Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2359/19.7T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: SERVIDÃO DE ÁGUA
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
EXTINÇÃO DA SERVIDÃO
EXTINÇÃO POR DESNECESSIDADE
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RP202206272359/19.7T8STS.P1
Data do Acordão: 06/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Se o recorrente não dá cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º do CPCivil não indicando, em concreto, através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação, limitando-se a indicar os nomes das testemunhas e sem fazer qualquer análise crítica dos seus depoimentos, deve o recurso da impugnação da matéria de facto ser rejeitado.
II - É que, mesmo que o depoimento tenha de ser valorado na íntegra, o recorrente tem sempre que indicar com exactidão as passagens da gravação relativas a cada facto ou conjunto de factos com base nos quais sustenta alteração dos concretos pontos de facto impugnados.
III - A desnecessidade de uma servidão de passagem tem de ser aferida em função do prédio dominante, e não do respectivo proprietário.
IV - Em princípio, a desnecessidade será superveniente em relação à constituição da servidão, decorrendo de alterações ocorridas no prédio dominante.
V - Só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais.
VI - Incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova da desnecessidade (cfr. artigo 342.º, nº 2 do CCivil), sendo suficiente para esse efeito provar que a servidão deixou de proporcionar utilidade ao prédio dominante sem que lhe seja exigível demonstrar quais as vantagens que, em concreto, alcançará.
VII - Deve declarar-se a extinção da servidão de água e a conexa servidão de aqueduto se está provado nos autos que desde 2002 a habitação dos Réus dispõe de ligação à rede pública de abastecimento de água.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 2359/19.7T8STS.P1-Apelação
Origem-Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível de Santo Tirso-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
5ª Secção
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
Os Autores AA e BB, residentes na Travessa ..., ..., ..., intentaram a presente acção de processo comum contra CC e DD, residentes na Rua ..., ..., ..., peticionando:
a) declarar-se e reconhecer-se os autores como donos e legítimos possuidores do prédio melhor identificado no artigo 1º deste articulado;
b) declarar-se a extinção, por desnecessidade, das servidões de água e de aqueduto, constituídas por usucapião, que oneram esse prédio dos autores, nos termos descritos nos artigos 18º a 20º desta peça, em benefício do prédio dos réus referido no artigo 2º deste articulado;
Condenando-se os réus:
c) a também reconhecerem e a respeitarem o direito de propriedade mencionado na precedente alínea a) e, consequentemente, a absterem-se de usar a água do poço referido no artigo 18º deste articulado e a procederem, a expensas suas, no prazo de 15 dias a contar da data do trânsito em julgado da sentença, à retirada, do prédio dos autores, de todos os motores, engenhos, canos, tubos e demais materiais que no mesmo colocaram para efeitos de utilização da água daquele poço;
d) a não se oporem ao livre exercício do direito de propriedade dos autores sobre o dito prédio; e,
e) a absterem-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem ou colidam com o livre exercício do direito de propriedade dos autores.
Alegam, sumariamente, que:
(i) Os Autores e os Réu são proprietários de prédios confinantes, dois lotes que foram objeto de permuta entre os Autores e os pais da Ré, que doaram à mesma o lote n.º ...;
(ii) Sucede que, aquando da permuta e doação, a Ré solicitou aos Autores, que a deixassem utilizar, para abastecimento do seu prédio, a água potável de um poço existente no prédio dos autores, o que foi autorizado pelos mesmos;
(iii) Desde há alguns anos que o prédio dos Réus passou a poder ser abastecido diretamente, de forma autónoma e suficiente para as suas necessidades, pela rede pública de distribuição de água.
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Os Réus aduziram contestação, impugnando as alegações dos Autores, invocando, sinteticamente, que são comproprietários das águas e poço indicados na petição inicial.
Concluem, propugnando a improcedência da ação e, impetrando pedido reconvencional, solicitam que:
a) seja declarado o direito de compropriedade dos Réus sobre as águas, poço, canos e todos os elementos necessários à sua captação e condução descritos na petição inicial dos Autores;
b) e condenados os Autores a reconhecerem esse direito de compropriedade;
c) e a absterem-se da prática de quaisquer atos que atentem contra o referido direito dos Réus.
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Os Autores consignaram réplica, pugnando pela improcedência da reconvenção.
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Proferiu-se despacho saneador, bem como o despacho a enunciar o objecto do litígio e os temas da prova.
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Teve lugar a audiência de julgamento, com observância do formalismo processual.
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A, final, foi proferida decisão que julgando a ação parcialmente procedente:
a) Reconheceu que os Autores AA e BB titulam o direito de propriedade com referência ao prédio descrito nos itens 2) e 4) dos factos provados;
b) Condenou os Réus CC e DD a reconhecerem o direito de propriedade dos Autores e a absterem-se de praticar quaisquer atos que prejudiquem ou colidam com o livre exercício do mesmo, absolvendo-os do demais peticionado.
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Por seu turno julgou a reconvenção totalmente improcedente e, consequentemente, absolveu os Autores/reconvindos do peticionado.
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Não se conformando com o assim decidido, vieram os Autores interpor recurso, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:
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Devidamente notificados contra-alegaram os Réus concluindo pelo não provimento do recurso, e, recorrendo de forma subordinada, formularam as seguintes conclusões:
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. cfr. arts. 635.º, nº 3, e 639.º, nsº 1 e 2, do CPCivil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões a decidir no presente recurso:
Recurso independente
a)- saber se deviam, ou não, ter sido declaradas extintas por desnecessidade, as servidões de água e aqueduto.
Recurso subordinado
b)- saber se devia, ou não, ter sido julgada procedente a reconvenção e, por mor disso, ter-se declarado que Réus reconvintes adquiriram por usucapião, o direito de propriedade atinente à água do poço existente no prédio dos Recorrentes e do respetivo aqueduto.
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A)-FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria factual que o tribunal recorrido deu como provada:
1. Pela ap. ... de 1974/08/06, afigura-se registada a aquisição a favor de AA, casado com BB no regime de comunhão de adquiridos, e de EE, casado com FF no regime de comunhão geral, do prédio composto por terreno para construção e designado por lote n.º ..., sito em ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., por compra a GG e mulher HH.
2. Pela ap. ... de 1974/08/06, afigura-se registada a aquisição a favor de AA, casado com BB no regime de comunhão de adquiridos, e de EE, casado com FF no regime de comunhão geral, do prédio composto por terreno para construção e designado por lote n.º ..., sito em ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., por compra a GG e mulher HH.
3. Em 10 de julho de 1989, lavrou-se escritura pública no Cartório Notarial de Santo Tirso com a epígrafe “Permuta e Doação”, subscrita por AA e mulher BB, como primeiros outorgantes, EE, na qualidade de segundos outorgantes, e CC, como terceiro outorgante, consignando-se, designadamente, que:
“Pelos primeiros e segundos outorgantes foi dito:
Que entre si fazem a seguinte permuta:
Os primeiros dão aos segundos no valor de trezentos e oitenta e três mil escudos e ainda dez mil escudos em dinheiro metade indivisa de uma parcela de terreno destinada à construção urbana, com a área de trezentos e oitenta e três metros e vinte e cinco decímetros, sito no aludido ligar de ... (…) a destacar do prédio rústico descrito na Conservatória do Registo Predial deste concelho sob o número ..., omisso à matriz respetiva;
Que os segundos cedem aos primeiros, em troca, no valor de trezentos e noventa e três mil escudos, metade indivisa de uma parcela de terreno destinada à construção urbana, com a área de trezentos e noventa e três metros e doze decímetros, sito no aludido ligar de ... (…) que constitui a restante parte daquela descrição predial número quarenta e quatro mil duzentos e setenta e quatro, omisso à matriz respetiva;
Que os terrenos atrás mencionados constituem os lotes número um e dois, do loteamento a que respeita o alvará número vinte e seis (…)
Declaram os segundos outorgantes:
Que doam à terceira, sua filha, a parcela de terreno para construção urbana cuja metade foi adquirida por esta escritura (…)
A terceira outorgante declarou:
Que aceita a doação (…)”
4. Pela ap. ... de 2016/10/27, afigura-se registada a aquisição a favor de AA e BB de 1/2 do prédio composto por terreno para construção e designado por lote n.º ..., sito em ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., por permuta.
5. Há mais de 20, 30, 40 anos que os Autores e antecessores limpam o mato do prédio descrito em 2) e 4) à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, ininterruptamente e com a convicção de estarem a exercer um direito próprio correspondente ao direito de propriedade e de não lesarem ou violarem direitos de outrem.
6. No prédio indicado em 2) e 4) existe um poço de água.
7. Em 10 de julho de 1989, AA e mulher BB, como primeiros outorgantes, e CC, como segunda outorgante, subscreveram um escrito com a epígrafe “Contrato Promessa de Servidão” no âmbito do qual os primeiros outorgantes declararam reservar à segunda outorgante o direito perpétuo de utilização da água do poço, “nele podendo colocar um motor um engenho semelhante, para benefício exclusivo do seu prédio confinante (…) Poderá ainda a segunda outorgante encanar subterraneamente ou a descoberto as águas do poço para o seu prédio (prédio dominante)”.
8. No circunstancialismo mencionado em 7), a Ré declarou solicitar aos Autores que, desde a antedita data, a deixassem utilizar, para abastecimento do seu prédio, a água potável do poço, sendo que os Autores declararam autorizar que ela colocasse, no interior do sobredito poço, um motor destinado a bombear a água e encanasse, subterraneamente ou a descoberto, as águas do poço para o prédio enunciado em 1).
9. Após, a Ré colocou um motor no predito poço e encanou a água em direção ao prédio indicado em 1).
10. Posteriormente, os Réus edificaram uma habitação no prédio descrito em 1), o qual se afigura atualmente inscrito na matriz da freguesia ... sob o artigo ....
11. Desde o enunciado em 7) a 9), a Ré tem utilizado a água do poço para abastecimento do prédio, designadamente, para cozinhar, tomar banho, lavar a roupa e a louça, regar o quintal, lavar veículos automóveis, e usando o antedito encanamento da mesma à vista de toda a agente, com a convicção de exercer um direito de servidão.
12. Desde dezembro de 2002 que a habitação dos Réus dispõe de ligação à rede pública de abastecimento de água.
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Factos não provados
Não se provou que:
13. Os Réus têm utilizado a água do sobredito poço e o encanamento da mesma com a convicção de serem comproprietários do poço, da água e do encanamento.
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III- O DIREITO
Não obstante os Réus tenham recorrido de forma subordinada será esse o primeiro recurso a ser apreciado.
Com efeito, a procedência deste recurso irá tornar inútil o conhecimento do recurso independente, pois que, se o pedido reconvencional for procedente (aquisição por usucapião do direito de propriedade atinente à água do poço existente no prédio dos Recorrentes e do respetivo aqueduto), já não haverá que tratar da questão da extinção das servidões de água e aqueduto por desnecessidade.
Ora, a questão que no recurso subordinado vem colocada prende-se com:
b)- saber se devia, ou não, ter sido julgada procedente a reconvenção e, por mor disso, ter-se declarado que Réus reconvintes adquiriram por usucapião, o direito de propriedade atinente à água do poço existente no prédio dos Recorrentes e do respetivo aqueduto.
Nas alegações recursivas os Réus/reconvintes sustentam, por forma a estribar o pedido reconvencional que deduziram, que o ponto 11. da fundamentação factual devia ser alterado.
Acontece que, salvo o devido respeito, os recorrentes aduzem esta pretensão de forma confusa e, sobretudo, sem darem, cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º do CPCivil.
Apreciando.
Nos termos do artigo 662.º, nº 1 do CPCivil a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:
[…]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Por sua vez o artigo 640.º do mesmo diploma legal estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. […]”
Sendo este o arquétipo legal que preside à impugnação da matéria de facto, importa, então, antes de mais, verificar se estão reunidos os pressupostos de ordem formal para proceder à sua reapreciação.
A consagração do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, inicialmente prevista no DL 39/95 de 25/02, constituiu uma nova garantia das partes no regime de processo civil e de acordo com o regime proposto pelo legislador, implicou a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objeto do recurso e à respectiva fundamentação.
Como se escreveu no preâmbulo do DL 39/95 de 25/02 o duplo grau de jurisdição: “[…] nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
A lei não consente, por isso, como se afirma no preâmbulo do citado diploma, que “o recorrente se limit[e] a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido”.
O especial ónus de alegação, a cargo do recorrente, relativo à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação, “ […] decorre, aliás, dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, assegurando, em última análise, a seriedade do próprio recurso intentado e obviando a que o alargamento dos poderes cognitivos das relações (resultante da nova redacção do artigo 712º CPC )-e a consequente ampliação das possibilidades de impugnação das decisões proferidas em 1” instância-possa ser utilizado para fins puramente dilatórios, visando apenas o protelamento do trânsito em julgado de uma decisão inquestionavelmente correta. Daí que se estabeleça”, continua o mesmo preâmbulo, “no artigo 690.°-A, que o recorrente deve, sob pena de rejeição do recurso, além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzam os meios de prova que, no seu entendimento, impunham diversa decisão sobre a matéria de facto. Tal ónus acrescido do recorrente justifica, por outro lado, o possível alargamento do prazo para elaboração e apresentação das alegações, consentido pelo n° 6 do artigo 705º.º“.
A respeito do regime previsto escreveu Lopes do Rego que: “[a] consagração desta nova garantia das partes no processo civil implica naturalmente a criação de um específico ónus de alegação do recorrente, no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à respectiva fundamentação“.[1]
O ónus imposto ao recorrente que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto traduz-se, no ensinamento do mesmo Autor:
“- na necessidade de circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente qual a parcela ou segmento–o ponto ou pontos da matéria de facto– da decisão proferida que considera viciada por erro de julgamento;
- no ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discorda do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios ( constantes de auto ou documento incorporado no processo ou de registo ou gravação nele realizada ) que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente;
-finalmente–e por força do estatuído no nº 2–quando os meios probatórios incorrectamente valorados, na óptica do recorrente, pelo tribunal apenas constem de registo ou gravação (não estando, portanto, ainda materialmente “ incorporados “ nos autos), incumbe ainda ao recorrente o ónus de proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda o invocado erro na apreciação das provas”.[2]
Abrantes Geraldes ponderando as alterações introduzidas pelo DL 183/2000 de 10/08 e na Lei de Autorização Legislativa nº 6/07 de 02/02, sintetiza o sistema que passou a vigorar sempre que o recurso envolva impugnação da decisão sobre a matéria de facto, da seguinte forma:
“- o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, aos quais deve aludir na motivação do recurso e sintetizar nas conclusões;
- quando o recorrente funde a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
- relativamente aos pontos da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova, há que distinguir duas situações:
- se a gravação foi efectuada por meio (equipamento) que não permite a identificação precisa e separada dos depoimentos recai sobre a parte o ónus de transcrição dos depoimentos, ao menos na parte relativa aos segmentos que, em seu entender, influam na decisão;
- se a gravação foi efectuada por meio (equipamento) que permite a identificação precisa e separada dos depoimentos, o funcionário que monitoriza a gravação e que está presente na audiência deve assinalar “na ata o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento, de forma a ser possível uma identificação precisa e separada dos mesmos ”, como o determina o art. 155.º, nº 1 ”.[3]
Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o âmbito do ónus de alegação em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, dando nota do sentido interpretativo exposto pronunciaram-se, entre outros, nos seguintes arestos: Ac. STJ de 06/11/2006, 24.01.2007, 06.02.2008, 19.03.2009[4], de 23.11.2011.[5]
As alterações introduzidas no Código de Processo Civil, com a Lei 41/2013 de 26/06, mantêm no essencial o regime de reapreciação da decisão da matéria de facto, sendo por isso, válidas as referências expostas em sede de doutrina e jurisprudência.
O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova[6].
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar-delimitar o objecto do recurso-, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação-fundamentação-que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
Tal ónus impede que se requeira a impugnação genérica da matéria de facto controvertida e bem assim, a reapreciação de toda a prova.
Decorre da letra da lei que não se impõe que o recorrente proceda à transcrição dos excertos dos depoimentos que considere relevantes (o que é meramente facultativo) e muito menos que transcreva integralmente os depoimentos; o que se exige é que, independentemente de qualquer transcrição, identifique as concretas razões que justificam a alteração da matéria de facto, e os correspondentes meios de prova e, no que concerne às declarações prestadas em depoimento de parte e à prova testemunhal, que identifique com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, de modo a permitir ao tribunal de recurso, perante a audição da gravação efectuada, a localização dessas concretas passagens que o recorrente considera relevantes.
No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e os apelantes indicaram o ponto de facto impugnado.
Porém, não estão reunidos os pressupostos de ordem formal para admitir a reapreciação da decisão da matéria de facto.
Desde logo, porque não se divisa que elementos probatórios convocam os recorrentes para a pretendida alteração do citado ponto factual.
Condescendendo, todavia, que para o efeito, fazem apelo aos depoimentos dos seus dois filhos, não indicam contudo, nem sequer transcrevem [embora esta transcrição não seja obrigatória como supra se referiu-nº 2 al. a) do artigo 640.º atrás transcrito e que não supre a omissão das especificações concernentes à gravação, conclusão expressa naquele preceito] as passagens da gravação relativamente aos citados depoimentos que poderiam fundamentar a propugnada alteração factual.
É que, mesmo que o depoimento tenha de ser valorado na íntegra, o recorrente tem sempre que indicar com exactidão as passagens da gravação relativas a cada facto ou conjunto de factos com base nos quais sustenta alteração dos concretos pontos de facto impugnados.
Para além disso, a lei impõe ao recorrente que indique o porquê da discordância, isto é, em que é que tais depoimentos contrariam a conclusão factual do Tribunal recorrido, por outras palavras, importa apontar a divergência concreta entre o decido e o que consta do depoimento ou parte dele.
É exactamente esse o sentido da expressão legal “quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação... que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida” (destaque e sublinhado nossos).
Repare-se na letra da lei: “Imponham decisão (não basta que sugiram) diversa da recorrida”!
Com efeito, trata-se da imposição de um ónus perfeitamente lógico e necessário, em primeiro lugar, porque ninguém está em melhor posição do que o Recorrente para indicar os concretos pontos da sua discordância relativamente ao apuramento da matéria de facto, indicando os concretos meios de prova constantes do registo sonoro que, em seu entendimento, fundamentam tal discordância e qual a concreta divergência detectada.
Em segundo lugar, para permitir que a parte contrária conheça os argumentos concretos e devidamente delimitados do impugnante, para os poder contrariar cabalmente, assim se garantindo o devido cumprimento do princípio do contraditório.
Na verdade, ainda que os recorrentes pretendessem que fossem valorados na íntegra os depoimentos das indicadas testemunhas ainda assim não estavam dispensados de fazer a sua análise crítica. Ora, esta pressupõe que se construa um raciocínio lógico e fundamentado que leve a extrair uma conclusão baseada naqueles, ou seja, o que se exige é que se analisem esses meios de prova, cotejando-os mesmo com a prova em sentido contrário, relativizando o sentido dessa prova e dizendo porquê, mas também relativizando as provas que convoca para sustentar o seu ponto de vista e de tudo isso extraindo o sentido que lhe merecer acolhimento.
O que se pretende que a parte faça?
Certamente que apresente um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, dizendo onde se encontram no processo e, tratando-se de depoimentos, identifique a passagem ou passagens pertinentes, e, em segundo lugar, produza uma análise crítica dessas provas, pelo menos elementar.
A razão pela qual se afirma que a parte deve produzir uma análise crítica mínima é esta: indicar apenas os meios probatórios, isto é, o depoimento da testemunha A ou B, ou o documento C ou D, é reproduzir apenas o que consta do processo, pelo que nada se acrescenta ao que já existe nos autos, nem se mostra a razão por que a resposta a uma dada matéria de facto deve ser diversa da que foi dada pelo juiz.
Para desencadear a reapreciação pelo Tribunal da Relação, a parte tem de colocar uma questão a este tribunal.
Ora, só coloca uma questão se elaborar uma argumentação que se oponha à argumentação produzida pelo juiz em 1.ª instância, colocando então o tribunal de recurso perante uma questão a resolver.
Não basta pois identificar meios de prova.
A parte terá de elaborar e expor uma análise crítica da prova formalmente análoga à realizada pelo juiz e concluir no sentido que pretende.
Não é, pois, suficiente dizer, como o fazem os recorrentes, que o “animus (…) resulta dos depoimentos dos filhos, dos quais resulta que a utilização da água era feita por estes com uma intenção de propriedade sobre a mesma”.
Repare-se, aliás, que, ao contrário do que parecem entender os recorrentes, o tribunal recorrido não valorou os citados depoimentos na vertente por eles pretendida, pois que os apelidou de generalizantes, isto é, sem deduzirem, especificamente, fundamentos para a asserção de que “a água do poço é usada como nossa”, “é dos dois”.
Acresce que, também o legislador no seguimento da orientação dos anteriores diplomas, que estatuíam sobre esta matéria, continua a não prever o prévio aperfeiçoamento das conclusões de recurso, quando o apelante não respeita o ónus que a lei impõe.
Desta forma, o efeito de rejeição não é precedido de despacho de aperfeiçoamento, o que se explica pelo facto da possibilidade de impugnação da decisão de facto resultar de uma alteração reclamada no domínio do processo civil e estar em causa a impugnação de decisão de matéria de facto que resultou de um julgamento em relação ao qual o tribunal “ad quem” não teve intervenção e por isso, só a parte interessada estará em condições de poder impugnar essa decisão.
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Consequentemente, em obediência ao preceituado no artigo 640.º, nº 1 al- b) e nº 2 al. a) do CPCivil, impõe-se rejeitar o recurso, no que à matéria de facto respeita.
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Como assim, permanecendo inalterada a matéria de facto e, concretamente, o citado ponto 11. torna-se evidente que o recurso subordinado interposto pelos Réus tem de soçobrar, já que o pedido reconvencional por eles formulado-que seja declarado o seu direito de compropriedade sobre as águas, poço, canos e todos os elementos necessários à sua captação e condução descritos na petição inicial dos Autores-não tem qualquer respaldo na fundamentação factual, estando provado quer o corpus quer o animus do correspondente direito de servidão (cfr. ponto 11. da fundamentação factual) e não do direito de propriedade.
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Improcedem, assim, as conclusões 11ª a 13ª formuladas pelos Réus e, com elas, o recurso subordinado por eles interposto.
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Recurso independente
Como acima se referiu é apenas uma a questão que vem colocada no recurso indenpedente:
a)- saber se deviam, ou não, ter sido declaradas extintas por desnecessidade, as servidões de água e aqueduto.
Improcedente o recurso subordinado, não se regista qualquer dissenso quanto à existência de um direito de servidão de água e aqueduto, constituída por usucapião, que beneficia o prédio dos Réus e incide sobre o prédio dos Autores.
Efectivamente, o escrito particular, que não obstante intitulado de “Contrato Promessa de Servidão” o que verdadeiramente albergava era um verdadeiro “contrato definitivo”[7], não pode valer como contrato constitutivo das mencionada servidões, pela razão simples que à data (1989) o referido contrato tinha de ser celebrado por escritura pública por incidir sobre bens imóveis [cfr. artigo 89.º al. a) do Código Notariado-D.Lei nº 47 619 de 31-03-1967], sendo pois, nulo por vício de forma (cfr. artigo 220.º do CCivil), nulidade essa que sempre é de conhecimento oficiso (cfr. artigo 286.º do CCivil)
Tratando-se de um direito sobre coisa alheia (ius in re aliena), correspondendo a uma limitação do direito de propriedade do prédio serviente, naturalmente se compreende que esse direito real (menor) de gozo se extinga logo que se verifique qualquer uma das causas tipicamente contempladas no artigo 1569.º do CCivil.
No caso concreto, interessa-nos particularmente a desnecessidade da servidão, sendo que a razão para essa causa específica de extinção resulta do facto de a manutenção desse direito desvalorizar o prédio serviente, sem beneficiar o prédio dominante.
De facto, a compressão do direito de propriedade (cujo conteúdo tendencialmente ilimitado se mostra consagrado, como princípio geral, no artigo 1305.º do CCivil) só poderá, por via de regra, julgar-se legítima até onde o ónus ou encargo imposto sobre a coisa se revele necessário para assegurar ao terceiro uma fruição normal do seu próprio direito; o que não acontecerá se tal sacrifício se revelar exorbitante ou anómalo, tendo em conta as circunstâncias objetivas de um dado momento, sendo certo que essa compressão, sem que daí resultem vantagens efetivas para terceiros, violará, nessas circunstâncias, aquilo a que a doutrina vem denominando de função social dos direitos reais.[8]
Como assim, não se revela arredio um comando normativo como o que se mostra plasmado no nº 2 do citado artigo 1569.º, nos termos do qual “[a]s servidões constituídas por usucapião serão judicialmente declaradas extintas, a requerimento do proprietário do prédio serviente, desde que se mostrem desnecessárias ao prédio dominante”.
Como emerge do transcrito inciso, o encargo que a servidão constituída por usucapião[9] representa para o prédio serviente deve desaparecer logo que se torne desnecessário, isto é, quando o prédio dominante possa alcançar, sem a servidão, as mesmas utilidades que por meio dela conseguia, sendo que, relativamente às servidões, a sua desnecessidade não se identifica com a sua indispensabilidade, ou seja, uma servidão, para ser necessária, não tem de ser indispensável.
Compreende-se que assim seja, já que, em consonância com o respetivo regime legal (cfr. arts. 1544.º e 1545.º, nº 2, ambos do CCivil), a utilidade da servidão constitui o núcleo essencial deste direito real de gozo: este não existe (rectius, não se justifica) quando da limitação imposta ao prédio serviente não resulte qualquer benefício para o prédio dominante, sendo certo que a relação subjacente a esse direito é de natureza real (já que assente numa relação entre prédios) e não meramente obrigacional entre os dois proprietários.
Desse modo, para examinar da justeza e consistência da pretensão[10] de extinção de uma servidão por desnecessidade, torna-se imperioso optar por uma abordagem objetiva (isto é, a desnecessidade que se possa verificar para o próprio prédio dominante) e não por uma abordagem subjetiva, que nos conduziria a verificar se a servidão será desnecessária ao proprietário do prédio dominante.
Isso mesmo tem sido recorrentemente sublinhado quer pela doutrina quer pela jurisprudência que, praticamente de forma unânime, consideram que a desnecessidade tem de ser objetiva, típica e exclusiva da servidão.[11]
A desnecessidade corresponderá, por conseguinte, a uma falta de justificação objetiva para a manutenção de um encargo para o prédio serviente, atenta a inutilidade ou escassa utilidade que a existência da servidão representa para o prédio dominante, sendo que este juízo de proporcionalidade deve ser encontrado na ponderação das circunstâncias concretas de cada caso.
Ainda a propósito da densificação do aludido conceito indeterminado, vêm-se, contudo, registando posicionamentos divergentes no concernente à questão de saber se essa desnecessidade tem (ou não) de assentar necessariamente em factos ocorridos posteriormente à constituição da servidão.[12]
Apesar da argumentação que tem sido aventada pela tese negatória, afigura-se-nos que a desnecessidade, para legitimar a extinção da servidão, tem de resultar de uma alteração das circunstâncias verificadas em relação ao prédio dominante já após a constituição desse direito real menor.
Ou seja, a desnecessidade tem que ser superveniente em resultado da cessação das razões que justificaram a afetação de utilidades do prédio serviente ao prédio dominante, dado que, como bem sublinha Menezes Leitão[13], “se for originária, a constituição da servidão não atribuiria qualquer utilidade ao prédio dominante, pelo que a sua constituição violaria a tipicidade dos direitos reais (art. 1306.º), com a consequência da sua nulidade (art. 294.º). A desnecessidade, para produzir a extinção da servidão, tem que resultar de uma alteração das circunstâncias verificada em relação ao prédio dominante após a constituição da servidão”, alteração essa que, para ser juridicamente operante, pressupõe que o imóvel ficou (subsequentemente) servido de água de tal modo que tudo volte a passar-se como se aquela servidão nunca tivesse sido necessária.
Por outro lado, a determinação da utilidade ou desnecessidade da servidão deve igualmente ser objeto de um juízo de actualidade, no sentido que há de ser apreciada pelo tribunal atendendo à situação que se verifica na data em que a ação é proposta.
Trata-se de uma imposição que resulta expressamente do texto legal, ao exigir que a servidão se mostre desnecessária na altura em que a mesma é invocada, e não que sejam realizadas alterações que determinem essa situação de desnecessidade, sob pena de se entender que tais alterações são uma consequência da declaração de extinção, aspeto este que tem sido particularmente enfatizado na casuística[14], ao vincar que após a constituição da servidão de passagem por usucapião não interessa saber se, mediante a realização de determinadas obras, o proprietário do prédio encravado podia assegurar o acesso imposto pela normal utilização do prédio.
Como assim, para a procedência de uma pretensão como a que foi aduzida nestes autos pelos Autores apelantes, tornar-se-á necessário a demonstração de um facto concreto, objetivo, superveniente e atual do qual resulte que a servidão que onera o seu prédio (serviente) deixou de ter justificação por o prédio dos réus se ter tornado autónomo em termos de abastecimento de água, sendo certo que, à luz do critério estabelecido no artigo 342.º do Cód. Civil (que enuncia o pensamento fundamental da teoria das normas), impenderia sobre aqueles o ónus de alegar e provar factualidade concreta, da qual resultasse que as ajuizadas servidões de água e aqueduto perderam, em relação ao prédio dominante, a utilidade que esteve na base da sua constituição.
O tribunal recorrido face ao quadro factual que considerou assente e que, neste recurso, não sofreu qualquer alteração, considerou que a mesma não revela, suficientemente, a invocada desnecessidade.
Deste entendimento dissentem os Autores recorrentes, ancorados fundamentalmente na circunstância de que, desde Dezembro de 2002, que a habitação dos Réus dispõe de ligação à rede pública de abastecimento de água (cfr. ponto 12. da resenha dos factos provados).
Quid iuris?
Como acima se referiu, a apreciação da utilidade ou desnecessidade da servidão deve ser objeto de um juízo de atualidade, pressupondo a ponderação da superveniência de factos que, por si e objetivamente, tenham determinado uma mudança juridicamente relevante no prédio dominante, por forma a concluir-se que a servidão deixou de revestir-se para ele de qualquer utilidade.
Ora, dúvidas não existem de que, objectivamente, a referida mudança no prédio dominante se verifica.
Vem provado nos autos que desde Dezembro de 2002 que a habitação dos Réus dispõe de ligação à rede pública de abastecimento de água (cfr. ponto 12. da fundamentação factual).
Esta circunstância superveniente de a habitação dos Réus dispor de possibilidade de ligação à rede pública de abastecimento de água torna, sem margem para qualquer tergiversação, desnecessária a captação da água do poço dos apelantes e consequente instalação de um motor no predito poço e respectivamento encanamento da água em direção ao seu prédio.
Portanto, as servidões perderam utilidade para o prédio dominante, configurando-se, assim, uma situação de desnecessidade da servidão.
Na decisão recorrida concluiu-se que a ligação da habitação dos Réus à rede pública de abastecimento de água é insuficiente para configurar os pressupostos da desnecessidade da servidão.
Trata-se de uma simples afirmação sem qualquer fundamentação e que não tem eco no quadro factual que dos autos se mostra assente.
Obtemperam os Réus apelados que os apelantes nem sequer invocaram algum eventual ganho para o seu prédio resultante dessa extinção e que, pelo contrário, foram alegados e dados como provados os vários inconvenientes e custos que representa a extinção da servidão.
Mas, salvo o devido respeito, do elenco dos factos provados, e só esse é que conta, nada vem provado sobre os citados inconveniente e custos.
Por outro lado, salvaguardadas evidentemente hipóteses de abuso de direito ou semelhantes, bastará ao proprietário do prédio serviente provar que a servidão deixou de proporcionar utilidade ao prédio dominante para que consiga obter a sua extinção, sem que lhe seja exigível demonstrar quais as vantagens que, em concreto, alcançará.
É que, na situação concreta dos autos, ao contrário do que acontece noutras situações e, particularmente, nas servidões de pesagem, o ónus da prova a cargo dos apelantes ficou satisfeito ao ter-se dado como provado o citado ponto 12. do elenco dos factos provados, ou seja, que desde Dezembro de 2002 a habitação dos Réus dispõe de ligação à rede pública de abastecimento de água.
Na verdade, a utilidade que advirá da ligação à rede pública de abastecimento de água, é a mesma que ora se verifica com a captação da água do poço dos apelantes, quiçá em melhores condições de salubridade e menores custos, trata-se no fundo de um facto que, só por si e objectivamente, alberga o conceito de desnecessidade plasmado na lei.
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Na decisão recorrida, secundada pelas alegações recursivas dos Réus apelados, sustenta-se ainda que o conteúdo do contrato promessa indicado (cfr. ponto 7. dos factos provados) induziu um investimento de confiança, pelo que a invocação da predita desnecessidade prefigura um venire contra factum proprium, em convergência com o consignado no artigo 334.º do CCivil.
Salvo o devido respeito, não se pode sufragar semelhante asserção.
Primeiro porque, como acima se referiu, tal contrato é nulo e, portanto, não produziu qualquer efeito jurídico tendo, aliás, ficado provado que as respectivas servidões de águas e aqueduto foram constituídas por usucapião e não por negócio jurídico ou acto voluntário das partes.
Mas ainda que assim não fosse, à vontade aí vertida da perpetuidade da utilização da água do poço esteve subjacente, como não pode deixar de ser, a circunstância de que nunca seria possível a ligação à rede pública de abastecimento de água.
Todavia, verificando-se essa circunstância e, por conseguinte, a desnecessidade das citadas servidões, não vemos que o pedido formulado pelos apelantes represente o exercício abusivo desse direito nos termos estatuídos no mencionado artigo 334.º do CCivil.
É que o exercício de um direito só poderá ser ilegítimo quando houver manifesto abuso, ou seja, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante.
Ora, dos factos assentes não dimana, minimamente, o preenchimento deste instituto, o qual, como válvula de escape do sistema jurídico para obviar a iniquidades e gritantes injustiças, apenas pode ser chamado e aplicado em casos e sob circunstancias excecionais.
Não integra tal cariz o caso sub júdice, no qual, e perante o acervo factual provado, somente se pode concluir que, afinal, os Autores apelantes apenas estão a querer exercer um direito necessário a uma cabal e adequada fruição das utilidades do seu prédio na sua função sócio-económica sem que tal represente um excessivo e intolerável atropelo aos direitos dos Réus.
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Destarte, procedem todas as conclusões recursivas formuladas pelos Autores apelantes e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogando a decisão recorrida:
b) declara-se a extinção, por desnecessidade, das servidões de água e de aqueduto, constituídas por usucapião, que oneram o prédio dos Autores em benefício do prédio dos Réus;
b) condenam-se os Réus a absterem-se de usar a água do poço referido no ponto 6. da resenha dos factos provados e a procederem, a expensas suas, no prazo de 15 dias a contar da data do trânsito do presente acórdão, à retirada, do prédio dos Autores, de todos os motores, engenhos, canos, tubos e demais materiais que no mesmo colocaram para efeitos de utilização da água daquele poço.
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Custas quer do recurso independente quer do recurso subordinado pelos Réus (artigo 527.º, nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 27 de Junho de 2022.
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] In Comentários ao Código de Processo Civil Coimbra, Almedina, 1999, pag. 465.
[2] Obra citada pág. 465-466.
[3] In Recursos em Processo Civil–Novo Regime, 2ª Edição Revista e Actualizada, Coimbra, Almedina, 2008, pag. 141-142.
[4] In www.dgsi.pt
[5] In CJ STJ XIX, III, 126.
[6] Abrantes Geraldes, obra citada pag. 126.
[7] Os dizeres nele vertidos não correspondem a facti species do artigo 410.º do CCivil.
[8] Por todos, Menezes Leitão, in Direitos Reais, 5ª ed., págs. 167 e seguintes, onde enfatiza que a derrogação do princípio geral da propriedade plena só deve ser permitida quando os interesses sociais assim o exijam.
[9] Importa salientar que, por força do disposto no nº 3 do art. 1569.º, o mesmo regime é aplicável “às servidões legais, qualquer que tenha sido o título da sua constituição (…)”.
[10] Pretensão essa que, de acordo com o desenho legal, corresponde ao exercício de um direito potestativo extintivo que terá de ser judicialmente acionado.
[11] 4] Cfr., Menezes Leitão ob. citada, pág. 375 e Oliveira Ascenção, Direito Civil–Reais, 5ª ed., pág. 511 e seguinte e, por todos, acórdãos do STJ de 11.12.2012 (processo nº 3303/07.0TBBCL.G1.S1) e de 1.03.2007 (processo nº 07A091) e acórdão da Relação de Coimbra de 13.05.2014 (processo nº 4045/11.6TJCBR.C1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[12] Em sentido afirmativo se pronunciam, na doutrina, v.g. Alberto Vieira, Direitos Reais, 2008, pág. 852, Oiliveira Ascenção, ob. citada, pág. 511, Menezes Leitão, ob. citada, pág. 375 e Carvalho Fernandes, Direitos Reais, 2ª ed., pág. 438; na jurisprudência, entre outros, acórdão do STJ de 16.03.2011 (processo nº 263/1999.PA.S1), acessível em www.dgsi.pt e acórdãos da Relação de Coimbra de 13.06.95 (CJ, ano XX, tomo 3º, pág. 41) e de 16.04.2002 (CJ, ano XXVII, tomo 2º, pág. 23). Já em sentido negativo militam, na doutrina, Carlos Mota Pinto, Direitos Reais, 1975, pág. 343 e seguinte, e na jurisprudência, entre outros, os acórdãos desta Relação de 21.11.2005 (processo nº 0455736) e de 29.09.2011 (processo nº 1116/08.0TBPNF.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[13] Ob. citada, pág. 375; em análogo sentido, Oliveira Ascensão, ob. citada, pág. 511 e seguinte, Alberto Vieira, ob. citada, pág. 852 e Carvalho Fernandes, ob. citada, pág. 457 e 470.
[14] Cfr., acórdãos do STJ de 2.06.2005 (processo nº 05B4254) e de 1.03.2007 (processo nº 07A091) e acórdãos da Relação de Coimbra de 5.02.2013 (processo nº 23/08.1TBPNL.C1) e de 13.11.2012 (processo nº 472/10.5TBTND.C1), acessíveis em www.dgsi.pt.