Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
720/19.6T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
REQUISITOS DA RESPONSABILIDADE
BOA-FÉ
COMPROPRIEDADE
Nº do Documento: RP20201013720/19.6T8VFR.P1
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Durante o período de formação do contrato e mesmo no período negocial prévio, as partes devem atuar, objetivamente, de boa fé, pois se o não fizerem, podem ser responsabilizadas pelos danos que daí resultem.
II - No caso de frustração das negociações por ausência ou não conclusão do contrato, a referida responsabilização está dependente da violação da confiança criada por uma das partes em relação à outra, mas também da ilegitimidade da rutura contratual.
III - Para que a confiança gerada no percurso negocial possa ser fundada e juridicamente protegida, não basta que uma das partes tenha subjetivamente confiado na outra. É necessário ainda que essa confiança se baseie em dados objetivos que a justifiquem; que ela tenha conduzido a parte que confiou a agir de maneira juridicamente relevante em relação à sua esfera de interesses; e, por fim, que esse investimento na confiança tenha sido ocasionado por outrem.
IV - A referida objetividade afere-se em função do que seria razoável esperar de um outro sujeito sensato e prudente colocado na mesma posição de quem confiou, mas tendo também em conta todas as outras circunstâncias reais e relevantes, comuns a ambas as partes.
V - Não é fundada a confiança daquele que aceita realizar obras com vista à celebração de um contrato de arrendamento rural sobre um terreno detido em compropriedade por vários consortes, quando só um deles deu autorização para essas obras sem se provar que o mesmo estivesse para o efeito mandatado pelos demais e sem estes terem manifestado vontade inequívoca de celebrar o dito contrato.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 720/19.6T8VFR.P1
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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I- Relatório
1- B… intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J… e K…, pedindo que estes sejam solidariamente condenados a pagar-lhe a quantia de 37.990,00€, acrescida de juros de mora vincendos desde a data de interpelação sobre a quantia de 34 339,65€, até efetivo pagamento, uma vez que os mesmos, não obstante lhe terem criado legitimas expetativas de que com ela iam celebrar um contrato de arrendamento rural sobre a quinta de que são proprietários e de a terem, inclusive, deixado fazer obras na mesma quinta na sequência da proposta contratual que lhes endereçou, acabaram por se recusar, sem justo motivo, a celebrar o referido contrato, o que lhe ocasionou diversos prejuízos que elencam.
Daí o pedido que formulam.
2- Contestaram os RR., C…, D…, E…, F…, G… e H…, apresentando uma outra versão dos acontecimentos. E, assim, consideram que nunca criaram na A. qualquer expetativa de virem a celebrar o referido contrato pelo prazo que a mesma pretendia, nem reconhecem todas as obras e trabalhos que aquela identifica, que consideram, aliás, danosas para a sua propriedade.
Pelo contrário, dizem-se prejudicados com toda a conduta da A. (e do seu marido, que foi quem iniciou as negociações) e pedem, em sede reconvencional que aquela seja condenada a pagar-lhes a quantia de 1.170,00€ de que a mesma se confessou devedora, devido à venda de madeira da quinta já referida.
3- A A. respondeu defendendo a inadmissibilidade da reconvenção e, subsidariamente, impugnando os factos nela alegados, concluindo pela sua improcedência, no caso de ser admitida.
4- Terminados os articulados, teve lugar a audiência prévia, na qual, para além do mais, se considerou improcedente a arguida inadmissibilidade da reconvenção e se fixaram o objeto do litígio e os temas da prova.
5- Seguidamente, na data aprazada, teve lugar a audiência final e finda esta, foi proferida sentença na qual se decidiu:
- julgar a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência, condenar os RR., C… e D…, a pagar à A., B…, solidariamente, a quantia de 35.509,65€ (trinta e cinco mil, quinhentos e nove euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros civis vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento;
- absolver os RR., E…, F…, G…, H…, I…, J… e K…, do pedido;
- julgar a reconvenção procedente, e, em consequência, condenar a A., B… a pagar aos RR., C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J… e K…, a quantia de 1.170,00€ (mil cento e setenta euros).
Na base desta decisão encontra-se, em síntese, o entendimento de que os RR., C… e D…, ao autorizarem-lhe a realização de determinadas obras previstas no contrato de arrendamento rural que se propôs celebrar com todos os RR., no período de formação desse contrato, criaram-lhe a legitima expetativa de que o mesmo se iria concretizar. No entanto, tal não veio a suceder.
Por conseguinte, os identificados RR., porque não atuaram de boa fé, são responsáveis pelos danos que lhe causaram com essa sua atitude.
Já em relação aos demais RR., “[n]ão se sabendo exactamente se e de que forma intervieram até aí, concretamente quanto à realização das obras, enquanto ponto crucial nestas negociações para que seja imputada a responsabilidade pelos encargos tidos pela Autora, não lhes é possível imputar qualquer responsabilidade”.
Quanto ao pedido reconvencional, a sua procedência deveu-se, desde logo, ao seu reconhecimento pela A. e ao facto desta ter recebido o correspondente valor com a venda da madeira que cortou.
6- Inconformados com esta sentença, dela recorrem os RR., C… e D…, terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“A) Interpõe-se recurso da decisão que, julgando a acção parcialmente procedente, condena os ora apelantes a pagar à recorrida o valor por esta despendido nos trabalhos que realizou na quinta, baseando a condenação na imputação, que lhes é dirigida, de terem violado os deveres de boa-fé, no domínio de relações pré-contratuais, situação enquadrada na disciplina constante do artigo 227º do CC.
B) Os recorrentes submetem a este tribunal a reapreciação dos meios probatórios constantes dos autos, concretamente das cartas juntas com a petição inicial sob docs. 3., das cartas juntas com a petição inicial sob docs. 7., dos depoimentos de parte do Réu C… e do depoimento da testemunha da autora, L…, meios de prova sujeitos a livre apreciação, reclamando um novo e autónomo juízo por parte deste Tribunal relativamente aos seguintes factos impugnados:
2. Desde data não concretamente apurada, foi permitido a L…, marido da autora, o acesso à quinta, tendo-lhe sido entregue uma chave dos portões da mesma;
3. No dia 8 de Maio de 2015, foi pessoalmente entregue aos réus, por L…, em nome da autora, a seguinte proposta:
«Pela presente sou a propor a Vexa, na qualidade de comproprietário dos prédios acima identificados que constituem a denominada “M…”, a celebração de contrato de arrendamento, com vista ao cultivo do solo e plantação de maracujás e limas.
A plantação em causa implica que se proceda ao abate dos pinheiros/eucaliptos e demais arvoredo existente na zona de mato, à sua limpeza, à poda de todas as arvores existentes na quinta, ao cultivo do solo em quase toda a área, com excepção de mil metros na zona circundantes da casa e dos currais, à vedação da quinta com arame farpado, melhoramentos fundiários, furo para captação de água, canais de rega e à abertura de uma entrada pela Rua …, com cerca de 4 metros, a ser fechada com portão. (...)
Quanto ao prazo de duração será de quinze anos, com início a contra da data de celebração do contrato que se pretende seja em Setembro do corrente ano renovando-se automaticamente por igual período caso não seja previamente denunciado por qualquer uma das partes».
5. No primeiro trimestre de 2016, em data não concretamente apurada, o Réu C… ligou a L… para saber se a autora mantinha o interesse no arrendamento da quinta;
7. Naquele telefonema, o Réu C… que previamente falara com o Réu D… sobre o assunto, permitiu a realização dos trabalhos referidos na proposta identificada em 3;
9. Por estas obras, pagou € 35 509,65;
11. Nessa ocasião foi transmitido a L… que os réus apenas estavam de acordo com um contrato de arrendamento pelo período de 7 anos, tendo este respondido que precisava consultar a autora e a pessoa responsável pela candidatura ao programa IFAP, no âmbito do programa Q…;
13. No dia 25 de Abril de 2016, os réus, após reunião, comunicaram a L… que não iam celebrar o contrato de arrendamento rural, por não aceitarem o prazo de 10 anos;
C) Deve ser alterada a decisão proferida sobre os factos antecedentemente discriminados e os mesmos decididos, em consonância com a prova produzida, da forma seguinte:
2. Desde data não concretamente apurada, anterior ao período das negociações do contrato de arrendamento rural, foi permitido a L…, marido da autora, o acesso à quinta, tendo-lhe sido entregue uma chave dos portões da mesma;
3. No dia 8 de Maio de 2015, foi pessoalmente entregue aos réus, C…, E…, H…, F…, D… e G…, por L…, em nome da autora, a seguinte proposta:
«Pela presente sou a propor a V. Exa., na qualidade de comproprietário dos prédios acima identificados, que constituem a denominada “M…”, a celebração de contrato de arrendamento, com vista ao cultivo do solo e plantação de maracujás e limas.
A plantação em causa implica que se proceda ao abate dos pinheiros/eucaliptos e demais arvoredo existente na zona de mato, à sua limpeza, à poda de todas as arvores existentes na quinta, ao cultivo do solo em quase toda a área, com excepção de mil metros na zona circundantes da casa e dos currais, à vedação da quinta com arame farpado, melhoramentos fundiários, furo para captação de água, canais de rega e à abertura de uma entrada pela Rua …, com cerca de 4 metros, a ser fechada com portão.
(...)
Quanto ao prazo de duração será de quinze anos, com início a contar da data de celebração do contrato que se pretende seja em Setembro do corrente ano renovando-se automaticamente por igual período caso não seja previamente denunciado por qualquer uma das partes.
Esta proposta é válida por quinze (ou trinta) dias, devendo V. Exa. comunicar-me a V/ decisão dentro deste prazo.»
Aos réus C…, E…, H… a proposta concedia o prazo de 15 dias para responderem. Aos réus F…, D… e G…, tal prazo era de 30 dias.
5. No primeiro trimestre de 2016, em data não concretamente apurada, o L… telefonou ao réu C… para saber se mantinha o interesse no arrendamento da quinta.
7. Naquele telefonema, o Réu C…, permitiu a realização de podas e trabalhos de limpeza da quinta.
9. Não provado.
11. Nessa ocasião foi transmitido a L… que os réus apenas estavam de acordo com um contrato de arrendamento pelo período de 7 anos, tendo este respondido que precisava consultar a pessoa responsável pela candidatura ao programa IFAP, no âmbito do programa Q…;
13. No dia 25 de Abril de 2016, após reunião, os réus, comunicaram a L… que não iam celebrar o contrato de arrendamento rural, porque alguns herdeiros, entre eles, o Réu H…, não aceitaram o prazo de 10 anos, não se incluindo naquele grupo os réus C… e D….
D) A sentença assenta a sua decisão num facto essencial não alegado pelas partes, concretamente, que “Se os réus C… e D… não tinham a certeza que o contrato seria celebrado (…), então, pelos deveres de protecção que a boa fé impõe, incumbia-lhes informar a autora dessa incerteza e de forma expressa referir que, ainda que permitissem as obras, a probabilidade de celebração do contrato não lhes era favorável.”
E) A estrutura lógica da sentença recorrida repousa na imputação aos réus ora apelantes do incumprimento do dever de protecção que a boa fé impõe, pelo facto de terem autorizado as obras sem informarem a autora que a probabilidade da celebração do contrato não lhe era favorável, facto que, dada estrutura normativa da ilicitude omissiva, é, seria, constitutivo da pretensão indemnizatória da autora.
F) Um facto a que se atribui o efeito jurídico gerador desse dever é, inequivocamente, um facto essencial, nos termos e para os efeitos do art. 5.º/1 do CPC – trata-se, por conseguinte, de facto que só ficaria ao alcance dos poderes de cognição do tribunal recorrido se fosse alegado por alguma das partes – condição que, no caso, não se verifica, uma vez que dos articulados nada consta a tal respeito.
G) Ao incluir nos fundamentos da decisão um facto (essencial) que (para além de não figurar na lista de factos provados) não foi alegado por nenhuma das partes, o tribunal excedeu os seus poderes de cognição, assim dando causa à nulidade prevista no art. 615.º/1-d) do CPC.
H) Os factos que poderiam ter relevo desfavorável para os réus (ainda que insuficientes para justificar a condenação apenas destes dois) foram julgados não provados ou provados de modo muito restritivo: constam estes dos artigos 4º PI, 6º PI, 10º PI, 11º PI.
I) O tribunal recorrido considera que a actuação destes dois réus e do L… se enquadram na esfera de negociações pré-contratuais com vista à celebração de um contrato de arrendamento rural que repristinava a proposta, caducada, inserta sob o documento, dado como provado sob facto 3., dirigido a cada um dos proprietários a 8 de Maio de 2015.
J) A autora, por si ou através do seu representante, após a missiva de 8 de Maio de 2015, apenas voltou a contactar os comproprietários da quinta (os outros, para além destes dois réus) em Abril de 2016, não se podendo afirmar que foram encetadas quaisquer negociações entre 8 de maio de 2015 e inícios de Abril de 2016.
K) Os factos provados não evidenciam a ilicitude da conduta dos réus, ora apelantes.
L) A identificação da conduta ilícita imputada aos réus [dois, dos nove comproprietários], ora apelantes, por parte do tribunal recorrido, foi a de autorizar(em) a realização das obras e de ter(em), com isso, criado na autora a expectativa de que o contrato de arrendamento rural iria ser celebrado.
M) Resulta da dialéctica da sentença recorrida que os réus, particularmente o réu C…, uma vez que permitiu que a autora realizasse as obras obrigou-se a assegurar, a garantir, contra tudo e contra todos, o convencimento dos demais consortes e a garantir, a final, a celebração do contrato de arrendamento rural, nos termos pretendidos pela autora.
N) Ainda que se admita que os réus autorizaram as obras tal, só por si, não constitui os réus numa obrigação de resultado, nem mesmo numa obrigação de garantia – constitui apenas os réus no dever de realizar certa conduta, conducente com os princípios da boa-fé, que estes não defraudaram.
O) Donde, apenas o facto de o réu C… (na posição defendida pelos apelantes) ou mesmo de ambos os réus (na óptica do Tribunal) terem autorizado a realização de obras, é insuficiente para constituir uma conduta ilícita, juridicamente relevante.
P) O fim das negociações é imputável à autora e não aos réus, ora apelantes.
Q) No início de mês de Abril de 2016, numa reunião em que estavam presentes todos os réus, o L… foi chamado para se discutir a sua proposta, tendo-lhe sido transmitido que os réus estavam de acordo em arrendar a propriedade pelo período de 7 anos – cfr. factos provados sob 10. e 11.
R) A autora não aceitou contratar pelo prazo de 7 anos, aceitando reduzir o contrato de arrendamento rural para um período de 10 anos – cfr. facto provado sob 12.
S) Os réus não aceitaram o prazo de 10 anos. A autora não aceitou o prazo de 7 anos.
T) Foi julgado não provado que os réus soubessem que o prazo indicado pela autora era condição sine qua non para a celebração do contrato.
U) A essencialidade do prazo pode resultar de convenção expressa (quando a essencialidade é expressamente clausulada) ou tácita (quando a essencialidade deriva de especiais circunstâncias do contrato, conhecidas de ambas as partes).
V) Ora, se o prazo não era condição sine qua non, condição essencial, para a celebração do contrato ou, ainda que o fosse, se os réus desconheciam a essencialidade do prazo para a autora, não pode ser imputado aos réus – a nenhum dos réus - quaisquer prejuízos sofridos pela autora, decorrentes do facto de os réus apenas aceitarem contratar pelo prazo de sete anos.
X) Em suma, não se encontram, in casu, verificados os pressupostos essenciais da responsabilidade civil: ilicitude, imputabilidade, culpa, dano e nexo causal entre o facto ilícito e o dano de modo a que se possa, legitimamente, imputar aos réus a obrigação de indemnizar a autora, o que desde logo, determina a revogação da decisão proferida e a sua substituição por uma outra que absolva os réus.
Z) A ilicitude e a culpa encontram-se na actuação do representante da autora, L…, que manifestamente despreza o dever de diligência: não contactou sete dos nove comproprietários da propriedade - como lhe competia – antes de dar inicio aos trabalhos.
AA) Numa apreciação objectiva dos factos provados e apelando sempre ao critério de razoabilidade adequado por referência ao bom pater familias, é de salientar que a actuação da autora, através deste seu representante, não cumpre o mínimo de diligência exigível a um normal contraente.
AB) Muito menos tratando-se de profissionais preparados para realizar um investimento estimado na ordem dos quatrocentos mil euros, assessorados por Engenheiros e Advogados, sabedores, ad inicio que teriam de contratar com múltiplos comproprietários – cfr. facto provado sob 3. E encetam negociações com apenas dois, dos nove comproprietários, com idades superiores a noventa anos cada um deles.
AC) A sentença não procedeu à apreciação da culpa do lesado, designadamente, sob os critérios fixados na primeira parte do artigo 570º do CC, não podendo os apelantes deixar de invocar a sua voluntária autocolocação em risco.
AD) Não deixa de corresponder a um excesso nos limites da boa-fé, desconsiderar a contraparte na fase contratual, antecipar as obras à celebração do contrato que as legitimaria, e no fim, vir invocar e imputar aos réus prejuízos, de que não podem ser responsáveis.
AE) A decisão em recurso violou, entre outros, o disposto nos artigos 277º, 228/1, al. a), 405º, 483º, 570º, 798º e 799º/1 do CC e 5.º/1, 615.º/1-d), do CPC”.
Terminam pedindo que se conceda provimento ao presente recurso, reconhecida a invocada nulidade e, consequentemente ser revogada a sentença recorrida.
7- A A. respondeu, pugnando pela confirmação do julgado.
8- Recebido o recurso nesta instância e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito dos recurso
1- Definição do seu objeto
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso em apreço, delimitado pelas conclusões das alegações dos impugnantes [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], cinge-se a saber se:
a) A sentença recorrida é nula por ter levado em consideração um facto essencial não alegado pelas partes;
b) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;
c) Não estão verificados os pressupostos para a responsabilização dos Apelantes nos termos expressos na sentença recorrida.
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2- Fundamentação
A- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1- Os RR. são comproprietários da denominada «M…» ou «N…», correspondente ao prédio misto composto por casa de habitação de um andar com sete divisões e 16 vãos, com área total de terreno de 619m2 e área bruta de construção de 342m2, e, ainda, por terreno com uma área de 2,8 ha inscrito na matriz sob os artigos urbano 1540.º (anterior 758.º), situado na União de Freguesias … e rústico 3171 (anterior 1215), sito na Freguesia …, ambas no concelho de Santa Maria da Feira e descritos na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira sob os n.os 1271.º e 633.º;
2- Desde data não concretamente apurada, foi permitido a L…, marido da A., o acesso à quinta, tendo-lhe sido entregue uma chave de um dos portões da mesma;
3- No dia 8 de Maio de 2015, foi pessoalmente entregue aos RR., por L…, em nome da A., a seguinte proposta:
«Pela presente sou a propor a Vexa, na qualidade de comproprietário dos prédios acima identificados que constituem a denominada “M…”, a celebração de contrato de arrendamento, com vista ao cultivo do solo e plantação de maracujás e limas.
A plantação em causa implica que se proceda ao abate dos pinheiros/eucaliptos e demais arvoredo existente na zona de mato, à sua limpeza, à poda de todas as arvores existentes na quinta, ao cultivo do solo em quase toda a área, com excepção de mil metros na zona circundantes da casa e dos currais, à vedação da quinta com arame farpado, melhoramentos fundiários, furo para captação de água, canais de rega e à abertura de uma entrada pela Rua, com cerca de 4 metros, a ser fechada com portão. (…)
Quanto ao prazo de duração será de quinze anos, com início a contra da data de celebração do contrato que se pretende seja em Setembro do corrente ano -renovando-se automaticamente por igual período caso não seja previamente denunciado por qualquer uma das partes».
4- Os Réus não responderam àquela carta;
5-No primeiro trimestre de 2016, em data não concretamente apurada, o R, C…, ligou a L… para saber se a A. mantinha o interesse no arrendamento da quinta;
6- O R., C…, pretendia que fosse celebrado o contrato de arrendamento proposto em 8 de Maio de 2015;
7- Naquele telefonema, o R., C…, que previamente falara com o R., D… sobre o assunto, permitiu a realização dos trabalhos referidos na proposta identificada em 3;
8-Entre Fevereiro e meados de Abril de 2016, a A. realizou os seguintes trabalhos:
i) limpeza geral de poda de árvores e vegetação e preparação do solo para uma plantação de maracujás;
ii) poda de plátanos, tílias e liquidamer envolvente ao passeio das quintas;
iii) poda de ramos pinheiros mansos;
iv) limpeza de vegetação espontânea numa área de 6.000m2;
v) limpeza de vegetação espontânea com trator;
vi) abertura de entrada com 5 metros largura, trabalho de retro e espalhar o respetivo material;
vii) construção de duas colunas para entrada;
viii) reparação de alguns muros da quinta;
ix) arranque de cepos numa área de 6.000 m2;
ix) colocação de 60m3 de tubna;
x) transportes dos cepos referidos em viii e da rama existente na quinta;
xi) escavação da área de mato;
xii) limpeza da vegetação envolvente aos muros da quinta;
xiii) lavrar e fresar numa área de 3000m2
ix) retiro de estrume da quinta.
9- Por estas obras, pagou 35.509,65€;
10- No início do mês de Abril de 2016, o R., C… ligou a L…, na sequência de uma reunião entre os Réus, e pediu-lhe que se deslocasse à quinta para todos falarem sobre aquela proposta;
11- Nessa ocasião foi transmitido a L… que os RR. apenas estavam de acordo com um contrato de arrendamento pelo período de 7 anos, tendo este respondido que precisava de consultar a A. e a pessoa responsável pela candidatura ao programa IFAP, no âmbito do programa Q…;
12- Nessa sequência, L… transmitiu ao R., C…, que a A. aceitava reduzir o contrato de arrendamento rural para um período de 10 anos;
13- No dia 25 de Abril de 2016, os RR., após reunião, comunicaram a L… que não iam celebrar o contrato de arrendamento rural, por não aceitarem o prazo de 10 anos;
14- Por ocasião das obras foi demolida parte do muro, para que as máquinas que realizaram as obras pudessem entrar;
15- Ao invés do que fora proposto na carta referida em 3, A. e RR. acordaram que o produto da venda da madeira cortada durante os trabalhos referidos em 8 revertesse a favor destes;
16- Pela venda daquela madeira, a A. recebeu 1.170,00€, valor que, até ao momento, não entregou aos RR;
17- O R., C…, depois da demolição de parte do muro (facto 14) procedeu, a expensas suas, à reparação do mesmo;
18- A 18 de Maio de 2016, a A. enviou carta aos RR, com o seguinte teor:
«Conforme referido na (…) proposta o contrato de arrendamento rural a celebrar passaria pela apresentação de candidaturas aos apoios financeiros no âmbito da política agrícola comum.
Uma vez que o prazo do arrendamento a apresentar naquela candidatura pode ser de apenas 10 anos, aceitou a proponente que o mesmo fosse reduzido dos 15 inicialmente por si propostos para dez anos.
Acontece que, surpreendentemente e ao arrepio das negociações pré contratuais se terão recusado agora, alguns herdeiros dos quais se desconhecem os nomes com excepção do Dr. H…, que diz representá-los, a celebrar o contrato de arrendamento rural em causa.
Apesar de várias diligências e tentativas encetadas pela proponente para ultrapassar os obstáculos levantados quanto ao prazo que os referidos herdeiros apenas aceitam ser de sete anos, sem que qualquer justificação tenha sido dada para tal -, não se logrou qualquer acordo.
Com aquele comportamento frustraram-se as legítimas expectativas da proponente na celebração de tal contrato e consequente candidatura aos apoios financeiros no âmbito da política agrícola comum, tendo a mesma despendido a quantia de € 35.509,65, (…) reclamando-se o pagamento da quantia de € 34.339,65 até ao próximo dia 08 de Junho de 2016».
19- A 6 de Junho de 2016, os RR, G…, F… e H… enviaram carta à A., na qual declinaram a responsabilidade pelas quantias peticionadas e afirmaram:
- desconhecer a A., com quem nunca falaram, e qual a relação desta com o Sr. L…;
- que sempre foi transmitido ao Sr. L… que a ser celebrado um contrato real sempre seria necessário que todos os comproprietários nisso acordassem quanto a prazos e valores, o que não aconteceu por não consenso quanto ao prazo;
- que na negociação deste contrato não havia representante dos RR. e que, por isso, tudo foi falado entre todos e a mandatária do Sr. L…;
- que sempre lhes foi transmitido que o Sr. L… faria «umas limpezas», abatendo algumas árvores necessárias para essa limpeza sem especificação do seu conteúdo ou quantidades;
- e que muitos dos trabalhos realizados não se traduzem em qualquer melhoria para a quinta.
20- A 6 de Junho de 2016, o R., C… respondeu àquela carta:
- reconhecendo que decorreram negociações entre os proprietários da quinta e o Sr. L… com vista ao arrendamento rural da quinta, negociações que foram prolongadas e dificultadas pelo número de consortes, tendo este fator inviabilizado a celebração do contrato;
- afirmando que no decurso das negociações foi tolerado por alguns comproprietários o acesso á quinta, mas com o risco assumido pelo Sr. L… e pela A. de se adiantarem a realizar trabalhos antes de firmado o contrato, o que fizeram com o propósito de forçar o acordo;
- e dizendo que os comproprietários aceitarão pagar o valor de 8.000,00€, valor relativo aos trabalhos que revestem alguma utilidade para a quinta (os demais trabalhos integram a esfera de risco assumido que o Sr. L… e a A. assumiram).
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B- Na mesma sentença não se julgou provado que:
a) No dia 8 de Maio de 2015, os RR. disseram que não queriam arrendar a quinta;
b) Desde o início das negociações foi transmitido à A. que os RR. não aceitavam a celebração de um contrato por período superior a 7 anos;
c) Em Abril de 2016, a A. foi instada a parar as obras, mas não o fez;
d) A A. realizou as obras para forçar os RR. a celebrar o contrato de arrendamento rural;
e) A limpeza rasa dos solos conduziu à exposição dos terrenos à erosão e permitiu a entrada de infestantes, bem como a perda de substrato e nutrientes do solo, consequências apenas reparáveis em décadas;
f) A A. para aceitar o prazo de 10 anos, condicionou o contrato à inclusão de uma cláusula segundo a que os Réus, caso denunciassem o contrato antes do termo dos 10 anos, a tinham que indemnizar no valor que esta teria que devolver pelo incumprimento do contrato do IFA, na ordem dos 60.000,00€.
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C- Análise dos fundamentos do recurso
1- Por uma questão de precedência lógica, deve começar por analisar-se a nulidade que os Apelantes imputam à sentença recorrida.
Neste âmbito, referem aqueles:
“Retira-se da argumentação da sentença que “Se os réus C… e D… não tinham a certeza que o contrato seria celebrado (ou por falta de acordo entre os comproprietários da Quinta quanto ao contrato, ou por discórdia quanto ao conteúdo do mesmo), então, pelos deveres de protecção que a boa fé impõe, incumbia-lhes informar a autora dessa incerteza e de forma expressa referir que, ainda que permitissem as obras, a probabilidade de celebração do contrato não lhes era favorável.”.
E, desta afirmação concluem os Apelantes que o Tribunal recorrido levou em consideração um facto essencial que não foi alegado pelas partes, incorrendo assim na apontada nulidade, por excesso de pronúncia.
Ora, não é essa a nossa perspetiva.
Efetivamente, na aludida afirmação não se retrata um facto; ou seja, um evento naturalístico que historicamente tenha ocorrido. Retrata-se, sim, uma hipótese. Tanto assim que tal afirmação é feita em termos condicionais.
Como tal, não se pode falar em excesso de pronúncia; nem, menos ainda, da consideração de qualquer facto essencial não alegado pelas partes.
Do que se trata, repetimos, é de uma afirmação conjetural que faz parte do discurso argumentativo.
Nessa medida e sem necessidade de outros considerandos, julga-se improcedente a arguição da referida nulidade.
2- Passemos à análise da questão seguinte.
Trata-se de saber se deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto. Ou seja, se os factos descritos nos pontos 2 e 3 do capítulo dos Factos Provados, devem ser mais concretizados e se os narrados nos pontos 5, 7, 9, 11 e 13, do mesmo capítulo, foram indevidamente julgados provados.
Comecemos por aqueles que alegadamente carecem de maior concretização.
No ponto 2 dos Factos Provados, refere-se o seguinte:
Desde data não concretamente apurada, foi permitido a L…, marido da A., o acesso à quinta, tendo-lhe sido entregue uma chave de um dos portões da mesma”.
Pretendem os Apelantes que se concretize melhor a referida data; isto é, que se consigne que a mesma se situou, seguramente, antes das negociações tendentes à celebração do contrato de arrendamento rural, pois que é isso que resulta dos elementos de prova que indicam.
E têm razão. Com efeito, o R., C…, reconheceu em julgamento que o marido da A., L…, desde há 10/15 anos sempre teve acesso à quinta de que o A. é comproprietário, tendo também em seu poder uma chave de acesso à mesma, por causa dos cavalos que aí possui. E igual ideia perpassou do depoimento do referido L…, quando mencionou que já antes da sua proposta de arrendamento tinha cavalos na dita quinta. Aliás, o R., D…, também o referiu na parte final do seu depoimento.
Por conseguinte, deve acolher-se a referida concretização.
Ficará assim redigido aquele ponto da matéria de facto:
Desde data não concretamente apurada, mas anterior ao inicio das negociações tendentes à celebração de um contrato para arrendamento do terreno mencionado em 1, foi permitido a L…, marido da A., o acesso à quinta, tendo-lhe sido entregue uma chave de um dos portões da mesma”.
Já quanto à alteração pretendida para o ponto 3 dos Factos Provados, não temos a mesma opinião dos Apelantes.
O que estes pretendem, no fundo, é que, em vez da referência aos RR., se especifique que a proposta escrita mencionada nesse ponto foi entregue apenas aos RR., C…, E…, H…, F…, D… e G…. Isto, porque são apenas estes, e não todos os RR., que são referidos nos documentos de fls. 16v.º a 22.
Sucede que o marido da A. foi bem explícito em julgamento quando afiançou que entregou uma proposta a cada um dos “herdeiros” (entenda-se, comproprietários da quinta aqui em questão – conhecida também por O…), no dia em que os mesmos se reuniram para celebrar a escritura de compra e venda de um outro terreno que lhe venderam.
E, de acordo com a versão do próprio R., C…, nessa escritura intervieram todos os ditos “herdeiros” ou seus representantes, o que é verosímil, dado que o negócio em causa exigia legalmente essa intervenção, por se tratar de um imóvel que fazia parte da mesma comunhão hereditária.
Deste modo, a entrega foi mais ampla do que apenas aos comproprietários que estão referenciados nos citados documentos.
Como tal, mantem-se inalterada a redação do ponto de facto em apreço.
Prosseguindo na nossa análise, verificamos que os Apelantes questionam, de seguida, o destino probatório que foi dado ao ponto 5 dos Factos Provados.
Afirma-se nesse ponto o seguinte: “No primeiro trimestre de 2016, em data não concretamente apurada, o R., C…, ligou a L… para saber se a A. mantinha o interesse no arrendamento da quinta”.
Do ponto de vista dos Apelantes, não se provou esta afirmação. Quando muito, o que poderia dar-se por certo é o contrário; isto é, que foi o L… quem telefonou ao R., C…, para saber se este mantinha o referido interesse.
Ora, também neste ponto, não cremos que os Apelantes tenham razão.
É inegável que o referido L…, enquanto representante da A., manifestou interesse em arrendar a quinta de que os RR. são comproprietários. Mas, também é verdade que esse interesse era relativo. Como o mesmo referiu em julgamento – no que foi secundado pela testemunha, P…, Engenheira Agropecuária, que elaborou o projeto de exploração para a A. – esta última já tinha um local onde realizar essa exploração, que era em …. A diferença é que a quinta dos RR. tinha cerca de 3,5ha e o terreno em … tinha só 2ha e era um pouco mais longe da sua habitação. Mas, no fundo, os pressupostos mínimos para a candidatura aos fundos europeus, estavam assegurados.
Por outro lado, como o referido L…, reconheceu em julgamento, depois de ter apresentado a proposta escrita aos RR., foi falando sobre o assunto com o R., C…. O que não queria era gerar muita pressão, para que essa atitude não fosse interpretada pelos RR. como um sinal de demasiado interesse que viesse a repercutir-se no montante da renda ou de outras condicionantes do arrendamento.
Assim, como se concluiu na sentença recorrida, é verosímil que a iniciativa do aludido telefonema tenha partido do R., C…, e não da testemunha, L…. Até porque quem tinha manifestado alguma falta de interesse no contrato eram alguns dos RR. e não a A. ou o seu representante.
De resto, ao longo do seu depoimento, o R., C…, sempre aludiu aos vários encontros que foi tendo com o referido, L…, especialmente quando se deslocava à quinta, e neles o problema suscitado era sempre a ausência de concordância de alguns dos comproprietários no arrendamento e não da parte do marido da A. ou desta última.
Nesse contexto, faz todo o sentido que a iniciativa do aludido telefonema tenha partido daquele R. e não do indicado, L….
Daí que, em suma, se mantenha inalterada a redação e destino probatório do ponto de facto em análise.
Está em causa, depois, o teor do ponto 7 dos Factos Provados, que é o seguinte:
“Naquele telefonema, o R., C…, que previamente falara com o R., D… sobre o assunto, permitiu a realização dos trabalhos referidos na proposta identificada em 3”.
Sustentam os Apelantes que nem há prova de que os referidos RR. tenham falado previamente um com o outro (facto que dizem não ter sido motivado na sentença recorrida), nem está demonstrado que os trabalhos consentidos tenham sido os que estão mencionados na dita proposta.
Pois bem, sendo inegável que a sentença recorrida não motivou a aludida conversa prévia, há diversos meios de prova que nos levam a concluir que ela existiu.
Em primeiro lugar, o depoimento do próprio R., D…. Referiu ele, a dada altura desse depoimento, que o seu irmão, ou seja, o R., C…, dizia-lhe tudo. Dizia-lhe tudo – entenda-se – o que tinha a ver com este assunto. E designadamente, como reconheceu, as alegadas insistências do L… para realizar o contrato. Mas, não só. Também outros pormenores que dizem respeito a outros trabalhos que era necessário realizar na quinta, como seja o corte de árvores. A tal ponto que disse ter concordado, por exemplo, com o corte dos eucaliptos.
Mas, ainda que o mesmo tenha sustentado (algo contraditoriamente) que não deu autorização para nada, há outros indicadores de que o mesmo, pelo menos, estava ao corrente do que se passava na quinta.
Assim, relatou a testemunha, L…, as idas daquele R. e do sobrinho, E…, à dita quinta enquanto decorriam os trabalhos. E disse mais. Disse que aquele R. também lhe tinha dado autorização para alguns desses trabalhos (30% a 40%), embora a maior parte do consentimento tenha partido do R., C…; o que faz sentido, na medida em que, pelo que percebemos da prova produzida, era ele (C…) quem mais vezes se deslocava à quinta e era também ele quem mais contacto tinha com o marido da A.. Até por causa do negócio anterior.
Mas que este R. falou previamente acerca deste assunto com o irmão, R., D…, parece inegável. Aliás, é sintomático que tal R. (D…) se tenha revoltado, segundo disse, quando foi à quinta e viu o impacto dos trabalhos já realizados, e não tenha interpelado, nessa mesma altura, por exemplo, o marido da A. sobre quem lhe tinha dado autorização para o efeito. Mais: é sintomático também que nunca tenha referenciado qualquer discussão ou divergência com aquele seu irmão sobre a necessidade do seu consentimento para tais trabalhos.
Daí que, para nós, seja líquido que o R., C…, antes de permitir a realização dos trabalhos referidos na proposta escrita apresentada pela A. (referida em 3), tenha falado com o seu irmão, D….
E que esses trabalhos foram os descritos nessa proposta, também nos parece incontornável. Não havia outros trabalhos a realizar para a concretização do contrato de arrendamento rural proposto. E foi só nesse âmbito, ao que percebemos da prova produzida, que se desenrolaram as conversas entre o marido da A. e o R., C….
Nem havia razões, segundo cremos à luz das regras da experiência comum, para intrometer a realização de outros trabalhos sem estar definitivamente decidida a proposta da A.
Daí que se conclua, como na instância recorrida, que os trabalhos permitidos pelo R., C…, foram os constantes da proposta escrita apresentada pela A. no dia 08/05/2015, e não outros.
Em resumo: o ponto de facto em apreço (7) mantém a sua redação e destino probatório originais.
Seguidamente, põem os Apelantes em questão a afirmação feita no ponto 9 dos Factos Provados. Isto é, que pelas obras descritas no ponto imediatamente anterior (8), a A. pagou, 35.509,65€.
Não está em causa – note-se – a realização dessas obras. Os Apelantes não impugnam o ponto de facto onde elas são descritas (ponto 8). O que está em causa é, tão só, o pagamento do aludido valor.
Ora, sabendo nós que essas obras foram feitas e também que algumas delas foram contratadas a terceiros – como se refere na sentença recorrida ter sido confirmado em julgamento por quem as realizou onerosamente – é inevitável a conclusão de que as mesmas tinham de ser pagas.
E, a A. demonstrou esse pagamento. Fê-lo através do recibo cuja cópia se encontra a fls. 24v.º.
Não ignoramos com isto que esse recibo e a correspondente fatura (fls. 22v.º e 23) foram emitidos por uma sociedade da qual o marido da A. assumiu ser o único sócio e gerente. Mas, não é por isso que essa documentação perde a natureza que lhe é inerente. E mais concretamente, quanto ao recibo, que o aludido valor entrou na esfera jurídica da aludida sociedade. Até porque não foram apresentados outros meios de prova que permitam, em termos objetivos, duvidar do que consta nesse recibo.
Por conseguinte, também não vemos que, nesta parte, se possa concluir que, seguramente, a instância recorrida incorreu em qualquer erro de julgamento.
Está, depois, em causa o ponto 11 dos Factos Provados.
Este ponto vem na sequência do que é afirmado no ponto imediatamente anterior (ponto 10, cujo teor não vem impugnado neste recurso), no qual se refere que o R., C…, telefonou ao marido da A., no início de abril de 2016, pedindo-lhe para o mesmo se deslocar à quinta para todos falarem sobre a sua proposta (ponto 10).
E, nessa sequência, afirma-se no indicado ponto 11, o seguinte:
“Nessa ocasião foi transmitido a L… que os RR. apenas estavam de acordo com um contrato de arrendamento pelo período de 7 anos, tendo este respondido que precisava de consultar a A. e a pessoa responsável pela candidatura ao programa IFAP, no âmbito do programa Q…”.
Baseando-se num excerto do depoimento do aludido L…, sustentam os Apelantes que não há prova de que esta testemunha tenha consultado a esposa, ora A.
Ora, não é verdade. Não só o indicado, L…, referiu em julgamento que, depois da reunião na qual os RR. lhe suscitaram o problema do excesso do prazo para o arrendamento, falou com a esposa e foi com ela conversar sobre o assunto com a pessoa que lhe estava a tratar do projeto, como essa pessoa, ou seja, a testemunha, P…, disse ter reunido com a A. e o marido, no primeiro trimestre de 2016, o que é compatível com a informação prestada pelo marido da A. em julgamento.
Deste modo, também não se vê qualquer erro de julgamento neste facto.
No ponto seguidamente impugnado (ponto 13 dos Factos Provados) refere-se que “[n]o dia 25 de Abril de 2016, os RR., após reunião, comunicaram a L… que não iam celebrar o contrato de arrendamento rural, por não aceitarem o prazo de 10 anos”.
Pretendem os Apelantes que, em vez desta redação, se consigne a seguinte:
“No dia 25 de Abril de 2016, após reunião, os réus, comunicaram a L… que não iam celebrar o contrato de arrendamento rural, porque alguns herdeiros, entre eles, o Réu H…, não aceitaram o prazo de 10 anos, não se incluindo naquele grupo os réus C… e D…”.
Isto porque, a seu ver, estes RR/ora Apelantes, aceitavam esse prazo.
Ora, não foi essa a versão que o R., C…, trouxe a julgamento, em relação ao seu irmão, D…. O que aquele R. referiu é que o seu irmão, D…, começou por ser avesso a qualquer arrendamento, fosse qual fosse o prazo. Mas, do que se depreendeu de diversos meios de prova, alguns deles já referenciados, acabou por equacioná-lo e pactuar, nalguma medida, com a realização de algumas obras tendentes a concretizá-lo, acabando, inclusive, por aceitá-lo desde que o mesmo fosse por um prazo curto, que não deveria exceder os 7 anos, nem incluir a penalização indemnizatória que a A. pretendia introduzir.
Assim, não se pode concluir que o referido R., D…, não incluísse o grupo dos RR que não aceitava o arrendamento por um prazo de dez anos.
O único que estava disposto a aceitar esse prazo, como se depreendeu das suas declarações e as da testemunha, L…, e já consta do ponto 6 dos Factos Provados, era o R., C…, que não há notícia de ter levantado qualquer objeção a esse respeito.
Nessa medida, o ponto de facto em apreço (ponto 13) deve refletir esta realidade. Nestes termos: “No dia 25 de Abril de 2016, após reunião, os RR., comunicaram a L…, que não iam celebrar o contrato de arrendamento rural, porque alguns comproprietários da quinta não aceitavam o prazo de 10 anos para a vigência desse contrato, não se incluindo nesse grupo de comproprietários, o R., C…”.
3- E, terminada a análise da factualidade impugnada, chegou a altura de enfrentar a questão substantiva suscitada pelos Apelantes que se traduz, no fundo, em saber se estão ou não reunidos os pressupostos jurídicos para a sua responsabilização pelos danos sofridos pela A.
Já sabemos[1] que essa responsabilização foi obtida porque se considerou na sentença recorrida que os Apelantes violaram o dever jurídico de atuação segundo os ditames da boa fé no período pré contratual e, com isso, causaram os referidos danos. Mais concretamente, os Apelantes teriam gerado na A. a legitima expetativa de que os RR. concluiriam com ela o contrato de arrendamento rural que a mesma lhes propôs e, a final, esse contrato não se realizou, provocando-lhe diversos prejuízos que não suportaria se a atitude dos referidos Apelantes, ao consentirem-lhe a realização das obras previstas na sua proposta, tivesse sido outra.
Ora, desde já podemos adiantar que não essa a nossa perspetiva.
Não está em causa que as partes, durante o período de formação do contrato e mesmo no período negocial prévio, devem atuar de boa fé. O artigo 227.º, n.º1, do Código Civil, é inequívoco a este propósito: “Quem negoceia com outrem para a conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa-fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente cause à outra parte”.
Mas o que deve questionar-se é se, no caso presente e perante os factos provados, se pode concluir que os Apelantes não atuaram, objetivamente, de boa fé.
Falamos de objetividade porque a boa fé que para aqui nos interessa não é apenas um estado de espirito subjetivo. A boa fé de que fala a lei é “um princípio norteador da conduta das partes, um padrão objetivo de comportamento”[2] que se reconduz a um princípio geral de direito de capital importância nas relações negociais.
Com efeito, sem a exigência de um comportamento integro, leal e honesto das partes, inclusive nas relações pré contratuais, não há confiança entre elas e, sem essa confiança não há credibilidade capaz de fomentar e manter relações sociais e jurídicas sadias e prósperas. O que se reconduz, no fundo, também a uma exigência ética.
Quando as partes, pois, não atuam de boa fé, o direito intervém sancionando e responsabilizando quem não observa essa norma de conduta. Para todos os efeitos, essa atuação é ilícita e não pode deixar de ser rejeitada pela ordem jurídica.
Importa, no entanto, aprofundar a questão de saber quando é que essa responsabilização ocorre e particularmente de que requisitos está dependente quando se frustram as negociações no período pré contratual.
Para que o efeito, é habitual alinharem-se os seguintes pressupostos:
“a) Que existam efetivas negociações e que elas tenham permitido ao contraente em relação ao qual ao qual se realiza a sua interrupção formar uma razoável base de confiança;
b) Que a ruptura das negociações seja ilegítima”[3].
Só preenchidos estes pressupostos se pode concluir que a contraparte daquele contraente não atuou, objetivamente, de boa fé.
No caso em análise, está fora de questão que houve negociações. A A. apresentou uma proposta escrita para a celebração de um contrato de arrendamento de um terreno de que os RR. são comproprietários e estes, na sua esmagadora maioria, depois de diversas vicissitudes, não aceitaram nem essa nem outra proposta que depois lhes veio a ser apresentada, com redução do prazo de vigência do dito contrato.
Portanto, pode concluir-se com segurança que se frustraram as negociações estabelecidas entre as partes, com vista à celebração daquele contrato.
O que está em causa, porém, é se, por um lado, a atitude dos Apelantes gerou na A. um grau de confiança que merece a tutela do direito e, por outro, se, nesse quadro, a rutura contratual já aflorada se deve ter por ilegítima.
Ora, para que a confiança gerada no percurso negocial seja fundada e possa ser juridicamente protegida, não basta que uma das partes tenha subjetivamente confiado na outra. É necessário ainda que essa confiança se baseie em dados objetivos que a justifiquem; que ela tenha conduzido a parte que confiou a agir de maneira juridicamente relevante em relação à sua esfera de interesses; e, por fim, que esse investimento na confiança tenha sido ocasionado por outrem[4].
Está fora de questão que, na situação presente, a A. confiou na autorização que lhe foi dada para a realização de obras na quinta pelo R., C…. E nessa sequência, aliás, encetou diversos trabalhos nessa mesma quinta, com vista à concretização do projeto que se propunha aí desenvolver.
O que permanece controvertido é saber se a A. tinha dados objetivos para assim atuar e, no fundo, confiar que o contrato de arrendamento rural que se propôs celebrar com os RR. se iria concretizar.
Ora, para aferir essa objetividade, nada melhor do que tentar perceber o que é que seria razoável esperar de um outro sujeito sensato e prudente colocado na mesma posição da A. e perante as mesmas condições reais, comuns a ambas as partes.
Com efeito, como já demos conta, “a confiança que pode fundamentar a responsabilidade pré-contratual pela rutura de negociações preparatórias deve ser razoável e objetivamente motivada[5]”. E essa confiança só existe em tais termos quando “nas condições reais e no quadro sócio-económico em que as partes se encontravam, fosse razoável supor que o comportamento negociatório geraria num sujeito sensato e prudente colocado na real situação da parte”[6] o mesmo estado de espirito[7].
Ora, como já adiantámos, não é essa a nossa perspetiva; ou seja, esse dito sujeito, se sensato e prudente, na posse dos dados objetivos que a A. à época já possuía, não podia, só com base na permissão do referido R., confiar que o contrato de arrendamento rural por si proposto a todos os RR. se iria concretizar e, menos ainda, de forma válida.
E, não podia ter essa confiança porque, por um lado, não há qualquer indicador no sentido de que aquele R., ao conferir a aludida permissão, agiu em representação dos demais[8], nem da parte destes últimos está provada qualquer manifestação de vontade de contratar antes das obras terem sido iniciadas.
Recorde-se, para melhor compreensão, que o terreno que a A. pretendia arrendar era detido em compropriedade por todos os RR. e a A. disso tinha conhecimento. Tanto assim que dirigiu uma proposta a cada um deles. É inegável, portanto, que tinha esse conhecimento.
Sucede que, em caso de compropriedade, o arrendamento só é válido se o mesmo for feito pelo consorte ou consortes administradores e todos os outros derem o seu assentimento (artigo 1024.º, n.º 2, do Código Civil).
Não podem, assim, restar quaisquer dúvidas de que a A. para ter a legitima expetativa de que o contrato por si proposto iria ser celebrado de forma válida, não podia só ter o assentimento do R.. Tinha de o ter também de todos os demais RR.. E isso, repetimos, não sucedeu.
É certo que esse assentimento podia ser dado posteriormente à celebração do contrato. Mas, à época em que a A. iniciou as obras, não havia qualquer indicador objetivo de que esse assentimento viesse a ser dado pelos demais RR.. Nem sequer pelo R., D…. Na verdade, o que está provado é apenas que o R., C…, falou com ele. Não que o mesmo tenha dado consentimento para o arrendamento e, menos ainda, nas condições inicialmente propostas pela A.
De modo, a confiança da A. não se pode ter por objetivamente fundada. E, não o sendo, também não se mostra ilegítima a rutura contratual, que, de resto, foi consumada por todos os RR., menos o referido C…, que continuou disposto a contratar, ainda que pelo prazo de dez anos. Aliás, já o estava antes, como, de resto, se provou[9].
Por conseguinte, não lhe pode ser imputada qualquer atuação de má fé. Nem ao seu irmão, D…, cujo assentimento, como vimos, também não está inequivocamente demonstrado.
Em resumo: a responsabilidade que lhes foi imputada na sentença recorrida carece de fundamento jurídico e, como tal, essa sentença não pode manter-se em vigor na ordem jurídica, devendo, por isso, ser revogada, na parte impugnada.
*
III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em conceder provimento presente recurso e, consequentemente, revoga-se a sentença recorrida, na parte em que condenou os RR., C… e D…, a pagar à A., B…, solidariamente, a quantia de 35.509,65€ (trinta e cinco mil, quinhentos e nove euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescidos de juros civis vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento e absolvem-se estes RR. do correspondente pedido.
*
- Em função deste resultado, as custas da ação, na parte ora impugnada, e deste recurso, serão pagas pela A. – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Porto, 13 de outubro de 2020
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
____________
[1] Inclusive, pela descrição que fizemos no antecedente relatório.
[2] Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, policop. Coimbra, 1983, pág. 108, citado por Eva Sónia Moreira da Silva, Da Responsabilidade Pré-Contratual por Violação dos Deveres de Informação, Almedina, pág. 39.
[3] Mário Júlio de Almeida Costa, em anotação ao Acórdão do STJ, de 05/02/1981, na RLJ, Ano 116, n.º 3710, pág. 151.
[4] Neste sentido parece inclinar-se Eva Sónia Moreira da Silva, ob cit., pág. 50, depois de fazer a análise de diversas posições doutrinais.
[5] Mário Júlio de Almeida Costa, loc. Cit., pág. 172.
[6] Ana Prata, Notas sobre Responsabilidade Pré-Contratual, Almedina, junho 2020, pág. 48.
[7] Ou dito por outras palavras, “[t]al confiança na conclusão do contrato deve ser alicerçada em dados concretos e inequívocos, analisados mediante critérios de consciência e senso comum ou prática corrente”- Ac. STJ de 06/12/2018, Processo n.º 3407/15.5T8BRG.G1.S2, consultável em www.dgsi.pt,.
[8] O que a A. também não alegou.
[9] Ponto 6 dos Factos Provados.