Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3962/12.1T2AGD-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI MOREIRA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
PREENCHIMENTO ABUSIVO DE LIVRANÇA
CONTRATO DE SEGURO DE VIDA
MÚTUO
UNIÃO DE CONTRATOS
SATISFAÇÃO DO CRÉDITO JUNTO DO SEGURADOR
BOA-FÉ
Nº do Documento: RP201411113962/12.1T2AGD-A.P1
Data do Acordão: 11/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Constitui uma união de contratos o caso de uma solução negocial nos termos da qual um contrato de seguro de vida (grupo) é celebrado por ocasião e por causa do contrato de crédito, tendo por objecto a cobertura do risco morte do mutuário, e assegurando a satisfação do crédito do banco mutuante, em caso de sinistro, pelo capital mutuado e juros devidos.
II - Há uma dependência funcional entre um e outro contrato: o contrato de seguro nasce e subsiste ao serviço do contrato de crédito, tendo por fim assegurar o reembolso do capital mutuado no caso da verificação de um sinistro, no caso a morte do mutuário. Cada contrato mantém a sua individualidade, mas sem verdadeira autonomia, já que as partes os concebem e pretendem como um “conjunto económico”.
III - Por tal motivo, não poderá perder-se de vista a sua conexão e o condicionamento de cada um deles pela existência do outro, nas várias dimensões em que tal for pertinente, por referência à unidade jurídico-económica gerada e não por referência à individualidade estanque de cada contrato, sempre à luz do princípio geral da boa fé.
IV - Num tal caso, é de identificar como vontade usual das partes, a de que, em caso de sinistro, o mutuante procure, primeiro, a satisfação do seu crédito junto do segurador, não podendo limitar-se a aceitar como boa qualquer desculpa infundada para a recusa de cumprimento do contrato de seguro, como pressuposto de exigibilidade de cumprimento do contrato de mútuo perante um avalista.
V - Ao abrigo do princípio geral da boa fé, nos termos decorrentes da sua consagração no nº 2 do art. 762º do C. Civil, impõe-se ao banco credor que, em cumprimento da vontade das partes subjacente à união dos contratos em causa, diligencie efectiva e eficientemente pela satisfação do seu crédito por via da activação do contrato de seguro associado, só lhe sendo admissível a cobrança por outra via quando tal se revele razoavelmente difícil ou inviável.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROC. N.º 3962/12.1T2AGD-A.P1
Comarca do Baixo Vouga / Ovar - Juízo de Execução
REL. N.º 190
Relator: Rui Moreira
Adjuntos: Henrique Araújo
Fernando Samões
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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

1 - RELATÓRIO

B…, viúva, residente na …, n.º ., …, …, Aveiro, veio deduzir oposição à execução que lhe move C…, S.A., SOCIEDADE ABERTA, instituição financeira, com sede na …, n.º .., ….-… Porto., alegando quer o abuso de preenchimento da livrança dada à execução, por o exequente ter incluído na mesma o valor dos juros remuneratórios que se venceriam desde a data do incumprimento até final do contrato, juros esses que não seriam devidos, quer que o exequente não podia exigir o pagamento à embargante, por o dever demandar de uma seguradora que a tal estava obrigada.
Sustentando este último argumento, alegou que o seu falecido marido D… havia celebrado um contrato de crédito, de que procede a dívida exequenda, a par do qual também celebrou um contrato de seguro de vida com a E… – Companhia Portuguesa de Seguros de Vida, S.A., cobrindo o risco da sua morte. Assim, pese embora admitir que tal contrato de seguro tenha sido dado por resolvido pela Companhia de Seguros, afirma que a exigibilidade da quantia exequenda sempre estaria dependente da verificação da validade daquela resolução do contrato, o que não foi empreendido pelo exequente. Concluiu, assim, pela justeza da extinção da execução.
Contestando, a embargada pugnou pela improcedência das excepções e, no mais, impugnou os fundamentos dos embargos à execução.
Foi realizada audiência preliminar, na qual se procedeu à tentativa de conciliação das partes e à condensação do processado, tendo-se seleccionado a matéria de facto assente e fixado a base instrutória.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, na sequência da qual foi proferida decisão que julgou improcedente a oposição, por falência de ambos os argumentos em que se sustentava.
É desta decisão que a opoente vem interpor o presente recurso.
Funda a sua discordância na reafirmação da tese sobre a necessidade de verificação da inoperância do contrato de seguro, como precedente da sua responsabilização pelo pagamento da quantia exequenda, o que a exequente não fez. Em conclusão, ordenou as seguintes afirmações:
I A Recorrente vem impugnar a decisão do Tribunal "a quo" que julgou totalmente improcedente a Oposição deduzida pela Opoente, ora Recorrente, dela absoivenco a Oponida, ora Recorrida.
II Foram dados como provados (entre outros) os seguintes factos:
(…)
III
Não se concorda com a decisão do tribunal "a quo" relativamente ao entendimento de que a exequente/oponida não estava obrigada a demandar a seguradora, por motivo de esta ter procedido à resolução do contrato de seguro, pelas razões que passam a expor-se:
Aderiu o M.mo juiz "a quo" à jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01/04/2014, no sentido de que “a existência de seguro implica, em princípio, a exoneração” e que “o direito de crédito do banco mutuante contra os mutuários só poderá ser efectivado, após se encontrar demonstrada a impossibilidade de o satisfazer por via do contrato de seguro em que figura como tomador e que só foi celebrado em virtude e por causa do contrato de crédito ao consumo”
Entendendo e decidindo o tribunal “a quo” que a resolução do contrato de seguro pela Companhia de Seguros, configura, efectivamente, uma impossibilidade da instituição bancária reclamar e fazer valer o seu direito de crédito junto da seguradora.
Daí decorrendo que o Banco oponido pudesse validamente reclamar o seu crédito à avalista, ora opoente, como efectivamente fez, nos presentes autos.
IV
Ora, é com este entendimento que não se concorda. Com efeito, se bem atentarmos:
a. Após verificado o incumprimento do contrato de mútuo em 07/08/2009 (data da morte do mutuário), o Banco mutuante, ora Recorrido, preencheu o título cambiárío, em 21 de Maio de 2012. apondo-lhe essa mesma data como data de vencimento, formando-se, assim, validamente, o respectivo título executivo, nessa data.
b. A companhia de seguros invocou e operou a resolução do contrato de seguro em 11 de Setembro de 2012.
c. o Banco mutuante, ora oponido, deu entrada à presente execução no dia 21 de Setembro de 2012.
V
Resulta, nomeadamente, que:
a. o título executivo formou-se, validamente, em 21 de Maio de 2012.
b. Nessa data, a Companhia de Seguros, não havia, ainda procedido à resolução do contrato de seguro, encontrando-se o mesmo em vigor em relação a todas as partes.
c. O Banco oponido, dá a livrança à execução 10 dias após a referida resolução do contrato de seguro, operada pela seguradora.
VI
Dos factos supra realçados resulta que o Banco Oponido, quer à data do incumprimento, quer à data do preenchimento da livrança, não estava impossibilitado de satisfazer o seu crédito por via do contrato de seguro.
Acresce que a resolução invocada pela seguradora, foi fundamentada na circunstância de não lhe terem sido disponibilizados os elementos solicitados, sendo esses elementos os relativos à indicação do médico assistente na especialidade de cardiologia, data de diagnóstico da patologia cardíaca, tratamentos efectuados e evolução do quadro clinico.
Tendo sido dado como assente (ponto 8 dos factos provados), que a carta em que foram solicitados esses elementos à Opoente, ora Recorrente, não foi, por esta entregue a nenhum médico da especialidade por desconhecimento da oponente da existência e da identidade de um especialista.
Mais tendo sido dado como provado que a Opoente deu, dessas circunstâncias, conhecimento à Oponida e à seguradora.
VII
Por último, refira-se que a excepção de resolução do contrato não poderia ter sido invocada pela seguradora perante o Banco Oponido no caso de ter sido demandada por este na medida em que o direito deste a ser reembolsado do crédito concedido se constitui na data do incumprimento pelo mutuário ou pelo menos, na data em que o Banco mutuante considerou o incumprimento como definitivo. Nessas circunstâncias é aplicável o disposto no nº 1 do artigo 435º do Código Civil.
VIII
Em conformidade, deve anular-se a decisão da primeira instância, substituindo-a por outra que julgue procedente, por provada, a oposição deduzida mediante embargos pela Recorrente.
Ao decidir, como decidiu, violou a douta sentença recorrida as disposições legais do art. 435º do Código Civil e do art.º 607º, nº 4, do Cód. Proc. Civil.
O exequente ofereceu resposta ao recurso, pronunciando-se pela falta de fundamento das razões invocados pela recorrente. Concluiu defendendo a confirmação da decisão recorrida.
O recurso foi admitido, como de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Foi depois recebido nesta Relação, considerando-se o mesmo devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Cumpre decidir.

2- FUNDAMENTAÇÃO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso.
Assim, a questão a resolver traduz-se na indagação da responsabilidade da opoente pelo cumprimento de um contrato de crédito de que foi garante, perante a conexão deste com um contrato de seguro de vida, a verificação do sinistro que dele era objecto, designadamente o falecimento do devedor/segurado, e a declaração da sua resolução pela seguradora.
*
O tribunal recorrido, julgando a matéria de facto controvertida, decidiu nos termos seguintes:
1. Factos provados:
“1. O C…, S.A. instaurou execução, em processo comum, reclamando, entre outros da oponente B… o pagamento da quantia de 20.008,91 Euros, acrescida de juros de mora calculado à taxa de 8,32% e na sobretaxa de 4%, contados sobre a quantia de 13.499,21 Euros, a contar de 21/05/2012 e, ainda, imposto de selo sobre os juros em dívida, até integral pagamento;
2. Funda a execução na livrança n.º ……………… preenchida pelo banco credor, pela importância de 20.008,91 Euros, com vencimento no dia 21/05/2012, conexa com o contrato de crédito pessoal designado por ILS n.º ……….;
3. Na face anterior do mencionado título D… apôs pelo seu próprio punho assinatura que a si é imputada no local destinado ao subscritor, antecedida da expressão “no seu vencimento pagarei (emos) por esta única de livrança ao C…, S.A. não à ordem a quantia de vinte mil e oito euros e noventa e um cêntimos”;
4. Na face posterior do mencionado documento a oponente B… apôs pelo seu próprio punho assinatura que a si é imputada antecedida da expressão “bom para aval”.
5. A importância aposta na livrança de 20.008,91 Euros é abrangente das seguintes quantias parcelares:
a) Capital----------------------------------------------- 13.499,21 Euros;
b) Juros ------------------------------------------------ 6.163,13 Euros;
c) Imposto de selo ------------------------------------ 246,53 Euros;
d) Selagem do título----------------------------------- 100,04 Euros.
6. Consta da carta remetida pela E… e dirigida aos herdeiros legais do executado D…, de 18 de Abril de 2012, que “Atendendo a que a informação clínica recepcionada não permite concluir a análise dos processo de indemnização, junto anexamos carta, em envelope fechado por motivos de confidencialidade clínica, dirigida ao Médico Cardiologista que acompanhava a Pessoa Segura, cuja entrega ao referido clínico deverá ser diligenciada por V. Exas.”.
7. Em anexo à carta referida no ponto 6, consta outra missiva com o seguinte teor:
“Na sequência da participação do processo de indemnização decorrente do falecimento do nosso Cliente acima indicado, ocorrido em 7 de agosto de 2009, para que possamos efectuar a análise do processo de sinistro ao abrigo da Apólice de Seguro de Vida em assunto, e uma vez que fui informado pela Colega F… da USF da Santa Joana do Centro de Saúde de Aveiro, que a Pessoa Segura era acompanhada pela Especialidade de Cardiologia, muito agradeço o favor de me informar a data de diagnóstico da patologia cardíaca, tratamentos efectuados e evolução do quadro clínico.”.
8. A carta junta a que se refere o ponto 7 não foi entregue a nenhum médico da especialidade por desconhecimento da oponente da existência e da identidade de um especialista, do que deu conhecimento à oponida e à seguradora.
9. Consta da carta remetida pela E… e dirigida aos herdeiros legais do executado D…, de 11 de Setembro de 2012, que: “Atendendo a que até ao momento não nos foram disponibilizados os elementos solicitados, e tendo em conta que os mesmos são indispensáveis à continuidade da análise do processo de indemnização em causa, lamentamos informar V. Exas. não ser possível a conclusão do mesmo ao abrigo do Contrato de Seguro acima indicado, pelo que damos por encerrado este processo de indemnização procedendo nesta data à resolução do Contrato de Seguro de Vida.”.
2. Factos Não Provados
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a presente causa.”
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Como se assinalou antes, a questão a decidir corresponde apenas a um dos iniciais fundamentos da oposição, pois que a apelante se conformou com o juízo de improcedência das suas razões relativamente ao problema da determinação do capital em dívida.
Em relação à questão remanescente, constata-se que nenhuma controvérsia subsiste no tocante à matéria factual a considerar.
Assim, e não obstante a exiguidade do elenco factual dado por provado pelo tribunal a quo (designadamente quanto ao concreto conteúdo dos contratos em causa, maxime o de seguro), temos por adquirido que o título exequendo foi emitido por efeito de um contrato de crédito pessoal, identificado no ponto 2. transcrito supra, celebrado entre o banco exequente e D…, que veio a falecer durante o período de vigência desse mesmo contrato.
Tal contrato, com o valor de 16.500€, foi celebrado em 1/10/2007 e previa o reembolso do capital mutuado em 48 prestações mensais, no valor aproximado de 405€ cada (factualidade que o tribunal a quo não descreveu expressamente, mas que se repesca do teor do documento que cita no ponto 2.)
Perante o falecimento do mutuário, ocorrido em 7/8/2009 (cfr. ponto 7.) e entrando o contrato de crédito em incumprimento, evidencia-se ter sido participado tal sinistro à seguradora D… para que, em razão de um contrato de seguro de vida celebrado com esta, a propósito daquele contrato, viesse a pagar ao ora exequente/apelado, o capital mutuado e outros valores (juros) devidos.
Acontece, porém, que nas circunstâncias reveladas pela correspondência descrita, a Seguradora veio a anunciar o encerramento do procedimento indemnizatório aberto com a participação do sinistro, recusando o pagamento do capital seguro, o que bastou para que o banco exequente demandasse a opoente, em razão da sua qualidade de avalista da livrança entregue para garantia do cumprimento do contrato de crédito.
E é dando por adquirida a conexão entre esse contrato de crédito e o contrato de seguro de vida, em atenção à circunstância de nenhuma das partes o pôr em causa, antes se conformando com tal construção que ambas, de resto, enunciam expressamente ao longo dos autos, que cabe resolver a questão que é objecto do recurso.
Daremos, pois, por adquirido que a situação em apreço se identifica com a recorrente solução negocial no mercado financeiro nos termos da qual o contrato de seguro de vida em causa foi celebrado por ocasião e por causa do contrato de crédito referido, tendo por objecto a cobertura do risco morte do mutuário, e assegurando a satisfação do crédito do banco exequente no caso do falecimento do mutuário, pelo capital mutuado e juros devidos.
Em tais casos, em que temos por pacífico incluir-se o dos autos, há uma dependência funcional entre um e outro contrato: o contrato de seguro nasce e subsiste ao serviço do contrato de crédito, tendo por fim assegurar o reembolso do capital mutuado no caso da verificação de um sinistro, no caso a morte do mutuário; as partes do contrato de mútuo são óbvias; no contrato de seguro, o segurado é o mutuário e o beneficiário do seguro, no caso de sinistro, é o banco mutuante, pelo valor do capital em dívida no contrato de crédito.
É ainda frequente acontecer que tal contrato de seguro seja um seguro de grupo a que o mutuário/segurado adere e no qual o tomador do seguro, isto é, a parte no próprio contrato de seguro e responsável pelo pagamento do respectivo prémio ao segurador é o próprio banco beneficiário. Nessa hipótese, o prémio do seguro surge adicionado à prestação do mútuo, para que aquele seja repercutido como um custo do mútuo, para o mutuário/segurado. O processo, de resto, demonstra que isso se verifica no caso em apreço, atenta a apólice do Seguro Vida Grupo, junta pelo Banco exequente, a fls. 71 e ss.
É, assim, evidente a ligação funcional entre ambos os contratos, de sentido unilateral, estando o de seguro ao serviço do contrato de mútuo, só se justificando a existência daquele por causa deste. Trata-se de uma situação que a doutrina vem classificando como “união de contratos”[1], na qual, mantendo cada um deles a sua individualidade, acabam por não assumir verdadeira autonomia, já que as partes os concebem e pretendem como um “conjunto económico” (cfr. Fernando Baptista de Oliveira, Contratos Privados, Vol. III, pg. 587 e 588).
Por tal motivo, sem prejuízo da avaliação da operação de cada um dos contratos segundo as regras que lhe são próprias, não poderá perder-se de vista a sua conexão e o condicionamento de cada um deles pela existência do outro, nas várias dimensões em que tal for pertinente, desde as questões processuais às substantivas, maxime no tocante à definição de direitos e obrigações de cada uma das partes (mutuante/tomador/beneficiário; mutuário/segurado; segurador) por referência à unidade jurídico-económica gerada e não por referência à individualidade estanque de cada contrato, sempre à luz do princípio geral da boa fé.
É neste contexto que cumpre analisar o posicionamento de ambas as partes do processo: entende a opoente que, perante uma tal união de ambos os contratos, só poderá ser demandada para o cumprimento do contrato de crédito - em função da sua posição de garante - depois de o banco ter esgotado a possibilidade de satisfação do seu crédito por via do funcionamento do contrato de seguro, no qual ele não figura como mero terceiro favorecido, mas como contraparte da seguradora. Pelo contrário, o banco considera que, para demandar a avalista, lhe basta a recusa de cumprimento do contrato de seguro, conforme a que foi anunciada pela E….
A situação assim descrita começa por demarcar-se de outras frequentemente tratadas pela jurisprudência, onde se coloca a questão da interpelação dos devedores do contrato de crédito independentemente, ou sem antes ter sido ensaiada a activação da cobertura do contrato de seguro. No caso, foi iniciado o procedimento indemnizatório próprio do contrato de seguro, tendente ao pagamento de capital devido no contrato de crédito. Assim, a questão colocar-se-á já perante os termos do encerramento desse procedimento declarado pela seguradora e da sua suficiência para a demanda da avalista.
Por outro lado, pode desde já afirmar-se ser irrelevante a questão suscitada nesta apelação, sobre a data de preenchimento da livrança se inserir num período em que ainda não havia sido declarada a resolução do contrato de seguro. É que, como resulta claramente dos autos, o banco aguardou pelo termo do procedimento indemnizatório aberto pela E…. Este foi declarado em 11/9/2012, em simultâneo com a declaração de resolução do contrato correspondente. Só depois disso é que o banco deu a livrança à execução, preenchendo-a em termos que – admitindo-se que por observarem o pacto de preenchimento previamente acordado – não foram impugnados pela avalista (foram-no inconsequentemente, por carência de fundamento, quanto ao valor, como resulta da sentença recorrida, não impugnada nesse segmento).
Assim, o preenchimento da livrança com a data de 21/5/2012 é um facto irrelevante para decisão a proferir pois que ou se entenderá que o banco pode demandar a avalista para o cumprimento do mútuo perante o encerramento do procedimento indemnizatório do contrato de seguro, ou se entenderá que, nas circunstâncias concretas, lhe caberia exigir a indemnização a que tinha direito ainda à seguradora. Em qualquer das hipóteses, a data com que, por referência a momento anterior, veio a ser preenchida a livrança é elemento meramente instrumental quanto ao exercício do direito em crise, sem que contribua, sequer de forma indicativa, para a discussão sobre o reconhecimento desse direito.
Somos, então, remetidos para a essência do problema sub judice.
Embora tal não tenha sido objecto de expressa pronúncia pelo tribunal, ou de alegação por qualquer das partes, não deixa de ser útil enquadrar jurídico-processualmente a questão sob análise. O fundamento da oposição deduzida pela avalista de que tratamos consubstancia uma excepção que se pode qualificar como uma inexigibilidade da obrigação exequenda. Tal inexigibilidade resultaria da subsidiariedade dessa obrigação perante uma outra, resultante do contrato de seguro, para a seguradora E…. Os termos dessa subsidiariedade, na tese da opoente, já se referiram, traduzindo-se, em suma, na necessidade de o exequente demonstrar a impossibilidade de satisfação do seu crédito junto da seguradora.
Assim contextualizado o problema, constata-se que, da matéria apurada nos autos quanto ao teor de cada um dos contratos, de nenhum deles se evidencia expressamente uma tal regra de subsidiariedade. De resto, a esse respeito é muito reduzida a matéria alegada e demonstrada pelas partes, maxime pela opoente a quem cabia tal ónus pois, como se referiu, a sua pretensão consubstancia uma excepção ao direito invocado pelo exequente, cabendo-lhe alegar e demonstrar os respectivos elementos.
Tal regra não resulta, por outro lado, de qualquer norma legal, seja geral, seja específica do diploma regulador do contrato de seguro (D.L. 72/2008, de 16/04).
Todavia, e tendo presente a necessidade de analisar os contratos em causa em atenção à sua “união” e não como realidades estanques, afigura-se-nos evidente que a existência de tal contrato de seguro de vida deve ter uma relevância preponderante quando, em caso de verificação do sinistro coberto, cumpra responder pelo cumprimento do outro contrato, o de crédito.
A celebração do contrato de seguro – admite-se – terá sido imposta pelo banco exequente como condição de conclusão do contrato de crédito. Isso resulta, aliás, do documento de fls. 69, outorgado no âmbito da celebração deste contrato identificado no ponto 2 da matéria provada, onde a referência ao contrato de seguro consta como “Obrigatório”. Como é óbvio, tal imposição tem por fim assegurar a satisfação ao mutuante do crédito emergente do contrato de mútuo, facilitando, em caso de verificação do sinistro, essa satisfação; segurança que provém da comprovada capacidade financeira do segurador (seguimos, de perto, neste passo, a argumentação desenvolvida a propósito de situação semelhante, no Ac. do TRC de 21-1-2014, proc. nº 16/11.1TBSCD-B.C1, em dgsi.pt).
Nestas condições, partilhando a tese expendida nessa decisão judicial, entendemos que “a vontade usual das partes é a de que o credor procure primeiro a sua satisfação através da garantia disponibilizada pelo seguro.(…).” De resto, como se assinala nesse Acórdão, uma opção do credor mutuante pela satisfação do seu crédito por outro meio, v.g. por responsabilização de outros garantes – como acontece, in casu, com a executada/avalista - se adoptada na intenção de privilegiar o segurador, de quem seja parceiro num mesmo grupo financeiro, sempre seria censurável por violação ao princípio geral da boa fé, prescrito no art. 762º, nº 2, do C. Civil
Por isso, em atenção ao contexto em que o contrato de seguro foi concluído e à sua finalidade, devemos ter por verificada a vontade usual das partes de que o credor se pague primeiro – verificado, evidentemente, o sinistro – à custa do segurador.
Em qualquer caso, como se diz no Acórdão citado “(…) a exigência de que o mutuante procure, primeiro, a satisfação do seu crédito junto do segurador, não deixa sem tutela aquele credor, dado que ele sempre poderá afastar a excepção, demonstrando que, no caso concreto, não lhe é comprovadamente possível obter aquela satisfação junto do segurador, porque, por exemplo, o contrato de seguro é inválido ou não se verificam as condições convencionadas para que aquele se constitua no dever prestar a que se vinculou pelo contrato, como, v.g., que se não verificou o sinistro ou que o sinistro verificado não se compreende no âmbito da cobertura do seguro ou dela deve considerar-se excluído. De resto, é ele que estará em melhores condições de o fazer, dado que foi ele que impôs a contracção do seguro, modelou o seu conteúdo, escolheu o segurador e é ele o beneficiário primeiro da prestação convencionada no contrato.”
Assim, na ponderação de todos os interesses descritos, sempre parecerá “(…) contrário à norma comportamental objectiva da boa fé (…) exigir a contracção de um seguro – e o sacrifício económico do pagamento do prémio – com um certo conteúdo e junto de determinado segurador e impor-se como seu beneficiário – e, depois, aceitar como boa qualquer recusa, mesmo que exasperadamente infundada do segurador em honrar o contrato, e demandar o segurado como se um tal contrato não existisse.”
À luz do que vem de expor-se, importa passar a verificar em concreto se o ora exequente, empreendendo a presente execução contra a avalista, postergou essa sua obrigação de, previamente, providenciar até ao limite do que lhe era exigível, pela satisfação do seu crédito junto da E….
Analisando, para esse efeito, o teor do procedimento indemnizatório iniciado com a participação do falecimento do segurado D…, vê-se que nele sobressaem os seguintes momentos:
- Em 18 de Abril de 2012, a E… interpelou os herdeiros do segurado, para que obtivessem junto do cardiologista assistente do falecido e lhe entregassem elementos relativos à patologia cardíaca que apurara afectá-lo, bem como informação sobre a data de diagnóstico da patologia cardíaca, tratamentos efectuados e evolução do quadro clínico.
Justificando tal exigência, referiu “(…) para que possamos efectuar a análise do processo de sinistro ao abrigo da Apólice de Seguro de Vida em assunto, e uma vez que fui informado pela Colega F… da USF da Santa Joana do Centro de Saúde de Aveiro, que a Pessoa Segura era acompanhada pela Especialidade de Cardiologia (ponto 7 dos factos provados).
- A opoente comunicou ao banco exequente e à Seguradora não saber que o segurado fosse assistido por qualquer cardiologista, pelo que não poderia satisfazer o pretendido.
- Em 11 de Setembro, invocando a essencialidade daqueles elementos e a omissão da sua entrega, a E… comunicou o encerramento do processo de indemnização e a resolução do contrato.
- Subsequentemente, o banco deu início à presente execução.
Ponderada esta sequência de factos, o que se verifica é que a ora opoente não deixou de dar resposta à comunicação que lhe foi dirigida no processo de indemnização, embora o tenha feito negativamente, mas ainda assim em termos que não podem ser alvo de qualquer censura, por falta de matéria disponível para o efeito.
Pelo contrário, a E… inseriu no processo de indemnização aquela busca pelo conhecimento da situação clínica do segurado, no respeitante a uma patologia de foro cardíaco, sem que o tenha justificado razoavelmente. Qual a necessidade ou utilidade de tais dados? Com eles poderia ou pretenderia pôr em causa a validade do contrato de seguro, por exemplo, por falsidade de declarações em questionário clínico prestadas pelo segurado? Mas haveria tal questionário? Haveria alguma utilidade para a indagação daquela condição clínica? E os dados em falta não poderiam ter sido obtidos pela própria E…, que aliás já tinha obtido informações sobre a situação clínica do segurado junto da respectiva médica de família?
O que é certo é que nada disto invocou a E…, pelo que não o podemos ter por adquirido. Perante a declaração negativa dos herdeiros do segurado, designadamente a opoente, e não obstante a respectiva justificação (desconhecimento da assistência ao segurado de cuidados clínicos da especialidade de cardiologia), limitou-se a dar por encerrado o processo indemnizatório, sem tornar inteligível o motivo da sua actuação de recusa ao cumprimento da sua obrigação contratual.
E com isso se conformou a contraparte do contrato de seguro, isto é, o banco exequente: em vez de exercer o direito à indemnização que lhe advinha desse contrato, reclamando o pagamento do seu crédito à Seguradora, como o contrato de seguro lhe facultava, logo optou por accionar outra garantia de cumprimento do contrato de crédito: a demanda da avalista, ora opoente e apelante. Ou seja, nos termos que anteriormente tivemos por inadmissíveis, limitou-se a aceitar por boa a desculpa da E…, sua contraparte no contrato de seguro, não obstante as razões desta não estarem minimamente identificadas ou se poderem ajuizar como válidas.
Admitimos não dever impor-se ao Banco mutuante um dever de, mesmo por via contenciosa, tratar de obter a satisfação do seu crédito por via do cumprimento do contrato de seguro. Com efeito, a existência deste contrato de seguro não exonera a responsabilidade de eventuais condevedores ou garantes de cumprimento do contrato de crédito, pois tal não decorre de qualquer regra legal ou contratual; nem exige que as diligências tendentes ao exercício dos direitos dele resultantes devem ser estendidas até ao limite do seu exercício por via judicial. Mas, no outro extremo, não se pode ter por adequado que, perante uma simples e injustificada recusa de cumprimento, o banco abdique do correspondente direito e passe imediatamente a diligenciar pela cobrança do seu crédito por outra via, junto de terceiros garantes da obrigação.
E isso porquanto, ao abrigo do princípio geral da boa fé, nos termos decorrentes da sua consagração no nº 2 do art. 762º do C. Civil, se lhe impõe que, em cumprimento da vontade das partes subjacente à união dos contratos em causa, diligencie efectiva e eficientemente pela satisfação do seu crédito por via da activação do contrato de seguro associado, só lhe sendo admissível a cobrança por outra via quando tal se revele razoavelmente difícil ou inviável.
No caso em apreço, pelo contrário, o exequente não demonstra ter satisfeito tais requisitos, que devem qualificar-se, assim, como condição de exigibilidade da obrigação da ora executada. Na linguagem do acórdão anteriormente citado, aceitou “como boa” a simples e incompreensível recusa do segurador em honrar o contrato, demandando o garante do mútuo como se um tal contrato de seguro não existisse, não tivesse vigorado e os seus prémios não tivessem sido pagos.
Acresce que, perante a invocação da matéria que qualificamos como excepção de inexigibilidade, o ora exequente, sem deixar de a discutir, não veio alegar quaisquer factos impeditivos, factos de onde decorresse, por exemplo a superação daquela inexigibilidade, por exemplo ter verificado a impossibilidade ou razoável dificuldade em obter a satisfação do seu crédito por via do contrato de seguro.
Temos, pois, em conclusão, por fundada a oposição deduzida por B… à execução que lhe move C…, S.A., Sociedade Aberta, cabendo declarar que, nas circunstâncias do caso, não estando demonstrada a impossibilidade ou razoável dificuldade de satisfação do crédito exequendo por via do contrato de seguro de vida em que foi segurado o falecido D…, não é exigível a obrigação exequenda, cabendo declarar extinta a execução.
Esse é, de resto, o sentido do Acórdão do TRC, de 1/4/2004, proferido no processo nº 1054/03.3TBCTB-B.C1, em que o tribunal a quo tanto apoiou a sua decisão, não obstante ter vindo a decidir em sentido divergente, ao considerar suficiente a simples recusa de cumprimento do contrato de seguro da E…, para justificar a via alternativa para satisfação do crédito mutuado.
Revogar-se-á, por todo o exposto, a decisão recorrida.

Em resumo:
- Constitui uma união de contratos o caso de uma solução negocial nos termos da qual um contrato de seguro de vida (grupo) é celebrado por ocasião e por causa do contrato de crédito, tendo por objecto a cobertura do risco morte do mutuário, e assegurando a satisfação do crédito do banco mutuante, em caso de sinistro, pelo capital mutuado e juros devidos.
- Há uma dependência funcional entre um e outro contrato: o contrato de seguro nasce e subsiste ao serviço do contrato de crédito, tendo por fim assegurar o reembolso do capital mutuado no caso da verificação de um sinistro, no caso a morte do mutuário. Cada contrato mantém a sua individualidade, mas sem verdadeira autonomia, já que as partes os concebem e pretendem como um “conjunto económico”.
- Por tal motivo, não poderá perder-se de vista a sua conexão e o condicionamento de cada um deles pela existência do outro, nas várias dimensões em que tal for pertinente, por referência à unidade jurídico-económica gerada e não por referência à individualidade estanque de cada contrato, sempre à luz do princípio geral da boa fé.
- Num tal caso, é de identificar como vontade usual das partes, a de que, em caso de sinistro, o mutuante procure, primeiro, a satisfação do seu crédito junto do segurador, não podendo limitar-se a aceitar como boa qualquer desculpa infundada para a recusa de cumprimento do contrato de seguro, como pressuposto de exigibilidade de cumprimento do contrato de mútuo perante um avalista.
-Ao abrigo do princípio geral da boa fé, nos termos decorrentes da sua consagração no nº 2 do art. 762º do C. Civil, impõe-se ao banco credor que, em cumprimento da vontade das partes subjacente à união dos contratos em causa, diligencie efectiva e eficientemente pela satisfação do seu crédito por via da activação do contrato de seguro associado, só lhe sendo admissível a cobrança por outra via quando tal se revele razoavelmente difícil ou inviável.

3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar procedente este recurso de apelação, em consequência do que decretam a revogação da decisão recorrida, que substituem por outra que, declarando procedente a presente oposição nos termos supra expostos, determina a extinção da execução a que está apensa, movida por C…, S.A., Sociedade Aberta contra B….
Custas pelo apelado, em ambas as instâncias.
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Porto, 11/11/2014
Rui Moreira
Henrique Araújo
Fernando Samões
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[1] F. Gravato de Morais, União de Contratos de Crédito e de Venda para o Consumo, Teses, Coimbra 2004.