Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
197/17.0PFMTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: SUCESSÃO DE LEIS PENAIS
LEI NOVA
PRISÃO POR DIAS LIVRES
SUBSTITUIÇÃO DE PENA DE PRISÃO
PRISÃO DOMICILIÁRIA
RECURSO
Nº do Documento: RP20180124197/17.0PFMTS.P1
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º3/2018, FLS.3-6)
Área Temática: .
Sumário: I - Face à sucessão de leis, emergente da Lei nº 94/2017, deixaram de existir condições legais para a aplicação da pena de prisão por dias livres e substituição da pena de prisão suspensa na sua execução.
II - Face à estrutura acusatória do processo, aos princípios do contraditório e da proibição da reformatio in pejus e ao disposto n o artº 12º da Lei 94/2017 não é processualmente admissível a aplicação, em recurso, de outra pena de substituição da prisão, nomeadamente a prisão domiciliária.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso 197/17.0PFMTS – J2
Origem: Comarca do Porto- Juízo Local Criminal de Matosinhos- Juiz 2

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:
I – RELATÓRIO
Para julgamento em processo sumário, o Ministério Público acusou o arguido B…, nascido a 10/12/1966, da prática de factos suscetíveis de integrarem a autoria material de um crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º, n.º 1, e 69º, do Código Penal.
A final da audiência de julgamento, o Tribunal de 1ª instância proferiu sentença em que decidiu condenar o arguido, como autor do crime que lhe era imputado, na pena principal de 9 meses de prisão – cuja execução suspendeu pelo período de 1 ano – e na pena acessória de proibição de condução de qualquer veículo motorizado pelo período de 24 meses.
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Discordando da suspensão da pena de prisão determinada em tal sentença, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, cuja motivação sintetizou nas seguintes conclusões:
«1 - O arguido B… foi condenado, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelas disposições combinadas dos artigos 69º e 292º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 12 (doze) meses;
2 – Não é já possível formular um juízo de prognose favorável à não delinquência por parte do arguido – suspendendo a execução da pena de prisão – já que o mesmo, à data da prática dos factos dos autos, tinha já sido condenado por cinco vezes pela prática do ilícito em causa nos autos e outra pela prática do crime de violação de proibições, tendo já sido sujeito a penas de prisão que foram substituídas por multa e outras suspensas na sua execução, nos termos do preceituado no artigo 50º do Código Penal;
3 – Considerando a inserção laboral, social e familiar do arguido, é admissível que a prisão não seja cumprida em regime contínuo, devendo a mesma ser cumprida em períodos de dias livres, tal como preceitua o artigo 45.º do Código Penal;
4 – Pelo que o tribunal violou, por erro de interpretação, o preceituado nos artigos 40.º, 45.º e 50.º, todos do Código Penal.»
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O arguido não apresentou resposta.
Já nesta 2ª instância, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que manifestou o entendimento de que o recurso deverá proceder.
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Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Tendo como ponto de partida a matéria dada como provada na sentença impugnada e as conclusões do recurso, a principal questão a decidir é a de saber se as necessidades de prevenção geral e especial não são já adequada e suficientemente satisfeitas pela pena de substituição de suspensão de execução da prisão, mas apenas por essa outra pena de substituição de prisão por dias livres.
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A matéria de facto fixada pela 1ª instância
«Discutida a causa, provou-se que:
a) No dia 27 de abril de 2017, pelas 2h 21m, o arguido conduziu o veículo ligeiro de passageiros de matrícula .. - .. - FX pela Rua …, em Matosinhos.
b) Na ocasião acima referida era portador de uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,748 g/l.
c) O arguido sabia que conduzia veículo por via de circulação terrestre, afeta ao trânsito público, tendo ingerido bebidas alcoólicas, e querendo fazê-lo.
d) Atuou sempre de forma livre, deliberada e consciente, conhecendo o carácter ilícito e proibido da sua conduta.
e) Na ocasião referida em a) e b) o arguido tinha estado numa confraternização com amigo e ingerira bebidas alcoólicas, tendo depois pretendido levar o carro até casa.
f) O arguido é casado, mas está separado de facto e vive com os seus pais.
g) Tem duas filhas de 17 e 21 anos, estudantes.
h) Tem uma empresa de jardinagem, com dois empregados, e aufere mensalmente 750€.
i) Confessou os factos e declarou-se arrependido.
j) É acompanhado no CAT de Matosinhos, em tratamento à problemática aditiva (álcool) e pretende continuar a tratar-se, não obstante a recaída evidenciada pelo que consta em b).
k) O arguido já foi condenado anteriormente por crimes de: condução em estado de embriaguez, cometido em 20.02.2010, em pena de multa e pena acessória de proibição de condução por 4 meses; condução em estado de embriaguez, cometido em 01.09.2009, em pena de multa e pena acessória de proibição de condução por 5 meses; condução em estado de embriaguez, cometido em 08.01.2012, em pena de prisão substituída por multa e pena acessória de proibição de condução por 10 meses; condução em estado de embriaguez, cometido em 30.08.2012, em pena de prisão suspensa na execução e pena acessória de proibição de condução por 16 meses; violação de proibições, cometido em 30.08.2012, em pena de prisão suspensa na execução; condução em estado de embriaguez, cometido em 25.02.2015, em pena de prisão suspensa na execução e pena acessória de proibição de condução por 17 meses
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A pretendida mudança da pena de substituição
Não pondo em causa a medida da pena-base de prisão, o recorrente vem divergir do Tribunal recorrido onde este entendeu como suficiente e adequado substituir aquela pena-base pela de suspensão da sua execução. Isto é, basilarmente, sustenta que, por terem já sido anteriormente aplicadas ao arguido várias penas por crimes idênticos, sendo as últimas de suspensão de execução da prisão – e já não ser, por isso, possível formular um juízo de prognose favorável à não delinquência por parte do mesmo – se impõe agora a aplicação de uma pena de substituição mais efetiva e gravosa, que será a de prisão por dias livres.
Pois bem.
Importa começar por salientar que, embora a concreta pretensão formulada pelo recorrente tivesse ainda cabimento formal/legal na data em que foi interposto o recurso, é incontornável que, no momento em que o processo foi concluso ao ora relator para o exame preliminar a que se refere o artigo 417º do Código de Processo Penal (13/12/2017), o que especificamente se requereu já não dispunha de condições de poder obter provimento.
Na verdade, encurtando razões, com a entrada em vigor das alterações introduzidas no Código Penal pela Lei nº 94/2017, de 23/8 [2] – ocorrida em 22/11/2017 – a pena de substituição de prisão por dias livres deixou de fazer parte do elenco sancionatório estabelecido no Código Penal.
Face a esta realidade inelutável – de resto, já claramente previsível no momento em que foi interposto o recurso – a questão diretamente colocada pelo recorrente transmuda-se na de saber se a 2ª instância está agora ‘autorizada’ a conferir efetividade à pena de prisão originária ou a ‘trocá-la’ por qualquer uma das outras penas de substituição que restaram após a alteração legislativa.
Cremos não ser suscetível de gerar qualquer dúvida a nossa concreta opção pelo liminar afastamento (que assumimos) da possibilidade de transformação (reversão) da pena de substituição aplicada em pena de prisão efetiva: tal só seria possível num ordenamento jurídico-penal de estrutura estrenuamente inquisitória, que não é – até por direta imposição constitucional (nº 5 do artigo 32º da CRP) – o nosso. Na verdade, o próprio recorrente, apesar de entender como já insuficiente a pena de substituição aplicada pela 1ª instância, nunca chega a colocar a hipótese de uma reversão pura e simples à efetividade do cumprimento, total e contínuo, da pena de prisão-base. Por isso mesmo, nem o próprio arguido teria tido a oportunidade de exercer contraditório quanto a esta possibilidade.
A questão que permanece é, assim, a de saber se o intercorrente desaparecimento da pena de prisão por dias livres – cuja aplicação é requerida pelo recorrente – do elenco das penas de substituição autoriza o tribunal ad quem a trocá-la por outra pena de substitutiva que julgue mais adequada, como, por exemplo, pela pena de permanência em habitação.
Dir-se-ia que esta possibilidade de uma nova substituição seria sugerida pela própria Lei 94/2017, quando, no seu artigo 12º, como “disposição transitória”, estabelece:
«1 - O condenado em prisão por dias livres ou em regime de semidetenção, por sentença transitada em julgado, pode requerer ao tribunal a reabertura da audiência para que:
a) A prisão pelo tempo que faltar seja substituída por pena não privativa da liberdade, sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição; ou
b) A prisão passe a ser cumprida, pelo tempo que faltar, no regime de permanência na habitação introduzido pela presente lei. (…)»
No entanto, verifica-se, pela simples leitura de tal disposição transitória, que a mesma apenas contempla os casos em que, por sentença transitada em julgado, tenham sido aplicadas as penas de substituição agora eliminadas do elenco punitivo – incluindo, naturalmente, a pena de prisão por dias livres.
Deste modo, a situação contemplada na norma transitória é exatamente a inversa da que se nos apresenta nos presentes autos, onde não foi aplicada a pena de substituição em causa, mas onde se pretende que a mesma seja aplicada, quando é manifesto que já não o pode ser.
Do preceito em causa apenas se pode extrair que terá sido intenção do legislador da lei nova que o “regime de permanência na habitação” será o substituto da “prisão por dias livres” ou do “regime de semidetenção”, nos casos em que o julgador já tenha por estes optado anteriormente.
Afigura-se-nos, pois, injustificado sustentar [3] que, tendo o recorrente pretendido que se aplicasse uma determinada pena de substituição pretensamente mais adequada – que não deveria desconhecer que já não poderia ser decretada (e muito menos cumprida) em tempo útil – o tribunal de recurso pudesse, arbitrariamente, subentender que o impugnante quereria (“atualisticamente”) ainda que se aplicasse a única pena de substituição em sentido impróprio que sobreviveu no novo regime.
Aliás, nem serviria de esteio relevante a esta hipotética solução a consideração de que, para efeitos de sucessão de leis no tempo, existisse uma qualquer ordenação das penas criminais de substituição em função de uma ordem decrescente de gravidade, como a doutrinalmente ensaiada por Paulo Pinto de Albuquerque no seu Comentário do Código Penal (…), 2ª edição, UCE, nota 16 ao artigo 2º, página 59. Na verdade, a jurisprudência tem sido unívoca no sentido da rejeição de uma hierarquização legal das penas de substituição [4].
Por outro lado, a ausência de pedido expresso do recorrente no sentido da aplicação ao arguido do cumprimento da pena de prisão originária em regime de permanência na habitação sempre implicaria – também aqui – o incumprimento do princípio do contraditório (cfr. nº 6 do artigo 32º da CRP), pois o arguido não teve a possibilidade de, esclarecidamente, se lhe opor.
Acresce que, caso se entendesse que o cumprimento contínuo da pena – ainda que em regime de permanência na habitação – se traduzia no agravamento da posição do arguido (pois a prisão por dias livres representa um cumprimento fracionado e minorado da prisão), antepor-se-ia uma outra questão. Na verdade, como salienta Damião da Cunha [5] “(…) existe, em qualquer tomada de posição do MP, um efeito de vinculação institucional (e um efeito, perante o arguido, de proibição de ‘reformatio in pejus’) (…)”.
Finalmente, não tendo o arguido prestado o seu consentimento, nunca seria possível a aplicação desta pena acessória, por falta de um dos seus requisitos formais – cfr. atual nº 1 do artigo 43º do Código Penal (à semelhança, aliás, do nº 1 do artigo 44º do Código Penal, na redação vigente à data dos factos).
Deste modo, em conclusão:
- face à (de resto, prenunciada) sucessão de leis no tempo, deixaram de existir condições legais – uma formal impossibilidade superveniente, ainda que de segura previsibilidade por parte do recorrente – para a procedência da pretensão formulada pelo recorrente (de troca da pena de substituição de suspensão de execução da prisão, pela pena de prisão por dias livres);
- por carência de pedido nesse sentido e porque a tal se opõem a estrutura acusatória do processo e os princípios do contraditório e da proibição da reformatio in pejus, não é processualmente admissível a aplicação de outra pena de substituição da prisão, designadamente, da prisão domiciliária.
Assim, o recurso do Ministério Público tem que improceder.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando a sentença recorrida.
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Sem custas (isenção pessoal do recorrente).
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Porto, 24 de janeiro de 2018
Vítor Morgado
Alexandra Pelayo
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[1] Tal decorre, desde logo, do disposto no nº 1do artigo 412º dos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Que, no seu artigo 2º, remodelou de forma importante, nomeadamente, os artigos 43.º a 46.º do Código Penal e, particularmente, o artigo 45º do mesmo diploma, eliminando a sua anterior epígrafe, bem como todo o precedente conteúdo do mesmo.
[3] O que, em boa verdade, ninguém fez, pelo menos expressamente.
[4] Assim, por exemplo, os acórdãos da Relação do Porto de 07-04-2016, recurso 557/04.7GAPRD.P1, relatado por José Carreto, e de 10/11/2010, recurso nº 171/10.8GHVNG.P1, relatado por Maria Dolores Silva e Sousa, ambos acedidos em www.dgsi.pt.
[5] In “O caso julgado parcial, questão da culpabilidade e questão da sanção num processo de estrutura acusatória,” Porto, 2002, Publicações Universidade Católica, página 667.