Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
572/17.0T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FÁTIMA ANDRADE
Descritores: CONTRATO DE DEPÓSITO BANCÁRIO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS DE PAGAMENTO
DÉBITO DIRECTO
DIREITO DA UNIÃO EUROPEIA
QUESTÃO PREJUDICIAL
REENVIO
Nº do Documento: RP20180221572/17.0T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: SUSPENSÃO/REENVIO
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 669, FLS 18-32)
Área Temática: .
Sumário: I - O Direito da União Europeia exige uma interpretação e aplicação uniforme nos EM – princípio da interpretação conforme ou compatível com o DUE.
II - O TJ tem competência através das questões prejudiciais para interpretar o Direito Comunitário e igualmente para apreciar da sua validade.
III - Só através desta função de interpretação foi e é possível garantir a interpretação e aplicação uniformes do Direito da União Europeia pelos diversos tribunais nacionais dos EM, na medida em que o decidido vincula os mesmos.
IV - É entendimento pacífico ser o reenvio obrigatório quando o tribunal decide em última instância, salvo se a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos EM.
Exceção que igualmente tem lugar se existir já jurisprudência interpretativa do TJ sobre as normas a aplicar.
V - A execução de uma ordem de pagamento na modalidade de débito direto pressupõe a existência de um prévio contrato de prestação de serviços celebrado entre o titular de conta bancária e a respetiva instituição bancária.
VI - É ónus da instituição bancária fazer a prova da celebração de tal contrato, habilitante da sua atuação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº. 572/17.0T8PRT.P1
3ª Secção Cível
Relatora – Juíza Desembargadora M. Fátima Andrade
Adjunto - Juiz Desembargador Oliveira Abreu
Adjunto - Juiz Desembargador António Eleutério
Tribunal de Origem do Recurso – T J Comarca do Porto – Jz. Local Cível
Apelante/ “B..., S.A.”
Apelado/“C..., S.A.” e outra

Sumário (artigo 663º n.º 7 do CPC).
......................................................
......................................................
......................................................

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I- Relatório
“B..., S.A.”, melhor id. a fls. 3, instaurou a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra “C..., S.A.”, igualmente melhor id. a fls. 3.
Pela procedência da ação, peticionou a A. a condenação do R. “a devolver/reembolsar à Autora o valor de € 8.226,03 (oito mil duzentos e vinte e seis euros e três cêntimos), acrescido de juros de mora, contabilizados à taxa legal e civil de 4% desde a citação até efetivo e integral pagamento/devolução.”
Quantia esta correspondente, conforme alegou, a débitos diretos indevidamente efetuados entre maio de 2010 e dezembro de 2014, sobre conta de que a A. é titular a favor de terceira entidade com quem não tem qualquer relação e sem que para o efeito tenha dado autorização ao banco R.. Perante quem não assume a posição de ordenante - por referência ao Regime Jurídico dos Serviços de Pagamento (doravante RJSP) aprovado pelo DL 317/2009 cuja aplicação assim afasta e que o banco R. invocou em defesa da sua posição de negação da sua pretensão.
Mais alegou a A. desta situação apenas se ter apercebido na sequência de uma auditoria a que as suas contas foram sujeitas em 2014.
Situação que nasceu do erro grosseiro do R. ao não ter verificado/conferido a identidade do titular da conta mencionada na autorização do ordenante.
Contestou o R. em suma alegando, ter ao abrigo do RJSP procedido ao cancelamento dos débitos diretos que estavam em curso, bem como devolvido o correspondente a 13 meses anteriores à última cobrança nos termos do artigo 69º do RJSP. Nenhuma outra obrigação de devolução tendo ao abrigo de tal diploma legal.
Mais alegou apenas ter tomado conhecimento da referida autorização em débito e assim da sua subscrição por entidade diversa da titular da conta – a aqui A. – na sequência da comunicação da autora, após ter obtido cópia da D... (banco do credor) da referida autorização de débito que até então nunca lhe fora exibida, atentos os moldes em que se processa o serviço de débitos diretos através de mecanismos de compensação e liquidação utilizados pelos bancos participantes.
A ter havido qualquer violação dos respetivos deveres de cuidado e diligência no tratamento e processamento da “autorização de cobrança por transferência bancária” sendo esta imputável não ao banco R. mas sim à D.... Instituição que recebeu e teve acesso ao referido documento e procedeu às cobranças com base no mesmo.
Ainda e para o caso de se entender ter havido responsabilidade do banco R., alegou este ter então a A. concorrido, pela omissão de controle dos movimentos bancários da sua conta desde 2010 e até 2014, para o agravamento dos próprios danos. O que deverá ser avaliado à luz do disposto no artigo 570º do CC.
Face ao alegado e para salvaguarda de ação de regresso, deduziu por último o R. incidente de intervenção acessória provocada da “D..., S.A.”.
Admitido o respetivo incidente e citada a chamada, contestou esta em suma e para o efeito convocando igualmente o RJSP, tendo negado qualquer responsabilidade na produção dos danos alegados pela autora, porquanto não visualizou a “Autorização de Débito em Conta” (doravante ADC) que fica em poder do credor (seu cliente).
ADC que de qualquer modo só poderia e deveria ser conferida pelo Banco Devedor, ou seja o aqui R..
Assim concluindo que qualquer responsabilidade deve ser imputada à sociedade devedora que erradamente preencheu o ADC, bem como ao banco R. por não ter verificado a conformidade do IBAN com a respetiva titularidade da conta previamente à cobrança.

Em resposta, a A. pugnou pela improcedência da a si imputada responsabilidade no agravamento dos danos produzidos, atenta a sua elevada faturação por contraponto aos valores em causa, individualmente baixos, associado aos gigantescos movimentos bancários da autora.
*
Proferido despacho saneador e agendada audiência final, procedeu-se à sua realização, após o que foi proferida sentença julgando a ação “improcedente, por não provada e, consequentemente, absolve-se a Ré C..., S.A. do pedido.
*
Do assim decidido apelou a A., oferecendo alegações e formulando as seguintes

Conclusões:
“A. A sentença recorrida enferma do vício de violação de lei, por errónea interpretação e aplicação de normas jurídicas, maxime dos artigos 69º e 2º alíneas i), j) e m) do RJSP, como se demonstrará adiante.

ENQUADRAMENTO FACTUAL

B. A Recorrente é titular de uma conta bancária junto do Recorrido, com o nº .........
C. No âmbito de auditorias internas realizadas no ano de 2014, a Recorrente verificou que, através de débito direto, estava a sua conta a ser debitada para pagar valores ao credor .......... – E..., S.A., não obstante não ter celebrado qualquer contrato com essa sociedade, nem possuir instalações em nenhum nesses dois concelhos.
D. Após vários contactos escritos e telefónicos entre a Recorrente e o Recorrido, verificou-se i) o cancelamento do débito direto relativo ao credor nº .......... – E..., S.A. e ii) a devolução da quantia de € 683,48, atinente aos débitos indevidamente efetuados nos meses de Outubro e Novembro de 2014.
E. Dessa troca de correspondência, obteve ainda a Recorrente uma cópia da “Autorização de Cobrança por Transferência Bancária”, assinada aparentemente pelos gerentes da sociedade F..., Lda. no dia 21 de Novembro de 2006, para débito na conta com o NIB .......................[Cfr. documento nº 2 junto com a petição inicial.] (que corresponde à conta nº ........, cujo titular era e é da Recorrente [Cfr. documento nº 3 junto com a petição inicial e ponto i) dos factos dados como provados.].
F. Era dever do Recorrido ter conferido e confirmado os dados bancários enviados com a identidade do titular da conta bancária, com o ordenante das instruções de débitos em conta, o que não foi feito.
G. Ainda da troca de contactos estabelecidos entre as partes, o Recorrido, por carta datada de 16 de Dezembro de 2014 [Cfr. documento nº 5 junto com a petição inicial.], refere o seguinte: “Confirmando-se a inexistência ou irregularidade da autorização, assiste o direito de reembolso dos débitos para o qual o devedor tem 13 meses a contar da data em que os fundos foram debitados, e o banco a obrigação de proceder ao seu reembolso ao abrigo do artigo 69º do RJSP (Regime Jurídico dos Serviços de Pagamentos), aprovado pelo Decreto-Lei nº 317/2009, alterado pelo Decreto-Lei 242/2012 e não pelo Decreto-Lei 307/2009 como é referido. Neste contexto, procedeu o Banco no dia 12 de Dezembro de 2014, à anulação das cobranças até ao limite legal previsto (até 13 meses anteriores à última cobrança)”.
H. A Recorrente conseguiu apurar que, não obstante o Recorrido ter ordenado o reembolso dos valores relativos aos últimos 13 meses (Outubro de 2013 a Dezembro de 2014), ainda se encontra em dívida o valor de € 8.226,03 (oito mil duzentos e vinte e seis euros e três cêntimos), relativo ao período compreendido entre os meses de Maio de 2010 a Setembro de 2013.
I. A Recorrente nunca celebrou um contrato com o Recorrido com vista a debitar diretamente na sua conta valores referentes a faturas da E..., S.A. em seu nome (que não era o caso) ou em nome de um terceiro (neste caso concreto, da F..., Lda.).
J. A Recorrente era e é totalmente alheia às relações comerciais e contratuais que se estabeleceram entre a F..., a E..., S.A. e o Recorrido.

DA ERRÓNEA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DE NORMAS JURÍDICAS
K. A verdadeira questão que se coloca neste recurso, atenta a posição assumida pela sentença proferida pelo tribunal a quo, é a de saber se, perante o quadro normativo aplicável ao caso em apreço, o valor remanescente e ora reclamado de € 8.226,03, que vai para além do 13 meses previstos no nº 1 do artigo 69º do RJSP, deverá ser ou não objeto de reembolso por parte do Recorrido.
L. A única interpretação que nos parece ser justa e equilibrada é que a Recorrente, no caso sub judice e para os efeitos pretendidos, nunca poderá ser considerada ou qualificada como um utilizador do serviço de pagamento, como refere o dito artigo 69º [Negrito e sublinhado nosso.].
M. Nos termos do disposto na alínea m) do artigo 2º do RJSP um utilizador do serviço de pagamento é uma “pessoa singular ou coletiva que utiliza um serviço de pagamento a título de ordenante, de beneficiário ou em ambas as qualidades”.
N. A Recorrente não foi ordenante nem beneficiária do serviço de pagamento em análise, não podendo por conseguinte o caso em apreço enquadrar-se e subsumir-se no aludido artigo 69º do RJSP.
O. Mesmo aceitando que o Recorrido “recebe apenas um ficheiro do banco do credor” e “procede ao débito da conta do indicado devedor, não sendo exibido ao banco do devedor o documento de Autorização de Débito em conta” [Cfr. página 8 da sentença recorrida.], era dever do Recorrido ter verificado a conformidade dos dados bancários com o respectivo titular da conta, e não o fez.
P. Entendimento contrário, levará à falência da relação de confiança que (ainda?) existe ou deverá existir entre as entidades bancárias e os titulares de depósito ou deverá existir entre as entidades bancárias e os titulares de depósito bancários.
Q. A interpretação e aplicação das normas do RJSP em apreço da banda do tribunal a quo leva à inelutável desresponsabilização dos bancos nos casos em que é sacado - ilegal e ilegitimamente [Mas sem censura do tribunal a quo.] - dinheiro das contas dos cidadãos e empresas em casos como o dos autos.
R. O que nos parece de todo inadmissível e contrário à letra e ao espírito da lei.
S. Importa reiterar que a Recorrente nunca celebrou qualquer contrato com o Recorrido, ou deu qualquer ordem, com vista a debitar diretamente na sua conta valores referentes a faturas da E..., S.A. emitidas em seu nome (que não era o caso) ou em nome de um terceiro (neste caso concreto, da F..., Lda.).
T. Regressemos e estacionemos o bloco argumentativo na alínea m) do artigo 2º do RJSP: um utilizador do serviço de pagamento é uma “pessoa singular ou coletiva que utiliza um serviço de pagamento a título de ordenante, de beneficiário ou em ambas as qualidades”.
U. Em primeiro lugar, a Recorrente não “utilizou” qualquer serviço.
V. Depois, e mesmo que o tivesse utilizado – o que não se concede -, não se vislumbra como poderá a Recorrente integrar a posição de ORDENANTE, porquanto se teria que tratar de um “pessoa singular ou coletiva que detém uma conta de pagamento e que autoriza uma ordem de pagamento, a pessoa singular ou coletiva que emite uma ordem de pagamento” – artigo 2º alínea i) do RJSP).
W. E, seguindo o mesmo raciocínio, e julgamos ser unânime, a Recorrente não foi certamente BENEFICIÁRIA, na medida em que não integra o papel de “pessoa singular ou coletiva que seja o destinatário previsto dos fundos que foram objeto de uma operação de pagamento” – artigo 2º alínea j) do RJSP”), uma vez que, repete-se, por erro exclusivo dos serviços do Recorrido, viu a sua conta bancária emagrecer todos os meses desde o ano de 2006 [Muito embora na presente ação somente se reclame os valores conhecidos (e que não foram devolvidos), isto é, desde Maio de 2010 e Setembro de 2013.].
X. Concluindo: é apodítico que o limite temporal de 13 meses referido no artigo 69º do RJSP não tem aplicação neste caso.
Y. Verifica-se que a sentença recorrida enferma do vício de errónea interpretação e aplicação dos artigos 69º e 2º, alíneas i), j) e m) do RJSP.
Z. Pelo exposto, deverá o presente recurso de apelação ser julgado procedente, revogando-se a sentença a quo e proferindo Acórdão que condene o Recorrido a devolver/reembolsar à Recorrente o valor de € 8.226,03, acrescido de juros de mora, contabilizados à taxa legal e civil de 4% desde a citação até efetivo e integral pagamento/devolução.
TERMOS EM QUE,
Deverão V. Exas. julgar o presente recurso de apelação procedente, revogando a sentença a quo e proferindo acórdão que condene o Recorrido a devolver/reembolsar à Recorrente o valor de € 8.226,03 (oito mil duzentos e vinte e seis euros e três cêntimos), acrescido de juros de mora, contabilizados à taxa legal e civil de 4% desde a citação até efetivo e integral pagamento/devolução, bem como nas custas da presente ação.
Fazendo assim a Sã e Costumeira JUSTIÇA.
***
Apresentou o R. “C..., S.A.” contra-alegações, em suma tendo concluído pelo bem decidido pelo tribunal a quo e como tal pela total improcedência do recurso apresentado.
Invocou ainda que e caso houvesse responsabilidade do banco, sempre a culpa da lesada deveria levar à exclusão do dever de indemnizar nos termos do artigo 570º nº 2 do CC.
***
O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
***
II- Âmbito do recurso.
Delimitado como está o recurso pelas conclusões das alegações, sem prejuízo de e em relação às mesmas não estar o tribunal sujeito à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, nem limitado ao conhecimento das questões de que cumpra oficiosamente conhecer – vide artigos 5º n.º 3, 608º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4 e 639º n.ºs 1 e 3 do CPC – resulta das formuladas pela apelante serem questões a apreciar:

I- Da obrigação do banco R. em proceder à devolução dos valores debitados em conta de titularidade da aqui A. sem autorização da mesma;
II- Da (não) integração da conduta do banco R. no Regime Jurídico de Serviços de Pagamento aprovado pelo DL 317/2009 de 30/10 e nomeadamente da (não) aplicação do limite ao reembolso previsto no artigo 69º deste RSJP;
III- Da atuação culposa da A. e consequente contribuição para o agravamento dos danos reclamados.
***
III- Fundamentação
Foram dados como provados os seguintes factos:
a) A Autora dedica-se à atividade de agente de navegação e é titular de uma conta bancária junto do Banco Réu, com o n.º .........
b) No âmbito de auditorias internas realizadas no ano de 2014, a Autora verificou que, através de débito direto, a sua conta estava a ser debitada para pagamento de valores ao credor .......... – E..., S.A.
c) A Autora nunca celebrou qualquer contrato com a sociedade E..., S.A.
d) A Autora é uma sociedade com um nível de faturação muito elevado, e aqueles débitos diretos passaram despercebidos à sua contabilidade até 17 e novembro de 2014.
e) No dia 17 de novembro de 2014, a Autora escreveu uma carta ao Banco Réu, na qual pediu o cancelamento do débito direto relativo ao credor n.º .......... – E..., SA, bem como o cancelamento das “autorizações n.º .......... e ...........”, conforme cópia da referida carta junta a fls. 8, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
f) Nessa mesma comunicação, é ainda solicitado pela Autora ao Banco Réu que proceda à “reversão dos valores debitados na conta depósito à ordem n.º ......... pertencente à B..., em virtude dos respetivos valores não serem devidos”, terminando com o pedido de envio de cópia dos documentos que haviam autorizado os referidos débitos diretos.
g) Foram trocados vários e-mails e estabelecidos diversos contactos telefónicos entre a Autora e o Banco Réu, que resultaram no cancelamento do débito direto relativo ao credor n.º .......... – E..., S.A. e na devolução da quantia de € 683,48, atinente aos débitos efetuados nos meses de outubro e novembro de 2014.
h) Dessa troca de correspondência, obteve ainda a Autora uma cópia da “Autorização de Cobrança por Transferência Bancária”, assinada aparentemente pelos gerentes da sociedade F..., Lda. no dia 21 de novembro de 2006, para débito na conta com o NIB ....................., conforme cópia da referida Autorização junta a fls. 8v.º, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
i) O referido NIB ..................... corresponde à conta n.º ........, cujo titular era e é a Autora, conforme ficha de dados bancários da Autora junta a fls. 9, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
j) No dia 10 de dezembro de 2014, foi escrita nova carta ao Banco Réu, na qual a Mandatária da Autora reitera que a conta de depósitos à ordem n.º ........ tem vindo a sofrer débitos diretos relativos ao pagamento à sociedade E..., S.A. do consumo de água de uma empresa da Trofa (F..., Lda.), que não tem qualquer relação com a Autora, conforme cópia da carta junta a fls. 9v.º a 10v.º, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
k) A resposta do Banco Réu surgiu por carta datada de 16 de dezembro de 2014, cuja cópia se encontra junta a fls. 11 e que, em síntese, refere o seguinte:
“Confirmando-se a inexistência ou irregularidade da autorização, assiste o direito de reembolso dos débitos para o qual o devedor tem 13 meses a contar da data em que os fundos foram debitados, e o banco a obrigação de proceder ao seu reembolso ao abrigo do artigo 69º do RJSP (Regime Jurídico dos Serviços de Pagamentos), aprovado pelo Decreto-Lei nº 317/2009, alterado pelo Decreto-Lei 242/2012 e não pelo Decreto-Lei 307/2009 como é referido.
Neste contexto, procedeu o Banco no dia 12 de Dezembro de 2014, à anulação das cobranças até ao limite legal previsto (até 13 meses anteriores à última cobrança)”.
l) Tendo presente que a credora E... S.A. recebeu os créditos correspondentes aos valores em causa em conta sediada noutra Instituição de Crédito que não no Banco Réu, no caso a D..., S.A., o Banco Réu solicitou àquela Instituição cópia da autorização de débito em causa.
m) Após ter obtido da D..., S.A. cópia da referida autorização de débito, da qual só teve conhecimento naquela data, verificou o Banco Réu que a mesma não se encontrava subscrita pela Autora mas sim por outra sociedade designada F..., Lda., havendo uma discrepância entre o n.º de conta indicado e o NIB, que correspondia ao NIB da Autora junto do Banco Réu.
n) O Banco Réu ordenou o reembolso dos valores relativos aos últimos 13 meses (outubro de 2013 a dezembro de 2014).
o) No período compreendido entre os meses de maio de 2010 a setembro de 2013, foi apurada, através dos extratos bancários, a realização na conta titulada pela Autora, de débitos diretos com uma periodicidade mensal, no valor de € 8.226,03 (oito mil duzentos e vinte e seis euros e três cêntimos), para pagamento, à sociedade E..., S.A., de consumos de água da sociedade F..., Lda.
p) No dia 3 de agosto de 2016, foi escrita nova carta ao Banco Réu, cuja cópia se encontra junta a fls. 11v.º a 12v.º, em que se pede a devolução do valor de € 8.226,03 (oito mil duzentos e vinte e seis euros e três cêntimos), atinente ao período compreendido entre os meses de maio de 2010 a setembro de 2013.
q) O Banco Réu enviou periodicamente à Autora os extratos da sua conta.
r) A Chamada celebrou com a sua Cliente E..., S.A. o contrato cuja cópia se encontra junta a fls. 88v.º a 95v.º e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
s) No n.º 7 da cláusula 7ª do mencionado contrato prevê-se expressamente que a Cliente assume inteira responsabilidade pelo conteúdo dos ficheiros, sendo a única responsável pelas informações e dados neles contidos.
t) A Chamada rececionou da sua Cliente, por ficheiro IDD (documento eletrónico que contém um conjunto de instruções de débitos diretos) a instrução de débito da conta do Devedor cuja identificação é feita pelo respetivo IBAN.
u) Esse ficheiro IDD é, então, reenviado pela Chamada para a SIBS, sem mais, entidade esta que, por sua vez, o reenvia para o Banco do Devedor.
v) A Chamada não visualiza a Autorização de Débito em Conta (ADC), porquanto este documento fica em poder do Credor.”
*
O tribunal a quo deu ainda como não provada a seguinte factualidade:
«Os serviços do Banco Réu aceitaram uma “Autorização de Cobrança por Transferência Bancária”, emitida pela sociedade F..., Lda. no dia 21 de novembro de 2006, para débito na conta com o NIB ......................»
*
Conhecendo.
Em função do acima enunciado cumpre apreciar de direito, tendo presente que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, não obstante e sem prejuízo do limite imposto pelo artigo 609º quanto ao objeto e quantidade do pedido, não estar o tribunal vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito [vide artigo 5º nº 3 do CPC].
Resulta dos factos provados que a A. é titular de uma conta bancária junto do banco réu [al. a) dos factos provados], pelo que e através da respetiva abertura se estabeleceu entre A. e R. uma relação contratual bancária – contrato de conta bancária, base do relacionamento entre ambos estabelecido.
A celebração deste contrato, considerado o “contrato bancário matriz” porquanto “constitui a convenção bancária nuclear ou básica no sentido em que estabelece o quadro geral de regulação da maioria dos futuros negócios que venham a ser celebrados entre as partes”, leva a si associados diversos outros contratos “satélites, mas autónomos, com caráter necessário (é o caso da conta-corrente bancária); usual (v.g. depósito bancário) e eventual (v.g. convenção de cheques, cartões bancários)” [1]
Através do contrato de conta corrente bancária, inerente portanto à celebração do contrato bancário matriz, obrigam-se as partes a “inscrever e registar os seus créditos e débitos recíprocos através do mecanismo contabilístico da conta-corrente”, tendo por objeto “exclusivamente créditos e débitos pecuniários” proporcionando a favor do cliente “um conjunto de serviços vários de crédito, pagamento e cobranças”[2]
No que ao contrato de depósito concerne entendemos, acompanhando a doutrina e jurisprudência que nesse sentido apontam, ser de qualificar o mesmo como um contrato de depósito irregular, através do qual “o depositante (proprietário) de recursos monetários transfere para uma instituição bancária a propriedade dos valores depositados para que esta, podendo usá-los e dispor deles, lhos restitua quando para tal lhe for solicitado ou exigido”[3].
Enquanto depósito irregular sendo-lhe aplicáveis as regras do contrato de mútuo (nos termos dos artigos 1205º e 1206º do CC), na medida em que não resulte em contrário do estabelecido contratualmente entre as partes ou do determinado legalmente por normativos que disciplinam nomeadamente o exercício da atividade bancária.
Em causa nomeadamente o estipulado de forma impositiva para a atividade bancária através do DL 298/92 de 31/12 que aprovou o RGCSIF [Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras] regulando (para além do mais) o exercício da respetiva atividade definida no artigo 4º [abrangendo entre o mais, o mencionado contrato de depósito bem como o contrato de conta-corrente ou ainda os serviços de pagamento tal como definidos no artigo 4º do RJSP] por parte das instituições de crédito e nesse contexto impondo regras de conduta e deveres de informação e assistência para com os seus clientes (artigos 74º e 77º respetivamente).
Ainda o regulado no DL 430/91 quanto à constituição de depósitos nas instituições de crédito definindo desde logo no artigo 1º as suas modalidades.
Bem como o estabelecido nos Avisos do BP (Banco de Portugal) de que se destaca o Aviso 6/2009 o qual estabeleceu “um conjunto de disposições a que devem obedecer os depósitos bancários” aplicando-se “a todas as modalidades de depósito bancário previstas no Decreto-Lei nº 430/91, de 2 de Novembro, incluindo os depósitos que sejam suscetíveis de ser classificados como produtos financeiros complexos, de acordo com o artigo 2.º do Decreto-Lei nº 211-A/2008, de 3 de Novembro.”
In casu, foi estabelecida uma conta de depósitos à ordem, tal qual resulta da ficha de dados bancários junta a fls. 9 dos autos e referida em i) dos factos provados. Correspondente à modalidade prevista no artigo 1º nº 1 al. a) do DL 430/91, a qual se carateriza pela exigibilidade a todo o tempo do respetivo saldo (vide nº 2 deste artigo 1º).
Feito este prévio enquadramento legal, peticiona a autora a condenação do R. à devolução da quantia que alegou foi indevidamente debitada da conta de que é titular através de débito direto, com base na não celebração de qualquer contrato com o réu, com vista a debitar diretamente na sua conta valores referentes a faturas do credor “E...”. Sendo que a autorização de débito não foi por si emitida mas por entidade terceira, tendo assim o R. atuado com erro grosseiro ao aceitar de tal autorização sem confirmar a identidade do ordenante das instruções de débito face ao titular da conta.
Contrapôs o R. ter procedido já à devolução do montante a que estava obrigado nos termos do RJSP – 13 meses por referência ao disposto no artigo 69º nº 1 deste mesmo diploma legal. Mais alegou que só com a reclamação da A. em 2014 teve conhecimento da autorização de débito e como tal só então verificou que a mesma não estava subscrita pela autora, mas por terceira entidade.
O que aliás resultou provado [vide m) dos factos provados].
Porém, provado resultou igualmente que a ordem de débito foi dada por uma empresa terceira – “F...” para pagamentos de valores ao credor “E...” (seu credor portanto) - indicando todavia o NIB da autora [vide al. m) dos factos provados].
Ou seja, a aqui autora não emitiu qualquer autorização de débito em conta.
E fundando-se nesta inexistente autorização – em 32º da p.i. a A. alegou nunca ter celebrado com o banco R. qualquer contrato com vista a debitar diretamente na sua conta valores referentes a faturas da “E...” emitidas quer em seu nome que em nome de terceiro, nomeadamente da sociedade “F...” que figura como a autorizante de tal “cobrança por transferência bancária [vide h) dos factos provados] - alega a recorrente não lhe ser aplicável o preceituado no RJSP e nomeadamente no seu artigo 69º.
Porquanto, conforme igualmente alegou, não foi ordenante nem beneficiária do serviço de pagamento prestado pelo banco R. [vide conclusões L) a N) e S)].
O DL 317/2009 de 30/10 que aprovou o RJSP (regime jurídico que regula o acesso à atividade das instituições de pagamento e a prestação de serviços de pagamento) visou “transpor para a ordem jurídica interna o novo enquadramento comunitário em matéria de serviços de pagamento, que tem em vista assegurar condições de concorrência equitativas entre todos os sistemas de pagamentos no espaço comunitário e preservar a escolha do consumidor em melhores condições de segurança, eficácia e eficiência de custos.”
Em causa a Diretiva n.º 2007/64/CE[4], do Parlamento Europeu e do Conselho, de 13 de Novembro que este DL transpôs (vide artigo 1º do citado DL) e assim aprovou no anexo i ao mesmo “o respetivo regime jurídico que regula o acesso à atividade das instituições de pagamento e a prestação de serviços de pagamento.” (vide artigo 2º nº 1 do citado DL).
No que ora releva para o caso sub judice e tal como consta do preâmbulo do citado DL:
- no que respeita a informações a prestar, foi consagrado no título iii deste DL “um conjunto de regras destinadas a garantir a transparência das condições e dos requisitos de informação que regem os serviços de pagamento, as quais são aplicáveis a um vasto conjunto de entidades.”, das quais decorre “que as informações a prestar aos utilizadores devem ser proporcionais às respetivas necessidades e comunicadas sob um formato uniforme. No mesmo sentido, é expressamente consagrado o direito de o consumidor receber gratuitamente a informação pertinente antes de ficar vinculado por qualquer contrato de prestação de serviços de pagamento.
Contudo, os requisitos de informação aplicáveis a uma única operação de pagamento são diferentes dos aplicáveis a um contrato quadro que preveja uma série de operações de pagamento. Os contratos quadro e as operações de pagamento por estes abrangidas são mais comuns e significativos de um ponto de vista económico do que as operações de pagamento de carácter isolado. Por conseguinte, os requisitos de informação prévia a respeito daqueles são bastante exaustivos, devendo as informações ser necessariamente prestadas em papel ou noutro suporte duradouro. Nas operações de pagamento de carácter isolado, apenas as informações essenciais devem ser prestadas por iniciativa do prestador do serviço de pagamento (…)” [em causa os artigos 40º a 58º do citado DL com correspondência aos artigos 30º e segs. da Diretiva transposta];
- por outro lado, quanto à execução das operações de pagamento e responsabilidade à mesma inerente nomeadamente quando não autorizadas, foi estabelecido que “o prestador de serviços de pagamento deve reembolsar imediatamente o utilizador do montante da operação de pagamento não autorizada.
Com o intuito de incentivar o utilizador dos serviços de pagamento a comunicar, sem atraso injustificado, ao respetivo prestador, qualquer furto ou perda de um instrumento de pagamento, reduzindo assim o risco de operações de pagamento não autorizadas, o utilizador será apenas responsável por um montante limitado, salvo no caso de atuação fraudulenta ou de negligência grave da sua parte. Além disso, a partir do momento em que tiver notificado o prestador do serviço de pagamento de que o seu instrumento de pagamento pode ser objeto de uma utilização fraudulenta, o utilizador não será obrigado a suportar quaisquer perdas adicionais resultantes da utilização não autorizada desse instrumento.” [em causa os artigos 65º e segs., em especial o artigo 69º do citado DL com correspondência aos artigos 54º e segs. da Diretiva transposta, em especial o artigo 58º desta última].
Para efeitos da aplicação do regime assim aprovado [e uma vez mais seguindo o disposto na Diretiva transposta] ficou definido no artigo 2º do RJSP entender-se por:
“(…)
c) «Serviços de pagamento» as atividades enumeradas no artigo 4.º;
e) «Instituições de pagamento» as pessoas coletivas a quem tenha sido concedida autorização, nos termos do artigo 10.º, para prestar e executar serviços de pagamento em toda a União Europeia;
(…)
g) «Operação de pagamento» o ato, praticado pelo ordenante ou pelo beneficiário, de depositar, transferir ou levantar fundos, independentemente de quaisquer obrigações subjacentes entre o ordenante e o beneficiário;
(…)
i) «Ordenante» uma pessoa singular ou coletiva que detém uma conta de pagamento e que autoriza uma ordem de pagamento a partir dessa conta, ou, na ausência de conta de pagamento, a pessoa singular ou coletiva que emite uma ordem de pagamento;
j) «Beneficiário» uma pessoa singular ou coletiva que seja o destinatário previsto dos fundos que foram objeto de uma operação de pagamento;
k) «Prestador de serviços de pagamento» as entidades enumeradas no artigo 7.º;
(…)
m) «Utilizador de serviços de pagamento» uma pessoa singular ou coletiva que utiliza um serviço de pagamento a título de ordenante, de beneficiário ou em ambas as qualidades;
(…)
q) «Conta de pagamento» uma conta detida em nome de um ou mais utilizadores de serviços de pagamento, que seja utilizada para a execução de operações de pagamento;
(…)
s) «Ordem de pagamento» qualquer instrução dada por um ordenante ou um beneficiário ao seu prestador de serviços de pagamento requerendo a execução de uma operação de pagamento;
(…)
z) «Instrumento de pagamento» qualquer dispositivo personalizado ou conjunto de procedimentos acordados entre o utilizador e o prestador do serviço de pagamento e a que o utilizador de serviços de pagamento recorra para emitir uma ordem de pagamento;
(…)
ae) «Débito direto» um serviço de pagamento que consiste em debitar a conta de pagamento de um ordenante, sendo a operação de pagamento iniciada pelo beneficiário com base no consentimento dado pelo ordenante ao beneficiário, ao prestador de serviços de pagamento do beneficiário ou ao prestador de serviços de pagamento do próprio ordenante;”.
Conforme já referido, o recorrente nega ser utilizador de serviço de pagamento porquanto não foi ordenante, nem beneficiário do serviço de pagamento em análise, portanto rejeitando a aplicação a si do RJSP.
Em causa, portanto, o conceito de utilizador de serviço de pagamento e por inerência de ordenante, beneficiário e serviço de pagamento [vide al. m) do artigo 2º] bem como de prestador de serviços de pagamento atento o disposto no artigo 69º do RJSP.
Convocando a factualidade provada, extrai-se da mesma que o serviço de pagamento em análise respeita à execução de uma operação de pagamento na modalidade de débito direto [vide als. h) a j) e m) dos factos provados conjugado com o artigo 4º al. c) i e artigo 2º als. c) e ae) do RJSP].
Tal como resulta do artigo 4º al. c) i acima citado, constitui serviço de pagamento a atividade de “c) Execução de operações de pagamento, incluindo a transferência de fundos depositados numa conta de pagamento aberta junto do prestador de serviços de pagamento do utilizador ou de outro prestador de serviços de pagamento, tais como:
i) A execução de débitos diretos, incluindo os de carácter pontual;”.
Portanto o serviço de pagamento pressupõe uma conta de pagamento, definida esta como “q) uma conta detida em nome de um ou mais utilizadores de serviços de pagamento, que seja utilizada para a execução de operações de pagamento;”
Sendo operação de pagamento o “ g) (..) ato, praticado pelo ordenante ou pelo beneficiário, de depositar, transferir ou levantar fundos, independentemente de quaisquer obrigações subjacentes entre o ordenante e o beneficiário;”
E ordenante “i) (…)uma pessoa singular ou coletiva que detém uma conta de pagamento e que autoriza uma ordem de pagamento a partir dessa conta, ou, na ausência de conta de pagamento, a pessoa singular ou coletiva que emite uma ordem de pagamento;
Pelo que um «Utilizador de serviços de pagamento» é a pessoa singular ou coletiva que utiliza um serviço de pagamento a título de ordenante, de beneficiário ou em ambas as qualidades (al. m).
A utilização do serviço de pagamento através da respetiva conta de pagamento pressupõe, todavia, a prévia celebração de um contrato quadro – “o) um contrato de prestação de serviços de pagamento que rege a execução futura de operações de pagamento individuais e sucessivas e que pode enunciar as obrigações e condições para a abertura de uma conta de pagamento; ou no caso de operação de pagamento de caráter isolado a celebração de um contrato de serviço de pagamento de caráter isolado (cfr. artigos 46º e segs. e 51º e segs. do RJSP).
No caso, pelas operações individuais e sucessivas que ocorreram necessariamente que a sua execução estava dependente da celebração de um contrato quadro entre A. e R..
Contrato cuja celebração incumbia ao R. ter alegado e provado a fim de se prevalecer do RJSP pelo mesmo invocado, já que a A. expressamente negou ter com o mesmo celebrado qualquer contrato – vide 32º da p.i..
O R. não observou o ónus de prova que sobre si impendia (vide artigo 342º nº 2 do CC).
A inexistência de tal contrato e a não autoria da ordem de débito direto, são conforme já referido fundamento da pretensão da recorrente em ver afastada a aplicação a esta situação do RJSP.
RJSP que regula igualmente a situação de execução de operações de pagamento não autorizadas (no que ora releva) concedendo proteção ao utilizador de serviço de pagamento nos termos do artigo 69º do mesmo.
Normativo invocado pelo banco R..
A apreciação desta questão implica portanto um juízo de interpretação de normativos da UE porquanto e conforme já referido o RJSP resulta da transposição de uma Diretiva.
Em causa e com relevo para estes autos o âmbito de aplicação da Diretiva 2007/64/CE transposta para a nossa ordem jurídica interna por via do RJSP vindo de analisar, bem como a abrangência do conceito de utilizador de serviços de pagamento.
Na verdade - na medida em que em causa está a execução de um serviço/operação de pagamento na modalidade de débito direto tal como definido no artigo 4º nº 3 e 28 em conjunção com o ponto 3 do anexo da Diretiva 2007/64/CE, por parte de uma instituição de crédito tal como definida no artigo 1º al. a) da mesma Diretiva - importa interpretar o artigo 2º desta Diretiva que define o seu âmbito de aplicação “aos serviços de pagamento” por forma a concluir se abrange a execução de uma ordem de pagamento de débito direto emitida, por entidade terceira sobre uma conta por si não titulada. Conta esta sobre a qual o respetivo titular não celebrou com a respetiva instituição de crédito qualquer contrato de serviço de pagamento para ato isolado ou contrato quadro de prestação de serviços de pagamento.
Mais e no caso de resposta afirmativa a esta questão, importa ainda concluir se no mesmo contexto, pode o mencionado titular da conta ser considerado “utilizador de serviços de pagamento” para efeitos do artigo 58º da mesma Diretiva, o que por sua vez convoca a interpretação do conceito de “utilizador de serviços de pagamento” para o efeito deste artigo.
A necessidade de interpretação destes normativos da UE, justifica um enquadramento quanto aos pressupostos do reenvio.
*
Na base da decisão dos EM de instituir uma União Europeia à qual atribuíram competências para atingir os seus objetivos comuns, está o escopo da progressiva integração europeia.
União esta fundada no Tratado da União Europeia e no Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, ambos de igual valor jurídico.
Do artigo 4º do TUE resulta a consagração do princípio da lealdade europeia a que os EM e a União estão vinculados, com vista a se respeitarem e assistirem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados.
Regendo-se a delimitação das competências da União pelo princípio da atribuição. E o exercício das competências da União pelos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade (artigo 5º n.º 1 do TUE).
Ao TFUE coube organizar o funcionamento da União e determinar os domínios, a delimitação e as regras de exercício das suas competências. Desde logo definindo os domínios em que tem competência exclusiva (artigo 3º) e competência partilhada (artigo 4º).
A instituição da União Europeia (sucedendo a Comunidade Europeia), com a atribuição de competências para atingir os objetivos comuns delineados pelos EM, algumas das quais exclusivas, bem evidenciam como a ideia do Estado Soberano associada à primazia da Constituição Nacional deu lugar ao primado do Direito da União, consagrado aliás na CRP – artigo 7º n.º 6 e 8º n.º 4.
O primado do DU sobre o Direito estadual constitui um atributo próprio do DU – enquanto Ordem Jurídica Uniforme[5], integrada no sistema jurídico dos EM que como tal se impõe aos seus tribunais, penetrando na ordem jurídica interna para aí produzir os seus efeitos, como desde logo o admitiu o TJ no caso Costa/Enel – Processo 6/64.
Por tal o DU enquanto Direito comum aos diversos EM exige uma interpretação e aplicação uniforme nesses mesmos EM – Princípio da Interpretação Conforme ou compatível com o direito da União Europeia - consequentemente e por tal tendo o TJ assumido supremo relevo na criação e desenvolvimento do Direito Comunitário a partir dos Tratados. Servindo-se para tal e sob impulso dos tribunais nacionais dos diversos EM [Tribunais funcionalmente europeus, em cooperação judiciária], das questões prejudiciais que lhe foram sendo apresentadas ao abrigo do atual artigo 267º do TFUE[6].
Do corpo deste artigo 267º resulta que o TJ tem competência através das questões prejudiciais para interpretar os Tratados, bem como se pronunciar sobre a validade e interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.
A função da interpretação assumiu, contudo, maior relevo na jurisprudência da UE porquanto só através desta foi e é possível garantir a interpretação e aplicação uniformes do Direito da União pelos diversos tribunais nacionais dos EM.
De realçar desde já que objeto das questões prejudiciais são apenas e conforme indicado no citado artigo 267º, atos da UE, como é o caso da já identificada Diretiva.
Uma vez apreciada uma questão prejudicial e em obediência ao princípio da interpretação uniforme do DUE, o decidido vincula todos os tribunais dos EM, ao abrigo do sistema do precedente que caracteriza o sistema da common law. Sem prejuízo de e quando necessário poder o TJ modificar a sua jurisprudência quando confrontado de novo com a mesma questão prejudicial, se o carácter evolutivo da integração europeia justificar tal alteração.[7]
Esta ideia do primado do DUE não significa contudo que exista uma situação de hierarquia entre a União e os EM porquanto as normas não precedem do mesmo sujeito. Assim o que este princípio implica é antes uma “preferência aplicativa em benefício da própria funcionalidade sistémica. (…) o primado apenas resolve o problema da convivência entre normas provenientes de distintas fontes, designadamente normas nacionais e normas europeias que serão aplicadas inevitavelmente sobre o mesmo território e idênticos destinatários.”[8]
Da “Jurisprudência Principialista”[9]
Conforme já supra fizemos referência, com o fim de instituir uma União Europeia – fundada no TUE e no TFUE - atribuíram os EM competências à mesma com vista a permitir a prossecução dos objetivos comuns delineados. Para tal se vinculando os EM e a UE a respeitarem e assistirem mutuamente no cumprimento das missões decorrentes dos Tratados – desta obrigação comum resultando a consagração do princípio da lealdade europeia (vide artigo 4º n.º 3 do TUE, anterior artigo 10º do TCE).
Deste princípio da lealdade e densificando o mesmo, o TJ deduziu jurisprudencialmente e na análise do caso concreto, ao longo dos 50 anos de integração europeia, uma série de outros princípios, designadamente:
1) o princípio do primado do DUE sobre o direito nacional – como consequência do qual a aplicação do direito nacional incompatível com o DUE não é aplicado; suprimindo-se ou reparando-se as consequências de um ato nacional contrário o DUE; estando os EM obrigados a fazer respeitar o DUE.
2) o princípio do efeito direto das normas europeias – por força do qual os particulares podem invocar normas europeias que imponham deveres/reconheçam direitos de forma suficientemente clara e incondicionada, inclusivamente contra normas nacionais violadoras do DUE;
3) princípio da efetividade e princípio da equivalência do DUE – garantindo o efeito útil das disposições europeias através das autoridades nacionais e assegurando que as pretensões decorrentes do DUE obtêm idêntica proteção às pretensões decorrentes do direito nacional;
4) princípio da interpretação conforme – visando a interpretação e aplicação das disposições nacionais em sentido compatível com o DUE;
5) princípio da responsabilidade do Estado por violação das obrigações europeias – impondo a indemnização dos particulares afetados;
6) princípio da tutela jurisdicional efetiva – fazendo depender a efetividade do DUE da garantia judicial das suas normas; integrando o direito de acesso à justiça; o direito a um processo equitativo e a um recurso efetivo; consagrando a aplicação de providências cautelares tendentes a evitar danos irreparáveis nos direitos dos particulares mesmo quando estas não tenham previsão ou estejam proibidas pelo direito nacional.[10]
Em consonância com o disposto no artigo 267º do TFUE § 2º é pacífico o entendimento de que o reenvio é obrigatório quando o tribunal decide em última instância, salvo se a norma a aplicar for de tal modo clara e evidente que não deixa qualquer dúvida razoável quanto à sua interpretação, quer para o tribunal que aprecia quer para os demais tribunais dos EM.
Exceção – à obrigação de reenvio - que igualmente tem lugar se existir já jurisprudência interpretativa do TJ sobre as normas a aplicar. Porquanto então o decidido vincula os diversos tribunais nacionais dos EM[11].
Feito este breve enquadramento do pedido de reenvio, convocando os seus pressupostos ao caso sub judice temos que a decisão que vier a ser proferida por este tribunal, atento o valor da causa, não é já suscetível de recurso judicial para o tribunal superior; por outro lado a decisão da causa depende da aplicação e interpretação de uma Diretiva Europeia e finalmente entendemos que o sentido a dar aos normativos já acima indicados não é de tal modo claro que afaste qualquer dúvida razoável.

Como tal entendemos ser de submeter ao TJUE nos termos do artigo 267º do TFUE e com vista a obter pronúncia sobre o sentido interpretativo dos normativos acima já citados a questão prejudicial que assim se formula:

I- Considerando:
- que em causa está a execução de um serviço de pagamento, operação de pagamento na modalidade de débito direto tal como definido no artigo 4º nº 3 e 28, conjugado com o ponto 3 do anexo da Diretiva 2007/64/CE, por parte de uma instituição de crédito tal como definida no artigo 1º al. a) da mesma diretiva;
- o âmbito de aplicação desta mesma Diretiva tal qual estabelecido no seu artigo 2º;
- a definição de prestador de serviços tal qual consta do artigo 4º nº 9 da Diretiva em menção
II – A) Deve ser interpretado o artigo 2º da Diretiva 2007/64/CE no sentido de no âmbito de aplicação da mesma definido neste artigo se considerar abrangida a execução de uma ordem de pagamento de débito direto emitida, por entidade terceira sobre uma conta por si não titulada e cujo titular de tal conta não celebrou com a respetiva instituição de crédito qualquer contrato de serviço de pagamento para ato isolado ou contrato quadro de prestação de serviços de pagamento?
II-B) Sendo afirmativa a resposta à questão II-A) e ainda no mesmo contexto, pode o mencionado titular da conta ser considerado utilizador de serviços de pagamento para efeitos do artigo 58º da mesma Diretiva?
*
***
III. Decisão.
Em face do exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto em:
A) Submeter à apreciação do Tribunal de Justiça da União Europeia a questão prejudicial supra enunciada e, em consequência,
B) Suspender, nos termos do art. 267.º do TFUE, 269.º e 272.º do CPC a presente instância.
Não são devidas custas.
Notifique-se.
D.N.
A secção procederá às diligências necessárias ao presente reenvio, instruindo-o com cópia certificada e devidamente legível das seguintes peças processuais, que acompanharão o presente aresto: - Petição inicial; Contestação e Sentença proferida pelo tribunal a quo, para além do presente Acórdão.
***
Porto, 2018-02-21
Fátima Andrade
Oliveira Abreu
António Eleutério
_____________
[1] José Engrácia Antunes in “Direito dos Contratos Comerciais, ed. 2009, p. 484 e487.
[2] Vide o mesmo autor in ob. cit. p. 492
[3] Neste sentido vide Ac. TRL de 07/05/2015, Relator Tomé Ramião e doutrina e jurisprudência nele citados; igualmente Ac. STJ de 08/05/2012, Relator Gregório Silva Jesus, in www.dgsi.pt.
[4] Diretiva esta recentemente revogada com efeitos a partir de 13/01/2018 pela Diretiva UE 2015/2366 do PEC, que a substituiu.
[5] Vide Fausto Quadros in “Direito da União Europeia”, ed. Almedina 2004, p. 378 e segs.. Onde este autor define o DU como Ordem Jurídica Uniforme, por contraponto ao Direito Internacional definido como um Direito fragmentário - na medida em que a sua receção na ordem interna de cada Estado é concretizada através dos filtros das constituições dos diferentes Estados e portanto submetido aos diferentes critérios de cada uma dessas constituições – vide Fausto Quadros in ob. cit., p. 400.
[6] Enquanto os tratados constitutivos não foram dotados de um catálogo de direitos fundamentais, coube ao TJ durante 40 anos recortar jurisprudencialmente a proteção dos direitos fundamentais enquanto “princípios gerais” do DU, cujo respeito lhe competia assegurar – cfr. Alessandra Silveira em comentário ao artigo 51º da Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
O reconhecimento dos direitos fundamentais enquanto princípios gerais do direito teve o seu início no Acórdão Stauder de 1969, o qual inaugurou o método de tutela dos direitos fundamentais baseado no recurso aos princípios gerais do direito, desde então entendidos como parâmetros de apreciação da validade dos atos jurídicos europeus, convocados pelo objetivo de subordinar as decisões europeias ao regime substancial e processual de uma autêntica União de Direito. Jurisprudência esta que depois evoluiu, por forma a se afirmar hoje que o método de proteção dos direitos fundamentais na UE assenta basicamente nos princípios constantes dos tratados constitutivos; nas tradições constitucionais comuns aos EM (bastando ser um princípio reconhecido na ordem jurídica de um EM e que resulte compatível com a estrutura e objetivos da ordem jurídica europeia – em consonância com o princípio do nível de proteção mais elevado consagrado no artigo 53º da Carta); nos instrumentos internacionais relativos aos direitos humanos que os EM subscreveram, nomeadamente CEDH por força do artigo 6º do TUE –vide Alessandra Silveira in “Princípios de Direito da União Europeia” – Doutrina e Jurisprudência, ed. Quid Juris, ed. 2009, p. 69 e segs..
[7] Fausto Quadros in ob. cit., p. 482 dá nota a título de exemplo da evolução progressiva que o TJ imprimiu à Teoria do Primado, através dos casos Costa/Enel, Simenthal, Wachauf e Factortame.
[8] Alessandra Silveira in “Princípios de Direito da União Europeia” já citado, p. 119.
[9] Conceito desenvolvido por J.J.Gomes Canotilho e citado por Alessandra Silveira in “50 anos de Integração à luz da Jurisprudência Principialista do Tribunal de Justiça – a Lealdade Europeia” in 50 Anos do Tratado de Roma, ed. Quid Juris, 2007, p. 105 e segs..
[10] Cfr. Alessandra Silveira in “Princípios de Direito da União Europeia” supra já citado, p. 95 e segs..
[11] Neste sentido vide Alessandra Silveira e Sophie Fernandes em “Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional)” publicada na revista Julgar 2015/10 disponível on line in julgar.pt, onde e pronunciando-se sobre a questão do cumprimento da obrigação de reenvio prejudicial por órgãos jurisdicionais nacionais que decidam em última instância convoca o Acórdão Ferreira da Silva e Brito e nomeadamente o considerando 38 do mesmo “retomando a jurisprudência firmada no Ac. Cilfit”, para (e citando tal considerando) concluir que «Decorre de jurisprudência consolidada desde a prolação do Acórdão Cilfit que “um órgão jurisdicional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial de direito interno é obrigado, sempre que uma questão de direito da União seja suscitada perante si, a cumprir a sua obrigação de reenvio, a menos que conclua que a questão suscitada não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi já objeto de interpretação por parte do Tribunal de Justiça ou que a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dê lugar a qualquer dúvida razoável”»