Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0344557
Nº Convencional: JTRP00037624
Relator: CONCEIÇÃO GOMES
Descritores: BURLA
Nº do Documento: RP200501260344557
Data do Acordão: 01/26/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: .
Sumário: O crime de burla só se consuma com a saída dos bens da disponibilidade fáctica do sujeito passivo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em Audiência na Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

1. RELATÓRIO
1.1. No Tribunal Judicial de Oliveira de Azeméis o Ministério Público requereu o julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo do arguido B.........., filho de C.......... e de D.........., nascido a 24.02.68, em Luanda, Angola, com última residência conhecida na R. ....., nº. .., ..., Ermesinde, casado, vendedor, titular do B.I. n.º 000..., em 30.12.92, por Lisboa, com fundamento nos factos alegados na acusação (fls. 78 e ss.), que se dá por reproduzida, foi imputado ao arguido, em autoria material, um crime de BURLA QUALIFICADA, p. e p. pelos arts. 217º e 218º, nº 2, al. a), ambos do Código Penal.
1.2. E.........., com sede na Travessa ....., .., ....., ....., Valongo, veio deduzir pedido cível contra o arguido, pedindo a condenação deste a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais, a quantia de € 21.514,85 (Esc:4.313.340$00), acrescida de juros de mora, à taxa legal vencidos (€ 5.231,94) e vincendos, até efectivo e integral pagamento.
1.3. Efectuado o julgamento foi julgada a acusação procedente, por provada e, em consequência, foi o arguido B.......... condenado, pela prática de um crime de burla qualificada, p.p., pelos arts. 217º, nº1 e 218º, nº 2, al. a), do CP, na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de quatro anos, uma vez que, atendendo à personalidade do arguido, condições de sua vida, com três filhos menores para criar e conduta anterior ao facto (apesar de tudo, as condenações anteriores referem-se a factos praticados em 92 e 96), concluem que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (CP art. 50º), suspensão que, contudo, fica subordinada ao dever de pagar à demandante civil, no prazo de 18 meses, a indemnização que lhe for arbitrada nos presentes autos [CP art. 50 e 51º, nº l, al. a)], em caso de revogação desta suspensão, será aplicado o perdão da Lei nº 29/99, de 12/05 (seu artº. 1º, nº l).
Foi julgado o pedido de indemnização civil procedente, por provado e, em consequência, foi o demandado B.......... condenado a pagar à demandante E.........., a quantia de € 26.746,79 (capital e juros vencidos), acrescida de juros moratórios vincendos, sobre o capital, à taxa legal, até integral pagamento.
1.4. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso o arguido, que motivou, concluindo nos seguintes termos:
“A) Ao dar como provado facto diverso daquele que foi objectivado em audiência de julgamento, o Tribunal violou o disposto no art. 410º, nº 2, al. c), do CPP.
B) Efectivamente do que decorre em termos de prova e dos depoimentos gravados o arguido ora recorrente não agiu com intenção de obter para outrem, que nem sequer conhecia um enriquecimento ilegítimo.
C) nem enganou a ofendida fazendo-a crer que a mercadoria se destinava à cliente mencionada na "venda a dinheiro" e que seria paga no acto da entrega, pois tais elementos e condições foram-lhe dados pela ofendida.
D) Pois o presente é interposto do Acórdão proferido a fls., dos presentes autos no qual se condenou o recorrente pelo crime de burla qualificada p.p. pelos artigos 217º, nº 1 e 218º, nº 2, alínea a) do Código Penal na pena de três anos de prisão, declarando suspensa a execução da pena por um período de quatro anos, subordinada ao dever de pagar à demandante civil "E..........", no prazo de 18 meses, a indemnização que lhe foi arbitrada nos presentes autos, isto é, a quantia de Euro 21.514,85 acrescido dos juros de mora legais vencidos e vincendos até integral pagamento.
E) Foram dados como provados os seguintes factos: que o arguido era vendedor da sociedade "E..........", com sede na Trav. ....., .., ....., Valongo e que 24 de Setembro de 1998 este terá pedido ao encarregado de armazém dessa sociedade, o carregamento de 380.520 m2 de soalho, no valor total de Esc. 4.313.340$00, para ser entregue nesse mesmo dia e que tal mercadoria se destinava à sociedade "F.........." a ser paga no acto da entrega. Tendo a mercadoria sido carregada e o motorista de ofendida dirigiu-se para um local do concelho de Santa Maria da Feira, onde o arguido se encontrava à espera, e indicou ao motorista que seguisse atrás de si, parando em diversas obras de construção civil, alegando estar à procura do comprador da mercadoria e que uma vez que não encontraram o empreiteiro, o arguido indicou como local de descarga uma garagem, sita na Rua ....., nº ..., Oliveira de Azeméis, tendo a mercadoria sido aí descarregada na presença do arguido e de um casal cuja identidade não foi possível apurar, e que como o empresário demorava os funcionários da ofendida e o arguido junto com o referido casal, ainda aguardaram mais um pouco junto ao local de descarga do material, quando o arguido os informou que iriam esperar pelo comprador num restaurante próximo daquele local, mas uma vez aí e o comprador continuava a não aparecer o arguido informou os funcionários da ofendida que se podiam retirar uma vez que ele ficaria até aquele chegar, tendo dado ao alegado genro do comprador a factura para que este a rubricasse, entregando depois uma cópia aos funcionários da ofendida, dizendo-lhes que dali não sairia sem o pagamento e que o arguido nunca mais contactou com qualquer funcionário da ofendida, tendo esta sofrido um prejuízo igual ao valor da mercadoria, sabendo pois que ao agir da forma descrita determinaria a ofendida a entregar, em prejuízo próprio e para enriquecimento doutrem cuja identidade não foi possível determinar, mercadoria no valor de Esc. 4.313.340$00.
F) Como não provados apenas que o arguido enriqueceu, ao actuar da forma descrita.
G) Das gravações efectuadas em audiência de julgamento nem sequer transparece que o arguido ora recorrente tivesse tido conhecimento ou agisse de forma a ter cometido o crime de que vinha e foi efectivamente acusado e dos depoimentos das testemunhas de acusação e de defesa não decorre qualquer indício da prática de algum crime pelo recorrente.
H) Pelas declarações do demandante civil e das testemunhas de acusação apenas se poderá inferir que estes tendo tido conhecimento e tendo contactado a empresa que solicitou a aludida mercadoria bem como o "casal" que indicou o local de descarga da mesma, e nada tendo feito, nem sequer informado o Tribunais de tais circunstâncias, provavelmente entenderam que não teria valido a pena. O porquê de tal actuação só os mesmos poderão explicar, mas que aqui não se deixa de considerar e estranhar.
I) Também é referido pela testemunha G.......... que nunca ficou convencido que a mercadoria fosse para o arguido aqui recorrente, sempre pensaram que a madeira era para o empreiteiro, ou seja nunca as testemunhas pensaram que o B.......... os tivesse a enganar, mas apenas a cumprir as suas funções.
J) Do depoimento do arguido B.........., infere-se que o mesmo tinha total desconhecimento que o aludido casal, ou que a empresa que solicitou a entrega de tal material, tivessem, intenção de enganar a ofendida. Aliás foi à ofendida que a aludida sociedade compradora tinha fornecido os seus elementos, e assim parece ser pois foi esta quem forneceu ao Tribunal tais elementos.
K) Pois foi apenas baseado na análise feita às declarações do demandante civil e dos depoimentos das testemunhas, que se baseou o douto Acórdão que condenou o arguido ora recorrente, pelo que assim, tal conclusão não poderá ser aceite. Não se poderá concluir que o arguido enganou a ofendida, mas sim que o arguido ora recorrente também foi enganado.
L) Pelo que o erro notório na apreciação da prova foi determinante para que o Tribunal condenasse o recorrente, como o fez. Aliás o Tribunal ao dar por provado facto diverso subverteu em absoluto a prova da audiência de julgamento, o que implicaria nos termos do disposto no artigo 426º do Código de Processo Penal o reenvio do processo para novo julgamento, quando não for possível decidir da causa mas parece que este Tribunal dispõe de todos os elementos para decidir, isto é para absolver o recorrente.
M) Verdade é que existiu erro na crítica dos factos provados, pois contra o que resulta dos elementos constantes dos autos, o Tribunal emitiu um juízo sobre a verificação da matéria de facto que o não poderia ter feito e que por isso se torna incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida. O Tribunal retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, pois não há nenhuma prova conclusiva que tenha sido o arguido a praticar o crime de que foi acusado.
N) E não se tendo provado a prática do crime de que vem o arguido acusado, terá forçosamente que improceder o pedido de indemnização civil formulado nos presentes autos».
Termina pelo provimento do recurso.
1.5. Na 1ª instância houve Resposta do Ministério Público o qual conclui que o recurso não merece provimento, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
1.6. O Exmº Procurador-Geral Adjunto nesta Relação emitiu Parecer, no sentido de que o recurso não merece provimento, concordando com a resposta à motivação apresentada pelo MºPº em 1ª Instância.
1.7. Foi cumprido o disposto no art. 417º, nº 2, do CPP.
1.8. Procedeu-se à documentação dos actos da audiência.
1.9. Foram colhidos os vistos legais.
1.10. Procedeu-se a julgamento com observância do legal formalismo.
***
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. No acórdão recorrido deram-se como provados os seguintes factos:
2.1.1. O arguido era vendedor da sociedade “E..........”, com sede na Trav. ....., .., ....., Valongo.
2.1.2. A 24 de Setembro de 1998, o arguido pediu ao encarregado de armazém da referida sociedade, o H.........., o carregamento de 380.520 m2 de soalho, no valor total de Esc. 4.313.340$00, para ser entregue nesse mesmo dia.
2.1.3. O arguido informou que aquela mercadoria se destinava à sociedade “F..........” e seria paga no acto da entrega.
2.1.4. A mercadoria foi carregada e o motorista da ofendida dirigiu-se para um local do concelho de Santa Maria da Feira, onde o arguido se encontrava à espera.
2.1.5. Aí chegado, o arguido, com o camião da ofendida atrás de si, parou em diversas obras de construção civil, alegando estar à procura do comprador da mercadoria.
2.1.6. Uma vez que não o encontraram, o arguido indicou como local de descarga uma garagem, sita na R. ....., nº ..., Oliveira de Azeméis, tendo a mercadoria sido aí descarregada na presença do arguido e de um casal cuja identidade não foi possível apurar.
2.1.7. Como o motorista e o ajudante tinham ordens para entregar a mercadoria contra pagamento, o arguido informou-os que o material se destinava a uma obra dum familiar do referido casal, e que por isso tinham de esperar que o mesmo chegasse para pagar.
2.1.8. Os funcionários da ofendida e o arguido junto com o referido casal, aguardaram ainda um pouco junto ao local de descarga do material, quando o arguido informou que iriam esperar pelo comprador num restaurante próximo daquele local.
2.1.9. Chegados ao restaurante, e uma vez que o comprador não aparecia, o arguido informou os funcionários da ofendida que se podiam retirar uma vez que ele ficaria até aquele chegar.
2.1.10. O arguido deu então ao alegado genro do comprador a factura para que este a rubricasse, entregando depois uma cópia aos funcionários da ofendida, dizendo-lhes que dali não sairia sem o pagamento.
2.1.11. No entanto, nunca mais o arguido contactou com qualquer funcionário da ofendida, tendo esta sofrido um prejuízo igual ao valor da mercadoria.
2.1.12. Bem sabia o arguido que ao agir da forma descrita determinaria a ofendida a entregar, em prejuízo próprio e para enriquecimento doutrem cuja identidade não foi possível determinar, mercadoria no valor total de Esc. 4.313.340$00.
2.1.13. De facto, o encarregado da ofendida apenas carregou e enviou a mercadoria por estar convencido de que a mesma seria paga contra entrega, e o motorista apenas se retirou do local da entrega porque confiou que o arguido iria receber o pagamento da mesma.
2.1.14. O arguido agiu sempre de modo livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
2.1.15. O arguido aufere o rendimento mínimo, vai trabalhar como instrutor para a escola de condução do pai, a esposa ganha cerca de € 399,04/mês, como empregada de balcão de tem três filhos menores e já sofreu condenações pela prática de crimes de burla e falsificação.
2.2. No acórdão recorrido deram-se como não provados os seguintes factos:
2.2.1. O arguido enriqueceu, ao actuar da forma descrita.
2.3. Na motivação probatória da decisão de facto consta o seguinte:
«A convicção do Tribunal para o apuramento dos factos provados e não provados fundamentou-se na ponderação, análise crítica e conjugação dos seguintes elementos probatórios:
Declarações do arguido : referiu a sua situação familiar e profissional, bem como os seus antecedentes criminais; negou ter actuado com intenção de prejudicar a ofendida e confirmou que depois de ter abandonado o local onde o soalho foi descarregado, nunca mais contactou com a ofendida.
Prova documental: C.R.C, fls. 166 e ss., certidão “negativa” da PSP/Matosinhos, junta aos autos em audiência e doc. de fls. 4.
Declarações do demandante civil I..........: disse que o arguido era vendedor da ofendida; confirmou a área de soalho e respectivo valor; que as ordens foram dadas no sentido de descarregar a mercadoria e trazer o dinheiro.
Prova Testemunhal:
H.........., encarregado de armazém da demandante civil, à data dos factos; descreveu o ocorrido tal como acima dado por provado; disse que foi o arguido, como vendedor, que forneceu os dados para o preenchimento da “venda a dinheiro“ de fls. 4, pedindo-lhe o carregamento da mercadoria em causa, alegando que seria paga no acto de entrega.
J.........., trabalhadora da ofendida, como indiferenciada, disse ter acompanhado o motorista G.........., com o carregamento em causa e descreveu o ocorrido, tal como acima dado por provado.
G.........., motorista da ofendida, referiu que acompanhado da J.........., se dirigiu, com o soalho ao encontro do arguido, passando-se as coisas tal como ora tidas por assentes e que o arguido nunca mais contactou com a ofendida, desde que o deixaram no local da descarga da mercadoria em causa.»
***
3. O DIREITO
De harmonia com o disposto no art. 428º, nº 1, do CPP, “As Relações conhecem de facto e de direito”.
No caso subjudice este tribunal conhece de facto e de direito, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 364º nº 1 e 428º, nºs 1 e 2, este “a contrario”, todos do CPP.
No âmbito desta cognição cabe, ainda, conhecer, também oficiosamente, dos vícios enumerados no art. 410º, nº 2, do CPP, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, no seguimento do decidido no Ac. do STJ nº 07/95, em interpretação obrigatória.
3.1. Das conclusões da motivação de recurso resulta que o recorrente pretende impugnar a matéria de facto e a matéria de direito.
Consta dos autos que a prova produzida em audiência foi gravada e mostra-se transcrita integralmente pelo Tribunal, tendo o recorrente especificado os pontos que no seu entender considera incorrectamente julgados, bem como indicou quais os elementos de prova que no seu entender impõem decisão diversa da recorrida, pelo que este Tribunal está apto a conhecer da matéria de facto, uma vez que a prova se mostra integralmente transcrita. (art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP).
Em sede de matéria de facto, o objecto do presente recurso, face às conclusões da respectiva motivação, prende-se com as seguintes questões:
- O acórdão recorrido enferma de erro notório na apreciação da prova, a que alude o art. 410º, nº 2, al. c), do CPP
- Impugna a matéria de facto provada, porquanto no seu entender o arguido não agiu com intenção de obter para outrem, que nem sequer conhecia um enriquecimento ilegítimo, nem enganou a ofendida fazendo-a crer que a mercadoria se destinava à cliente mencionada na "venda a dinheiro" e que seria paga no acto da entrega, pois tais elementos e condições foram-lhe dados pela ofendida, o Tribunal retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, pois não há nenhuma prova conclusiva que tenha sido o arguido a praticar o crime de que foi acusado.
Para o efeito alicerça-se nos depoimentos do demandante civil I.........., das testemunhas de acusação H.........., J.........., G.......... e das declarações do próprio arguido;
Em sede de matéria de direito, conclui o arguido que deve ser absolvido da prática do crime de que vem acusado, bem como do pedido de indemnização civil.
Vejamos, pois, a matéria de facto.
3.1.2. Antes do mais importa ter presente que os vícios a que alude o art. 410º, nº 2, alíneas a) a c), do nº 2, do art. 410º, do CPP - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, e erro notório na apreciação da prova - não se confundem com o controlo do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa. Estes erros respeitam a situações distintas: - erro na apreciação da prova é o erro sobre a admissibilidade e valoração do meios de prova. [Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos Sobre o Novo Código do Processo Civil, Lex, 1197, pág. 438]
Com efeito e como acima dissemos os vícios previstos nas alíneas a) a c), nº 2, do art. 410º, do CPP, têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a elementos externos à decisão, enquanto que no controle do erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, quando o recorrente impugna a matéria de facto nos termos do art. 412º, nº 3, do CPP, o Tribunal de recurso procede ao reexame de facto, nos pontos especificados pelo recorrente que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, especificadas pelo recorrente, e com base nas quais assenta a sua discordância (art. 412º, nº 3, als. a) e b), do CPP).
Trata-se, pois, de situações bem distintas.
No entanto, in casu, o recorrente alega que o acórdão recorrido enferma dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada de erro notório na apreciação da prova a que aludem as alíneas a) e c), do nº 2, do art. 410º, do CPP, e simultaneamente impugna a matéria de facto dada como provada no acórdão sob sindicância.
3.1.3. Analisando o invocado vício de erro notório na apreciação da causa, previsto na alínea c), do nº 2, do art. 410º, do CPP.
Como é consabido, o erro notório na apreciação da prova é o erro grosseiro que não escapa a um observador médio. Existe tal vício quando se dão provados, factos que, face às regras da experiência comum e à lógica do homem médio, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos.
Quanto ao erro notório na apreciação da prova, refere o Prof. Marques da Silva que «é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.» [Curso de Processo Penal, Vol. III pp. 341 e 342. Um facto é notório quando o juiz o conhece como tal, colocado na posição do cidadão comum, regularmente informado, sem necessitar de recorrer a operações lógicas e cognitivas nem a juízos presuntivos. Vd. ainda, com particular interesse, Alberto dos Reis, no «Código de Processo Civil, Anotado», vol. III, pp. 259 e ss., Castro Mendes, «Do Conceito de Prova», pp. 711 e ss. e Vaz Serra, Provas», no BMJ 110, pp. 61 e ss].
In casu, porém, nenhum erro transparece do texto da decisão recorrida, quer por si só, quer conjugada com as regras da experiência comum, nem se vislumbra o desrespeito por prova legalmente vinculativa ou tarifada que tivesse sido desprezada, ou não investigada pelo tribunal recorrido.
O Tribunal recorrido fundamentou a sua decisão quanto à matéria de facto provada e não provada, enumerando os elementos probatórios em que se baseou para formar a sua convicção, com indicação dos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, com critérios lógicos e objectivos, e alicerçada nos elementos de prova obtidos em audiência, bem como nos documentos juntos aos autos e invocados na motivação da matéria de facto, encontrando-se a matéria de facto fixada de acordo com um raciocínio lógico e coerente.
Do exposto resulta que o acórdão sob sindicância não enferma do vício de erro notório na apreciação da prova. Com efeito, uma coisa é a discordância a decisão de facto do julgador e outra aquela que teria sido a do próprio recorrente.
“Se o recorrente alega vícios da decisão recorrida a que se refere o nº 2 do art. 410º do CPP, mas fora das condições previstas nesse normativo, afinal impugna a convicção adquirida pelo tribunal “a quo” sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecido da regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127º” [Ac. do STJ de 13FEV91, AJ nºs 15/16,7)]
No caso subjudice, o recorrente faz decorrer o alegado vício de erro notório na apreciação da prova, de uma diferente apreciação da prova produzida em audiência, impugnando dessa forma a convicção assim adquirida e pondo em causa a regra da livre apreciação da prova. A motivação expressa pelo Tribunal “a quo” é suficiente para habilitar os sujeitos processuais, bem como o Tribunal de recurso, a concluir que as provas a que o Tribunal “a quo” atendeu são todas permitidas por lei de acordo com o preceituado no art. 355º, do CPP, e que o Colectivo seguiu um processo lógico e racional na formação da sua convicção, desta não resultando uma decisão ilógica, arbitrária, contraditória ou claramente violadora das regras experiência comum na apreciação da prova.
3.1.4. Vejamos, agora a matéria de facto impugnada pelo recorrente.
Alega o recorrente que não agiu com intenção de obter para outrem, que nem sequer conhecia um enriquecimento ilegítimo, nem enganou a ofendida fazendo-a crer que a mercadoria se destinava à cliente mencionada na "venda a dinheiro" e que seria paga no acto da entrega, pois tais elementos e condições foram-lhe dados pela ofendida, o Tribunal retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, pois não há nenhuma prova conclusiva que tenha sido o arguido a praticar o crime de que foi acusado, nunca as testemunhas pensaram que o B.......... os tivesse a enganar, mas apenas a cumprir as suas funções.
Para o efeito alicerça-se nos depoimentos do demandante civil I.........., das testemunhas de acusação H.........., J.........., G.......... e das declarações do próprio arguido.
3.1.5. Analisando o depoimento de I.........., à data dos factos sócio gerente da ofendida declarou que o arguido era vendedor da empresa e que a testemunha H..........; que os funcionários da empresa tinham ordem para deixar a mercadoria e levar o dinheiro; que teve conhecimento dos factos nesse dia à meia-noite; ou seja que tinham deixado a mercadoria, mas que não receberam nada; que no dia seguinte o deixou a carrinha na empresa cá fora com a chave na ignição, e que até ao momento nunca mais teve contacto com ele nem recebeu o dinheiro.
A testemunha H.........., encarregado de armazém referiu que no dia anterior à data da nota de venda a dinheiro, o arguido telefonou-lhe pedindo-lhe o material, soalho flutuante de 14mm de régua única, na ordem dos 380, 520m2, pediu-lhe para levar uma amostra do material que tinham em stock , cerejeira ou carvalho, para mostrar ao cliente. No dia seguinte levou a amostra, e por volta da 11h30m telefonou-lhe a dizer que o negócio estava fechado, e se lhe podia entregar o pavimento, insistindo para ver se conseguia que o motorista entregasse nesse dia o material, porque o cliente ia para fora. Então a testemunha perguntou-lhe qual a forma como é que o cliente iria proceder ao pagamento, porque eram muitos metros, sendo umas centenas muito largas de contos, cerca de quatro mil e tal contos. O arguido respondeu-lhe que não havia problema porque o senhor iria pagar em dinheiro, tendo a testemunha referido se ele teria todo esse dinheiro em casa, ao que o arguido respondeu que não sabia, mas se ele disse que ia pagar em dinheiro é porque o tem:
Em seguida a testemunha contactou com o motorista G.........., e quando ele chegou teve o cuidado de referenciar que ele entregar a mercadoria após receber o dinheiro, dizendo-lhe: “Sr. G.........., você não deixe ficar a mercadoria sem primeiro receber. Portanto, você vai com a J.......... - que era uma outra funcionária da empresa - para o ajudar.
Aguardou na empresa, algum contacto, até cerca das 10h30m, altura em que o motorista chegou com a viatura, dizendo-lhe a mercadoria tinha sido entregue, ou seja, que tinha sido descarregada numa determinada garagem, mas que não tinha recebido, mas que o vendedor ia à procura do respectivo comprador para trazer o dinheiro no dia seguinte. No dia seguinte de manhã cedo foram à procura da dita garagem e a mesma estava vazia. Por diversas vezes fez démarches no sentido de contactar a pessoa a quem pertencia a garagem, mas nunca conseguiu, tendo regressado à empresa de mãos vazias, tendo logo contactado o Sr. I........... Nunca mais viu o B........... Esclareceu ainda que foi o arguido quem forneceu os elementos para a venda a dinheiro, designadamente o nome do comprador, o número de contribuinte; que a prática corrente, sempre que a forma de pagamento é a dinheiro passa-se uma venda a dinheiro, não se passa uma factura. A factura é feita com a forma de pagamento com o prazo mais dilatado; como no caso o recebimento era no imediato, era em dinheiro, a nota foi tirada como venda a dinheiro; mas que nunca receberam o dinheiro.
Relativamente à firma para onde supostamente seria vendido o chão flutuante, vieram a saber que a firma não existia, que não tinha rigorosamente nada a ver com os dados que ele tinha dado; que era uma empresa de Matosinhos, e toda a documentação, toda a transacção foi feita para Oliveira de Azeméis
A testemunha J.........., funcionária da ofendida, que acompanhou o motorista na entrega da mercadoria, esclareceu que foram ter com o arguido B.........., numa rotunda, ele ainda não tinha chegado, e uma vez contactado pelo telefone pelo motorista, chegou com um casal e depois disse para o seguirem; meteu para uma estrada que tinha casas em construção e parava, em diversas casa em construção, até que, a testemunha e o motorista G.........., lhe disseram: “Isto aqui não tem condições para deixar o material porque não tem nenhum sítio para fechar”, então a senhora que ia com o arguido B.......... foi telefonar para uma tia e ela disse que podia descarregar o material numa garagem de um prédio, tendo então seguido para esse prédio, e ela foi buscar a chave. Entretanto, ficaram ali à espera bastante tempo e já de noite, veio o senhor com a chave e abriu a garagem, onde foi descarregado o material, ele foi levar a chave, tendo a testemunha e o motorista ido tomar um café ao lado. O senhor que estava com o B.........., era chinês, fez um rabisco na factura, e o B.......... disse que iria ficar à espera até que ele viesse com o dinheiro, tendo a testemunha e o motorista regressado e foram falar com o Sr. I.........., contando o sucedido. O B.......... nunca mais contactou com a empresa.
A testemunha G.........., motorista da empresa, afirmou que foi descarregar o material acompanhado da testemunha J.........., que encontraram-se com o vendedor B.........., que estava acompanhado do casal onde deixaram a mercadoria, que um senhor de raça chinesa; que deram várias voltas, por prédios que se encontravam em construção, em obras, porque o vendedor B.......... dizia que o comprador do material era um empreiteiro e que tinha várias obras, acabando por descarregar o material numa garagem de baixo de um prédio, na presença do senhor chinês e do vendedor B.........., já que a senhora que o acompanhava disse que ia buscar a chave, mas quem veio com a chave foi o tal chinês, que foi este quem fez um rabisco na guia que levavam, que o vendedor ficou no local, tendo a testemunha e a J.......... voltado para empresa para deixar a carrinha e em seguida, como não traziam o dinheiro, foram dar conta do sucedido ao patrão, o Sr. I........... No dia seguinte quando chegaram à empresa estava lá a carrinha que era usada pelo vendedor B.........., com as portas abertas, sendo que nunca mais o viram, foram então de novo à garagem, onde tinham descarregado o material, mas a mesma estava vazia.
Por seu turno o arguido B.........., nas suas declarações nega que tenha sido ele a dizer para descarregarem o material na aludida garagem, que efectivamente foi o tal chinês que assinou a guia, que ficou à espera no local que procedessem ao pagamento, já que a senhora que o acompanhou disse-lhe que a mercadoria era para o pai, e que era ele ia proceder ao pagamento. Como este não chegava com o dinheiro, e já era de noite, tinha a mulher à espera dele para jantar, foi-se embora e disse-lhe que no dia seguinte seriam contactados pela empresa; que foi à empresa deixar a carrinha, deixando-a fechada, e deixou as chaves na caixa do correio; que no dia seguinte telefonou para a empresa para falar com o Sr. H.........., mas foi-lhe dito que ele não estava, tendo o arguido dito à funcionária que o atendeu que não voltava a trabalhar na empresa; questionado porque não voltou a trabalhar para a ofendida, disse que ganhava apenas 60/70 contos mês, que tinha a mulher desempregada, e que tinha tido um proposta de trabalho para onde foi passado dez dias, no Porto; que nunca mais soube de nada.
3.1.6. Ora, analisando o depoimento conjugado do demandante civil I.........., das testemunhas H.........., J.......... e G.........., não há dúvida que a matéria dada como provada se encontra correctamente fixada pelo Tribunal Colectivo.
Com efeito, quando o arguido B.........., exercendo as funções de vendedor da sociedade ofendida, contactou com o encarregado de armazém H.........., dizendo-lhe que tinha um cliente para adquirir a quantidade do material em causa, e depois de lhe levar a amostra, disse que o mesmo ia pagar em dinheiro, o encarregado de armazém questionou-o sobre se o referido cliente tinha dinheiro suficiente em casa, uma vez que se tratava de uma quantia elevada, tendo o arguido respondido que não havia problema pois que o cliente tinha dito que tinha tal quantia, por isso iria pagar. Foi o arguido quem forneceu os elementos para a venda a dinheiro, designadamente o nome do comprador, o número de contribuinte, e relativamente à firma para onde supostamente seria vendido o chão flutuante, os funcionários da empresa ofendida, vieram a saber que a firma não existia, que não tinha rigorosamente nada a ver com os dados que ele tinha dado; que era uma empresa de Matosinhos, e toda a documentação da transacção foi feita para Oliveira de Azeméis.
Por outro lado, no dia em que o motorista G.......... e a funcionária que o acompanhou J.......... procederam à entrega do material, encontraram-se com o arguido, estando este acompanhado do referido casal, acabando por ir descarregar a mercadoria numa garagem, depois de terem passado por vários prédios em construção; o referido chinês fez um rabisco na guia de entrega do material, ficando o arguido no local com o mesmo chinês, acabando o motorista e a funcionária J.........., por se virem embora sem o dinheiro e sem o material.
No dia seguinte o encarregado de armazém e o motorista foram ao local onde foi descarregado o material, ou seja, na referida garagem, e já lá não se encontrava o material, e não obstante as diligências efectuadas por estes para tentarem localizar o “comprador” do material nunca conseguiram reaver o material nem o dinheiro.
Por seu turno, a carrinha que o arguido utilizava na empresa foi encontrada na empresa no dia seguinte, sem que o arguido jamais contactasse com os responsáveis da empresa ofendida.
Ora, é evidente que, quer o motorista, quer o encarregado de armazém, confiaram que o arguido, como vendedor da empresa, iria receber o pagamento da mesma. Com efeito, tal como consta da matéria de facto provada, o encarregado da ofendida apenas carregou e enviou a mercadoria por estar convencido de que a mesma seria paga contra entrega, e o motorista apenas se retirou do local da entrega porque confiou que o arguido iria receber o pagamento da mesma.
Só o comportamento do arguido levou a que os funcionários da empresa ofendida H.......... e G.........., acreditassem que a mercadoria iria ser paga, pois que, foi o arguido quem indicou os elementos do cliente, a mencionada empresa de “F..........”, vindo a apurar que não tinha rigorosamente nada a ver com os dados que o arguido tinha dado; que era uma empresa de Matosinhos, e toda a documentação da transacção foi feita para Oliveira de Azeméis. É o que resulta da prova produzida em audiência e que se mostra transcrita.
3.1.6. De acordo com a regra da livre apreciação da prova inserta no art. 127º, do CPP, “…a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, que não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova, nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova, mas tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica [Ac. do STJ de 09MAI96, in proc. nº 48690/3ª].
Como se afirma no Ac. do STJ de 30JAN02, [sumariado no Site da Internet do STJ, Boletim Interno 2002] “A partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, este enuncia as razões de ciência extraídas destas, o porquê da opção por uma e não outra das versões apresentadas, as houver, os motivos da credibilidade em depoimentos documentos ou exames que privilegiou na sua convicção, em ordem a que um leitor atento e minimamente experimentado fique ciente da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção».
Do supra exposto resulta que não há nos autos, quer da prova testemunhal produzida em audiência, documentada e transcrita, elementos que permitam a este Tribunal concluir que os factos que o recorrente impugna se mostram incorrectamente julgados, ou que o Tribunal “a quo” atendeu a prova proibida por lei (art. 125º, do CPP) e todas de livre apreciação do julgador, segundo as regras da experiência comum e a sua convicção (art. 127º do CPP), de forma a que a matéria de facto fixada pelo Tribunal Colectivo deva ser alterada.
Importa salientar, relativamente ao recurso da matéria de facto, em segunda jurisdição, que o princípio da imediação respeita predominantemente à audiência de julgamento. E, não há dúvida que os factos, quando ocorrem, esgotam-se em si mesmos, sendo sempre impossível a sua reconstituição natural e o que se pretende fazer na audiência é reconstituir o que se passou, na base que ficou retido a quem a eles assistiu e teve conhecimento. A verdade que surge ao tribunal é a verdade que decorre da audiência. Ora, não há dúvida que, não obstante a prova ter sido documentada, não tem este Tribunal da Relação, nem pode ter, a mesma percepção que o juiz do julgamento na primeira instância, porque lhe está vedada a imediação.
É sabido que as testemunhas “são os auxiliares do juiz, são os olhos e os ouvidos da justiça” [Pietro Ellero, citando Mittermaier, “De certidumbre en los juicios criminales o Tratado de La Puebra em materia penal, 7ª edição, Reus, 1980, pág. 114].
Sobre a apreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de segunda instância, cabe aqui referir, enfim, que «O Tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção (…), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo Tribunal “a quo” tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova (…) pode exibir perante si [Ac da RC de 03OUT00, in CJ 2000, Tomo IV, pág. 28]. E, tal como se afirma no Ac da RC de 09FEV00, [CJ 2000, Tomo I, pág. 55] «Na verdade, não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, este tribunal está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão. Conforme refere Figueiredo Dias,[Princípios Gerais do Processo Penal, pág. 160] só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabeleceu-se com o Tribunal de primeira instância e daí que a alteração da matéria de facto fixada em decisão colegial, deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação. E, acrescenta, o mesmo aresto, «Conforme refere Marques da Silva o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão, regras da experiência».
3.1.7. No caso subjudice, dos elementos de prova carreados para os autos conjugados entre si, e segundo as regras da experiência comum, não resulta que o Tribunal tenha dado como provados factos que como tal especificou, tendo dúvidas sobre a verificação de algum ou alguns deles, não ressaltando que outra deveria ter sido a decisão sobre a matéria de facto.
3.2. Vejamos, a matéria de direito.
3.2.1. Para a verificação do crime de burla, é essencial que o agente, astuciosamente, induza em erro ou engano outrem, para obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo - “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais…” (art. 313º, nº 1, do CP/82).
Assim, para a verificação do crime de burla há a considerar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa que induza directamente ou mantenha em erro ou engano o lesado, e num segundo momento deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro. Por outro lado, deverá existir uma sucessiva relação de causa-efeito entre os meios empregues e o erro ou engano e entre estes e os actos que vão directamente defraudar o património do terceiro ou do lesado [vide neste sentido, o Ac. do STJ de 08FEV96, in CJ, Acs. do STJ, 1996, Tomo I, 208)].
Na determinação do enriquecimento ilegítimo importa considerar o conceito civilístico do enriquecimento sem causa: o enriquecimento de alguém, com o consequente empobrecimento de outrem, o nexo causal entre a primeira e a segunda destas situações e a falta de causa justificativa de tal empobrecimento [Ac. do STJ de 23JAN97, in BMJ, 463, 276].
Astúcia no sentido semântico do termo, é a habilidade em exercer fraude, em enganar alguém, sem que este se aperceba, para daí obter benefício [“Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea”, Academia das Ciências de Lisboa, Ed. Verbo].
3.2.2. O crime de burla é um crime material ou de resultado, que apenas se consuma com a saída das coisas ou dos valores da “disponibilidade fáctica” do sujeito passivo ou da vítima, e, assim, quando se dá o “evento”, que embora integre uma consequência da conduta do agente, se apresenta autónomo em relação a ele.
Por outro lado, a burla integra um delito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito forma particular forma de comportamento. Traduz-se na utilização de um meio enganoso tendente a induzir outra pessoa num erro que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios.
Para que se esteja em face de um crime de burla, não basta, porém, o simples emprego de um meio enganoso: torna-se necessário que ele consubstancie a causa efectiva da situação de erro em que se encontra o indivíduo. De outra parte, também não se mostra suficiente a simples verificação do estado de erro: requer-se ainda, que nesse engano resida a causa da prática, pelo burlado, dos actos de que decorrem os prejuízos patrimoniais (...) Tratando-se de um crime material ou de resultado, a consumação da burla passa, assim por um duplo nexo de imputação objectiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática pelo burlado, de actos tendentes a um diminuição do património (próprio ou alheio)1), e, depois entre os últimos a efectiva verificação do prejuízo patrimonial 2 [vide A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbrinsense ao Código Penal, Parte Especial, tomo II, pág. 292-293].
Como refere JESCHECK, [in Tratado de Derecho Penal, Vol. I, pág. 360-361 ] «Dentro dos delitos de multiplicidade de actos e de resultado, constituem grupos específicos dos delitos imperfeitos de dois actos e dos delitos de resultado cortado (de resultado parcial ou cortado). Por vezes, o legislador transpõe o segundo momento do acto do facto punível ao tipo subjectivo com o objectivo de prevenir a protecção típica. Nos delitos imperfeitos de dois actos basta que no momento da primeira acção concorra a intenção do agente de realizar mais adiante a segunda acção que todavia inexiste, assim, na falsificação de documentos basta a intenção de enganar o comércio jurídico no momento da falsificação. Diferente é o caso dos delitos de resultado parcial ou cortado - caracterizando-se por uma “descontinuidade” ou falta de congruência entre os correspondentes tipos subjectivo e subjectivo- , antes da verificação do resultado - Nestes a verificação do resultado não faz parte do tipo de ilícito, pelo contrário, basta a intenção do agente dirigida ao resultado; por exemplo na burla, a intenção do lucro. Enquanto que no primeiro grupo a intenção se dirige a um comportamento ulterior do próprio sujeito, no segundo a produção do resultado pretendido é independente da própria actuação do agente».
«No plano dos factos, a conduta do agente comporta a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade ou penetração psicológica que combina a antecipação das reacções do sujeito passivo com a escolha dos meios idóneos para conseguir o objectivo em vista. Por outro lado, a experiência de todos os dias revela que, longe de envolver, de forma inevitável, a adopção de processos rebuscados ou engenhosos, aquela sagacidade comporta uma regra de “economia de esforço”, limitando-se o burlão ao que se mostra necessário em função das características e da situação da vítima. Numa tal adequação de meios - adequação essa que, atentas as particularidades do caso, pode encontrar o “ponto óptimo” no menos sofisticado dos procedimentos - radica em suma, a inteligência ou astúcia que preside ao estereotipo social da burla e, sob pena de um divórcio perante as realidades da vida, tem de subjazer à fattispecie do nº 1 do art. 217º. Refira-se, por último que só nesta perspectiva se harmoniza com o entendimento, hoje pacífico, de que a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente se afere tomando em consideração as características do concreto burlado».[A. M. Almeida Costa, in Comentário Conimbrinsense ao Código Penal, Parte Especial, tomo II, pág. 298].
«Na imputação objectiva, subjacente aos pressupostos da chamada teoria da adequação, tendo em atenção a particular credulidade ou falta de resistência do burlado (v.g. mercê da fragilidade intelectual, de inexperiência, ou de especiais relações de confiança com o agente), admite-se a possibilidade de concluir pela idoneidade de um meio enganador via de regra incapaz de persuadir a generalidade das pessoas» [vide A. M. Almeida Costa, in ob. cit., pág. 294-295].
«No quadro da compreensão da burla como um delito contra o património, exige-se a verificação de um genuíno domínio-do-erro, como pressuposto da responsabilização do agente pelo crime consumado, nesse domínio-do-erro terá de ancorar o fundamento da imputação do resultado à conduta. De harmonia com a exposição anterior, na medida em que se exprime a adequação do comportamento do agente às características do caso concreto, aquele domínio-do-erro esgota o conteúdo útil da inclusão do advérbio “astuciosamente” no nº 1, do art. 217º, enquanto nota caracterizadora do modus operandi da burla :por referência ao art. 10º, nº 1, do CP, ele exprime, no contexto de um iter criminis que comporta, de permeio, a intervenção de outra pessoa (= sujeito passivo), a exigência de um rigor intensificado - o mesmo que se coloca na esfera da autonomia mediata fundada no domínio-do-erro - ao nível da aplicação dos critérios gerais da imputação objectiva [vide A. M. Almeida Costa, in ob. cit., pág. 299-301].
3.2.3. Aplicando os princípios e conceitos supra enunciados ao caso subjudice, verifica-se que se mostram preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de burla, p. e p., pelo art. 217º, nº 1 e 218º, do CP.
Com efeito, tal como resulta da factualidade provada, o arguido na sua qualidade de vendedor da sociedade “E..........”, em 24SET98, pediu ao encarregado de armazém da referida sociedade, o H.........., o carregamento de 380.520 m2 de soalho, no valor total de Esc. 4.313.340$00, para ser entregue nesse mesmo dia., informando que aquela mercadoria se destinava à sociedade “F..........” e seria paga no acto da entrega, sendo que a mercadoria foi carregada e o motorista da ofendida dirigiu-se para um local do concelho de Santa Maria da Feira, onde o arguido se encontrava à espera, aí chegado, o arguido, com o camião da ofendida atrás de si, parou em diversas obras de construção civil, alegando estar à procura do comprador da mercadoria, e uma vez que não o encontraram, o arguido indicou como local de descarga uma garagem, sita na R. ....., nº..., Oliveira de Azeméis, tendo a mercadoria sido aí descarregada na presença do arguido e de um casal cuja identidade não foi possível apurar, como o motorista e o ajudante tinham ordens para entregar a mercadoria contra pagamento, o arguido informou-os que o material se destinava a uma obra dum familiar do referido casal, e que por isso tinham de esperar que o mesmo chegasse para pagar.
Os funcionários da ofendida e o arguido junto com o referido casal, aguardaram ainda um pouco junto ao local de descarga do material, quando o arguido informou que iriam esperar pelo comprador num restaurante próximo daquele local; chegados ao restaurante, e uma vez que o comprador não aparecia, o arguido informou os funcionários da ofendida que se podiam retirar uma vez que ele ficaria até aquele chegar, o arguido deu então ao alegado genro do comprador a factura para que este a rubricasse, entregando depois uma cópia aos funcionários da ofendida, dizendo-lhes que dali não sairia sem o pagamento, no entanto, nunca mais o arguido contactou com qualquer funcionário da ofendida, tendo esta sofrido um prejuízo igual ao valor da mercadoria. O encarregado da ofendida apenas carregou e enviou a mercadoria por estar convencido de que a mesma seria paga contra entrega, e o motorista apenas se retirou do local da entrega porque confiou que o arguido iria receber o pagamento da mesma.
O arguido que bem sabia que ao agir da forma descrita determinaria a ofendida a entregar, em prejuízo próprio e para enriquecimento doutrem cuja identidade não foi possível determinar, mercadoria no valor total de Esc. 4.313.340$00, agindo sempre de modo livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Assim sendo, mostra-se correcto o enquadramento jurídico-penal a que se procedeu no acórdão recorrido, bem como se mostra justa e equilibrada a pena que lhe foi aplicada, bem como o pedido de indemnização civil em que foi condenado.
Neste sentido, improcede o recurso do arguido B.........., não merecendo o acórdão sob sindicância qualquer reparo ou censura fazendo uma correcta aplicação e interpretação da lei não a violando em qualquer ponto.
4. DECISÃO.
Termos em que acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B.......... e, em consequência, confirmar o douto acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6UC.
A taxa de conversão em euros prevista no art. 1º do Regulamento CE nº 2 866/98 do Conselho a todas as referências feitas anteriormente em escudos, é aplicada automaticamente, como decorre do art. 1º, nº 2, do DL nº 323/01, de 17DEZ.
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Porto, 26 de Janeiro de 2005
Maria da Conceição Simão Gomes
Francisco José Brízida Martins
António Gama Ferreira Gomes
Arlindo Manuel Teixeira Pinto