Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
18581/17.8T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PROENÇA
Descritores: FIANÇA
HIPOTECA
PLURALIDADE DE CRÉDITOS COM GARANTIAS DISTINTAS
PAGAMENTO PARCIAL
IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RP2019071018581/17.8T8PRT.P1
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 903, FLS 186-191
Área Temática: .
Sumário: Sendo o credor titular, em simultâneo, de dois créditos garantidos por hipoteca e fiança e de um crédito garantido apenas por hipoteca, no caso de venda coerciva do bem hipotecado cujo produto não chegue para a satisfação dos três créditos, é-lhe permitido, nos termos do artigo 784.º do Código Civil, imputar esse produto em primeiro lugar ao crédito garantido apenas por hipoteca por ser aquele que lhe oferece menor garantia.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 18581/17.8T8PRT.P1 – Apelação

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

B…, residente na Rua …, …, 2º Esq, Porto, propôs contra C..., com sede na Rua … … a …, ….-… Lisboa, acção com processo comum, pedindo a condenação da Ré a:
1. dar quitação de toda e qualquer responsabilidade do Autor relativa às fianças prestadas, comunicando a extinção do registo das mesmas junto do Banco de Portugal.
2. pagar ao Autor os prejuízos decorrentes da sua actuação, tanto patrimoniais como morais, os quais se computam em € 20.000,00.
Alega para tanto, e em síntese, a Ré e D…, como mutuário, celebraram três contratos de mútuo, dois deles em 02.06.204 e um terceiro em 09.02.2009, nos valores de 150.000,00€, 25.000,00€ e 25.000,00€, respectivamente, todos garantidos por hipoteca sobre imóvel. O autor garantiu por fiança os dois primeiros contratos de mútuo, não tendo intervindo no terceiro. Decretada a insolvência do referido D…, a Ré reclamou aqueles créditos, que foram graduados e procedeu-se na insolvência à venda do imóvel sobre o qual pendia a garantia hipotecária, pelo valor de 204.276,00 euros. A Ré imputou o pagamento assim obtido, em primeiro lugar, ao crédito mais recente, por não estar garantido por fiança, entendendo o Autor que o valor obtido deveria ter sido imputado respeitando a ordem da sua antiguidade, por forma a extinguir os outros dois créditos. Tal facto leva a que o Autor figure como incumpridor no Banco de Portugal, causando-lhe prejuízos patrimoniais e morais.
Citada a Ré, contestou, no essencial dizendo que os três créditos acima referidos foram graduados no processo de insolvência em igualdade de circunstâncias e sem qualquer ordem de preferência entre eles, assistindo-lhe assim o direito de imputar o pagamento no crédito que tinha menos garantias, de acordo com o disposto no art. 783º do Código Civil. Conclui pela improcedência da acção, com total absolvição do pedido.
Realizada audiência prévia, foi proferido saneador/sentença que, conhecendo directamente do mérito, decidiu julgar a acção parcialmente procedente, por também parcialmente provada e, em consequência:
A- Condenar a Ré a dar quitação ao Autor de todas as responsabilidades por si assumidas na qualidade de fiador dos dois contratos de mútuo acima identificados, comunicando a extinção dessas responsabilidades junto do Banco de Portugal;
B- Absolveu a Ré do mais peticionado pelo autor.
com a advertência de que ponderava o tribunal a eventualidade de estar já em condições de conhecer do mérito da causa, tendo-se procedido em conformidade (cfr. despacho de fls. 65 e acta de fls. 70).
Inconformada com o assim decidido, dele interpôs a Ré recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1- A Ré C… não se conforma com a douta sentença a quo que a condenou a dar de quitação ao autor todas as responsabilidades por si assumidas na qualidade de fiador dos contratos dos dois mútuos identificados nos autos, comunicando a extinção das responsabilidades junto do Banco de Portugal.
2- Entendeu o Tribunal a quo que a sentença de graduação de créditos graduou a prioridade das hipotecas em causa de forma distinta daquela que a ré defendeu, considerando que nos termos do art. 686º do C.C, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas móveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, o preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo.
3- Afigura-se à ora recorrente que a interpretação do citado art. 686º padece de erro de interpretação, que importa corrigir, dado que aquele normativo aplica-se a um específico confronto entre o direito que assiste a demais credores que gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo, e, não ao confronto entre os diversos direitos que assistam ao mesmo e único credor hipotecário, como, manifestamente é o caso dos autos.
4- As regras de imputação do cumprimento acham-se previstas no art. 783º e ss do C.C.
5- Desta feita o art. 783º respeita a situações de “designação” pelo devedor e que prescreve “Se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efectuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere.”
6- Ora, este meio de defesa que assistia à devedora, não foi por esta exercido e mal se alcança que possa ser deferido para o fiador, cujo interesse óbvio será o de imputar um pagamento que lhe é alheio a dívida que afiança, em detrimento (prejuízo) de outro ou outras por si não afiançadas.
7- Se o devedor não o fizer, aplica-se o art. 784º do C.C. e desta feita: deve o cumprimento imputar-se na dívida vencida; entre várias vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente oneradas, na que primeiro se tenha vencido e se várias se tiverem vencido simultaneamente na mais antiga em data.
8- A imputação feita pela recorrente obedece claramente ao critério definido no citado artigo, ao ter sido alocada ao valor das dívidas com menor garantia (as não afiançadas, i.e, as carecidas de garantia pessoal).
9- E entende a recorrente, e bem assim a mais recente jurisprudência (da qual se destaca o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 24/01/2017, no processo 218/14.9TBCBR.C1) que tais disposições podem ser aplicadas em sede de processo de insolvência as regras de imputação do cumprimento, na medida em que nenhum impedimento legal se vislumbra.
10- Pois que, as supra citadas regras civilísticas têm como escopo definir e clarificar a situação debitória complexa entre as partes.
11- De entre as diversas dívidas existentes fixam-se as que têm como totalmente pagas pelo cumprimento parcial, a par do que se autonomizam as que ainda estão por cumprir, de moldes a poderem ser exigidas ulteriormente, coadunando-se com o que se dispõe no art. 217º, nº 4 do CIRE.
12- Embora pareça tratar-se de uma solução de desprotecção de terceiros garantes, é uma solução pela qual, de caso pensado, optou o legislador, tal como é referido por Carvalho Fernandes e J. Labareda in CIRE anotado).
13- Pelo que nada obsta, bem ao contrário, tudo aconselha que tais normas sejam subsidiariamente aplicáveis, especialmente, num apenso de cariz declarativo, como o é o do reconhecimento e graduação de créditos.
14- Dado que o insolvente não exerceu o seu direito de imputação, sempre se imporia a regra supletiva.
15- Foi em obediência, clara e expressa, a tal regra supletiva do art. 784º do C.C. que a credora, e aqui recorrente, efectivou a imputação.
16- O raciocínio explanado na douta sentença a quo, mais uma vez se dirá, peca por imperfeição, na medida em que consiste na consideração de aplicação de uma norma que veio a confronto entre dois ou mais credores, que não releva na situação de um único credor.
17- Viola assim a douta sentença os artigos 783º e 784 do C.C, devendo ser considerada revogada a decisão recorrida, e em consequência considerar totalmente improcedente a acção contra a aqui recorrente.
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O Autor recorreu subordinadamente, concluindo do seguinte modo:
1. O recorrente não se conforma com a douta sentença na parte em que esta julga improcedente o pedido de condenação da Ré no pagamento dos danos decorrentes da sua actuação.
2. A sentença conclui que a comunicação ao Banco de Portugal das responsabilidades do Autor não acarreta a impossibilidade de obtenção de crédito ou de cartão de crédito.
3. O facto de o cliente figurar no Mapa de Responsabilidades do Banco de Portugal, como devedor em situação regular apenas poderá ter limites na obtenção de crédito por ser entendido que ultrapasse a sua taxa de esforço.
4. No caso dos autos o Autor figura como estando em situação de incumprimento, o que impede a concessão de crédito.
5. Ao ter proferido a sentença no despacho saneador, o tribunal não permitiu que o Autor demonstrasse que não tinha acesso a crédito.
6. O caso dos autos subsume-se ao domínio da responsabilidade extracontratual.
7. Sendo, como foi, ilícita a imputação dos pagamentos efectuados pela Ré, também é ilícita a comunicação que efectuou ao Banco de Portugal.
8. E este ato ilícito violou direitos do Autor mormente o seu direito ao bom nome.
9. Ou seja, a Ré não podia imputar o pagamento dos créditos em causa nos autos da forma que o fez sem respeito pelas normas que regem os privilégios creditórios e a prioridade do registo.
10. Tendo-o feito e tendo comunicado o incumprimento com base numa actuação ilícita tem obrigação de indemnizar.
11. É responsável civilmente quem, segundo o art. 484º do CC, afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou bom-nome de qualquer pessoa, singular ou coletiva, respondendo, neste caso, pelos danos causados.
12. Ao comunicar ao Banco de Portugal um incumprimento do Autor, que não existia, a Ré afectou o bom-nome do Autor e impediu-o de recorrer a crédito, se o necessitasse.
13. Esses danos não são meros incómodos e devem merecer a tutela do direito, devendo, pela sua gravidade, ser indemnizados por quem lhes deu causa, nos termos do art. 496º do CC.
14. Entende, assim o Autor que se encontram reunidos os pressupostos da ilicitude e da culpa funcional da Ré, sendo a mesma responsável pelos prejuízos causados ao Autor com a sua conduta.
15. Assim e pelo exposto, entende o Autor que a douta sentença em crise violou o disposto no artº 483º do CC, devendo ser, nessa parte, revogada.
NO QUE RESPEITA ÀS ALEGAÇÕES DA RÉ:
16. Não é pelo facto de se tratar de um ou de uma pluralidade de credores que deixa de existir o dever de obediência ao princípio da prevalência das garantias hipotecárias pela ordem do seu registo, ou seja, ao princípio da prioridade do registo.
17. A sentença de graduação de créditos proferida no processo de insolvência onde a Ré logrou receber parte dos seus créditos, graduou as hipotecas de que beneficiava a Ré, tanto mais que a mesma se refere expressamente ao artº 686º do CC.
18. O disposto no art. 783 do Código Civil não se sobrepõe às normas que prevêem a prevalência das garantias hipotecárias pela ordem da sua constituição e/ou prioridade de registo.
19. Sendo o registo da hipoteca constitutivo da mesma, não pode o credor vir a seu belo prazer alterar a ordem das garantias dos seus créditos. Deve obediência à prioridade dos registos tendo se ser pago em primeiro lugar o crédito garantido pela hipoteca mais antiga.
20. Não o fazendo, violou a Ré o disposto nos artigos 686 º, 687º, 734º e 735º, do Código Civil.
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A Ré apresentou contra-alegações ao recurso subordinado, sustentando a sua improcedência.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil). Face às conclusões do recorrente, as questões a decidir são, no recurso principal, a de saber se efectivamente se encontram extintas as obrigações garantidas por fiança do Autor, e, no recurso subordinado, se os danos por ele sofridos devem merecer, pela sua gravidade, a tutela do direito, devendo ser indemnizados pela Ré.
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A 1.ª instância considerou assentes os seguintes factos com base na prova documental:
a) A ré C… é uma instituição de crédito que se dedica à actividade bancária;
b) O autor B…, por seu turno, foi fiador de dois contratos de mútuo celebrados entre a ré e D…;
c) Em 02 de Junho de 2004, o D… celebrou com a ré um contrato de mútuo com hipoteca no valor de € 150.000,00 (cento e cinquenta mil euros);
d) Tendo o autor garantido por fiança o pagamento do referido contrato;
e) Para garantia do cumprimento deste contrato o referido D… constituiu a favor da ré, hipoteca sobre o prédio urbano composto de casa sobradada e logradouro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº 267 e inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 100, hipoteca registada a favor da ré através da Ap. 61 de 07.05.2004;
f) Nesse mesmo dia, o D… celebrou com a ré outro contrato de mútuo com hipoteca no valor de € 25.000,00,00 (vinte e cinco mil euros);
g) O qual foi igualmente garantido por fiança prestada pelo autor;
h) Para garantia do cumprimento deste contrato o referido D… constituiu a favor da ré, hipoteca sobre o prédio urbano composto de casa sobradada e logradouro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº 267 e inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 100, hipoteca registada a favor da ré através da Ap. 62 de 07.05.2004;
i) Em 9 de Fevereiro de 2009, o referido D… celebrou com a ré um terceiro contrato de mútuo com hipoteca, desta feita no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros);
j) O Autor não teve qualquer intervenção neste terceiro contrato de mútuo;
k) Para garantia do cumprimento deste contrato o referido D… constituiu a favor da ré, hipoteca sobre o prédio urbano composto de casa sobradada e logradouro, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº 267 e inscrito na matriz predial respectiva sob o art. 100, hipoteca registada a favor da ré através da Ap. 3993 de 2009.02.12;
l) Em 2 de Agosto de 2013, o D… veio a ser declarado insolvente nos autos que sob o número 5084/13.9TBBRG correm termos no Juiz 3 do Tribunal Judicial de Braga (doc. de fls. 19);
m) A Ré reclamou no referido processo e foram-lhe reconhecidos créditos garantidos pelas três hipotecas acima referidas, no total de 217.244,95 euros, juros vencidos incluídos (cfr. docs. de fls. 20 verso a 21 verso, relativamente às quantias parcelares e fls. 77 relativamente ao valor global reconhecido pelo administrador da insolvência);
n) O imóvel dado de garantia dos referidos créditos e supra identificado, foi vendido no âmbito do processo de Insolvência pelo valor de 220.100,00 euros (doc. de fls. 23 verso a 27);
o) Foi proferida sentença de graduação de créditos a qual veio a graduar os créditos da ré acima referidos como garantidos, devendo os mesmos ser pagos nos termos do artº 686º, nº 1 do Código Civil (cfr. doc./sentença de fls. 71 a 74);
p) No âmbito da referida insolvência, na sequência da venda do imóvel que constituía a garantia real dos contratos de mútuo celebrados, a ré recebeu a quantia de 204. 276,00 euros;
q) A ré imputou esse pagamento, primeiramente ao crédito mais recente, não garantido por fiança do autor e o restante aos dois créditos anteriores, ficando por saldar um valor residual que mantém como débito do autor na qualidade de fiador, comunicando tal débito ao Banco de Portugal.
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A recorrente Ré discorda do entendimento do Mmo. Juiz a quo segundo o qual, sendo a sentença de graduação de créditos expressa na referência ao art. 686.º do Código Civil (CC) - que preceitua que a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis, ou equiparadas, pertencentes ao devedor ou a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo -, há que ter em consideração a regra da prioridade de registo. Daí resultando que, estando devidamente contratualizadas e registadas as várias hipotecas, tal garantia confere à ré o direito de ser paga, como foi, em primeiro lugar e pelo produto da venda do imóvel, devendo imputar o pagamento nos valores reclamados e pela ordem da prioridade do registo. Assistindo, por isso, direito ao autor de ver declarado que as suas responsabilidades perante a ré e na qualidade de fiador dos dois contratos de mútuo em que outorgou se mostram extintos pelo pagamento.
Assiste, com efeito, razão à recorrente. O citado art. 686º do CC diz respeito ao confronto entre os direitos que possam assistir a vários credores que gozem de hipoteca ou privilégio especial, que se define pela prioridade de registo. E não ao confronto entre os diversos direitos que assistam ao mesmo e único credor hipotecário e entre as diversas garantias constituídas para segurança de tais direitos, como aquele a que os presentes autos respeitam.
E no tocante à definição da responsabilidade do fiador, havendo garantias reais, a regra supletiva não é a da prioridade do registo das várias hipotecas, mas antes a consagrada no artigo 639.º do CC:
1. Se, para segurança da mesma dívida, houver garantia real constituída por terceiro, contemporânea da fiança ou anterior a ela, tem o fiador o direito de exigir a execução prévia das coisas sobre que recai a garantia real.
2. Quando as coisas oneradas garantam outros créditos do mesmo credor, o disposto no número anterior só é aplicável se o valor delas for suficiente para satisfazer a todos.
No caso vertente, porém, e como Resulta dos documentos de folhas 8/11 e 14/18, verifica-se que o A. expressamente se constituiu fiador e principal pagador das dívidas contraídas pelo mutuário, renunciando expressamente ao benefício da excussão prévia, pelo que tal regra supletiva se encontra afastada. O fiador é equiparado ao principal devedor, sendo-lhe aplicáveis as regras de imputação do cumprimento dos artºs 783º e sgs. do Código Civil, que podem ser aplicadas em sede de processo de insolvência, como se entendeu no acórdão da Relação de Coimbra de 24-01-2017 (Processo 218/14.9TBCBR.C1, in www.dgsi.pt). Tais regras civilísticas, como aí se escreveu têm como fito definir e clarificar a situação debitória complexa existente entre as partes. Pois que de entre as várias dívidas existentes fixam-se as que se têm como totalmente pagas pelo cumprimento parcial, assim se concretizando as que ainda estão por cumprir, as quais, consequentemente, mais facilmente poderão ser exigidas ulteriormente. E ademais se evitando discussões sobre o que ainda está, e não está, em dívida, e até, eventual duplicação de pagamento. E tal ratio parece ter validade para a reclamação de créditos em insolvência, até porque, nos termos do disposto no artº 217º nº4 do CIRE:
«As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos».
As regras de imputação do cumprimento encontram-se previstas na Subsecção V da secção I - Cumprimento, do capítulo VII, do título I do Livro das Obrigações do CC. No tocante às situações de designação pelo devedor dispõe o art. 783º:
1. Se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efectuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere;
2. O devedor, porém, não pode designar contra a vontade do credor uma dívida que ainda não esteja vencida, se o prazo tiver sido estabelecido em benefício do credor; e também não lhe é lícito designar contra a vontade do credor uma dívida de montante superior ao da prestação efectuada, desde que o credor tenha o direito de recusar a prestação parcial.
Ora, tal designação que assistia ao mutuário não foi exercida, nem pode agora ser deferida ao fiador, obviamente interessado em imputar um pagamento que lhe é alheio a divida que afiança em detrimento de outra ou outras contra si não accionadas ou a que seja estranho. A escolha pelo devedor ou pelo seu fiador pressuporia aliás um cumprimento espontâneo, conforme se diz no Ac. STJ de 25-11-2004, Revista n.º 3806/04 - 7.ª Secção, citado pelo aresto em referência.
Não tendo sido feita escolha - valem as regras supletivas consagradas no artigo 784.º do CC:
1. Se o devedor não fizer a designação, deve o cumprimento imputar-se na dívida vencida; entre várias dívidas vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor; entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data.
2. Não sendo possível aplicar as regras fixadas no número precedente, a prestação presumir-se-á feita por conta de todas as dívidas, rateadamente, mesmo com prejuízo, neste caso, do disposto no artigo 763.º.
Ora, gozando o contrato de mútuo referido em i), celebrado em 9 de Fevereiro de 2009, apenas de hipoteca, e não de hipoteca e fiança, o respectivo crédito é objectivamente aquele que oferece menor garantia para o credor, pelo que a imputação feita pela recorrente Ré, credora, obedece claramente ao critério de ter sido imputado o valor à dívida com menores garantias.
Improcedendo, por isso, a pretensão do A. de condenação da Ré a dar quitação de toda e qualquer responsabilidade do A. relativa às fianças prestadas. Inexistindo, por isso, quaisquer prejuízos a indemnizar decorrentes da sua actuação.
Procede, pelo exposto, o recurso principal, improcedendo o recurso subordinado.

Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente o recurso principal interposto, revogando-se a douta sentença recorrida e absolvendo-se a Ré de todos os pedidos; e improcedente o recurso subordinado interposto pelo Autor.
Custas pelo Autor em ambas as instâncias.

Porto, 2019/07/10
João Proença
Maria Graça Mira
Estelita de Mendonça