Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2752/19.5T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA LUCINDA CABRAL
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE ACORDO DE PAGAMENTO
INDEFERIMENTO LIMINAR
SITUAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RP202002112752/19.5T8STS.P1
Data do Acordão: 02/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Resultando da petição inicial do processo especial de acordo de pagamento que o devedor já se encontra numa situação de insolvência, a petição inicial deve ser liminarmente indeferida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2752/19.5T8STS.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 3

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
Nos autos supra epigrafados foi proferido o seguinte despacho:
Veio o ora requerente/apresentante B…, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, apresentar processo especial para acordo de pagamento, alegando que se encontra em situação económica difícil, pois que tem um passivo na ordem dos € 150.976,01, figurando, entre os seus credores, uma sociedade por quotas e o C…, e encontrar-se desempregado, auferindo a título de subsídio de desemprego € 520,00 mensais.
Mais alegou ter uma filha menor com 15 anos de idade, e ser dono de uma fracção autónoma sita em …, com o valor tributável de € 52.262,35.-
--- Juntou acordo com um dos seus credores, que se percebe tratar-se de credor com crédito subordinado, atento o facto de ser irmão do devedor apresentante.-
Ora, é com base neste universo fáctico que, aqui e agora, terá que incidir a análise liminar do Tribunal, para concluir, como entendemos não poder deixar de ser, que a pretensão solicitada não satisfaz os requisitos legalmente exigidos. Desde logo porque perscrutando o conceito de “situação económica difícil” (art.º 17.º B do CIRE) na doutrina mais avalizada, encontramos definições tais como a situação anterior à da insolvência iminente na qual o devedor, tendo embora um ativo suficiente para fazer face às suas obrigações, não as pode cumprir sem para isso praticar actos que ponham em causa a sua viabilidade económica (v. Nuno Salazar casanova e David Sequeira Dinis in “PER - Processo Especial de Revitalização, Comentário aos artigos 17.ºA a 17.º I do CIRE, Coimbra Editora”, pág.24) ou ainda situação em que o devedor que, pela ponderação dos diversos factores que relevem na sua vida económica concreta, nomeadamente pela sua liquidez e capacidade de a obter e pela qualidade, consistência e evolução expectável das componentes do seu património, se encontre já, ou se anteveja já, na contingência efectiva de não cumprir pontualmente as suas obrigações de apresentar um passivo manifestamente superior ao seu activo (v. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE Anotado, 2.ª Edição, pág.146-147).- Ora, de tudo que consta dos autos e por referência à sua situação actual – porque é essa que agora importa – vislumbramos devedor desempregado desde Agosto de 2018 (há um ano portanto), auferindo rendimento mensal (subsídio de desemprego) findável e de reduzido valor, e com um valor elevado de passivo (€ superior a 150 mil euros), tendo como único elemento apontado do seu activo uma fracção autónoma sita em Gondomar, com valor tributável de € 52.262,35.-
Não detemos elementos para afirmar que esta fracção será suficiente para liquidar todas as dívidas (facto que não foi sequer minimamente alegado), sendo que a experiência processual em contexto insolvencial nos tem ensinado que não (quer face à localização do prédio, quer face aos valores actuais de mercado praticados).-
Perante este quadro, não se parece legitimar a asserção de que o devedor não se encontrará já em situação de insolvência, pois que mais se constata que pende já execução intentada pelo seu principal credor (a atermo-nos ao universo de credores indicado pelo devedor) – dívida de € 71.484,34 – desde 2016.-
De resto, não se poderá legitimar uma espécie de “fuga para a frente” no sentido de afirmar que o mesmo não estará ainda em situação de situação de insolvência actual porquanto não se encontrará impossibilitado de cumprir com as suas obrigações vencidas se as mesmas forem renegociadas.
--- É que este tipo de leviana interposição desta espécie processual, contendo premissas que legitimam apenas o corolário da situação de insolvência, mas que nada mais encerra do que uma forma de escamotear a mesma, não se pode aceitar, pois equivaleria a deixar na mão dos devedores a liberdade insindicável e acrítica de qualificar, a seu bel talante, a situação objectiva, do ponto de vista económico-financeiro, em que efectivamente se encontram.-
--- Em cenário hipotético, tudo será possível e tudo poderá ser legítimo afirmar e atestar, mas não é isso que está previsto e exigido na lei aplicável!-
--- Há que imprimir rigor e moralidade no recurso desenfreado e recalcitrante a procedimentos como este, quando sabemos, pela prática quotidiana nesta Instância Central do Comércio que grande parte destas iniciativas escondem verdadeiras e aflitivas situações insolvenciais.--
--- Para este tipo de situação tal como a relatada nos autos (caso todos os requisitos possam ser satisfeitos), há que não esquecer que a lei prevê a possibilidade de o devedor, ao apresentar-se à insolvência, solicitar igualmente a aprovação de um plano de pagamentos, que mais não é do que um acordo entre os credores da insolvência, apresentado pelo insolvente pessoa singular que não seja empresário em nome individual, destinado à recuperação deste e que permitirá evitar as consequências ou efeitos da declaração de insolvência, especialmente a apreensão e liquidação de todos os bens do património do insolvente.
--- Face a todo o exposto, indefere-se liminarmente a requerida revitalização.-
Custas a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.-
Valor: o indicado na petição inicial.-“

B… veio interpor recurso, concluindo:
A. Por tudo quanto ficou exposto, salvo o devido respeito, entende o aqui Devedor que a douta decisão em apreço – que decidiu indeferir liminarmente o processo especial para acordo de pagamento apresentado pelo ora Apelante – não fez correta interpretação aos factos e adequada aplicação do Direito.
B. Impõe-se assim, pela mais elementar justiça, ser a mesma revogada e substituída por outra que defira liminarmente o pedido do ora Recorrente, e, como tal, seja dado cumprimento ao disposto no n.º 4 do artigo 222.º-C do CIRE.
C. É que, desde logo, o aqui Recorrente, além de não concordar com os motivos subjacentes ao indeferimento do seu processo especial para acordo de pagamento, entende mesmo que esses motivos são inexistentes.
D. Com efeito, fundamenta o Dign.º Tribunal “a quo” a decisão em apreço, com base no facto do Devedor se encontrar «já em situação de insolvência».
E. Sendo que, para tanto, bastou-se o Dign.º Tribunal “a quo” com a simples afirmação de que perante o quadro supra (Devedor desempregado, rendimento mensal reduzido, valor elevado de passivo, um único activo) se constata que está «já em situação de insolvência, pois que, mais se constata que pende já execução intentada pelo seu principal credor (…) – dívida de € 71.484,34 - desde 2016».
F. O que, na verdade, não se aceita, porquanto, na verdade o aqui Apelante alegou nos autos – e nada em contrário foi alegado (ou sequer provado) nos autos, – que, de facto se encontrava em situação económica difícil,
G. Mas, contudo, não se encontra em situação de incumprimento generalizado das suas obrigações.
H. Com efeito, olvida o Tribunal do facto do aqui Devedor ter mais dois Credores – de montante superior ao daquele Credor/Exequente - que não instauraram qualquer execução.
I. Mais, olvida o Tribunal do facto do aqui Devedor não ter qualquer dívida vencida respeitante a todas as suas necessidades básicas, como seja, prestação da habitação, alimentação, saúde, telecomunicações e transporte, alimentos à menor, entre outras inerentes à habitação!
J. Do que, claramente, se conclui não estar o aqui Devedor numa situação de insolvência, tal qual, a define o n.º 1 do art.º 3 do CIRE.
K. Outrossim, mais, olvida o Tribunal do facto do aqui Requerente, não obstante à presente data desempregado, ter apenas 44 anos de idade, e como tal, por certo, até pela sua área de competência laboral (ourivesaria) estar em crescente expansão, arranjará, num futuro próximo, novo emprego.
L. De modo que, jamais se poderá aceitar as considerações tecidas pelo Dign.º Tribunal “a quo” no sentido de que o aqui Requerente, por ter actualmente um rendimento mensal findável e de reduzido valor, não terá qualquer “recuperação possível”,
M. Sentido de afirmação este que, salvo o devido respeito, mais parece uma “sentença de morte”, um total coarctar da esperança do aqui Devedor em revitalizar a sua vida,
N. Ao arrepio, aliás, quer da declaração subscrita pelo seu Credor (irrelevante ser um credor subordinado, pois que, a lei não arreda dessa legitimidade um tal Credor, conforme artigo 222.º-C, n.º 1 do CIRE) quer do escopo legislativo quanto a tal processo especial.
O. Com efeito, mais se dirá que, no âmbito do PER - atentas as regras do CIRE e da Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011 de 25.10 - o papel do Juiz é meramente residual; entender que o Juiz tem poder para decidir que o devedor não é passível revitalização é totalmente contrário à lei.
P. O papel determinante cabe aos credores, cuja vontade é soberana, sujeita apenas ao cumprimento de preceitos legais imperativos, e a fiscalização pelo cumprimento de tais preceitos cabe ao juiz em sede de homologação (ou não) do plano.
Q. Segundo o preceito supra transcrito (222.º-A do CIRE), a que se alia o n.º 3 do artigo 1.º do CIRE, o devedor que se encontre em situação económica difícil ou, mesmo, em estado de insolvência “meramente iminente”, pode, livremente, optar pelo PEAP.
R. No caso de optar pelo PEAP, o devedor tem de instruir o requerimento “mediante declaração escrita e assinada”, “do devedor e de pelo menos um dos seus credores” (art.º 222º-A, n.º 2, e, art.º 222.º-C, do CIRE); bastando, assim, um atestado meramente declarativo subscrito pelos interessados.
S. Quer o juízo prévio de avaliação sobre o concreto estado do devedor, quer o de ponderação do melhor caminho para se regenerar, quer a conformidade dessa decisão à lei e adequação do processo requerido, surgem subtraídos à apreciação e controlo da autoridade.
T. Ainda que, salvo o devido respeito, desde logo, se considere que o Juiz no “despacho imediato” de “admissão” do PEAP - a que alude do n.º 4, do art.º 222.º-C do CIRE - nem na sentença de homologação, não tem poder para determinar se o devedor está em “situação económica difícil”, ou em “situação de insolvência meramente iminente” ou em “situação de insolvência actual”,
U. Ainda assim, por tudo quanto supra exposto, certo é que o aqui Apelante encontra-se em situação económica difícil e/em insolvência meramente iminente, tal como previsto nos art.ºs 1.º, n.º 3, e 222.º-A e B, do CIRE e, não em situação de insolvência.
V. Concluindo, não podemos deixar de frisar, do quadro factual apresentado pelo aqui Devedor, não se pode presumir, sem mais, a verificação da situação de insolvência.
W. O que, de resto, não surge fundamentado nos presentes autos, adequadamente circunscrito à situação do aqui Apelante, sufragando a decisão em causa na “prática quotidiana nesta Instância Central de Comércio”!
Destarte, em suma,
X. Por tudo quanto ficou exposto, entende o aqui Apelante que o douto despacho que decidiu indeferir liminarmente o processo especial para acordo de pagamento apresentado pelo Insolvente, não tendo procedido a uma correcta apreciação do aspecto factual e jurídico da causa, infringiu e violou, pois, o espírito subjacente ao disposto nos artigos 1.º, n.º 3, 3.º, n.º 1, 222.º-A, n.º 1, 222.º-B, e ainda no artigo 222.º-C, n.º 4, todos do CIRE.
Nestes termos, e nos que Vs. Exas mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recuso de apelação e revogando o despacho que indeferiu liminarmente a requerida revitalização, substituindo-o por outro que defira liminarmente tal pedido nos termos do n.º 4 do art.º 222.º-C do CIRE, com todas as consequências legais daí advenientes, ser feita, assim e como sempre, inteira e sã JUSTIÇA!

Nos termos da lei processual civil são as conclusões do recurso que delimitam o objecto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste tribunal.
Assim, a questão a resolver consiste em saber se dever ser admitido o PEAP apresentado pelo recorrente.

II – Fundamentação de facto.
Para a decisão do recurso releva a factualidade que se extrai do relatório supra.

III – Fundamentação de direito.
O “processo especial para acordo de pagamento” (PEAP) foi introduzido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE) pelo DL n.º 79/2017 de 30/6.
Trata-se de mais um regime pré-insolvencial ao lado do processo especial de revitalização (PER).
Adequado às especificidades do devedor não empresário espraia-se nos artigos 222.º-A a 222.º-J do CIRE.
Mais precisamente, tem, como âmbito subjectivo, devedores que não sejam empresas, isto é, que não se apresentem como titulares de empresas. Poderão ser não só pessoas singulares como também pessoas colectivas ou entidades destituídas de personalidade jurídica, como patrimónios autónomos, associações sem personalidade jurídica, comissões especiais, ou seja, qualquer uma das entidades enunciadas no n.º 1 do artigo 2.º do CIRE, com as excepções mencionadas no n.º 2 do mesmo artigo.
O PEAP é, tal como o PER, um processo especial declarativo, judicial mas híbrido e concursal e tem também duas modalidades que constituem, cada uma delas, um processo especial: nos artigos 222.º-A a 222.º-H regula-se o PEAP destinado à abertura e concretização de negociações; no artigo 222.º-I regula-se o PEAP destinado à homologação judicial de acordo extrajudicial, fruto de negociações já encetadas e concluídas.
Diz-se híbrido porque tem tramitação extrajudicial, maxime a fase das negociações mas também obriga, em momentos cruciais, à intervenção de um juiz.
Rege-se pelas disposições que lhe são próprias e, nos casos omissos, aplicam as disposições do CPC, em tudo o que não contrarie as normas do CIRE- vide n.º 1 do artigo 17º.
No caso, o requerente alega que se encontra em situação económica difícil, pois que tem um passivo na ordem dos € 150.976,01, figurando, entre os seus credores, uma sociedade por quotas e o C…, e encontrar-se desempregado, auferindo a título de subsídio de desemprego € 520,00 mensais, tendo a seu cargo uma filha menor com 15 anos de idade.
É proprietário de uma fracção autónoma sita em …, com o valor tributável de € 52.262,35.
Juntou documento onde consta um acordo com um dos seus credores, o qual é seu irmão pelo que será um crédito subordinado.
Na verdade, embora caiba ao devedor apresentar em tribunal o requerimento de abertura do PEAP (n.º 3 do artigo 222.º-C), este depende de uma manifestação de vontade conjunta de encetamento de negociações, do devedor e pelo menos um dos seus credores, a qual deve revestir a forma escrita, ser assinada por todos os declarantes e estar datada (n.º 1 do artigo. 222.º-C).
Nos termos do n.º 1 do artigo 222.º-A é necessário que o devedor se encontre comprovadamente em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente.
O artigo 222º-B dispõe “Para efeitos do presente processo, encontra-se em situação económica difícil o devedor que enfrentar dificuldade séria para cumprir pontualmente as suas obrigações, designadamente por ter falta de liquidez ou por não conseguir obter crédito”. É uma definição idêntica à do artigo 17-B que respeita ao PER.
Sobre situação de insolvência meramente iminente nada esclarece a lei.
Tem-se considerado que em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente está quem, com muita dificuldade, vai cumprindo os seus compromissos, atrasando pagamentos vencidos aqui e adiando despesas necessárias acolá, e antevendo, com possibilidade de concretização, que será menor ou maior consoante estiver em situação económica difícil ou em estado de insolvência iminente, que num futuro breve se verá impedido, de forma generalizada, de satisfazer as suas obrigações. – Cfr. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito de Insolvência, Almedina, págs. 54 a 58.
O despacho recorrido indeferiu o PEAP por entender que o requerente se encontra já em situação de insolvência visto que até se apurou que foi intentada, em 2016, execução pelo seu principal credor por dívida de € 71.484,34. Que o presente procedimento é apenas uma forma de escamotear a situação de uma real insolvência.
Efectivamente, nota-se um acentuado aligeiramento das condições do PEAP em relação ao Plano de Insolvência e em relação ao PER.
Por exemplo, como já se referiu, o devedor apresenta em tribunal o requerimento de abertura do processo com uma manifestação de vontade conjunta de encetamento de negociações, do devedor e de pelo menos um dos seus credores. Já no PER a declaração deve ser subscrita, além do devedor, por credor ou credores, não especialmente relacionado(s) com a empresa, que seja(m) titular(es), pelo menos, de 10% de créditos não subordinados (n.º 1 do artigo 17.º-C)).
Esta facilidade do meio processual pode incentivar expedientes dilatórios para evitar uma insolvência em tempo útil para a salvaguarda dos direitos dos credores.
Na situação, concorda-se com o ajuizamento feito no despacho recorrido: o requerente não se encontra em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente porque de toda a factualidade carreada se impõe concluir que a situação já será mesmo de insolvência.
Obviamente que não se podem utilizar mecanismos pré-insolvenciais quando a situação é já de insolvência.
Se o juiz nestes processos especiais com a falada natureza hibrida deve de controlar a legalidade dos planos, deve também controlar a sua legalidade inaugural.
Pelo exposto, delibera-se julgar totalmente improcedente a apelação, confirmando-se o despacho recorrido.
Custas pelo apelante.

Porto, 11 de Fevereiro de 2019
Ana Lucinda Cabral
Maria do Carmo Rodrigues
José Carvalho