584, é filho dos requerentes, não obstante tal facto não invalide o seu depoimento, o mesmo terá de ser ponderado na valoração da sua imparcialidade e envolvimento pessoal e emocional na questão em apreciação nestes autos.
2. O depoimento da referida testemunha é totalmente incoerente e desprovido de verdade, atento a que a mesma testemunha declarou dar o seu consentimento na escritura de compra e venda dos requerentes aos requeridos e, em sede de audiência de julgamento, não logrou explicar ao Tribunal a convicção de ter assinado uma escritura de partilha, sendo certo que são atos formais de conteúdo totalmente antagónicos.
3.Também no que concerne ao documento denominado "Declaração de Compromisso", a mesma testemunha prestou depoimento com conhecimento indireto, tendo declarado que nunca viu tal declaração.
4. A testemunha G…, cujo seu depoimento se encontra gravado no CD 20150417144754_14091415_2871584, também é filha dos requerentes, pelo que, impunha-se que na valoração do seu testemunho fosse ponderada a sua imparcialidade e envolvimento pessoal e emocional na questão em apreciação nestes autos.
5. O depoimento desta testemunha não oferece a mínima credibilidade, já que tendo estado presente pessoalmente na escritura de compra e venda e assinado a mesma, todo o seu depoimento é prestado como se não estivesse na mesma pessoalmente e não a tivesse assinado e que o conhecimento em relação à mesma fosse efetuado por interposta pessoa, ou seja, a sua mãe.
6. A testemunha H…, cujo seu depoimento se encontra gravado no CD 20150417150141_14901415_2871584, é amiga dos requerentes, prestou um depoimento muito vago e impreciso, nunca assistiu a qualquer negócio celebrado entre os requerentes e requeridos, nada sabe quanto à existência da escritura de compra e venda realizada.
7. A testemunha I…, prima dos requerentes, cujo depoimento se encontra gravado no CD 20150417151332_14091415_2871584, respondeu de forma vaga, sem apresentar qualquer razão de ciência, sendo que face ao seu depoimento se verifica desconhecer a existência da escritura de compra e venda junta aos autos, e a transmissão de propriedade a favor dos requeridos, isto é, no fundo desconhecendo o negócio jurídico celebrado entre os requerentes e os requeridos
8. Tendo em consideração o teor dos depoimentos das testemunhas e feita a reapreciação da prova gravada, não poderia o Tribunal a quo ter dado como provado os factos constantes dos arts. 5º, 6º, 7º, 8, 9º, 11º, 12º, 13º, art. 15º onde lê: "Por motivos que os requerentes ignoram, e tendo em vista concretizar o acordo de partilha a que chegaram ...", 17º, 21º, 22º, 23º, 24º, 26º, 27º, 28º,
9. Devendo essa resposta ser alterada e considerar-se essa matéria de facto como não provada.
10. Os requerentes não lograram provar, como lhes competia, que são titulares do direito de habitação ou de qualquer outro direito real sobre o indicado prédio.
11. Como se provou, os requerentes transmitiram por escritura de compra e venda, celebrada em 16/11/2001 no 2º Cartório Notarial de Vila do Conde, aos requeridos, a propriedade do imóvel, livre de ónus ou encargos.
12. Falta assim, o preenchimento de um requisito indispensável, previsto no nº 1 do art. 368º do C.P.C. "a probabilidade séria do direito invocado" para a que a providência cautelar não especifica fosse deferida.
13. Não pode ser atribuído qualquer valor probatório ao documento junto aos autos denominado "Declaração de Compromisso", uma vez o mesmo, nos termos do art. 373º do C.C., não poder ser considerado documento particular por dele não constar qualquer assinatura.
14. Os requerentes também não lograram provar a existência deste documento na posse dos requeridos e muito menos, que a mesma alguma vez tivesse sido assinada.
15. Na falta da verificação do direito invocado para que fosse decretada a providência cautelar, improcede qualquer prejuízo ou lesão para esse mesmo direito, já que na inexistência do direito invocado, nenhuma lesão pode advir.
16. Não têm assim, os requerentes qualquer título que lhes permita defender a sua posse, pois com a transmissão do imóvel, os requerentes perderam o animus e o corpus pelos quais a posse se manifesta.
17.Existe manifesta contradição entre os factos que o Meritíssimo Juiz a quo considera provados e não provados.
18. Assim como manifesto erro na apreciação das provas produzidas, quer relativamente aos documentos juntos, quer aos depoimentos das testemunhas inquiridas, que contrariam expressamente o documento autêntico junta aos autos " Escritura de Justificação e Compra e Venda ", em que intervieram pessoalmente.
19. Motivo pelo qual, ao seu depoimento não pode ser atribuído qualquer valor probatório, uma vez contrariar expressamente o que as próprias testemunhas declaram perante o notário na outorga da escritura.
20. A fundamentação de facto e de direito nunca poderia conduzir à decisão ora recorrida, dado estar em absoluta contradição, estando por via disso, ferida de nulidade por força do disposto no artº 615º nº 1, alínea c) do C.P.C.
21.Com a douta decisão recorrida, o Meritíssimo Juiz a quo foram violadas as normas dos arts. 36212, nº 1 e 2, art. 368º, nº 1 e art. 615º, nº I, al. c) do CPC. e arts. 370º, 371º, 372º, 373º,879º, 1251º,1259º, 1263º, 1485º do CC.
Termos em que nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas., deverá revogar-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue o procedimento cautelar totalmente improcedente.
Os recorridos apresentaram resposta, defendendo a confirmação da decisão em crise.
O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
Foi depois recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre, pois, decidir as questões que constituem o seu objeto.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (cfr. art. 639º e nº 4 do art. 635º, ambos do CPC).
No caso, em função das conclusões formuladas, caberá sindicar o juízo proferido quanto à matéria de facto, entendendo os recorrentes dever ser dada por não provada a matéria descrita como provada sob os pontos 5º, 6º, 7º, 8, 9º, 11º, 12º, 13º, art. 15º (onde lê: "Por motivos que os requerentes ignoram, e tendo em vista concretizar o acordo de partilha a que chegaram ... "), 17º, 21º, 22º, 23º, 24º, 26º, 27º, 28º, da decisão recorrida. Nessa tarefa deverá ponderar-se a admissibilidade da prova testemunhal de sentido divergente relativamente a matéria constante da Escritura de Justificação e Compra e Venda a que os autos se referem; sucessivamente, se for caso disso, a falta de credibilidade dos próprios depoimentos testemunhais de F…, G…, H… e I…; e a falta de força probatória de um documento designado “Declaração de Compromisso” que nem sequer se mostra assinado. Por fim, no caso de alteração da matéria de facto apurada, caberá verificar a presença dos pressupostos da tutela cautelar conferida na decisão em crise, designadamente em sede de uma eventual nulidade por contradição entre factos e direito.
*
É essencial, para a decisão a proferir, ter presente a decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto em discussão, que consistiu no seguinte:
Factos provados:
1º Os Requerentes são pais do Requerido marido e têm actualmente 78 anos de idade, sendo o Requerente marido invisual e, por isso, dependente de terceira pessoa,
3° O Requerido marido é o mais novo de 5 filhos do casal dos Requerentes e sempre com eles residiu até há cerca de 5 meses,
4º Os Requeridos casaram-se há cerca de 19 anos, tendo ficado a residir, após o casamento, na casa dos Requerentes, sita na Rua …, nº…, da freguesia ….
5º Já na altura o Requerente marido encontrava-se cego e dependente do auxílio de terceira pessoa,
6° Razão pela qual o filho D… decidiu ficar a habitar na casa dos pais, com o objectivo de prestar apoio e assistência aos progenitores.
7º Os Requeridos sempre manifestaram agrado na vivência conjunta com seus pais e sogros, respectivamente.
8º Nesse pressuposto, foram manifestando vontade em ampliar a habitação, modernizá-la e dotá-la, sobretudo, de melhores condições c conforto.
9° Os requerentes nunca se opuseram a tal desejo do seu filho e nora e sugeriram, inclusive, fazer partilhas em vida, por forma a adjudicar-lhes a casa, salvaguardando o direito de habitação a seu favor até à morte do último.
10º Para o efeito, os Requerentes falaram com os seus restantes 4 filhos, que nunca manifestaram qualquer oposição.
11º Tendo em vista concretizar a referida partilha, o casal dos Requeridos tratou de arranjar solicitador que tratasse de toda a documentação necessária para o efeito, bem como de acertar com os irmãos o valor que entendiam atribuir à casa,
12° Tudo foi organizado e orientado pelo casal dos Requeridos e pelo Solicitador J…, com domicílio profissional em Vila do Conde, a pedido daqueles.
13º O prédio foi avaliado, à data, por 10.000 contos, e todos combinaram que os Requeridos pagariam a cada um dos quatro irmãos/cunhados a importância de 1.000.000$00 e ficavam com o resto, assumindo a obrigação de cuidar e tratar dos Requerentes, na saúde e na doença, na casa onde todos habitavam, onde ficava reservado a favor dos Requerentes o direito a habitação,
14° No decurso dessas diligências, veio a verificar-se que a casa não se encontrava ainda registada na Conservatória a favor dos Requerentes e que seria necessário outorgar uma prévia escritura de justificação.
15º Por motivos que os Requerentes ignoram, e tendo em vista concretizar o acordo de partilha a que chegaram, foi sugerido outorgarem, em simultâneo, uma escritura de justificação e compra e venda a favor do casal dos Requeridos, e com autorização dos demais filhos do casal dos Requerentes.
17° Os Requerentes acreditavam nos Requeridos e tinham plena confiança de que estes cumpririam as obrigações assumidas.
18° Por via disso, em 16 de Novembro de 2001, Requerentes, Requeridos e os demais filhos do casal dos Requerentes outorgaram a escritura de justificação e compra e venda, através da qual os Requerentes declararam adquirir, por usucapião, o prédio urbano, destinado a habitação, sito na Rua …, nº…, da freguesia …, concelho de Vila do Conde, com a área de 159 m2, não descrito na Conservatória do Registo Predial e inscrito na respectiva matriz urbana sob o art. 1136º
19º E, simultaneamente, declararam vender ao Requerido, seu filho, no estado de casado com a Requerida, pelo preço de então 4.000.000$00, e com a autorização dos demais filhos, o identificado prédio, tudo como melhor se pode verificar da escritura anexa ao requerimento inicial como doc. nº 3.
20º Por via dessa aquisição, o referido imóvel passou a estar registado a favor dos Requeridos, pela Ap.35 de 2001/12/28 do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila do Conde sob o nº 923 da freguesia …, conforme cópia da descrição que se junta como doc. nº4.
21º Na sequência da aludida escritura de compra e venda, os Requeridos entregaram a cada um dos seus quatro irmãos/cunhados a acordada importância de 1.000.000$00,
22° Por sua vez, os Requerentes nada receberam do seu filho D… e nora E…, não obstante o teor que da escritura consta.
23º Era condição da partilha em vida efectuada, que os requerentes ficassem com o direito à habitação, naquela que sempre constituiu a sua casa de morada de família há mais de 38 anos à data, até à morte do último.
24º Acrescida ainda da obrigação por parte dos Requeridos de cuidarem e tratarem dos Requerentes, na saúde e na doença prestando-lhes toda a assistência que os mesmos carecessem.
26º Os requeridos pediram ao solicitador para elaborar um documento particular, que seria assinado pelos Requeridos, onde estes, de forma expressa, reconheciam e se obrigavam ao cumprimento das obrigações assumidas.
27° Nesse documento - denominado "Declaração de Compromisso" e junto ao requerimento inicial - elaborado pelo solicitador é referido pelos Requerentes a «dar-lhes habitação no prédio urbano sito na referida Rua …, nº…, que os declarantes compraram aos seus referidos pais e sogros por escritura lavrada hoje no Segundo Cartório da Secretaria Notarial de Vila do Conde, bem como a tratar ambos na saúde e na doença e a prestar-lhes toda a assistência de que estes venham a carecer, nomeadamente em deslocações a tratamentos e consultas»
28° Todos os documentos relacionados com a escritura em questão, bem como as declarações de compromisso, foram elaborados pelo Solicitador J….
29° Os Requerentes confiavam no seu filho e nora.
30° Os Requerentes só agora tiveram acesso a uma cópia dessa declaração de compromisso, que lhes foi fornecida pelo referido Solicitador que tratou de todo o processo da partilha.
31º Cerca de um ano após a outorga da referida escritura, os Requeridos decidiram dar início às obras de reconstrução da habitação.
32º A habitação em causa que havia sido construída pelo casal dos Requerentes, no inicio dos anos 60, em terreno adquirido à mãe do Requerente B….
33° Tratava-se de uma habitação já com cerca de 40 anos, mas em bom estado de conservação e manutenção.
34° Não obstante, era intenção do casal dos Requeridos ampliar a referida habitação, por forma a dotá-la de rés-do-chão e andar, e melhor permitir a habitação dc todos.
35° Desde o início dos anos 60 que os Requerentes passaram a residir naquela habitação, onde criaram todos os seus cinco filhos. 36° Quando decidiram dar início às obras, Requerentes e Requeridos saíram temporariamente da casa, tendo passado a residir os quatro num apartamento arrendado, na mesma freguesia …,
37º Por cuja ocupação, pagaram os Requerentes a renda mensal dc € 500,00.
38° Cerca de um ano e meio após, as obras ficaram concluídas, tendo Requerentes c Requeridos regressado à sua habitação, na Rua …, nº …, em ….
39º Desde então os AA. passaram a dispor de um quarto com casa de banho incorporada, no 1º andar da habitação.
40º A casa possuía todas as comodidades e conforto de uma casa nova, tendo, inclusive, sido projectada com espaços adequados à circulação do Requerente, que é invisual.
41º À semelhança do que já acontecia anteriormente, Requerentes e Requeridos continuaram a usufruir cm comum dos espaços da habitação, designadamente da cozinha, despensa, sala de estar, casa de banho do rés-do-chão, lavandaria, garagem, quintal e logradouro.
42º Usufruiram ainda os Requerentes, em exclusivo, do quarto que lhes ficou destinado no l° andar da habitação, com respectiva casa de banho.
43° Na cozinha, os Requerentes confeccionavam e tornavam todas as suas refeições.
44º Na sala de estar passavam os seus tempos livres, sentados no sofá, a ver ou ouvir televisão, recebiam as suas visitas e descansavam.
45° Na despensa guardavam alguns objectos pessoais, bem como a mercearia.
46° Na lavandaria, a Requerente mulher lavava a roupa, estendia e passava a ferro.
47° Utilizavam-se das duas casas de banho, quer do rés-do-chão, quer do 1º andar, para tratar da sua higiene pessoal.
48º E, finalmente, do quarto, onde dormiam.
49° Por sua vez, o casal dos Requerentes passava grande parte do seu tempo no quintal.
50° O Requerente marido, a deambular de um lado para o outro, atenta a impossibilidade de o poder fazer livremente na rua, por força da incapacidade visual de que padece.
51º Enquanto que a Requerente mulher cultivava o quintal, nele plantando hortaliças e legumes.
52° Que depois colhia para consumo doméstico da família.
54° Tudo à vista de quem quer que fosse, designadamente dos Requeridos.
55° E sem oposição de quem quer que seja.
56º De forma absolutamente ininterrupta e do mesmo modo com que sempre agiram desde há mais de 50 anos, data em que naquela casa passaram a residir.
57º Sempre na convicção de que agiam, inicialmente como donos e legítimos proprietários da referida casa e, após a partilha e adjudicação da casa ao filho D…, na qualidade de titulares do direito a habitação da mesma.
58° Sempre assim sucedeu durante mais de 16 anos de vivência conjunta entre Requerentes e Requeridos, na mesma casa.
59º Acontece que, desde meados dc 2012, Requerentes e Requeridos começaram a desentender-se.
60° O Requerido passou a trabalhar no estrangeiro, como motorista, ausentando-se de casa por períodos de 30 dias.
66° Entretanto, há alguns meses atrás, os Requeridos abandonaram a casa de morada de família, tendo passado a residir num apartamento arrendado, na mesma freguesia.
67° Levaram algumas mobílias, electrodomésticos e todos os seus pertences pessoais.
68º Desde então deixaram de se preocupar, em absoluto, com o bem-estar e saúde dos Requerentes.
69º Quando se deslocam lá a casa, ameaçam-nos de que os vão pôr na rua.
71º Dizem que a casa é deles e que não os querem lá.
72° Trancaram à chave a porta que dá acesso para o quintal, impedindo os Requerentes de lá se deslocarem.
73° De igual modo, trancaram a porta da lavandaria, impedindo os Requerentes de lá acederem para colocar a roupa a lavar na máquina.
74° Bem sabendo da impossibilidade da Requerente mulher para lavar a roupa à mão, não dispondo sequer de condições, dentro de casa, para o efeito.
75° Para além disso, fecharam à chave todas as divisões da casa, ficando apenas os Requerentes com acesso à cozinha c ao seu quarto.
76º O Requerente marido, por força da sua incapacidade visual, passava largos períodos do dia a deambular pelo quintal e logradouro.
77º Sendo que, agora, se vê forçado a permanecer ora no quarto, ora na cozinha.
78° Por sua vez, também a Requerente mulher se vê agora impedida de cultivar o quintal, e, bem assim, de colher as culturas que lá tinha semeado.
79º No passado dia 30 de Março, o Requerido deslocou-se a casa e afixou um letreiro de "vende-se" na parte exterior da mesma.
80º Comunicou ao pai que ia vender a casa e que eles tinham um mês para de lá saírem.
82º Além do mais os Requerentes não têm outro sítio para morar.
83º Perante isso, o Requerido fez constar, em jeito de ameaça, que ia mandar cortar a água e a luz.
84º O certo é que, no passado dia 02 de Abril (5ª feira) deslocaram-se à habitação dos Requerentes, funcionários da Indaqua e da EDP para cortar a água e a luz.
85° A água foi, de imediato, cortada e o contador retirado.
86º Quanto à luz, os Requerentes suplicaram ao técnico que lá se deslocou que não o fizesse, pelo menos até que passasse o período de Páscoa que se aproximava, com a promessa de que iriam procurar resolver a situação junto do filho.
87º Além do mais, justificaram a necessidade que tinham de electricidade para sobrevivência do Requerente marido.
88° Isto porque, o Requerente marido é diabético, em grau elevado.
89° É-lhe administrada insulina.
91º Se porventura a luz for cortada, o requerente ficará sem poder conservar no frigorífico a medicação.
92° Os Requeridos têm conhecimento desse facto.
96º A qualquer momento, o técnico da EDP deslocar-se-á à habitação dos requerentes para efectivar o corte que ficou suspenso, apenas por alguns dias, desde a passada 5ª feira.
99º Os Requerentes necessitam de água potável para cozinhar, tornar banho e para as demais lides domésticas.
106º Os requerentes não dispõem de qualquer outro local para residir.
111° Os Requerentes sempre agiram na convicção do exercício do direito ele habitação que acordaram ser-lhes atribuído.
112º E em relação ao qual, durante cerca de 13 anos, os Requeridos nunca colocaram em causa e sempre respeitaram e reconheceram.
Factos não provados:
16º Foi transmitido, quer aos Requerentes, quer aos seus restantes 4 filhos, que o efeito prático seria o mesmo que o da partilha.
25º Não obstante o previamente estipulado entre as partes, na véspera da realização da escritura, os Requeridos transmitiram aos Requerentes que o direito de habitação a favor destes não podia ficar a constar da escritura e posterior registo, uma vez que os Requeridos tinham já intenções de onerar a casa, através de hipoteca, para garantia do empréstimo para obras que iam contrair junto do Banco.
27º Os Requeridos assinaram a declaração de compromisso, mencionada em 27º dos factos provados.
28º Todos os documentos relacionados com a escritura em questão, bem como as declarações de compromisso ficaram na posse dos Requeridos.
29º Os Requerentes consentiram que os requeridos guardassem toda a documentação.
30º Os originais assinados estão na posse do casal dos Requeridos.
53° Plantava também flores, que posteriormente colhia para enfeitar no cemitério.
61º Desde então, a Requerida mulher começou a maltratar e insultar os sogros.
62º Deixou ele os auxiliar e prestar apoio.
63º Deixou de os transportar c acompanhar a médicos, hospitais e consultas.
64º Chegou, inclusive, a agredir os Requerentes, existindo processo-crime de violência doméstica pendente, o qual corre termos sob o NUIPC 254/15.8 T9VCD.
65º De igual modo, o Requerido, quando regressava do estrangeiro discutia com os pais e ameaçava que a casa é dele e ele é que mandava.
69º insultam os Requerentes.
70° Fazem constar junto de familiares e vizinhos de que "se não saírem a bem, vão sair a mal",
81º O Requerente logo lhe transmitiu que não o faria, já que ocupa legitimamente aquela que sempre foi a sua casa.
90º O injectável da insulina, depois da primeira utilização, tem que ser guardado no frigorífico.
94º Logo após estes acontecimentos, os Requerentes, através dos seus filhos F… e K…, tentaram falar com o Requerido D…, por forma a que o mesmo voltasse atrás nos seus intentos.
95º Não obstante, o mesmo logo os informou que não ia mandar repor a luz nem a água e que "o pior ainda eslava para vir".
97º Os Requerentes não conseguem sobreviver durante muito tempo sem água, nem luz.
107º Não têm sequer rendimentos que lhes permita arrendar um local para viver.
108º Os Requerentes dispuseram de todas as suas poupanças a favor dos Requeridos, convictos de que os Requeridos deles cuidariam, naquela que sempre foi a sua habitação.
109º Durante os 16 anos que com eles conviveram, e enquanto se entenderam, os Requerentes sempre os ajudaram financeiramente.
110° Em 2008, os Requerentes deram aos Requeridos €10.000,00 para que os mesmos adquirissem um lote de terreno a um vizinho, destinado a ampliação do logradouro, em 2011 deram-lhes mais € 15.000,00 para amortização parcial do empréstimo que contraíram para as obras, pagaram a ligação do saneamento, e tantas outras despesas e empréstimos de elevado valor, dos quais nunca foram ressarcidos.
*
Na decisão recorrida, o tribunal começou por considerar a existência de um acto jurídico complexo, integrado por uma justificação notarial do direito de propriedade sobre um imóvel e, sucessivamente, por um negócio de compra e venda através do qual esse imóvel, constituído pelo prédio habitado pelos ora requerentes, foi por eles vendido ao seu filho e mulher, ora requeridos. Em função desse negócio, o tribunal concluiu ser impossível reconhecer aos requerentes um direito real de habitação, que merecesse tutela pela via cautelar pretendida.
No entanto, de seguida, o tribunal considerou que o negócio celebrado não foi o que se encontra descrito na escritura pública através da qual foi formalizado, cristalizando-se ali os direitos e obrigações assumidos por cada uma das partes, bem como a sua recíproca vontade de os assumirem, mas sim um outro que concluiu ser, pelo menos “em parte, uma partilha em vida, regulada pelo art. 2029º, nº 1 do CC”, traduzida, em suma num “contrato de doação a presumidos herdeiros legitimários, inteirando-se os demais com as correspondentes tornas”
Assim, o tribunal deu por provado, não obstante o teor da escritura em questão traduzir uma típica compra e venda a um filho, com autorização dos restantes, de um prédio pelo preço de 4.000 contos, declarado recebido, a celebração de um negócio assinalavelmente diferente: o prédio valia 10.000 contos, tendo ocorrido uma doação, ao requerido, do equivalente a 50% desse valor, bem como a partilha, entre todos filhos, dos outros 50%, satisfeitos pelo requerido. Foi por via desta partilha que o requerido pagou, então, a cada um dos seus irmãos, a quantia de 1.000 contos. Todavia, essa doação comportaria cláusulas modais, traduzidas nos pontos 23º e 24º dados por provados: “Era condição da partilha em vida efectuada, que os requerentes ficassem com o direito à habitação, naquela que sempre constituiu a sua casa de morada de família há mais de 38 anos à data, até à morte do último. Acrescida ainda da obrigação por parte dos Requeridos de cuidarem e tratarem dos Requerentes, na saúde e na doença prestando-lhes toda a assistência que os mesmos carecessem.”
A este propósito, o tribunal considerou não estar afectada a validade deste negócio pela circunstância de a doação e as correspondentes clausulas modais não estarem expressas na escritura pública celebrada, por não se lhes imporem as razões da forma que imperavam para o negócio escriturado. E foi em função de tais direitos de crédito, que já não de natureza real, que o tribunal considerou indiciada a titularidade, pelos requerentes, de um direito merecedor da tutela cautelar.
Neste contexto, o que agora importará decidir não é o problema da eventual validade do negócio identificado pelo tribunal a quo, designadamente em função da sua regularidade formal, já que tal nem chega a ser objecto do recurso.
A montante disso, carecerá de apurar-se se o tribunal podia e devia ter dado por provado esse negócio, na situação jurídica em apreço.
Para identificar o que considerou ser um negócio integrado simultaneamente por uma doação e por uma partilha em vida, o tribunal a quo baseou-se nos depoimentos das testemunhas F…, G…, H… e I….
Para além disso considerou que o documento designado “Declaração de Compromisso” – descrito sob os pontos 26º e 27º da matéria provada – não foi assinado pelos requeridos, sem prejuízo de se ter convencido que foi elaborado a seu mando.
No que respeita a este documento, a ausência da sua subscrição pelos requeridos só pode ter um resultado: a sua total inconsequência probatória. Com efeito, mesmo a ponderar-se a circunstância de o mesmo ter sido elaborado a seu mando, nada pode ele revelar quanto a uma vontade real e eficaz de contrair as obrigações ali constantes (que corresponderiam ao teor das clausulas modais referidas), pois que essa vontade só poderia ter-se por expressa por uma via: a subscrição do documento. É o que resulta da conjugação do disposto nos arts. 373º e 376º do C. Civil.
Até pode admitir-se que os requeridos tenham projectado vir a assumir as obrigações constantes do referido documento, tendo sido essa intenção que motivou a ordem dada para a sua elaboração. Mas já não se pode especular – pelo menos a partir do documento em causa - que tenham concretizado essa intenção, tendo pretendido, em momento ulterior, contrair tais obrigações. Isso só seria viável se o documento tivesse sido assinado, o que, como admitiu o tribunal a quo, não se apurou que tivesse acontecido. Nestes termos, tal documento, podendo traduzir uma intenção que chegou a ser a dos requeridos, de forma alguma é apto a traduzir a conversão dessa intenção numa efectiva e consequente vontade de aquisição das correspondentes obrigações.
Nessa medida, aquele texto, para o caso sub judice e para efeitos de demonstração do que quer que seja no tocante a eventuais obrigações dos requeridos, não pode deixar de ter-se como absolutamente ineficaz. Ele só se constituiria num meio de prova documental quanto à imputação do seu conteúdo a uma vontade dos requeridos se se encontrasse assinado. Não o estando, não pode ser tido como eficaz, pelo menos enquanto meio de prova documental, para demonstrar uma hipotética vontade relativamente à aquisição das obrigações ali mencionadas, que estariam em conexão com os demais termos do negócio que o tribunal deu por provado.
De resto, o próprio tribunal não deixou de justificar a sua convicção quanto à realidade das obrigações ali descritas com os depoimentos testemunhais e não com a uma eficácia probatória dessa “Declaração de Compromisso” enquanto meio de prova documental. Com efeito, sobre a matéria, invocou o disposto no art. 366º do C. Civil (livre apreciação da força probatória de documento sem requisitos) e não o constante dos arts. 373º e 376º do mesmo diploma.
A credibilidade dada ao teor dessa “Declaração de Compromisso” reconduziu-se, então, à credibilidade conferida à própria prova testemunhal, concretamente ao depoimento de F…, como referiu o tribunal a quo, sem prejuízo de ter sido entendido que a existência desse documento fazia “sentido … na lógica do negócio, colmatando a ausência de semelhante declaração na escritura” (decisão recorrida, fls. 56), a par da circunstância enunciada de ele “parecer” contemporâneo do negócio e não fabricado à última hora, para fazer prova em audiência.
Há que reconhecer que estas últimas considerações do tribunal são puramente especulativas e não alicerçadas em qualquer meio de prova tendente à credibilização de tal documento, que não as declarações do referido F…, como se referiu na decisão em crise, a par do contexto do negócio tal como veio a ser descrito pelas testemunhas.
Podemos, assim, afirmar, que a citada “Declaração de Compromisso” não traduz por si só a assunção de qualquer obrigação por aqueles que nela figuram como obrigados, sendo um documento desprovido da força probatória específica da prova documental. Reduz-se, por isso, a um meio de prova sujeito a livre apreciação judicial (art. 366º do C. Civil).
Acontece que, no caso, tal documento seria necessário, antes de mais, para servir como princípio de prova tendente a viabilizar a produção de prova testemunhal, no âmbito de uma aplicação restrita do regime do art. 394º do C. Civil, em superação da proibição que o seu nº 1 prescreve.
Com efeito, a jurisprudência vem admitindo uniformemente a produção de prova testemunhal para a demonstração de uma factualidade diversa da constante de documento escrito, desde que esta resulta com alguma verosimilhança de outros meios de prova, designadamente de outros documentos escritos. A admissibilidade da prova testemunhal exige, então, um “princípio de prova” escrita, relacionada intrinsecamente com a factualidade alternativa que se pretende demonstrar (entre outros, cfr. Ac. do TRG de 25/10/2012, proc. nº 1673/10.1TBVCT.G1, em dgsi.pt).
No entanto, no caso em apreço, a “Declaração de Compromisso” a que nos vimos referindo é, ela própria, desprovida de qualquer força probatória de cariz documental, pois que, por não estar assinada, só pode valorizar-se em sede da livre convicção do tribunal. E esta, por sua vez, como claramente expressou o tribunal recorrido, só advém do contexto do negócio tal como descrito pelas referidas testemunhas cujo depoimento, de per si, é o que se procura admitir com recurso a tal documento. Estamos, então, perante uma inadmissível petição de princípio.
Verifica-se, pelo exposto, que esse documento não pode constituir o que a recorrentemente se designa por “princípio de prova documental” apto a justificar uma aplicação mitigada da regra do art. 394º do C. Civil (cfr., neste sentido, Ac. do STJ, de 26/2/2015, proc. nº 194/08.3TBPTM.E1.S1, em dgsi.pt, de onde se pode extrair uma tal solução, sem reserva de se admitir que, no caso aí apreciado, a conclusão foi divergente, mas apenas por haver outros documentos analisados, que justificaram a admissibilidade do depoimento testemunhal).
Esta afirmada irrelevância do referido meio de prova implica a conclusão de que a convicção do tribunal sobre a matéria relacionada com o negócio de doação e partilha em vida dado por provado, concretamente a descrita sob os pontos 9º, 11º, 12º, 13º, art. 15º (onde se lê: "Por motivos que os requerentes ignoram, e tendo em vista concretizar o acordo de partilha a que chegaram ..."), 17º, 21º, 22º, 23º e 24º, se formou única e exclusivamente a partir dos depoimentos das testemunhas referidas, já que nenhum outro meio de prova foi produzido, para além da própria escritura de justificação e compra e venda.
Temos, então, que o tribunal tinha perante si essa escritura pública, mas deu por provado que, em vez do negócio nela descrito, foi efectivamente celebrado um outro, que referimos como de doação, com encargos, e de partilha em vida. E fê-lo exclusivamente com fundamento nos depoimentos testemunhais de F…, G…, H… e I…
Como dissemos antes, a montante de saber se um tal negócio pode ter-se por válido, formal e substancialmente, devemos ainda decidir se ele poderia e deveria ter-se por provado.
Com efeito, o art. 394º do Código Civil dispõe, no seu nº 1: “É inadmissível a prova por testemunhas, se tiver por objecto quaisquer convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou dos documentos particulares mencionados nos artigos 373.º a 379.º, quer as convenções sejam anteriores à formação do documento ou contemporâneas dele, quer sejam posteriores.”
A ratio legis deste preceito é evidente: “A finalidade daquele dispositivo é evitar que a eficácia do contido num documento escrito possa ser posto em causa através de um meio de prova mais aleatório e inseguro, como é a prova testemunhal.” (Ac. do STJ de 2-11-2010, proc. nº196/06.8TCFUN.L1.S1).
Com este dispositivo, o legislador impôs a força probatória específica de um concreto meio de prova – no caso concreto, a de um documento escrito e autentico - prevenindo a sua vulnerabilidade a uma livre apreciação do julgador, designadamente na hipótese da sua conjugação com depoimentos testemunhais sobre a mesma matéria; e fê-lo proibindo a própria admissibilidade da prova testemunhal.
No caso, é evidente a contradição entre o negócio constante da escritura pública outorgada por requerentes e requeridos e aquele que resultou relatado pelas testemunhas oferecidas pelos requerentes e que o tribunal entendeu, conjugando tudo, dever ter-se por celebrado entre as partes. No primeiro caso, estamos perante um típico contrato de compra e venda de um imóvel: a propriedade do prédio urbano em causa foi justificada pelos requerentes e sucessivamente transmitida para os requeridos, seu filho e nora, mediante um preço declarado como já pago, sob autorização dos demais filhos. No segundo caso, o negócio seria radicalmente diferente, operando-se a transmissão da propriedade em parte por doação, com encargos, e em parte mediante o pagamento de quantias aos restantes filhos dos alienantes.
Como resulta do antes exposto, a demonstração deste último negócio jamais poderia ser feita, como foi, através da prova testemunhal admitida e produzida perante pelo tribunal a quo. A inadmissibilidade desse meio de prova encontra-se prescrita pelo art. 394º, nº 1 do C. Civil, que decreta não poder sequer produzir-se prova testemunhal a propósito de um negócio como aquele que se referiu, claramente divergente daquele que foi declarado perante o notário e por este lavrado em competente escritura pública.
Ao que acresce inexistir qualquer princípio de prova escrita que justifique a mitigação do regime legal referido, como vimos supra.
Tendo sido produzida essa prova por testemunhas, como foi, a inadmissibilidade legal terá por efeito apenas a impossibilidade de se atender ao resultado da prova produzida.
A conclusão que acaba de se enunciar tem um efeito óbvio sobre a decisão do tribunal a quo, quanto à matéria de facto: fica desprovido de qualquer suporte probatório a matéria descrita sob os pontos 9º, 11º, 12º, 13º, art. 15º (onde se lê: "Por motivos que os requerentes ignoram, e tendo em vista concretizar o acordo de partilha a que chegaram ..."), 17º, 21º, 22º, 23º e 24º.
Com efeito, só com base em depoimentos testemunhais foi tal matéria dada por provada; mas a prova testemunhal não é admissível, nas circunstâncias do caso, por expressa proibição do legislador. E, recorde-se, nenhuma outra prova foi produzida sobre a questão, pois não tem tal virtualidade a “Declaração de Compromisso” já analisada. Então, necessariamente, tem de ter-se essa matéria por não provada, na medida em que contrária ao negócio descrito na escritura outorgada pelas partes.
Esta solução, que resulta aqui incontornável dadas as razões expostas, prejudica, no âmbito do presente recurso, a análise dos depoimentos colhidos pelo tribunal, interpretados pela apelante em termos diferentes dos considerados pelo tribunal a quo. Com efeito, não deve ser sindicada a avaliação desses depoimentos, pois eles não podem sequer ser valorados, na medida em que divirjam do teor da escritura pública referida, sugerindo um negócio distinto e com direitos e obrigações diversos dos ali plasmados.
Deve, consequentemente, reconhecer-se razão à tese da apelante, cabendo considerar não provada a factualidade assim identificada (o que, por inconsequentes, se estende às asserções de mero contexto que a integram). Tais referências serão, consequentemente, excluídas da matéria de facto a considerar como premissa da decisão cautelar pretendida (surgindo, para melhor compreensão, destacadas a negrito, no texto transcrito acima, a partir da decisão recorrida).
É útil recordar, nesta fase, a matéria que, tendo anteriormente integrado a premissa menor da decisão recorrida, deixa agora de relevar para esse efeito, pois que, por falta de qualquer suporte probatório, só pode ter-se por não provada:
“9° Os requerentes nunca se opuseram a tal desejo do seu filho e nora e sugeriram, inclusive, fazer partilhas em vida, por forma a adjudicar-lhes a casa, salvaguardando o direito de habitação a seu favor até à morte do último.
11º Tendo em vista concretizar a referida partilha, o casal dos Requeridos tratou de arranjar solicitador que tratasse de toda a documentação necessária para o efeito, bem como de acertar com os irmãos o valor que entendiam atribuir à casa,
12° Tudo foi organizado e orientado pelo casal dos Requeridos e pelo Solicitador J…, com domicílio profissional em Vila do Conde, a pedido daqueles.
13º O prédio foi avaliado, à data, por 10.000 contos, e todos combinaram que os Requeridos pagariam a cada um dos quatro irmãos/cunhados a importância de 1.000.000$00 e ficavam com o resto, assumindo a obrigação de cuidar e tratar dos Requerentes, na saúde e na doença, na casa onde todos habitavam, onde ficava reservado a favor dos Requerentes o direito a habitação,
15º Por motivos que os Requerentes ignoram, e tendo em vista concretizar o acordo de partilha a que chegaram, (…)
17° Os Requerentes acreditavam nos Requeridos e tinham plena confiança de que estes cumpririam as obrigações assumidas.
21º Na sequência da aludida escritura de compra e venda, os Requeridos entregaram a cada um dos seus quatro irmãos/cunhados a acordada importância de 1.000.000$00,
22° Por sua vez, os Requerentes nada receberam do seu filho D… e nora E…, não obstante o teor que da escritura consta.
23º Era condição da partilha em vida efectuada, que os requerentes ficassem com o direito à habitação, naquela que sempre constituiu a sua casa de morada de família há mais de 38 anos à data, até à morte do último.
24º Acrescida ainda da obrigação por parte dos Requeridos de cuidarem e tratarem dos Requerentes, na saúde e na doença prestando-lhes toda a assistência que os mesmos carecessem.”
Temos, assim, que toda a matéria que antecede, procedente da alegação dos requerentes e tendente à justificação do seu direito de crédito perante os requeridos, deixa de integrar o elenco da factualidade provada neste processo.
Para além destes factos, a pretensão da apelante, quanto à alteração do juízo probatório do tribunal a quo, alargava-se a outros: os descritos sob os pontos 5º, 6º, 7º e 8º; e sob os pontos 26º, 27º e 28º.
Acontece que a matéria descrita sob os pontos 5º a 8º é meramente instrumental, tendente ao enquadramento da opção das partes pela celebração de um negócio com os caracteres do invocado pelos requerentes e diferente do escriturado, não tendo qualquer relevo de per si.
Já a matéria descrita sob os pontos 26º a 28º resulta totalmente irrelevante, pois, como se referiu, a falta de assinatura do documento em questão pelos requeridos prejudica a sua utilidade para qualquer efeito, na medida em que o mesmo apenas surge justificado por depoimentos testemunhais, aliás os mesmos tidos por inadmissíveis para a impugnação do negócio escriturado e relativamente ao qual tal documento seria divergente. Nestas circunstâncias, tal documento não passa de um escrito que de forma alguma se pode considerar como instrumento de tradução da vontade dos requeridos que, perante os seus termos, ali figurariam como obrigados.
Fica, assim prejudicado o interesse da apreciação do recurso quanto ao juízo probatório proferido sobre tal factualidade – cfr. art. 608º, nº 2, 1ª parte, aplicável por remissão do disposto no art. 663º, nº 2 do CPC.
Nestes termos, relativamente ao segmento do recurso relativo à decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto, cabe reconhecer, designadamente na sua parte útil, a razão da apelante.
*
Restará, então, apreciar a viabilidade da pretensão dos requerentes, face a este novo quadro de circunstâncias, onde sobressai não poder ter-se por demonstrada a matéria supra referida, assinalada a negrito no lugar próprio.
Como bem referiu o tribunal a quo, o primeiro requisito para a concessão de uma providência cautelar não especificada é a probabilidade séria de existência do direito invocado (art. 368º, nº 1, al a) do CPC).
Procurando tal pressuposto, a decisão recorrida excluiu que ele pudesse corresponder a uma qualquer posse ou direito real, identificando-o como o direito de crédito dos requerentes que era correspectivo da obrigação contraída pelos requeridos “de cuidar e tratar dos requerentes, na saúde e na doença, na casa onde todos habitavam, onde ficava reservado a favor dos requerentes o direito a habitação.” Tal obrigação constituiria um encargo à doação do imóvel em questão, resultando o direito dos requeridos tutelado pelo disposto nos arts. 963º e 965º do C. Civil.
Como vimos, não pode ter-se por demonstrada, nestes autos de providência cautelar, a existência da referida doação e dos encargos que lhe seriam conexos. Tal poderá ser inerente aos carateres de celeridade e menor densidade próprios da dedução de uma pretensão cautelar e correspondente instrução. Porém, nos presentes autos, e atentos os fundamentos antes expostos, surge inviável o reconhecimento do referido negócio, em termos que permitam identificar, com uma probabilidade séria como legalmente exigido, o direito invocado pelos requerentes.
Nestes termos, por falta de verificação do pressuposto prescrito na al. a) do nº 1 do art. 368º do CPC, só pode concluir-se pela falta de fundamento da pretensão dos requerentes. Nesta conformidade, deverá revogar-se a decisão recorrida, rejeitando-se, concomitantemente, a pretensão tutelar formulada.
*
Resumindo (art. 663º, nº 7 do CPC):
- Numa aplicação mitigada da proibição constante do art. 394º, nº 1 do C. Civil, a jurisprudência vem admitindo a produção de prova testemunhal para a demonstração de uma factualidade diversa da constante de documento escrito, desde que esta resulta com alguma verosimilhança de outros meios de prova, designadamente de outros documentos escritos.
- Não é apto a servir como “princípio de prova” escrita, relacionada intrinsecamente com a factualidade alternativa que se pretende demonstrar através de prova testemunhal, um documento escrito não assinado por quem nele figura como obrigado e cuja credibilidade, sediada apenas na livre convicção do julgador, advém exclusivamente da própria prova testemunhal e do contexto do negócio relatado por essas mesmas testemunhas.
- Em tais circunstâncias, o conteúdo de um negócio celebrado por escritura pública não pode ser obliterado em resultado da produção de prova exclusivamente testemunhal, que era ab initio inadmissível, nos termos do art. 394º, nº 1 do C. Civil.

3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente a presente apelação, em consequência do que, revogando a decisão recorrida, a substituem por outra que, indeferindo a pretensão cautelar de providência não especificada deduzida por B… e esposa C…, absolvem D… e mulher E… daquilo que contra si vinha pedido.
Custas pelos apelados.
Registe e notifique.

Porto, 15/9 /2015
Rui Moreira
Fernando Samões
Vieira e Cunha
_____________
[1] A negrito surgirão destacados os elementos a excluir do elenco de factos provados, nos termos decretados na presente decisão.