Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2915/17.8T9AVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
PERDA DE VANTAGENS DO CRIME
Nº do Documento: RP202305242915/17.8T9AVR.P1
Data do Acordão: 05/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELA ARGUIDA .
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - Estatui a alínea b) do n.º 1 do artigo 110.º do Código Penal que se consideram vantagens do facto ilícito típico «todas as coisas, direitos ou vantagens que constituem vantagem económica, direta ou indiretamente resultante deste facto, para o agente ou para terceiro»; tal significa que não é a circunstância de o agente destinar a outrem (neste caso, à sociedade de que era gerente, noutros casos poderá ser a outra pessoa a quem possa fazer uma doação) a vantagem que diretamente obteve da prática do crime que impede a declaração de perda a favor do Estado dessa vantagem. No caso em apreço, provou-se que os arguidos fizeram suas as quantias mencionadas, que depois utilizaram em benefício da sociedade de que eram gerentes (ponto 14 do elenco dos factos provados). Este facto cabe na previsão dessa alínea b) do n.º 1 desse artigo 110.º do Código Penal.
II – No que se refere ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, só existe vantagem que deva ser declarada perdida a favor do Estado quando o agente vê o seu património aumentado para além, e na medida do excesso de valor não entregue na Segurança Social e não abrangido pela condenação no pedido de indemnização civil.
III - Como no caso em apreço se verifica uma condenação no pedido de indemnização civil relativo às quantias não entregues à Segurança Social, não se justifica a declaração de perda de vantagens decorrentes da prática do crime relativas a essas mesmas quantias, com o que se verificaria uma dupla punição.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 2915/17.8T9AVR.P1


Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto


I – AA veio interpor recurso da douta sentença do Juiz 1 do Juízo Local Criminal de Aveiro do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que a condenou, pela prática, em coautoria, na forma consumada e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 105.º, n,º1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vi do artigo 107.º, nº1 e 2, ambos do R.G.I.T., na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €6,00; a pagar, solidariamente [com BB] a quantia de €37.641,24, a que acrescerão juros de mora às sucessivas taxas legais em vigor, contados desde a data de vencimento de cada contribuição omitida até efetivo e integral pagamento; a pagar a quantia de €17.357,50, a que acrescerão juros de mora às sucessivas taxas legais em vigor, contados desde a data de vencimento de cada contribuição omitida até efetivo e integral pagamento e decidiu declarar a perda do valor global de €54.998,79 a favor do Estado, condenando AA e BB a entregar essa mesma quantia aos cofres do Estado (com os limites fixados nos mesmos termos que se circunscreveram no âmbito do pedido de indemnização civil).

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1.º O presente recurso tem por objeto a impugnação da decisão do Juízo Local Criminal de Aveiro – Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro que condenou a arguida AA no pedido de indemnização civil, no montante de €54.998,79 e a entregar aos cofres do Estado a mesma quantia a título de declaração de perda do valor global.
2.º A recorrente foi condenada, em coautoria, na forma consumada e continuada, pela prática de um crime de abuso de confiança contra Segurança Social, p. e p. pelo artigo 105.º, nº1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vi do artigo 107.º, nº 1 e 2, ambos do RGIT, na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €6.00, o que perfaz o quantitativo global de €660,00.
3.º Foi também condenada a pagar, à demandante, solidariamente com BB, a título de indemnização civil, a quantia de €37.641,24, acrescida de juros de mora, até efetivo e integral pagamento e a pagar a quantia de €17.357,50, acrescida de juros de mora às sucessivas taxas legais em vigor, contados desde a data de vencimento de cada contribuição omitida até efetivo e integral pagamento, da qual aqui se recorre.
4.º Para além do mais, foi ainda condenada, solidariamente com BB, a entregar aos cofres do Estado a quantia de €54.998,79 a título de declaração de perda do valor global, a favor do Estado, com os limites fixados nos mesmos termos que se circunscreveram no âmbito do pedido de indemnização civil, da qual também se recorre.
5.º Do enquadramento factual e jurídico-penal, em relação à recorrente, quer no que diz respeito à sua atuação, para efeitos de apuramento de responsabilidade civil quer às circunstâncias em que os factos e respetiva situação económica e patrimonial para efeitos de declaração de perda a favor do Estado, conclui-se, passe o pleonasmo, que as referidas condenações se mostram mais conclusivas do que assertivas.
6.º Têm em comum uma tripla condenação que, in limine, ao invés de evitar uma vantagem indevida de que o crime não compensa, configurando um exaurimento do crime de abuso de confiança, visa desapossar a arguida, em mais do dobro do que alegadamente se apossou em singelo.
7.º Na parte que se recorre, relativamente aos dois institutos, traduzem-se numa dupla penalização para a arguida, ambas enfermando de vícios na sua fundamentação, de facto e de direito.
8.º No que respeita ao apuramento dos requisitos da responsabilidade civil, é convicção da recorrente que o requisito da culpa, no “desígnio apropriativo” não resultou provado, nem consta dos factos provados.
9.º Na conjugação da culpa imputada à recorrente, a título do dolo direto, ou outro elemento subjetivo, tendo como padrão a diligência de um bom pai de família, não resulta que a conduta da recorrente, da forma indiciária e concludente como foi apresentada, constituísse o nexo de causalidade adequada para efeitos de imputação da responsabilidade civil.
10.º Ao invés do decidido não se mostram reunidos os pressupostos legais relativos à perda de vantagem a favor do Estado, tratando-se de uma dupla penalização, de índole repressiva e não ressocializante que coloca a arguida, já vinda de uma situação económica precária, numa penúria económica mais gravosa.
11.º Tão-só o regime jurídico da perda de vantagens não justifica que sejam declaradas perdidas a favor do Estado vantagens das quais, efetivamente, a arguida não beneficiou, como não justifica a declaração de perda de vantagem, meramente intimidatórias e sem utilidade prática que contrariam as finalidades da prevenção geral e especial.
12.º A recorrente agiu em representação da sociedade, sem qualquer dolo ou intenção malévola, num circunstancialismo de crise generalizada, sem obter qualquer incremento patrimonial.
13.º Não houve vantagem ilícita para a recorrente, porque dela nunca beneficiou nem teve intenção de beneficiar, considerando-se injustamente condenada a pagar em dobro um incremento patrimonial, meramente repressivo, que nunca existiu.
14.º Não foram compulsados na decisão elementos suficientes que configurem e fundamentem que a vantagem patrimonial objeto do presente recurso se consolidou como efetivo benefício para a arguida, nem foram ponderando, para o efeito, custos, perdas e vantagens (em concreto, sem ambiguidades ou juízos prévios) a ponto de justificar aquela condenação no pagamento a favor do Estado.
15.º O teor da sentença recorrida não apresenta a fundamentação legal, intuito personae, designadamente vantagens para a arguida, índole preventiva, perigosidade, necessidade incriminatória que legitime aquelas condenações, tanto no PIC, nos termos do artigo 483.º e seguintes do CC, como no pagamento ao Estado, ao abrigo do artigo 110.º, n.º 1, alínea b) do CP.
16.º Não se verificam os pressupostos, para atribuição da Responsabilidade Civil à recorrente, dado a inexistência do facto voluntário, seja por ação ou omissão e da culpa atribuída objetivamente à arguida, porquanto essa vontade humana e a eventual culpa que lhe está inerente não se verificou, in casu, nem dos autos se infere.
17.º A condenação da arguida descriminada a dois períodos diferentes (entre 01-11-2008 e 30-06-2012 e entre 01-02-2010 e 30-06-2014), com grau de participação e autoria diferente, deverá ser tratada autonomamente e não na forma continuada, devendo em relação àquele período (01-11-2008 e 30-06-2012) ser considerada procedente a exceção perentória da prescrição, sob pena de ser violado o princípio da equidade processual e da igualdade, em relação aos restantes arguidos.
18.º A decisão de declaração de perda do valor global de €54.998,79 a favor do Estado, para além de violar à norma do artigo 9.º, n.º 2 do CC, na interpretação dada às disposições do artigo 110.º do CP, enferma de nulidade, em relação ao quantum da condenação de entregar essa mesma quantia (€54.998,79) aos cofres do Estado “(com os limites fixados nos mesmos termos que se circunscreveram no âmbito do pedido de indemnização civil).”, porquanto o quantum do pedido civil ascende a €72.690,85 (setenta e dois mil, seiscentos e noventa euros e oitenta e cinco cêntimos).
19.º A sentença emanada pelo Tribunal a quo, na sua fundamentação de facto e de direito quanto às diversas condenações, revela-se contraproducente, desvalorizando elementos objetivos e subjetivos, evidenciados nos autos que não foram tidos em conta, para efeitos quer da imputação da responsabilidade civil, quer do apuramento da vantagem patrimonial, quer relativos às necessidades preventivas e incriminatórias, tendo violado o princípio da legalidade, nos termos dos artigos 1.º do CP, 2.º do CPP e artigos 29.º e 30.º n.º 5 da CRP, devendo ser revogada a decisão recorrida.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a essa motivação, pugnado pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo não provimento do recurso.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir:

II – As questões que importa decidir são. de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se a arguida e recorrente não deverá ser condenada a pagar qualquer indemnização relativa ao pedido formulado, por não se terem provado os pressupostos de responsabilidade civil em que assenta tal pedido, designadamente a existência de facto voluntário, de culpa e de intenção de apropriação das quantias respetivas (quanto a esta último aspeto, porque terá agido em benefício da sociedade de que era gerente);
- saber se devem ser consideradas prescritas as obrigações de pagamento a que está sujeita a arguida e recorrente e relativas ao período compreendido entre 1/11/2008 e 30/6/2012, por estas deverem ser consideradas autonomamente, e não integradas numa continuação criminosa com as do período posterior:
- saber se a arguida e recorrente não deverá ser condenada a pagar a quantia declarada perdida a favor do Estado na sentença recorrida, por dela não ter beneficiado (antes a sociedade de que era gerente), e por tal representar uma dupla punição, tendo em conta a sua simultânea condenação no pedido de indemnização civil.

III - Da douta sentença recorrida consta o seguinte:

«(…)»

III. Fundamentação
A. De Facto
Factos provados
Produzida a prova e discutida a causa, com relevo para a decisão de mérito a proferir, resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade “Construções A..., Lda.” constituiu-se a 31-05-2002, sob a forma de sociedade comercial por quotas e com o NIPC ..., tendo sido matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Aveiro.
2. Por sentença proferida em 08-04-2015 no processo n.º1297/14.4T8AVR, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Comércio de Aveiro - Juiz 2, transitada em julgado em 29-04-2015, foi declarada a insolvência daquela sociedade tendo, em 03-07-2017, sido proferida, naquele processo, decisão de encerramento do mesmo.
3. Por decisão proferida em 07-06-2018, transitada em julgado em 17-06-2018, no respectivo procedimento administrativo de liquidação, foi declarado o encerramento da liquidação daquela sociedade e, em 20-08-2018, foi inscrito e averbado o cancelamento da matrícula desta sociedade no seu registo comercial.
4. Desde a data da sua constituição e até 07-02-2012 a dita sociedade teve sede social na Rua ..., Lugar..., em ..., e a partir desta data e até ao sobredito dia 20-08-2018, encontrou-se sediada na Rua ..., Lugar ..., na freguesia ..., no concelho de Aveiro.
5. A referida sociedade exerceu, desde 31-05-2002 e até 20-08-2018, a actividade de construção civil e obras públicas, compra, venda e permuta de bens imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim, comercialização de materiais de construção, aluguer de máquinas e equipamentos para construção com e sem operador.
6. No período compreendido entre 01-11-2008 e 30-06-2012, exerceram efectivamente a gerência desta sociedade, AA e BB, sendo que a partir de 01-07-2012 e 30-06-2014, apenas AA exerceu tal gerência.
7. Para o exercício da sua actividade, a sociedade em causa tinha ao seu serviço vários trabalhadores e membros dos órgãos estatuários que ali prestavam, designadamente no período a que se reportam os factos, o seu trabalho sob as suas ordens e direcção daquela sociedade, representada pelos respectivos gerentes, AA e BB, este último até 30-06-2012.
8. Nos períodos de tempo referidos em 6, aquela sociedade, por intermédio de AA e BB, pagou mensalmente àqueles seus trabalhadores e membros dos órgãos estatutários as respectivas remunerações e delas deduziu e reteve os valores correspondentes às contribuições devidas por estes à Segurança Social.
9. Em data não concretamente apurada, mas anterior e próxima do dia 01-11-2008, AA e BB decidiram deixar de entregar nos cofres da Segurança Social os valores assim deduzidos e retidos sobre as remunerações pagas aos trabalhadores da sociedade arguida no período compreendido entre o dia 01-11-2008 e o dia 30-06-2014 e sobre as remunerações pagas aos membros dos órgãos estatuários no período compreendido entre o dia 01-02-2010 e 30-06-2014, a título de contribuições por aqueles e estes devidas à Segurança Social.
10. Assim, decidiram os dois arguidos AA e BB, nos termos acima indicados, deixar de entregar à Segurança Social, relativamente às contribuições para o regime geral dos trabalhadores por conta de outrem, as seguintes contribuições:



11. E decidiram os dois arguidos AA e BB, nos termos acima indicados, deixar de entregar à Segurança Social, relativamente às contribuições para o sub-regime dos órgãos estatuários das pessoas colectivas, as seguintes contribuições:




12. Em execução daquele desígnio apropriativo, nos períodos de tempo referidos em 6, os arguidos AA e BB não remeteram nem fizeram remeter aos competentes serviços da Segurança Social os valores das contribuições devidas a esta entidade, assim deduzidas e retidas por si em representação da sociedade “Construções A..., Lda.”, até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitavam (no período compreendido entre 01-01-2008 e 31-12-2010) e até ao dia 20 do mês seguinte àquele a que respeitavam (no período compreendido entre 01-01-2011 e 30-06-2014), nem nos 90 dias seguintes ao termo de tal prazo.
13. Acresce que aquela sociedade e os dois arguidos, AA e BB, foram regular e pessoalmente notificados para, nos 30 (trinta) dias subsequentes a essas notificações, procederem ao pagamento de tais valores, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, não tendo procedido ao pagamento naquele prazo das quantias retidas e não entregues nos termos acima discriminados.
14. Agindo do modo descrito, actuaram os arguidos AA e BB, entre 01-11-2008 e 30-06-2012, em conjugação de esforços, com o propósito único e logrado de se apropriarem dos valores acima discriminados, que fizeram seus e utilizaram em benefício da sociedade “Construções A..., Lda.”, integrando as disponibilidades financeiras provenientes da falta de entrega daquelas contribuições no normal giro comercial desta sociedade, sendo que a partir de 01-07-2012 e até 30-06-2014, apenas AA agiu com aqueles intentos.
15. Os arguidos AA e BB sabiam que os acima referidos montantes, referentes à não entrega das contribuições devidas à Segurança Social nos períodos mencionados, no valor global de €54.998,79 (cinquenta e quatro mil, novecentos e noventa e oito euros e setenta e nove cêntimos), não lhes pertenciam, nem à sociedade “Construções A..., Lda.”, que representavam, e que eram pertença da Segurança Social, bem como que deveriam entregá-los nos termos e prazos legais, mas ainda assim não se abstiveram de agir do modo acima descrito, não procedendo à entrega das referidas quantias e aproveitando as mesmas no giro comercial daquela sociedade, o que quiseram e fizeram.
16. Os arguidos AA e BB, no período de tempo descrito em 6 e nas circunstâncias acima descritas, agiram em representação e no interesse da sociedade “Construções A..., Lda.”.
17. Os arguidos AA e BB agiram de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei penal.
18. BB foi constituído na qualidade de arguido e prestou Termo de Identidade e Residência em 02-01-2018.
*
Das condições pessoais, sociais e económicas e averbamentos no Certificado do Registo Criminal
19. A arguida AA é solteira, vive com o filho menor de idade e os pais em casa própria destes, mas que se encontra penhorada no âmbito de processo de execução.
20. A arguida AA é gerente de sociedade, mas encontra-se em situação de incapacidade temporária para o trabalho em virtude de neoplasia.
21. A arguida AA não aufere qualquer tipo de rendimento, subsistindo da ajuda dos pais, para além de receber €225,00 a título de pensão de alimentos devida ao filho.
22. Como habilitações literárias a arguida AA tem licenciatura em engenharia civil e ordenamento do território.
23. A arguida AA já foi condenada na pena de 100 dias de multa, por sentença transitada em julgado em 21-05-2019, proferida no âmbito do processo n.º271/13.2GAVGS, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Local Criminal de Aveiro - Juiz 2, pela prática, em 25-06-2015, de um crime de desobediência.
*
24. O arguido BB é solteiro, vive com a mãe em casa própria.
25. O arguido BB tem um filho menor de idade que vive com a progenitora e para quem contribui com a quantia mensal de €150,00 a título de pensão de alimentos.
26. O arguido BB é motorista na recolha de resíduos urbanos, trabalha por conta da B... e aufere mensalmente €730,00.
27. Como habilitações literárias o arguido BB tem o 9.º ano de escolaridade.
28. Dos autos não constam antecedentes criminais registados relativamente a BB.
29. Dos autos não constam antecedentes criminais registados relativamente a CC.
(…)
B. De Direito
Enquadramento jurídico-penal dos factos
(…)
In casu haverá que fazer a destrinça da fundamentação de Direito relativamente aos períodos de tempo em que cada um dos arguidos exerceu funções de gerência da sociedade “A..., Lda.”, já que é perceptível dos factos dados como provados que BB apenas manteve a qualidade de gerente de facto até 30-06-2012.
Não obstante não constar a sua identificação como sócio e gerente da sociedade “A..., Lda.” da certidão da matrícula comercial, não é senão lógico e adequado a regras de experiência comum que o mesmo fosse responsável pela empresa, tal como AA, muito embora nem sempre estivesse encarregue de assuntos relacionados com a gestão administrativa. De todo o modo, a circunstância de, de Direito, não existir gestão, não afasta a possibilidade legal de se analisar a verificação do tipo de crime aqui em apreço.
Efectivamente, não se poderão ter como afastados ou não preenchidos o elemento objectivo e subjectivo do ilícito em apreço nos autos relativamente a este arguido, pelo contrário. Sucede, porém, que o decurso do tempo afecta a sua responsabilidade criminal.
Dito de outra forma, mesmo considerando o carácter continuado do ilícito de abuso de confiança contra a Segurança Social, teremos de concluir que, na data em que BB foi constituído nessa qualidade e notificado para os termos do presente processo, já haviam decorrido mais de 5 anos sobre a data da prática do último acto lesivo do direito do Instituto da Segurança Social sob a sua gestão e gerência de facto.
De acordo com o que estatui a alínea c) do n.º1 do artigo 118.º do Código Penal “o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: (…) cinco anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo seja igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos (…)”, sendo que este prazo inicia a sua contagem “desde o dia em que o facto se tiver consumado” (n.º1 e alínea b) do n.º2 do artigo 119.º do Código Penal), o que no caso dos autos terá que se presumir ter ocorrido em 15-07-2022 relativamente a este arguido (o facto de ter cessado a actividade de gerência, não lhe retira o dever de cumprir a obrigação tributária no que concerne ao mês antecedente ao da sua saída da empresa).
Do cotejo dos autos, verifica-se que não ocorreu nenhuma das causas de suspensão ou interrupção da prescrição que vêm previstas pelos artigos 120.º e 121.º do Código Penal até ao momento em que BB foi constituído como arguido – o que sobreveio em 02-01-2018 e aí, em tese, se interromperia a prescrição.
Tal não sucede com eficácia no caso em concreto já que o prazo normal de prescrição já havia decorrido e, como tal, o procedimento criminal contra BB mostrava-se prescrito, havendo que declarar extinta a respectiva responsabilidade criminal.
*
No que respeita a AA, a questão tem de ser analisada sob o prisma inverso, isto é, o momento a partir do qual se pode considerar que inicia verdadeiramente as suas funções de gerente de facto e de Direito talvez não se possa considerar como o do momento da constituição da sociedade, pois que face à sua juventude e inexperiência no ramo da construção civil sempre teria maior dificuldade em desempenhar, ab initio, tais funções. O que acontece é que esse momento inicial da sociedade não é relevante nos autos e sim aquele em que já haviam decorrido cerca de seis anos desde a sua constituição. Naturalmente que não se desconsiderou o facto de a arguida não estar tão presente na sede da sociedade como o co-arguido, mas não se poderá concluir que a mesma desconhecesse por completo o estado da empresa – de outra forma não sabia da necessidade de injectar capitais próprios para pagamento e fornecedores e trabalhadores, etc.
Efectivamente, não se poderão ter como afastados ou não preenchidos o elemento objectivo e subjectivo do ilícito em apreço nos autos relativamente a este arguida, pelo contrário, pese embora as invocadas dificuldades económicas da sociedade em virtude da crise generalizada do país, do facto de se pretender que continuasse em laboração (para assim manter os postos de trabalho), e em virtude de dívidas de clientes, a verdade é que a sociedade, representada por AA (e BB) procedeu aos pagamentos devidos pela seguinte ordem de prioridades: salários e fornecedores e só depois impostos e contribuições para a Segurança Social.
(…)
O crime continuado
Os arguidos foram acusados da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.
Tendo em consideração a factualidade provada, mais concretamente, o período temporal de incumprimento, temos que BB (até 30-06-2012) e AA, preencheram com as suas condutas o tipo do abuso de confiança contra a Segurança Social de cada vez em que eram obrigados a entregar as contribuições e as cotizações e não o fizeram.
A questão que se coloca perante esta repetição no tempo da conduta dos arguidos é a de saber se deverão ser punidos por cada um dos crimes, em concurso real, ou se deverá ser a conduta punida antes nos termos do crime continuado.
Nos termos do artigo 30.º, n.º1, do Código Penal, “o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.
Por sua vez, o n.º 2 da referida norma legal dispõe que “constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente”.
O pressuposto da punição do crime continuado radica na existência várias resoluções criminosas, de uma situação exógena que facilita a prática dos actos com uniformidade no modo de actuação e uma certa conexão (proximidade) temporal.
É esta a situação dos autos.
Verifica-se, com efeito, uma repetição de comportamento – uma pluralidade – executado por forma essencialmente homogénea – a mesma conduta omissiva – num quadro de facilidades oferecidas pela inactividade, ou actividade tardia, dos serviços de fiscalização, recaindo sobre tal comportamento, que se repetiu durante cerca de quatro anos, um único juízo de censura, o que leva a uma diminuição considerável da culpa.
As condutas de AA (e de BB até 30-06-2012) ocorreram com o mesmo tipo de resolução criminosa relativamente a todos os períodos temporais, pois que se aproveitaram da impunidade do Estado e, bem assim, agiram a coberto da mesma intenção (a prossecução da actividade comercial da sociedade com pagamento a trabalhadores, fornecedores e de outras despesas, em detrimento consciente e voluntário da obrigação legal para com o Estado/Segurança Social).
Deverá, assim, AA ser punida por um (único) crime de abuso de confiança fiscal na forma continuada.
(…)
V. Do pedido de indemnização civil
Nos termos do artigo 71.º do Código de Processo Penal, “o pedido de indemnização fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o Tribunal civil, nos casos previstos na lei”, consagrando-se, desde modo, o princípio da adesão obrigatória ao processo penal.
A indemnização de perdas e danos emergentes da prática de um crime é regulada pela lei civil, tal como dispõe o artigo 129.º do Código Penal.
O Instituto da Segurança Social, IP deduziu pedido de indemnização civil pelo montante total de €54.998,72, a título de danos patrimoniais sofridos em consequência da não entrega das contribuições e quotizações, acrescido de juros de mora vencidos (contabilizados à data de dedução do pedido de indemnização civil em €17.692,11) e vincendos, pedindo a condenação solidária dos arguidos no pagamento desta quantia.
Assim, nos termos dos artigos 483.º e seguintes do Código Civil, para que haja obrigação de indemnizar é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos:
Facto Voluntário - no sentido de controlável pela vontade humana, embora não tenha que ser “querido”, sob pena de não ser punível a negligência inconsciente. Tanto pode ser um acto positivo como omissivo (neste caso só quando exista, por força de lei, negócio jurídico ou contrato, o dever de praticar o acto, nos termos do artigo 486.º do Código Civil)
Ilicitude- reprovação da conduta do agente no plano geral e abstracto da lei, em contraposição à culpa que se reporta a um comportamento concreto. Engloba a violação de um direito de outrem e a violação de lei que protege interesses alheios.
Culpa- imputação do facto ao lesante, a título de dolo (directo, necessário ou eventual) ou negligência (consciente ou inconsciente). A culpa é apreciada em relação ao caso concreto, tendo como padrão a diligência de um bom pai de família (artigo 487º, n.º 2 do Código Civil). O ónus da prova da culpa, como elemento constitutivo do direito à indemnização, compete ao lesado, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
Dano - pode ser real (lesão causada no interesse juridicamente tutelado), patrimonial (reflexo do dano real na situação patrimonial do lesado, englobando os danos emergentes e os lucros cessantes) ou não patrimonial (o que é insusceptível de avaliação pecuniária, ou seja, o dano que apenas pode ser compensado).
O Nexo de Causalidade- só há responsabilidade relativamente aos danos que o lesado provavelmente não sofreria se não fosse aquela conduta, estando consagrada, no ordenamento jurídico português, a teoria da causalidade adequada, na sua formulação positiva (cfr. artigo 563.º do Código Civil).
Os factos imputados aos arguidos/demandados são ilícitos e culposos, na medida em que se está perante uma condenação pela prática de um ilícito penal, tendo sido violada lei que protege interesses alheios.
Para além disso, tais factos foram causadores de danos, tendo a demandante ficado lesada, na medida em que ficou privada daquela prestação contributiva no montante de €54.998,72.
A responsabilidade pelo pagamento das quantias recebidas a título de contribuições do regime dos trabalhadores por conta de outrem e das quotizações do regime especial dos membros dos órgãos estatutários das pessoas colectivas recai sobre os demandados AA e BB (mas já não sobre CC), nos termos dos artigos 24.º e 61.º da Lei n.º110/2009, de 16 de Setembro, emergindo um direito de crédito a favor do Instituto da Segurança Social.
Nos termos do artigo 562.º do Código Civil “Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstruir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
A fixação da indemnização devida pela prática de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, corresponde ao montante das contribuições e quotizações retidas e não entregues à Segurança Social e respectivos juros, contados da data da sua exibição a pagamento, até à sua integral liquidação (neste sentido, vide, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 14-12-1994, CJ 94, V, pág. 174).
Assim sendo, as quantias retidas e não entregues pelos demandados a título de contribuições e quotizações à Segurança Social deveriam ter sido entregues àquele Instituto até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que respeitam, nos termos supra referidos.
O demandante solicitou o pagamento solidário da supra referida quantia pelos três demandados, porém, afastada que está a responsabilidade criminal de CC, sem que se tivesse comprovado que o mesmo tenha tido qualquer tipo de conduta omissiva, afasta também a sua responsabilidade civil, já que não se podem ter por preenchidos os acima referidos pressupostos previstos pelo artigo 483.º do Código Civil.
O mesmo não se poderá concluir relativamente a AA e a BB, pois que ambos mantiveram, em nome e em representação da sociedade “A..., Lda.” condutas que lesaram o direito do demandante, não obstante não se poder equiparar o período de tempo em que vigora a responsabilidade de ambos, a verdade é que são responsáveis pelo dano - pelo prejuízo monetário sofrido pelo Estado português - e, necessariamente se conclui que a obrigação é solidária, devendo os demandados ser condenados no seu pagamento, nos termos do disposto no artigo 497.º, n.º1 do Código Civil (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-06-2002, que tem como Relator Clemente Lima, com texto integral disponível em www.dgsi.pt).
In casu, apesar de o pedido de indemnização civil ser deduzido no âmbito da responsabilidade solidária, a verdade é que terá que se circunscrever a responsabilidade civil de acordo com o que os factos dados como provados espelham. Como decorre dos factos dados como provados, BB apenas manteve responsabilidade societária até 30-06-2012, e, a partir daí foi unicamente AA quem comandou o destino da sociedade. Não se poderá desconsiderar que a responsabilidade criminal de BB é afastada por via da verificação de prescrição do procedimento criminal, porém, tal circunstância (balizada que está a prática dos factos objectivos e subjectivos) não poderá servir para afastar tout court a responsabilidade civil.
Nesta medida, haverá que deixar expresso que no período de tempo em que tanto BB como AA agiram, de facto, como gerentes da sociedade, ficaram omissos de pagamento tributos enquadrados no regime dos trabalhadores por conta de outrem no montante global de €36.533,68 e tributos enquadrados no sub-regime dos membros de órgãos estatutários no valor global de €1.107,56 - no montante global de €37.641,24 -, sendo este o valor dos danos provocados conjuntamente pelos acima identificados demandados cíveis.
É nesta exacta medida que poderá haver responsabilidade civil solidária dos demandados AA e BB, sendo que o remanescente valor (€17.357,50) da exclusiva responsabilidade da demandada AA.
A falta de pagamento considera-se apurada, na medida em que o pagamento é uma excepção peremptória cujo ónus da prova incumbe aos demandados, nos termos do artigo 342.º, n.º 2 do Código Civil.
Assim, se o demandante alega que não foi paga a quantia em causa, não tendo os demandados feito prova do pagamento, conclui-se que a mesma está em dívida.
Não foi feita prova de que a quantia peticionada se mostre paga –total ou parcialmente -, pelo que, existindo dano e obrigação de ressarcir, se fixa em €54.998,74 a quantia indemnizatória, a que acrescerão juros de mora às sucessivas taxas legais em vigor, contados desde a data de vencimento de cada contribuição omitida até efectivo e integral pagamento, às sucessivas taxas de juro em vigor, concretamente, de 1% ao ano, até 31-12-2010; de 6,35% ao ano desde 01-01-2011 até 31-12-2012; de 7% ao ano desde 01-01-2012 até 31-12-2012; de 6,112% ao ano desde 01-01-2013 até 31-12-2013; de 5,535% ao ano desde 01-01-2014 até 31-12-2014; de 5,476% ao ano desde 01-01-2015 até 31-12-2015; de 5,168% ao ano desde 01-01-2016 até 31-12-2016; de 4,966% ao ano desde 01-01-2017 até 31-12-2017; de 4,857% ao ano desde 01-01-2018 até 31-12-2018; de 4,825% ao ano desde 01-01-2019 até efectivo e integral pagamento.
Vejamos se assiste razão aos demandados quando sustentam que a dívida tributária prescreveu e que não são responsáveis por qualquer pagamento pois que já decorreu o prazo previsto pelo artigo 60.º, n.º3 da Lei n.º4/2007, de 16 de Janeiro, o qual estatui o seguinte:
“1-As quotizações e as contribuições não pagas, bem como outros montantes devidos, são objecto de cobrança coerciva nos termos legais.
2-As prestações pagas aos beneficiários que a elas não tinham direito devem ser restituídas nos termos previstos na lei.
3 -A obrigação do pagamento das quotizações e das contribuições prescreve no prazo de cinco anos a contar da data em que aquela obrigação deveria ter sido cumprida.
4-A prescrição interrompe-se por qualquer diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou à cobrança da dívida.”
Lendo o normativo, o que se conclui é que os demandados confundem a prescrição da prestação tributária com a prescrição do direito à indemnização fundado na prática e um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, sendo pacífico que são realidades absolutamente distintas a liquidação e cobrança de dívida fiscal e o pedido de indemnização civil resultante da prática de crime –as causas de pedir são dispares e nem o RGIT, nem a LGT afastam a aplicabilidade da regra geral a que acima se aludir (artigos 483.º a 498.º do Código Civil).
Assim, é preciso distinguir a responsabilidade pelo pagamento do tributo e a responsabilidade emergente do crime, configurando o objecto do pedido de indemnização civil sempre e só a consequência civil da prática de um crime.
Portanto, e como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-01-2016 (disponível em www.dgsi.pt), “O pedido de indemnização civil em processo penal, no crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, não tem por objecto a definição e exequibilidade de acto tributário, mas sim a obrigação de indemnização por danos emergentes da conduta danosa que o integra, com fundamento na responsabilidade por factos ilícitos que daí surge nos termos dos art.s 483 e segs. do Código Civil.”
Por isso é que, como se salienta neste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, “a questão da prescrição coloca-se quanto ao direito à indemnização e não quanto à obrigação tributária devida à Segurança Social”. E, neste contexto, o que é relevante não é a prescrição da prestação tributária, mas sim o prazo de prescrição do direito à indemnização, daí que o prazo prescricional a que o direito de indemnização da demandante está sujeito seja não o previsto no artigo 60.º, n.º 3, da Lei n.º4/2007, de 16 de Janeiro, mas sim o prazo previsto no artigo 498.º do Código Civil: 5 anos.
De acordo com o disposto pelo artigo 129.º do Código Penal, o prazo está sujeito às regras previstas na lei civil sobre a contagem, interrupção e contagem do prazo da prescrição, e é bom de ver que o prazo de prescrição só começa a correr quando puder ser exercido (artigos 310.º e 306.º, n.º1 do Código Civil e 77.º do Código Penal), o que no caso concreto advém da notificação da acusação ao lesado por meio de carta registada expedida em 11-09-2019.
Conclui-se, desta forma, que o direito à indemnização não se mostra prescrito e, consequentemente que o pedido de indemnização civil é julgado parcialmente procedente, por provado:
-condenando-se solidariamente AA e BB, no pagamento da quantia de €37.641,24, acrescida de juros de mora às sucessivas taxas de juro em vigor, concretamente, de 1% ao ano, até 31-12-2010; de 6,35% ao ano desde01-01-2011 até 31-12-2012; de 7% ao ano desde 01-01-2012 até 31-12-2012; de 6,112% ao ano desde 01-01-2013 até 31-12-2013; de 5,535% ao ano desde 01-01-2014 até 31-12-2014; de 5,476% ao ano desde 01-01-2015 até 31-12-2015; de 5,168% ao ano desde 01-01-2016 até 31-12-2016; de 4,966% ao ano desde 01-01-2017 até 31-12-2017; de 4,857% ao ano desde 01-01-2018 até 31-12-2018; de 4,825% ao ano desde 01-01-2019 até efectivo e integral pagamento;
-condenando-se ainda AA, no pagamento da quantia de €17.357,50, às sucessivas taxas de juro em vigor, concretamente, de 1% ao ano, até 31-12-2010; de 6,35% ao ano desde 01-01-2011 até 31-12-2012; de 7% ao ano desde 01-01-2012 até 31-12-2012; de 6,112% ao ano desde 01-01-2013 até 31-12-2013; de 5,535% ao ano desde 01-01-2014 até 31-12-2014; de 5,476% ao ano desde 01-01-2015 até 31-12-2015; de 5,168% ao ano desde 01-01-2016 até 31-12-2016; de 4,966% ao ano desde 01-01-2017 até 31-12-2017; de 4,857% ao ano desde 01-01-2018 até 31-12-2018; de 4,825% ao ano desde 01-01-2019 até efectivo e integral pagamento;
-absolvendo-se o demandado CC da integralidade do pedido.
*
VI. Da perda de Vantagens a favor do Estado
Ao abrigo do normativo ínsito na alínea b) do n.º1 do artigo 110º do Código Penal, o Ministério Público requereu o perdimento a favor do Estado do montante de €54.998,79 com o fundamento de que tal valor corresponde à vantagem obtida pela comissão dos factos típicos e ilícitos.
Estatui o artigo 110.º do Código Penal que:
“1. São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2. O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3. A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objecto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4. Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5. O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6. O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.”.
A redacção desta norma foi introduzida pela Lei n.º30/2017, de 30 de Maio, em vigor desde 31-05-2017, e que transpôs para o ordenamento jurídico interno a Directiva 2014/42/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03-04-2014.
Assim, de acordo com os ensinamentos de Pedro Caeiro (in, Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime (…), publicado pela Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 21, n.º2, Abril-Junho de 2011, Coimbra Editora, pág. 271), por “vantagens relacionadas com o crime entendemos, latamente, os produtos que, existindo já à data da prática do crime (de forma a excluir os produtos), passam (ou destinam-se a passar) para a disponibilidade do agente como efeito desse crime, aí se incluindo as recompensas dadas ou prometidas aos agentes de factos ilícitos típicos”.
Neste mesmo sentido, leia-se a noção de vantagem patrimonial que é dada pelo Prof. Figueiredo Dias (in, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime, pág. 632), como sendo “todo e qualquer beneficio patrimonial que resulte do crime ou através dele tenha sido alcançado”.
A razão de ser desta norma recai sobre a máxima comum de que “o crime não compensa” (no sentido das necessidades de prevenção geral) e de que a satisfação pessoal do infractor com a prática de um crime é anulada pena efectiva punição e desempoçamento daquilo com que beneficiou, tanto em termos jurídicos como morais ou sociais (no sentido das necessidades de prevenção especial). É, então, uma forma de combate/desincentivo à criminalidade, pensada para a criminalidade económico-financeira, mas que a transcende por ser aplicável a qualquer tipo de ilícito porque a "ideia que se deseja reafirmar tanto sobre o concreto agente do ilícito típico (prevenção especial ou individual), como nos seus reflexos sobre a sociedade no seu todo (prevenção geral), mas sem que neste último aspecto deixe de caber o reflexo da providência ao nível do reforço da vigência da norma (prevenção geral positiva ou de integração). Nem é seguramente diferente o pensamento político -criminal que a doutrina alemã pretende afirmar (…) quando fala da necessidade de «aniquilamento do benefício patrimonial ilicitamente conseguido» e, consequentemente, de o Estado «não tolerar uma situação patrimonial antijurídica», operando a «restauração da ordenação dos bens correspondentes ao direito»”, (Prof. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 632/3).
Ademais, sem prejuízo dos direitos da vítima, o confisco é transversal a todos os crimes, sem prejuízo da existência de lesados ou de estes fazerem valer os seus direitos através da dedução de pedido de indemnização civil.
E a perda tanto pode ser em espécie como, reunidos os pressupostos legais, por equivalente, ou seja, pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
Por outro lado, temos que a norma do artigo 110.º do Código Penal impõe como condição indispensável que a vantagem seja adquirida para o agente ou para outrem, directa ou indirectamente através da prática do facto ilícito ou mediante transacção ou troca com o objecto directamente adquirido por meio do facto ilícito típico (incluindo-se aqui as vantagens em cadeia, advenientes, por exemplo, de sucessivas vendas de objectos).
“Se a coisa já não existe, se o seu paradeiro é desconhecido ou se não pode ser apreendida ou declarada perdida por outras razões, resta ao Estado a possibilidade extrema de confiscar o respectivo valor. Sem este mecanismo suplementar, as instâncias formais de controlo dificilmente conseguiriam recuperar todos os proventos do crime: o arguido poderia obstar à concretização do confisco mediante a simples ocultação do bem” (João Conde Correia, in Da proibição de confisco à perda alargada, edição da Imprensa Nacional, pág. 87).
No caso dos autos, está em causa uma vantagem patrimonial decorrente da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, sendo que os arguidos aplicaram/reinvestiram/gastaram a quantia devida a título de contribuições e quotizações, razão pela qual, terá de se operar uma perda na forma da substituição por pagamento ao Estado da quantia equivalente à da quantia apropriada, por ser essa a valorização e que é susceptível de reduzir os arguidos ao status quoanterior à prática do ilícito típico.
Mostrando-se preenchidos os pressupostos legais atinentes à perda da vantagem a favor do Estado, decide-se nessa exacta medida, condenando:
- BB e AA a entregar ao Estado a quantia de €37.641,24;
- AA a entregar ao Estado, para além da quantia supra referida, a quantia de €17.357,50.
*
VII. Decisão
Pelo exposto, e ao abrigo dos preceitos legais citados, decide-se julgar a acusação parcialmente procedente, e, em consequência:
1. Absolver CC da prática, em co-autoria e na forma consumada de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, p. e p. pelo artigo 105.º, nº1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vido artigo 107.º, nº1 e 2, ambos do R.G.I.T.;
2. Declarar que BB praticou, entre 01-11-2008 e 30-06-2012, actos susceptíveis de integrar a prática, em co-autoria, na forma consumada e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social,p. e p. pelo artigo 105.º, nº1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vido artigo 107.º, nº1 e 2, ambos do R.G.I.T., julgando extinto o procedimento criminal por prescrição;
3. Condenar AA pela prática, em co-autoria, na forma consumada e na forma continuada, de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, p. e p. pelo artigo 105.º, nº1, 4, alíneas a) e b), 6 e 7, aplicável ex vido artigo 107.º, nº1 e 2, ambos do R.G.I.T., na pena de 110 dias de multa à taxa diária de €6,00, o que perfaz o quantitativo global de €660,00;
4. Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Instituto da Segurança Social, IP:
a) absolvendo CC do pedido;
b) condenando os demandados AA e BB a pagar, solidariamente, a quantia de €37.641,24, a que acrescerão juros de mora às sucessivas taxas legais em vigor, contados desde a data de vencimento de cada contribuição omitida até efectivo e integral pagamento;
c) condenando AA a pagar a quantia de €17.357,50, a que acrescerão juros de mora às sucessivas taxas legais em vigor, contados desde a data de vencimento de cada contribuição omitida até efectivo e integral pagamento.
5. Declarar a perda do valor global de €54.998,79 a favor do Estado, condenando AA e BB a entregar essa mesma quantia aos cofres do Estado (com os limites fixados nos mesmos termos que se circunscreveram no âmbito do pedido de indemnização civil).
(…)»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem a arguida e recorrente alegar que não deverá ser condenada a pagar qualquer indemnização relativa ao pedido formulado, por não se terem provado os pressupostos de responsabilidade civil em que assenta tal pedido, designadamente a existência de um facto voluntário, de culpa e da intenção de apropriação das quantias respetivas (neste último aspeto porque terá agido em benefício da sociedade de que era gerente). Alega que a sentença recorrida não fundamenta tal condenação de acordo com o disposto no artigo 483.º do Código Civil. Alega também que tal condenação ignora a sua precária situação económica e as exigências da sua reinserção social, traduzindo intuitos meramente repressivos. Alega ainda que foi violado o princípio da legalidade consignado nos artigos 1.º do Código Penal, 2.º do Código de Processo Penal e 29.º e 30.º, n.º 5, da Constituição.
Vejamos.
É evidente, pelo que acima se transcreve, que a sentença recorrida fundamenta a condenação da arguida, demandada e recorrente no pedido de indemnização formulado e que tal fundamentação se baseia no artigo 483.º do Código Civil. Também é claro que estão verificados os pressupostos da responsabilidade civil elencados neste artigo: facto voluntário, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Está provado que a arguida agiu «de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era prevista e punida por lei penal» (ponto 17 do elenco de factos provados) e tal prova não foi de modo algum impugnada. Nem se compreende o motivo pelo qual considera a arguida e recorrente que não se verificam os pressupostos da responsabilidade civil que consubstanciam um facto voluntário e uma atuação culposa. Se não se verificassem esses dois pressupostos, não teria ela sido condenada pela prática do crime por que vinha acusada, condenação que ela não impugna neste recurso.
Por outro lado, não é pressuposto da responsabilidade civil que o agente tenha obtido algum benefício (para si diretamente ou indiretamente para outrem). Pressuposto é que ele tenha provocado um dano, o que, neste caso, também não suscita dúvidas.
A precária situação económica da arguida e recorrente e as exigências da sua reinserção social são circunstâncias a considerar na escolha e determinação da pena em que deva ser condenada, e assim sucedeu neste caso. Não são, obviamente, circunstâncias a considerar no que se refere à sua condenação, ou não condenação, no pedido de indemnização civil formulado (como se tal precária situação económica impedisse tal condenação).
Não se verifica qualquer violação do princípio da legalidade invocado pela arguida e recorrente.
Deverá, pois, ser negado provimento ao recurso quanto a este aspeto

IV 2. –
Vem a arguida e recorrente alegar que deverão ser consideradas prescritas as suas obrigações de pagamento relativas ao período compreendido entre 1/11/2008 e 30/6/2012, por estas deverem ser consideradas autonomamente, e não integradas numa continuação criminosa com as de outro período (entre 1/2/2010 e 30/6/2014), sob pena de ser violado o princípio da equidade processual e da igualdade, em relação aos restantes arguidos.
Vejamos.
A invocada prescrição seria relativa ao procedimento criminal (como o foi em relação ao arguido BB), não ao pedido de indemnização civil. No entanto, a arguida e recorrente cinge o objeto deste recurso às questões do pedido de indemnização civil e à declaração de perda de vantagens a favor do Estado.
De qualquer modo, há que considerar o seguinte.
Como bem refere o Ministério Público no seu douto parecer, não estamos perante uma atuação criminosa em dois períodos temporais distintos, mas antes perante uma atuação criminosa que, tendo começado pela ilegítima não entrega dos valores retidos nas remunerações pagas aos trabalhadores da sociedade entre 1/1/2008 e 30/06/2014, se alargou, a partir de 1/02/2010, também à ilegítima não entrega nos cofres da Segurança Social dos valores retidos nas remunerações pagas aos membros dos órgãos estatutários da mesma sociedade. Não suscita dúvidas a continuidade entre uma atuação da arguida e recorrente que decorre, de forma menos ou mais alargada, entre 1/11/2008 e 30/6/2014. Estamos perante um único crime (uma única resolução criminosa, como resulta dos pontos 9 e 10 do elenco dos factos provados) cuja execução se prolonga no tempo.
Por isso, o prazo de prescrição em causa conta-se, nos termos do artigo 119.º, n.º 2, b), do Código Penal, a partir do último ato praticado. Por isso, não está prescrito o procedimento criminal relativo ao crime por que a arguida e recorrente vinha acusada, ao contrário do que se verifica quanto ao arguido BB. Não se trata de um tratamento arbitrariamente desigual entre estes dois arguidos, mas de um tratamento desigual de duas situações objetivamente desiguais (uma atuação que perdura durante mais tempo do que outra) que são tidas em consideração no regime de prescrição aplicável.
Deverá, pois, ser negado provimento ao recurso também quanto a este aspeto.

IV 3. –
Vem a arguida e recorrente alegar que não deverá ser condenada a pagar a quantia declarada perdida a favor do Estado na sentença recorrida, por dela não ter beneficiado (antes a sociedade de que era gerente) e por tal representar uma dupla punição, tendo em conta a sua simultânea condenação no pedido de indemnização civil. Alega que a sentença recorrida não fundamenta tal condenação de acordo com o disposto no artigo 110.º, n.º 1, b), do Código Penal. Alega que essa declaração de perda é nula em relação ao quantum da condenação (€54.998,79), por referência aos termos que se circunscreveram no âmbito do pedido cível, porquanto o quantum do pedido cível ascende a €72 690,85. Alega também que tal condenação ignora a sua precária situação económica e as exigências da sua reinserção social, traduzindo intuitos meramente repressivos. Alega ainda que foi violado o princípio da legalidade consignado nos artigos 1.º do Código Penal, 2.º do Código de Processo Penal e 29.º e 30.º, n.º 5, da Constituição.
Vejamos.
Também quanto a este aspeto, vale o que já acima afirmámos: a precária situação económica da arguida e recorrente e as exigências da sua reinserção social são circunstâncias a considerar na escolha e determinação da pena em que deva ser condenada, e assim sucedeu neste caso, não são, obviamente, circunstâncias a considerar no que se refere à declaração de perda de vantagens do crime a favor do Estado.
Não suscita quaisquer dúvidas, pelo que acima se transcreve, que a sentença recorrida fundamenta a declaração de vantagens do crime a favor do Estado nos termos do disposto no artigo 110.º, n.º 1, b), do Código Penal.
Não se vislumbra a discrepância invocada pela arguida e recorrente em relação ao montante do pedido de indemnização civil (de €54.998,79), o qual coincide com o montante da quantia declarada perdida a favor do Estado (que é também de €54.998,79)
Alega a arguida e recorrente que, tendo agido em representação da sociedade de que era gerente e em benefício desta (não em seu benefício pessoal), não pode dizer-se que ela tenha obtido vantagens do crime. Neste sentido, pode ver-se o acórdão deste Relação de 30 de abril de 2019, proc. nº 325/17.1T9PRD.P1, relatado por Élia São Pedro e acessível em www.dgsi.pt, onde se afirma: «Nos casos em que o arguido age em representação de uma sociedade, é esta quem adquire a vantagem resultante do não pagamento dos impostos e não o seu representante».
No entanto, estatui a alínea b) desse n.º 1 do artigo 110.º do Código Penal que se consideram vantagens do facto ilícito típico «todas as coisas, direitos ou vantagens que constituem vantagem económica, direta ou indiretamente resultante deste facto, para o agente ou para terceiro». O que significa que não é a circunstância de o agente destinar a outrem (neste caso, à sociedade de que era gerente, noutros casos poderá ser a outra pessoa a quem possa fazer uma doação) a vantagem que diretamente obteve da prática do crime que impede a declaração de perda a favor do Estado dessa vantagem. No caso em apreço, provou-se que os arguidos fizeram suas as quantias mencionadas, que depois utilizaram em benefício da sociedade de que eram gerentes (ponto 14 do elenco dos factos provados). Este facto cabe na previsão dessa alínea b) do n.º 1 desse artigo 110.º do Código Penal.
Alega a arguida e recorrente que a sua condenação no pedido de indemnização civil formulado (em montante que equivale às quantias não entregues à Segurança Social) e a sua condenação no pagamento da quantia declarada perdida a favor do Estado (também em montante que equivale às quantias não entregues à Segurança Social) se traduz numa injustificada dupla punição.
Esta questão vem dividindo a jurisprudência, e também a deste Tribunal.
Há quem considere que a condenação no pedido de indemnização civil não exclui a declaração de perda de vantagens a favor do Estado, pois esta declaração tem uma função própria, que não se confunde com a da indemnização civil (ver, neste sentido, entre outros, os acórdãos desta Relação de 28 de outubro de 2021, proc. n.º 38/17.7IDPRT.P2, relatado por José Carreto, de 18 de janeiro de 2023; proc. n.º 7930/19.4T9PRT.P1, relatado por William Themudo Gilman; e de 29 de junho de 2022, proc. n.º 38717.7IDPRT.P2, relatado por Liliana Páris Dias, todos acessíveis em www.dgsi.pt) Trata-se de uma função de prevenção geral de âmbito criminal, que é a de evitar que o crime se traduza numa vantagem para o agente do crime (porque o crime não pode “compensar”), função que é distinta da reparação dos danos causados pela prática do crime.
Estamos, na verdade, perante duas perspetivas que incidem sobre uma mesma realidade: a do dano causado pela prática do crime (dano que se pretende reparar através do pedido de indemnização civil) e a da vantagem decorrente dessa mesma prática (que se pretende eliminar através da declaração de perda a favor do Estado). Quando esse dano e essa vantagem coincidem, estamos, na verdade, perante uma mesma realidade e, se assim for, estaremos perante uma injustificada dupla punição.
Por isso, será de optar por outra orientação, seguida no acórdão deste Tribunal de 7 de julho de 2021, proc. n.º 186/16.5T9PRT.P1, relatado por Eduarda Lobo (também acessível em www.dgsi.pt), acórdão onde se afirma: «A interpretação mais adequada ao pensamento legislativo quanto ao instituto da perda de bens a favor do Estado é a de que esta perda deve comprimir-se quando em presença do instrumento concorrente do pedido de indemnização civil pelo lesado e deve expandir-se quando este se desinteresse do seu património perdido para o agente do crime». Será assim por consideração do direito de propriedade do lesado, que prevalece sobre a função de prevenção geral de âmbito criminal que subjaz ao instituto da declaração de perda de bens e vantagens a favor do Estado. Essa prevalência também se reflete no disposto no n.º 6 do artigo 110.º do Código Penal, segundo o qual a perda de produtos e vantagens do crime a favor do Estado não pode prejudicar os direitos do lesado.
Nessa mesma linha, e no que especificamente se refere ao crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, afirma-se no acórdão desta Relação de 30 de abril de 2019, proc. n.º 325/17.1T9PRD.P1, relatado por Élia São Pedro (também acessível em www.dgsi.pt): «Só existe vantagem quando o agente vê o seu património aumentado para além, e na medida do excesso de valor não entregue na Segurança Social e não abrangido pela condenação no pedido de indemnização civil».
Como no caso em apreço se verifica uma condenação no pedido de indemnização civil relativo às quantias não entregues à Segurança Social, não se justifica a declaração de perda de vantagens decorrentes da prática do crime relativas a essas mesmas quantias, com o que se verificaria uma dupla punição.
É certo que seguindo a primeira destas orientações jurisprudenciais há formas de evitar que a dupla condenação em causa venha, por um lado, a prejudicar o lesado e, por outro lado, a traduzir-se numa dupla punição do agente do crime. Haverá que considerar o disposto no n.º 6 do artigo 110.º do Código Penal, segundo o qual a perda de produtos e vantagens do crime a favor do Estado não pode prejudicar os direitos do lesado. E haverá também que considerar o disposto no n.º 2 do artigo 130.º do mesmo Código, segundo o qual o tribunal pode atribuir ao lesado vantagens declaradas perdidas a favor do Estado. A declaração de perda de vantagens do crime a favor do Estado não prevalecerá sobre os direitos do lesado e também não acrescerá à indemnização a este paga. Terá, antes, uma função subsidiária, evitando que a omissão do lesado na defesa dos seus direitos possa traduzir-se numa vantagem para o agente do crime. Seria efetiva apenas na hipótese dessa omissão. E será assim mesmo que se verifique a formulação do pedido de indemnização civil e a condenação no seu pagamento, pois a declaração de perda será sempre útil na hipótese de o lesado não executar a sentença de condenação no pedido de indemnização civil que formulou. Ou seja; a concorrência de dois títulos executivos não significa que eles deem origem a duas execuções, mas apenas a uma, que será, em princípio, a do lesado; se não o for por inércia deste, haverá sempre a possibilidade de lhe ser atribuída a quantia declarada perdida a favor do Estado, em montante correspondente ao dano, nos termos do referido n.º 2 do artigo 130.º do Código Penal.
Afigura-se-nos, porém, que não fica de todo excluída a hipótese de dupla punição, ou de prejuízo dos direitos do lesado. Quando se verifica a concorrência de dois títulos executivos, não se vislumbra como e até quando deverá o Ministério Público aguardar pela execução do título relativo ao pedido de indemnização civil. Há sempre a possibilidade de a execução promovida pelo Ministério Público se antecipar à que é promovida pelo lesado. Haverá que recorrer, então, ao disposto no referido n.º 2 do artigo 130.º do Código Penal. Mas deste não decorre necessariamente uma obrigação de devolução ao lesado da quantia declarada perdida a favor do Estado, mas apenas uma faculdade que dependerá da decisão do tribunal. Se tal devolução não for determinada pelo tribunal, não poderá ser o lesado impedido de usar o seu título executivo mesmo depois de o Ministério Público usar o seu, de onde resultará uma dupla punição do agente do crime.
No caso em apreço, há que considerar, por um lado, que da fundamentação da sentença não resulta (nem explicita, nem implicitamente) que a declaração de perda de vantagens do crime a favor do Estado opere apenas em caso de não execução da sentença no que à condenação no pedido de indemnização civil diz respeito. Por outro lado, não se determina que a quantia declarada perdida a favor do Estado venha a ser devolvida ao lesado (que, por sinal, até é uma entidade estatal, mas com personalidade jurídica própria, como instituto público), ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 130.º do Código Penal.
Não está, pois, afastada a possibilidade de injustificada dupla punição do agente do crime. Assiste razão à arguida e recorrente quanto a este aspeto.
Afigura-se-nos, pois, que deverá ser concedido provimento ao recurso quanto a este aspeto, com a revogação da declaração de perda de vantagens do crime a favor do Estado.

Não há lugar a custas (artigo 513.º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pela arguida, revogando a declaração de perda de vantagens do crime a favor do Estado e mantendo, no restante, a douta sentença recorrida.

Notifique.


Porto, 24 de maio de 2023
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Castela Rio