Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
260/14.0PFVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DEOLINDA DIONÍSIO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULO MOTORIZADO
INJUNÇÃO
PENA ACESSÓRIA
DESCONTO
Nº do Documento: RP20160504260/14.OPFVNG.P1
Data do Acordão: 05/04/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 677, FLS.50-58)
Área Temática: .
Sumário: I - Não existe preceito legal que permita o desconto na inibição de conduzir veículos motorizados em que o arguido foi condenado, do tempo em que esteve proibido de conduzir na sequência do cumprimento da injunção imposta como condição da suspensão provisória do processo pelo mesmo facto.
II – O termo prestações, constante do artº 282º4 CPP, deve ser interpretado em sentido amplo, abrangendo todos os deveres legalmente impostos na suspensão provisória do processo.
III – A proibição de conduzir, como injunção da suspensão provisória do processo e como pena acessória, não são duas realidades funcionalmente comparáveis, sendo que no 1º caso a sua infração ao contrário do 2º, não incorre na prática do crime do artº 353º CP, mas apenas no prosseguimento do processo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: RECURSO PENAL n.º 260/14.0PFVNG.P1
Secção Criminal

Relatora: Maria Deolinda Dionísio
Adjunto: Jorge Langweg

Origem: Comarca do Porto
Vila Nova de Gaia - Instância Local - Secção Criminal-J3
Processo Comum Singular n.º 260/14.0PFVNG

Arguido
B…
Recorrente
Ministério Público

Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I – RELATÓRIO
1. Na sequência de detenção por condução sob efeito do álcool com TAS superior a 1,20g/l, o arguido aceitou a suspensão provisória do processo supra referenciado, então ainda a correr termos pelos Serviços do Ministério Público de Vila Nova de Gaia, 1ª Secção, mediante a obrigação de frequentar o programa Taxa Zero, de prestar 50 horas de serviço de trabalho de interesse público em instituição a indicar pela DGRSP e de não conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses e 15 dias, com a entrega da carta de condução nos autos, no prazo de 10 (dez) dias, após notificação para o efeito.
2. Obtida a concordância do Juiz de Instrução Criminal respectivo, o Ministério Público determinou a suspensão provisória do processo, pelo período de 6 meses, mediante as injunções já referenciadas, por despacho proferido a 18/9/2014.
3. Após incidentes vários, relacionados com a falta de entrega da carta de condução por parte do arguido, a pretexto do seu pretenso extravio, o Ministério Público acabou por aceitar a junção de documento de substituição - apenas concretizada a 20/3/2015 e na sequência de notificação para comprovar ter solicitado a 2ª via do documento ao IMTT – determinando, nessa mesma data, que os autos aguardassem o decurso do prazo de suspensão, sendo certo que essa obrigação de não conduzir e respectivo período nunca foram comunicados a quem quer que fosse (autoridades policiais, ANSR, IMTT) para efeitos de fiscalização, pese embora a previsão do n.º 5, do art. 281º, do Cód. Proc. Penal.
4. Todavia, os autos vieram a prosseguir, com dedução de acusação, a 26/5/2015, por virtude do arguido não ter cumprido as horas de trabalho fixadas a título de injunção.
5. Realizado o julgamento, foi o arguido B… condenado, pela prática de 1 (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelos arts. 292º n.º 1 e 69º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, em 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis) euros e em 6 (seis) meses de proibição de conduzir, determinando-se que nesta fossem descontados os 2 (dois) meses e 18 (dezoito) dias respeitantes à injunção de proibição de conduzir veículos com motor cumprida no âmbito da suspensão provisória do processo.
6. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso finalizando a motivação com as seguintes conclusões: (transcrição)
“1 - A injunção e a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor têm natureza absolutamente diversa, não podendo a primeira ser convertida na segunda;
2 - O instituto da suspensão provisória do processo é um instituto de consenso em que o arguido, caso incumpra, apenas tem como consequência, a sujeição da sua conduta à apreciação judicial após dedução de uma acusação;
3 - A pena acessória de proibição de conduzir, como pena que é, caso seja incumprida tem como consequência o cometimento de novo crime por parte do agente - o que já não acontece, de todo, em caso de incumprimento de injunção aplicada cm sede de suspensão provisória do processo;
4 - Quando o arguido incumpre os termos da suspensão provisória do processo, a mesma é revogada, o processo prossegue e, nos termos do preceituado no n.º 4 do art. 282.º do Código de Processo Penal as prestações não podem ser repetidas;
5 - Este conceito de "prestação" é um conceito abrangente que não inclui apenas as prestações de natureza pecuniária mas abrange também outras de proibição de exercer determinadas actividades (como é o caso da proibição de condução) ou mesmo relativamente ao tempo de serviço público efectivamente cumprido;
6 - Não se entender deste modo significa colocar em causa as finalidades de toda e qualquer punição. Vejamos a hipótese de um arguido a quem, concluído o inquérito, em que se investigava a prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292º, n.º l e 69º, n.º l, alínea a), ambos do Código Penal, são propostas, e por este aceites, as regras de conduta de prestar 80 horas de serviço de interesse público e, bem assim, o compromisso de não conduzir veículos a motor pelo período de 4 meses, com a entrega da sua carta de condução nos autos. Obtida a concordância do Sr. J.I.C., o processo fica suspenso provisoriamente. O arguido, pese embora o compromisso que assumiu, decide continuar a conduzir. Em determinado dia, estando ainda a decorrer o prazo em que se comprometera não conduzir, é surpreendido pelas autoridades policiais, que lavram a informação respectiva e a remetem ao processo que se encontra suspenso provisoriamente.
7 - Muito provavelmente, a suspensão provisória é revogada e o processo prossegue os seus termos. Pergunta-se: que prejuízo teve com isso o arguido? Se for descontado o período a que se comprometeu não conduzir na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, até ao dia em que foi surpreendido pelas autoridades policiais, nenhum! Pelo contrário, se tal período respeitasse ao cumprimento de uma pena acessória, o arguido cometeria um crime de violação de proibições, imposições ou interdições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal. O máximo que lhe pode acontecer, defendido que seja este entendimento, é que o período até àquele dia seja descontado! Ou seja, nenhum inconveniente lhe advém do facto de incumprir o compromisso a que se vinculou...
Pelo que se mostra ilegal o desconto na pena de proibição de condução do tempo de abstenção de conduzir que o arguido cumpriu no âmbito da suspensão provisória do processo;
8 - Refere-se na sentença que "não obsta ao desconto a mencionada natureza diversa da injunção e da pena, posto que também são diferentes a natureza e a razão de ser das medidas de coacção privativas da liberdade e da pena de prisão e a lei expressamente determina que o cumprimento das primeiras seja descontado nestas [...], por haver substancial equivalência entre elas". Antes de mais, refira-se que, como é sabido, em Direito Penal é expressamente proibido o recurso à analogia, nos termos do disposto no artigo 1º, n.º 3, do Código Penal, em homenagem ao princípio da legalidade.
9 - Depois, e precisamente por terem natureza diversa, é que o legislador se viu obrigado a expressamente prever o desconto da detenção, prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação na pena de prisão a cumprir por parte do arguido. Caso contrário, isto é, se o não previsse, não poderia o julgador fazê-lo - ou, pelo menos, ficaria dependente da interpretação de cada julgador. Entender que esta previsão se aplica mutatis mutandis ao desconto a efectuar nas penas acessórias, em virtude do cumprimento de uma injunção aplicada em fase anterior do processo é olvidar precisamente a necessidade que o legislador teve de expressamente prever essa situação para que a mesma fosse aplicada.
10 - Significa isto, no nosso entendimento, que tendo o legislador previsto como única consequência processual, em caso de incumprimento das injunções aplicadas no âmbito de uma suspensão provisória do processo, o prosseguimento dos autos, não pode o julgador substituir-se a ele e efectuar um desconto que a lei não prevê em lado algum.
11 - Fazê-lo significa uma clara violação do disposto no artigo 282º, n.º 4, do CPP e, bem assim, do próprio e citado artigo 80º, n.º l, do Código Penal (assim como do artigo 69º, n.º l, alínea c), do mesmo Código), que refere muito claramente a que situações se refere - que, repete-se, se não existisse, não podia o julgador efectuar tal desconto.
12 - Ao não decidir do modo descrito, violou o Tribunal a quo as disposições legais previstas nos artigos 69º, n.º l, alínea c), 80º, n.º l, a contrario, ambos do Código Penal, 281º, n.ºs 1 e 3 e 282º, n.º 4, ambos do Código de Processo Penal.”
7. Admitido o recurso, por despacho proferido a fls. 155, não houve resposta.
8. Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no sentido do provimento do recurso, cujos fundamentos subscreveu.
9. Cumprido o disposto no art. 417º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, respondeu o arguido no sentido da manutenção do decidido e não provimento do recurso, por entender que a diferente natureza da injunção e da pena não obsta ao desconto efectuado.
10. Realizado exame preliminar e colhidos os vistos legais, seguiram os autos para conferência, que decorreu com observâncias das formalidades legais, nada obstando à decisão.
***
II – FUNDAMENTAÇÃO
1 - Consoante decorre do disposto no art. 412º n.º 1, do Código de Processo Penal, e é jurisprudência pacífica [cfr., entre outros, Acórdão do STJ de 24/3/1999, CJ-STJ, Ano VII, Tomo I, pág. 247 e segs. – especialmente fls. 248, último parágrafo], são as conclusões, extraídas pelo recorrente da sua motivação, que definem e delimitam o objecto do recurso.
Assim, in casu, a única questão suscitada é a da admissibilidade do desconto dos dias de injunção de obrigação de não condução na pena acessória de proibição de conduzir aplicada nos termos do art. 69º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal.
***
2 - A fundamentação da decisão recorrida, no que ao caso interessa, é a seguinte:
A - FACTOS PROVADOS (transcrição)
1. No dia 27 de Julho de 2014, pela 1h20m, na rua …, Vila Nova de Gaia, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros, marca Peugeot, modelo …, com a matrícula ..-..-IV, com uma taxa de álcool no sangue de 1,55g/l.
2. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a quantidade de bebidas alcoólicas por si ingeridas era idónea a determinar uma taxa de álcool no sangue, não permitida por lei, aos condutores de veículos em geral.
3. O arguido sabia que a sua conduta era prevista e punida por lei penal.
4. O arguido trabalha como técnico de som em part time e é gerente de uma empresa, auferindo mensalmente o salário mínimo nacional.
5. O arguido nunca antes foi condenado pela prática de qualquer infracção criminal.
*
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a causa.”
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B - DA PENA ACESSÓRIA (transcrição)
(…)
Mas pela prática do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo artigo 292º, nº 1 do Código Penal é ainda aplicável a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, por força do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal.
Após ponderação global de todas as circunstâncias, entende o Tribunal ser adequada a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 6 (seis) meses.
Do desconto na pena acessória aplicada do tempo durante o qual o arguido não conduziu no âmbito da suspensão provisória do processo
Por despacho proferido a fls. 27 foi determinada a suspensão provisória do processo pelo período de 6 meses, mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções: prestar 50 horas de trabalho de interesse público em instituição a ser designada pela DGRS; obrigação de frequentar o programa Taxa Zero; não conduzir veículos motorizados pelo período de 4 meses, devendo entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias após a notificação para o efeito.
O arguido cumpriu o programa Taxa Zero (cfr. fls. 68) e entregou a 2ª via da carta de condução nos autos a 20.03.2015 (cfr. fls. 62 a 64), não tendo, no entanto, cumprido as 50 horas de serviço de interesse público (cfr. fls. 68), motivo pelo qual o processo prosseguiu para julgamento (cfr. fls. 74).
Ora, sendo certo que o arguido não requereu a abertura da instrução, que não há qualquer base legal de equivalência da acção de formação supra aludida com a pena de multa e que não há qualquer registo de trabalho comunitário efectivamente prestado pelo arguido, a única questão que se suscita face às considerações expendidas pelo arguido na contestação é a de saber se a injunção de não conduzir veículos motorizados aplicada no âmbito da suspensão provisória do processo e já cumprida deve ou não ser descontada na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados que lhe foi aplicada supra.
Entendemos que sim.
Desde logo por razões de justiça material. Com efeito, a injunção e a pena aqui em causa decorrem da prática do mesmo crime e se é certo que é diferente a natureza jurídica da injunção da proibição de conduzir veículos com motor e da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor (não podendo, contudo, note-se, face ao que estatui o artigo 281º, nº 3 do C.P.P., dizer-se que a injunção é voluntariamente aceite, por contraposição à pena, que é imposta), certo é também que ambas impõem o mesmo comportamento ao arguido – a proibição de conduzir -, afectando os seus direitos de circulação rodoviária, pelo que ambas têm o mesmo conteúdo pragmático/funcional. Pelo que não fazer o desconto em causa levaria a sancionar duplamente a mesma conduta. E a verdade é que se de um ponto de vista formal inexiste violação do princípio ne bis in idem, de um ponto de vista material e substantivo o arguido teria de cumprir duas vezes uma imposição legal com o mesmíssimo conteúdo e contornos – volta a dizer-se, a proibição de conduzir veículos com motor -, o que teria afinal como consequência ser duas vezes punido pelo mesmo facto ilícito e nessa medida haver afinal substantivamente violação do referido princípio. É certo que o que a C.R.P. proíbe, no seu artigo 29º, nº 5, é que alguém seja julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime; mas tal proibição visa evitar também a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime.
Não obsta ao desconto a mencionada natureza diversa da injunção e da pena, posto que também são diferentes a natureza e a razão de ser das medidas de coacção privativas da liberdade e da pena de prisão e a lei expressamente determina que o cumprimento das primeiras seja descontado nestas (cfr. o artigo 80º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal), por haver substancial equivalência entre elas.
E igualmente não obsta ao desconto o preceituado no n.º 4 do artigo 282º do C.P.P. Com efeito, o conceito de “repetição” tem o sentido que lhe é dado no direito civil e por isso dela decorre que não será possível reaver o que foi satisfeito mas não já que prestações de facto (positivas ou negativas) já efectuadas tenham que ser efectuadas outra vez. O conceito de não repetição das prestações só pode, na verdade, ser entendido, como referindo-se às prestações que pela sua natureza possam ser repetidas, o que não acontece com o cumprimento da proibição de conduzir. Por outras palavras, este conceito aproxima-se do de “repetição do indevido” utilizado em sede do instituto do enriquecimento sem causa e como tal com um nítido cariz patrimonial, entendido como “o direito de reaver aquilo que foi satisfeito”.
Em conclusão, conquanto não haja previsão legal expressa nesse sentido, entendemos que deve descontar-se na pena acessória o período da injunção de conduzir que foi aplicado ao arguido e por ele cumprido no âmbito da suspensão provisória do processo.
O arguido entregou a 2ª via da carta de condução no processo a 20.03.2015. A 26.05.2015 foi deduzida acusação, da qual o arguido se considera notificado a 07.06.2015 (domingo). A partir de 08.06.2015, por conseguinte, poderia ter levantado o referido documento, pelo que o desconto a fazer será apenas até àquela data.
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3 - Apreciando de mérito
3.1) Dos vícios
Como decorre do exposto, o Digno Recorrente impugna somente o segmento decisório que julgou admissível descontar determinado período temporal, em resultado de injunção fixada no âmbito de precedente suspensão provisória do processo, à pena acessória de proibição de conduzir imposta ao arguido, nos termos do art. 69º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal, reputando tal solução de ilegal e violadora das finalidades da punição.
Todavia, como decorre dos excertos supra transcritos, a decisão recorrida patenteia que os elementos considerados para o efeito surgem, inopinadamente e ex novo, em sede de apreciação jurídica, sem qualquer esteio na matéria de facto apurada e descrita.
Ora, pressuposto prévio da apreciação de qualquer recurso é o da inexistência de patologias que inquinem de modo relevante a essência da decisão impugnada e que, sendo graves e patentes, fundamentam mesmo a possibilidade do seu conhecimento oficioso pelo tribunal ad quem.
Entre elas, figuram os vícios previstos no art. 410º n.º 2, do Cód. Proc. Penal, [que podem ser conhecidos e declarados oficiosamente pelo tribunal ad quem - mesmo que o recurso se limite a matéria de direito -, precisamente porque devem detectar-se, sem esforço de análise, no texto da decisão recorrida, por si ou em conjugação com as regras de experiência] determinantes de modificação da matéria de facto atendida na decisão do tribunal de 1ª instância, pelo tribunal de recurso ou, então, de reenvio do processo para novo julgamento, como decorre da previsão dos arts. 426º e 431º, do Cód. Proc. Penal, e são catalogados em três categorias:
a) Insuficiência para a decisão da matéria de facto;
b) Contradição insanável da fundamentação ou desta com a decisão; e
c) Erro notório na apreciação da prova.
E, o primeiro deles abrange situações em que existe lacuna no apuramento da matéria de facto essencial à decisão de direito ou seja “quando da factualidade vertida na decisão concernente, se colhe faltarem elementos que podendo e devendo ser indagados são necessários para se formar um juízo seguro de condenação ou absolvição”.[1]
É esse, precisamente, o caso.
Na verdade, parte essencial do thema decidendum abordado pelo julgador é enformado por factualidade que não foi devidamente enumerada e motivada na fundamentação de facto.
Porém, estando disponíveis nos autos todos elementos probatórios em que a decisão assenta, é desnecessário o reenvio para novo julgamento, podendo o vício ser suprido nesta sede, nos termos e ao abrigo do disposto nos arts. 410º n.º 2, 426º, n.º 1, a contrario, e 431º, al. a), do Cód. Proc. Penal, o que se concretiza pelo aditamento à matéria de facto provada – com base no documentado a fls. 27, 30, 32[2], 37, 62 (carimbo de entrada), 64, 70, 74 a 76 e 78 - do seguinte:
6 – Por despacho do Ministério Público, proferido no inquérito que sustenta estes autos e datado de 18/9/2014, foi determinada a suspensão provisória do processo, no âmbito da qual o arguido foi submetido, além do mais, a injunção de não condução de veículos motorizados pelo período de 4 meses e 15 dias, devendo entregar a sua carta de condução nos autos, no prazo de 10 dias, após notificação para o efeito;
7 – No prazo concedido, o arguido invocou não poder entregar a carta devido “ao furto ou perda” da mesma durante o período anterior à notificação, vindo a entregar nos autos, com a anuência do Ministério Público, guia de substituição[3] desse documento, no dia 20/3/2015;
8 – Por ter considerado incumprida outra das injunções fixada, o Ministério Público ordenou o prosseguimento dos autos e, no dia 26/5/2015, deduziu acusação, requerendo o julgamento do arguido, acto a este notificado, por via postal simples com prova de depósito, tendo a carta sido depositada no receptáculo postal respectivo, no dia 2/6/2015.
Suprida, então, que está a insuficiência fáctica detectada e não evolando do texto decisório quaisquer outras anomalias susceptíveis de integrar a densificação normativa dos vícios em causa, aí não sendo patentes outros hiatos factuais que devessem ter sido colmatados, contradições materiais insanáveis ou erros de lógica e inobservância do que aconselha o senso comum e normalidade do acontecer, resta considerar definitivamente assente a matéria de facto e apreciar a questão suscitada.
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3.2) Da admissibilidade do desconto de injunção na pena acessória
Como decorre do supra exposto existe dissensão entre o julgador e o Ministério Público relativamente à possibilidade de proceder ao desconto de injunção de conteúdo associado a obrigação de não conduzir e a pena acessória prevista no art. 69º, do Cód. Penal.
A questão também não é consensual na jurisprudência dos Tribunais Superiores dividindo-se entre os que afirmam a imperiosa necessidade de realizar tal desconto, essencialmente por razões de justiça material e observância do princípio ne bis in idem, e os que sufragam a impossibilidade de o fazer devido à diversa natureza e finalidades que presidem à aplicação da injunção e da pena acessória.
Vejamos, então.
A suspensão provisória do processo inserindo-se na chamada justiça de consenso constitui instrumento processual que visa a composição e pacificação social, correspondendo as injunções e regras de conduta a deveres e não a sanção de natureza criminal, pois que, de outro modo, a decisão do Ministério Público em sede de inquérito, ainda que sujeita a concordância judicial, poderia violar a reserva jurisdicional consagrada, entre outros, nos arts. 27º, n.º 2 e 202º, n.º 1, da Const. Rep. Portuguesa.
Consequentemente, a suspensão provisória do processo não tem a natureza de decisão condenatória nem a correspondente comprovação de culpa decorrente de imputação criminal, mas antes de um procedimento compromissório, em que o arguido, mediante a aceitação e cumprimento de determinadas injunções e regras de conduta, consegue travar a reacção penal e levar a que o Ministério Público, titular da acção penal, não requeira o julgamento e arquive o processo.
Assim, como decorre do disposto no art. 282º n.ºs 3 e 4, do Cód. Proc. Penal, cumpridas que sejam as injunções e regras de conduta e não incorrendo o arguido em crime de natureza idêntica pelo qual venha a ser condenado durante o período de suspensão, o processo é arquivado pelo Ministério Público e não pode ser reaberto, pelo que a suspensão provisória funciona, aqui, como outra modalidade de arquivamento e o referido cumprimento actua como causa de extinção do procedimento.
Visando a celeridade e economia processuais, bem como a rápida reposição da paz jurídica, em sede de pequena e média criminalidade, trata-se de medida sem tradição no arquétipo penal português que, talvez por isso mesmo, não é compreendida como meio de composição autónoma e pré-judicial, acabando por ser interpretada como uma espécie de penalização não convencional, alternativa mas equivalente às penas fixadas no âmbito de processo criminal, e, consequentemente, equiparada e apreciada à luz dos princípios que regem e a estas servem de esteio.
Daí que, a tese sustentada na decisão recorrida – seguindo, aliás, a jurisprudência vertida, entre outros, nos acórdãos deste TRP de 27/1/2016 e 16/12/2015, Procs. n.ºs 229/13.1PDPRT.P1 e 367/12.0GCVFR.P2; do TRL de 24/2/2016, Proc. n.º 34/15.0PTOER.L1-3; do TRC de 24/2/2016, Proc. n.º 129/12.2GTCBR.C1; do TRG de 22/9/2014, Proc. 7/13.8TBBRG.G1 e do TRE de 29/3/2016, Proc. n.º 361/12.9GTABF.E1, todos disponíveis in dgsi.pt. – faça apelo aos princípios da realização de justiça material e cabal observância do ne bis in idem.
Todavia, a invocação dos princípios não basta, tendo qualquer deles que encontrar, na aplicação prática ao caso concreto, alguma ressonância na lei, enquanto repositório do pulsar comunitário em dado momento, não tendo subsistência autónoma enquanto mero ideário do Estado de Direito, para justificar solução sem respaldo legal.
É que, “A interpretação literal é o primeiro estádio da interpretação. Efectivamente, o texto da lei forma o substrato de que deve partir e em que deve repousar o intérprete.”[4].
Ora, nesta sede, facilmente se constata que não só não existe preceito legal de sustentação da tese referida, como também, salvo o devido respeito por opinião contrária, o legislador consagrou mesmo solução diversa, ao estatuir no n.º 4, als. a) e b), do art. 282º, do Cód. Proc. Penal, que o “processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas” se o arguido incumprir as injunções e regras de conduta e/ou for condenado, durante o período de suspensão, por crime da mesma natureza.
Começando, por este último argumento, parece-nos, à semelhança do propugnado pelo Digno Recorrente, que o termo “prestações” está aqui inscrito em sentido amplo, querendo abranger a substância que os variados deveres legalmente previstos podem assumir, não sendo legítima a interpretação restritiva, assente em distinções civilísticas nem sempre levadas até às últimas consequências.
Depois, os únicos normativos que possibilitam e regulam o almejado desconto são os arts. 80º a 82º, do Cód. Penal, onde não se encontra rasto de referência, ainda que implícita, aos deveres resultantes de suspensão provisória do processo, sendo certo, aliás, que mesmo quanto à “detenção” prevista no primeiro deles, tem sido entendimento jurisprudencial que a mesma não engloba as detenções para comparência a acto processual, em resultado de prévia falta injustificada, precisamente porque esta assume carácter de sanção processual, adveniente de tal comportamento relapso do detido.
Neste conspecto, não se vislumbra qual seja a justiça material de premiar o agente que incumpriu os deveres impostos no âmbito da suspensão com o desconto na pena (principal[5] e/ou acessória) aplicada de alguma injunção que tenha chegado a concretizar quando, o seu pressuposto - aceite, sabido e conhecido do arguido - era obviar à submissão a julgamento e consequentes efeitos de eventual condenação [v.g. inscrição no registo criminal, ponderação na determinação da pena de crime cometido posteriormente, ou para cassação da carta de condução, nos termos do art. 101º, n.ºs 1 e 2, al. c), do Cód. Penal], estando aquele perfeitamente ciente que a violação culposa dos mesmos determinava o normal prosseguimento dos autos para apreciação e eventual sancionamento penal da conduta.
A tudo isto acrescendo a circunstância do arguido, in casu, ver descontado na pena acessória período temporal em que aceitou não conduzir e cuja violação não tem outras consequências que não seja o prosseguimento do processo, ao contrário do que acontece com a inobservância da proibição de conduzir imposta em sede de processo criminal que pressupõe, além do mais a instauração de procedimento pelo crime do art. 353º, do Cód. Penal, que comina pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
Deste modo, acompanhamos e subscrevemos, data venia, a fundamentação do Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, proferido no Processo n.º 471/13.5GBFLG.P1, de 13/4/2016, sendo Relator o aqui Adjunto, Ex.mo Desembargador Jorge Langweg, quando assinala que:
«A "repetição do indevido" – própria do direito civil, inserindo-se no quadro do enriquecimento sem causa[6] - não é aplicável às injunções cumpridas pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo, uma vez que a sua razão de ser não reside, diretamente, na prática do facto típico, ilícito, culposo e punível subjacente ao processo, mas resulta dum acordo jurídico-processual que visou a obtenção do benefício legal de não submissão do autor do facto a julgamento e possível aplicação de sanção penal[7]. A finalidade do cumprimento da injunção não se inseriu, assim, num contexto sancionatório: no caso em apreço, o arguido (…) aceitou não conduzir no período temporal acordado, apenas e tão-só, para não ser submetido a julgamento e sujeito a possível condenação penal. Tendo cessado tal suspensão provisória do processo, por culpa do arguido, este não terá direito a qualquer compensação pelo que prestou a fim de beneficiar da suspensão provisória do processo, uma vez que a razão de ser e finalidade dessa "prestação" (positiva ou negativa) se esgotou com o termo do benefício processual almejado, sendo independente, inclusivamente, de apreciações de direito penal substantivo.
Este entendimento está na base da ratio legis do artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal.
As injunções cumpridas no âmbito de suspensão de processo penal integram prestações (positivas ou negativas) que não são repetidas, ou seja, não há lugar a compensação pelo seu cumprimento, em caso de prosseguimento do processo, nos termos do disposto no artigo 282º, nº 4, do Código de Processo Penal.
O sinalagma subjacente ao cumprimento da injunção em causa nos autos tinha como correspondência a suspensão provisória do processo, que o arguido acabou por não poder beneficiar em toda a sua extensão, pelo seu incumprimento culposo, não podendo, por isso, obter qualquer benefício adicional, além da suspensão do processo que cessou com o prosseguimento do processo e subsequente julgamento.
Além do exposto, um arguido que esteja sujeito a injunção de não condução como condição de suspensão provisória do processo, caso a infrinja, não incorre na prática de um crime, contrariamente ao que sucede àquele que viole uma sanção acessória de inibição de condução, não sendo, por isso, as duas realidades funcionalmente comparáveis à luz do ordenamento jurídico, não permitindo, também por isso, o desconto realizado pela decisão recorrida.
Assim se percebe a opção do legislador ao não prever a possibilidade de desconto prevista na decisão recorrida, por ser descabida – mesmo num contexto de "justiça material" -.».
Do exposto, resulta já que acompanhamos a jurisprudência que entende ser inadmissível o desconto na pena acessória prevista no art. 69º, do Cód. Penal, dos dias em que o arguido se tenha abstido de conduzir no âmbito de suspensão provisória do processo[8], e de que são exemplo, além do Acórdão já supra referenciado, os Acórdãos deste TRP de 28/5/2014, Proc. n.º 427/11.2PDPRT.P1, e do TRL de 17/12/2014 e 6/3/2012, Procs. n.ºs 99/13.0GTCSC.L1-9 e 282/09.2SILSB.L1-5, respectivamente.
Assim sendo, resta concluir que assiste razão ao recorrente não podendo subsistir a decisão recorrida no segmento impugnado e tendo o arguido que cumprir a totalidade da pena acessória em que foi condenado.
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III – DISPOSITIVO
Termos em que, face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto conceder provimento ao recurso apresentado e revogar a decisão recorrida no segmento em que determinava o desconto na pena acessória de 6 (seis) meses de proibição de conduzir, de 2 (dois) meses e 18 (dezoito) dias respeitantes à injunção imposta em sede de suspensão provisória do processo.
Sem tributação – arts. 513º n.º 1, a contrario, e 522º, do Cód. Proc. Penal.
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[Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º n.º 2, do CPP]

Porto, 4 de Maio de 2016
Maria Deolinda Dionísio
Jorge Langweg
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[1] Ac. STJ de 8/5/97, BMJ, 467, pág.442.
[2] Segue-se a numeração original pese embora o manifesto lapso que evidencia passando de 32 para 37 (ou de 31 para 36, já que este último número está escrito de forma imperceptível, originando o erro).
[3] E não 2ª via da carta de condução como erroneamente referencia a decisão recorrida.
[4] Francesco Ferrara, in “Interpretação e Aplicação das Leis”, apud Manuel de Andrade, “Ensaio Sobre a Teoria da Interpretação das Leis”, 3ª Ed., Arménio Salvado-Editor, Sucessor, Coimbra, 1978, pág. 139.
[5] V., acórdão deste TRP de 22/4/2015, Proc. n.º 177/13.5PFPRT.P1, rel. Pedro Vaz Pato, que sufraga o desconto das horas de trabalho comunitário prestado a título de injunção na pena de multa em que o arguido veio, posteriormente, a ser condenado.
[6] Essa questão coloca-se pelo facto de alguém ter procedido ao cumprimento de uma obrigação que não existia no momento da prestação. O princípio geral do enriquecimento sem causa consta no artigo 473º do Código Civil, segundo o qual, por um lado, é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem (n.º 1). E, por outro, ter a obrigação de restituir por enriquecimento sem causa, de modo especial, por objeto aquilo que foi indevidamente recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito não verificado (n.º 2).
[7] «O surgimento de um modelo de diversão com intervenção - que segundo Faria Costa consiste em poder o processo ser arquivado, desde que o arguido cumpra determinadas injunções ou regras de conduta, previstas na lei num determinado prazo - no nosso ordenamento jurídico não pode deixar de representar uma ruptura com a tradição, constituindo uma nova forma mais ampla e rica, de conceber o sistema de reacção jurídica aos conflitos de natureza penal. Esta nova metodologia reactiva de que a Suspensão Provisória do Processo é claro exemplo, busca os seus fundamentos, essencialmente, no campo da politica criminal. Trata-se de um acordo quanto ao processo, diferentemente do que acontece na plea bargaining norte americana, onde o acordo incide sobre a sanção jurídico-penal a aplicar ao caso concreto. A Suspensão Provisória do Processo, opera no plano processual tanto no que diz respeito à Suspensão Provisória do Processo, propriamente dita, como no que diz respeito ao arquivamento que daí pode resultar (artigo 282º, numero 3 do CPP). A grande diferença entre a Suspensão Provisória do Processo e as “pleas” americanas, reside no facto de o nosso processo penal ter reforçado o princípio da presunção da inocência do arguido, dado que na Suspensão Provisória do Processo não há qualquer juízo de culpabilidade, tratando-se apenas de um benefício legal da não submissão do autor do facto à acção penal, por preencher os requisitos do artigo 281º do CPP. (…)
Assim, nem as injunções e regras de conduta são penas, nem a Suspensão Provisória do Processo é um despacho condenatório, ou assente num desígnio de censura ético-jurídica, através do qual o arguido aceite respeitar determinadas injunções e regras de conduta, e o Ministério Público se compromete a, caso elas sejam cumpridas, desistir da pretensão punitiva e arquivar o processo. A decisão de suspensão no âmbito do inquérito, é da responsabilidade do Ministério Público, condicionada à concordância do Juiz de Instrução Criminal (JIC), e no âmbito da Instrução, é da responsabilidade do Juiz de Instrução Criminal condicionada à concordância do Ministério Público (questão esta que se tratará no âmbito da aplicação da Suspensão Provisória do Processo na fase de Instrução).» (Isabel Maria Fernandes Branco, Considerações sobre a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, Dissertação de Mestrado, Fevereiro de 2013, Universidade Portucalense, publicado na rede digital global em http://verbojuridico.net/ficheiros/teses/penal/isabelbranco_suspensaoprovisoriaprocesso.pdf).
[8] Isto dando de barato que tal se verificou in casu, já que a injunção não foi comunicada às autoridades policiais/administrativas e o arguido não entregou a sua carta, apresentando documento de substituição em tempo e moldes que nos suscitam algumas dúvidas, reforçadas pela circunstância do mesmo nem sequer ter solicitado a devolução da guia de substituição, uma vez notificado do prosseguimento do processo, a 7/6/2015, vindo a ser-lhe devolvida apenas por determinação do Tribunal a quo, datada de 17/12/2015.